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DIREITO ADQUIRIDO: Seguro de vida não pode ser alterado devido a elevação de faixa etária

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DECISÃO:  * TJ-RS  –   O aumento do prêmio do seguro de vida deve ocorrer com base na regra vigente no início da contratação. O entendimento é da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Estado, confirmando sentença que determinou à Sul América Seguro de Vida e Previdência manter contrato originalmente firmado com a autora da ação.

Conforme o Colegiado, a troca de faixa etária da segurada não é motivo para elevação da cobrança do seguro. Para os magistrados, houve afronta ao Código de Defesa do Consumidor e da boa-fé objetiva norteadora das relações contratuais.

A demandante narrou que, depois de 20 anos de contratação do seguro, a Sul América estabeleceu um programa de readequação contratual. Salientou que o novo contrato é abusivo porque ao invés de aumentar o valor do capital segurado em caso de morte, com o passar dos anos, diminuiu a indenização.

A empresa recorreu da sentença do Juizado Especial Cível de Porto Alegre. Alegou que o contrato de seguro é temporário, com previsão expressa de não renovação. Sustentou ter efetuado a alteração contratual devido à nova regulamentação do setor, a qual também impossibilita a renovação dos atuais seguros que administra. Segundo a recorrente, ainda, o envelhecimento em massa dos segurados tornou necessário o reequilíbrio da “carteira de vida”.

Para o relator do processo, Juiz Carlos Eduardo Richinitti, paga-se seguro de vida, “com certeza não para resguardar a juventude, mas sim, e, principalmente, o ocaso da existência.” Quando o risco aumenta, frisou, é chegado o momento da seguradora fazer a sua parte e, entretanto, muda a regra do jogo. “Isso é lícito, é aceitável?”

Reiterou ser “normal, ante o aumento da idade, que o prêmio seja majorado com base na regra vigente do início da contratação, sendo absolutamente irregular pretender, sob o fundamento de exercício do direito de não revonar, alterar, em verdade, aquilo que estava contratado”.

Votaram de acordo com relator, os Juízes Eduardo Kraemer e Clóvis Moacyr Mattana Ramos. Proc. 71001344316


FONTE:  TJ-RS,  29 de outubro de 2007.

ACIDENTE DE TRABALHO: Trabalhador que perdeu o dedo conquista pensão mensal e indenização

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DECISÃO:  TRT-Campinas –  Em votação unânime, a 10ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região deu provimento parcial a recurso ordinário de um trabalhador que teve o dedo médio da mão esquerda mutilado num acidente de trabalho, condenando a reclamada, uma empresa que fabrica e comercializa papéis e plásticos, a pagar ao reclamante pensão mensal no valor de meio salário mínimo. A pensão será devida desde o ajuizamento da ação até o trabalhador completar 70 anos de idade ou caso ocorra a extinção da personalidade jurídica da pessoa natural, conforme prevê o artigo 6º do novo Código Civil.

O autor deverá ser incluído na folha de pagamento da empresa, de acordo com os termos do artigo 475-Q do Código de Processo Civil (CPC), para assegurar o pagamento da renda mensal. A reclamada também foi condenada a pagar ao trabalhador 50 salários mínimos, a título de indenização por danos morais.

Segundo a petição inicial, o reclamante sofreu o acidente em 26 de setembro de 2001, quando operava uma máquina de corte e vinco. Na defesa, a reclamada alegou que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do próprio trabalhador, que teria feito o conserto da máquina sem desligá-la. A empresa acrescentou ainda que o autor era bastante experiente no desempenho de suas funções, uma vez que já trabalhava com a máquina desde 1998.

Na primeira instância, a Vara do Trabalho de Andradina julgou improcedente a ação. Em seu recurso, o reclamante argumentou ser devida a indenização por dano moral e material, alegando que a culpa era efetivamente do empregador. Defendeu também que não há impedimento à acumulação do benefício recebido do INSS em função da invalidez com a pensão pleiteada.

Quanto à culpa pelo acidente, a relatora do acórdão no TRT, juíza Elency Pereira Neves, observou que o próprio preposto da empresa admitiu, no depoimento pessoal, que “não havia manual de instrução de operação das máquinas, pois elas são antigas". Confessou também que o reclamante não recebeu as informações necessárias à operação da máquina e tampouco participou de qualquer curso ou treinamento de prevenção de acidentes. Segundo o preposto, a empresa optou por "confiar nas habilidades de seus empregados".

Por sua vez, a testemunha apresentada pelo reclamante afirmou que, na hipótese de a máquina necessitar de reparos, o conserto deveria ser feito sem que ela fosse desligada, porque “o encarregado do setor dava bronca quando via uma máquina parada”. Para a juíza Elency, os depoimentos tornaram inquestionável “a culpa do empregador por negligência, estando comprovado o nexo de causalidade entre o acidente do empregado e a atividade exigida pela empresa”.

A Câmara decidiu, no entanto, pela rejeição ao pedido de dano material. “Conquanto suficientemente comprovado o acidente de trabalho, não há qualquer elemento nos autos que leve, no mínimo, à presunção de dispêndios com remédios, consultas médicas, fisioterapia, etc.”, ponderou a relatora, no que foi acompanhada pelos demais integrantes do colegiado.

“Quanto ao dano moral”, ressaltou a juíza Elency, “impossível negar, no caso, a ocorrência de sofrimento interior, angústia ou amargura experimentados pelo reclamante, diante das lesões sofridas”. Todavia a Câmara, mais uma vez seguindo proposição da relatora, julgou exorbitante a pretensão formulada pelo autor, de 500 salários mínimos, reduzindo o valor para um décimo disso, “considerando-se a condição econômica das partes, a gravidade da lesão e a função pedagógica da cominação”, complementou a magistrada.

Com relação à pensão mensal, a relatora esclareceu que a percepção do benefício previdenciário (auxílio acidente) pelo empregado tem natureza alimentar, devendo ser recebido enquanto perdurar sua incapacidade para o trabalho. Já a perda patrimonial causada pelo acidente possui natureza reparatória, ponderou. Sendo assim, a Câmara impôs a condenação da reclamada ao pagamento da pensão mensal. (Processo 1520-2005-056-15-00-5 RO)

 


FONTE:  TRT-Campinas (15ª Região), 29 de outubro de 2007.

PEDIDO INICIAL: Erro na denominação da ação não gera inépcia

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DECISÃO:  *TRT-MG – A petição inicial é inepta quando apresenta irregularidades formais (de conteúdo incompleto ou redação confusa) que tornam impossível o julgamento da ação, porque inviável a apreciação do pedido do autor, comprometendo ainda a apresentação da defesa. Como vício insanável, que gera a extinção do processo sem julgamento de mérito, os casos de inépcia estão definidos no parágrafo único do artigo 295 do Código de Processo Civil.

Portanto, conforme decisão da 2ª Turma do TRT-MG, ela não se caracteriza em razão da denominação conferida à ação, mas sim da narrativa dos fatos e seus fundamentos jurídicos, bem como da formulação do pedido, que revela a tutela jurisdicional pretendida, de modo a possibilitar a ampla resposta da parte contrária, em obediência ao princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º da Constituição Federal). “Dessa forma, a denominação que se confere à ação não é, via de regra, elemento suficiente e decisivo para a caracterização de vício insanável, desde que estejam presentes a relação de congruência e o nexo lógico que devem existir entre a narrativa dos fatos e o pedido formulado ” – explica o desembargador Márcio Flávio Salem Vidigal, dando provimento a recurso interposto por um sindicato para afastar a preliminar de inépcia da inicial acolhida em primeiro grau.

No caso, embora a demanda não se caracterize como uma ação de cumprimento, conforme registrado na petição inicial, fica claro na peça que se trata de reclamação trabalhista em que o Sindicato, atuando como substituto processual, pleiteia a condenação da empresa reclamada ao pagamento de prêmios e comissões aos empregados substituídos. Não há qualquer pedido formulado com base em descumprimento de normas estabelecidas por instrumentos coletivos de trabalho, pelo que fica descartada a hipótese de ação de cumprimento.

De todo modo, a parte contrária apresentou ampla defesa, o que é motivo suficiente para afastar a preliminar de inépcia. “Assim, o mero equívoco quanto à denominação da ação proposta não constitui defeito ou vício insanável que macula desde logo o processo, impedindo o seu prosseguimento e a solução da lide, mormente se é possível à parte contrária apresentar defesa e ao julgador se pronunciar a propósito do pedido em face da presença de elementos suficientes ao entendimento da demanda” – frisa o relator.

Nesta esteira, a Turma determinou o retorno dos autos à Vara de origem para que se processe a reclamação trabalhista como de rito ordinário, devendo o juiz de primeiro grau instruir regularmente o processo e proferir decisão sobre os pedidos feitos pelo autor. (RO nº 00413-2007-014-03-00-5)


FONTE:  TRT-MG, 29 de outubro de 2007.

DIREITO À VIDA: Poder Público deve fornecer remédio necessário a paciente carente

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DECISÃO:  * TJ-MT –  É dever do Poder Público fornecer a qualquer pessoa o remédio necessário ao restabelecimento de sua saúde e ao amparo de sua vida. Esse é o entendimento da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que julgou improcedente o recurso interposto pelo Estado de Mato Grosso contra decisão de Primeira Instância que determinou o fornecimento do medicamento Clopidrogel 75 mg – ou seu substituto adequado – a um paciente com insuficiência coronariana. 

O Estado alegou que o remédio solicitado não faz parte da Portaria do Ministério da Saúde nº. 2577/2006, nem da Portaria Estadual nº. 225/2004. Contudo, de acordo com o relator do processo, desembargador José Ferreira Leite, o fato de o medicamento reclamado não constar nas duas portarias não constitui razão suficiente para impedir o fornecimento do remédio de que o paciente necessita, "pois, segundo penso, norma infraconstitucional não pode suplantar direito social constitucional", avaliou o magistrado.

Em seu voto (recurso de agravo de instrumento nº. 47598/2007), o desembargador afirmou que a saúde é direito de todos e dever do Estado, conforme os artigos 196 e 217 da Constituição Federal. Por isso, o Poder Público deve fornecer os medicamentos necessários ao restabelecimento da saúde do cidadão acometido por doença grave e comprovadamente necessitado. 

O paciente foi submetido a uma angioplastia e a três cateterismos, devido ao infarto de duas artérias coronarianas – uma com 98% e outra com 95% de entupimento. Ele não possui condições financeiras de adquirir o medicamento, indispensável à manutenção de sua saúde. 

O desembargador José Ferreira Leite salientou ainda que a Lei nº. 8.080/90, que regula as ações e os serviços de saúde em todo o território nacional, impõe a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, portanto, a administração pública não pode se furtar em fornecer o medicamento prescrito ao paciente.

"Segundo penso, cumpre ao Estado, por meio de seu órgão competente, fornecer medicamentos indispensáveis ao tratamento de pessoa portadora de patologia considerada grave, máxime quando aquele não tem condições econômico-financeiras de arcar com os custos dos medicamentos, caso do recorrido", acrescentou o magistrado. Conforme a decisão, o medicamento deve ser fornecido ao paciente por um período de um ano.

Também participaram do julgamento, realizado na quarta-feira (24 de outubro), o desembargador Mariano Alonso Ribeiro Travassos (1º vogal) e o juiz substituto de 2º grau Marcelo Souza de Barros.


FONTE:  TJU-MT, 29 de outubro de 2007.

CONSUMIDOR: Banco não pode ser responsabilizado por defeito em veículo adquirido com financiamento

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DECISÃO:  * STJ  –  O Banco General Motors S/A não pode ser responsabilizado por defeito em veículo adquirido com financiamento concedido por ele. Esse o entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não aceitou recurso especial de uma consumidora que tentou devolver ao banco carro fabricado pela General Motors do Brasil.

A consumidora ajuizou ação de consignação cumulada com rescisão contratual contra o Banco General Motors S/A para devolver o veículo ao credor do financiamento. Inicialmente, ela alegou que, após o pagamento de oito prestações, não conseguiu mais arcar com a dívida.

O banco sustentou que a cliente moveu ação de consignação em pagamento com pedido de anulação do contrato alegando problemas de fabricação no veículo. Segundo o banco, a consumidora pediu na ação a troca do veículo ou a anulação do contrato de alienação fiduciária com a devolução das prestações pagas. Nessas condições, a instituição financeira alegou ilegitimidade passiva no processo porque não produziu nem alienou o veículo.

A sentença de primeiro grau foi favorável à consumidora. O juiz entendeu que o banco seria parte legítima na ação porque o bem está alienado a ele. Mas a decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (TJ), ao julgar a apelação do banco. Contrariando o parecer do Ministério Público, o Tribunal estadual declarou a ilegitimidade passiva do banco, ressaltando que qualquer defeito existente no veículo é de responsabilidade do fabricante ou do fornecedor. Como entendeu que o banco não pode ser parte na ação, o TJ extinguiu o processo sem julgamento de mérito.

Foi contra essa decisão que a consumidora recorreu ao STJ. O relator do caso, ministro Aldir Passarinho Junior, concordou com o entendimento do Tribunal estadual e não conheceu do recurso especial, mantendo assim a extinção do processo. O voto do relator foi acompanhando por todos os ministros da Quarta Turma.

 


FONTE:  STJ, 29 de outubro de 2007.

A objeção de pré-executividade em face dos renovados embargos

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* Éverton Campos de Oliveira Júnior 

O pequeno trabalho em apresentação faz uma simplória análise, respaldada em opiniões abalizadas, de como será trabalhada e tratada a objeção de pré-executividade frente às últimas mudanças na codificação processual civil pátria, em particular quanto aos embargos, em virtude da semelhança técnica de ambos os institutos, sublinhando se, nessa conjuntura, tornar-se-ão figuras excludentes, ou se ainda haverá a co-existência e a efetividade das duas. 

A exceção de pré-executividade, criação doutrinária e jurisprudencial, já assente no direito pátrio, funciona como espécie de defesa deferida ao executado, pela qual, por simples petição nos autos, suscita matéria de ordem pública, como escopo de suspensão da execução, sem a premente necessidade de prevenir o juízo. Inicialmente, tal objeção era lançada pelo devedor quando havia questão que pudesse o juiz reconhecer de ofício (de natureza pública), como as ligada à legitimidade, condições da ação, etc. Porém, com o evoluir do seu uso, passou-se também a lançar mão do instituto em causa, para comprovação de extinção da obrigação, como nos casos de pagamento, novação, sub-rogação, anulação de título executivo, dentre outros. 

Uma vez proposta tal objeção, não há determinação para feitura de penhora, caução, ou qualquer outra forma de prevenção do juízo, pois a partir de tal momento, há uma presunção a ser considerada, de que a invasão ao patrimônio do devedor pode causar injustiça, vez que pode a obrigação não mais existir ou não ser legítima aquela ação de cobrança. Para tanto, deve o executado lançar mão de provas pré-constituídas, pois não tem a objeção de pré-executividade o condão de promover uma dilação probatória substancial, já que é somente cabível quanto a questões públicas e reconhecidas de ofício, ou então mediante de apresentação de prova direta de mão existência de desobrigação.

Para complementação do conceito, o Prof. Humberto Theodoro Júnior assim se posicionou, como segue transcrito: 

"É assim que está assente na doutrina e jurisprudência atuais a possibilidade de o devedor usar da exceção de pré-executividade, independentemente de penhora ou de depósito da coisa e sem sujeição ao procedimento dos embargos, sempre que sua defesa se referir a matéria de ordem pública e ligada às condições da ação executiva e seus pressupostos processuais. O que se reclama para permitir a defesa fora dos embargos do devedor é versá-la sobre questão de direito ou de faro documentalmente provado. Se houver necessidade de maior pesquisa probatória, não será própria a exceção de pré-executividade". 

Acerca da seara prática, comentando como tem sido utilizada tal objeção no meio forense, as professoras Mirna Cianci e Rita Quartieri, em artigo apartado, delinearam seus pensamentos, assim transcritos: "Não inobstante inexistir regra que preveja a chamada exceção de pré-executividade, surgiu antes mesmo do atual CPC e vem sendo utilizado pelos executados cada vez mais largamente no âmbito das execuções fiscais, objetivando obstaculizar o trâmite da execução, independentemente de garantir o juízo, sob várias alegações, tais como a nulidade de título, pagamento, decadência, prescrição, etc."

 A Objeção em estudo, apregoa o efeito suspensivo da execução (muito discutida pela doutrina), já que busca a análise incidental de uma prova pré-formatada, apresentada mediante petição simples nos autos, que trazem presunção analisável de que o devedor não mais é obrigado a pagar. Caso não dê, o megistrado, o esperado efeito suspensivo do instituto, então desnatura-se a substância do incidente, já que correria a execução, como se nenhuma nova prova devesse ser analisada, proporcionando o surgimento de danos perigosos e eventualmente irreparáveis. O colega Rafael Costa, em artigo sobre o assunto, assim emitiu opinião: 

"Como foi demonstrado, o principal objetivo da exceção de pré-executividade é proporcionar a possibilidade de defesa ao executado, desde que este alegue questões de ordem pública ou matérias que possuam provas pré-constituídas, sem que tenha seu patrimônio invadido. Diante de tal afirmação, negar o efeito suspensivo à exceção de pré-executividade significa retirar toda a sua essência. Se a exceção de pré-executividade não tiver o poder de suspender o curso do processo executivo, não há porque conceber a sua existência. Totalmente descabível é a hipótese de um determinado devedor, ilegítimo para figurar no pólo passivo da demanda, opor a exceção de pré-executividade, e mesmo assim ver seus bens penhorados judicialmente. Caso o fato acima descrito fosse concebível, obviamente se chegaria à conclusão de que a oposição da exceção de pré-executividade não teve nenhuma eficácia. Seria mais lógico que o devedor deixasse para fazer todas as suas alegações nos embargos, pois de qualquer forma ocorreria a constrição judicial dos seus bens. Como conseqüência, toda a defesa do devedor estaria limitada aos embargos à execução e, logicamente, condicionada à invasão do seu patrimônio". 

O Código Processual Civil pátrio lista como forma de defesa do executado o instituto dos Embragos, apresentado nos arts. 736/737. Antes da edição da Lei n. 11.382/06, a objeção de Pre-Executividade tinha sobrevalor em relação aos embargos, pois neste, havia necessidade de caução ou mecanismo afim, para que não houvesse a invasão patrimonial do devedor, enquanto na objeção, não florescia necessidade da prevenção do juízo antes que fosse deferida a penhora ou o arresto. Na prática, preenchidos os pré-requisitos, era bem melhor ajuizar uma objeção de pré-executividade, pois não haveria invasão patrimonial até que se decidisse acerca do incidente, além do importante fato referente à questão de prazo de interposição, já que os embargos inpinjem prazos escorreitos e peremptórios.  

O panorama mudou sobremaneira depois do advento da Lei n. 11.382/06, que alterou profundamente a dicção dos embargos.  Os artigos que tratavam dos embargos, anteriormente, rezavam que ‘ não são admissíveis embargos do devedor antes de seguro o juízo: I- pela penhora, na execução de quantia certa; II- pelo depósito, na execução de entrega de coisa (art. 738)’. Era clara a legislação, quando da determinação inequívoca de que para interposição de embargos do devedor era imprescindível que o juízo fosse segurado, mediante penhora ou depósito, a depender do tipo de execução. Após a alteração, o Código de Processo Civil assenta em seus artigos 736 e 739-A que: "O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos" (art. 736)… "Os embargos do executado não terão efeito suspensivo. Inciso 1º. O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficiente". (art. 739-A). A legislação ofereceu, inovando, ao devedor, que os embargos pudessem ser ajuizados sem a prevenção do juízo, facilitando o manuseamento do instituto, deixando seu uso mais prático par o executado. Antes, os embargos somente eram reconhecidos com a prova da caução, penhora ou depósito, que tinham caráter de imprescindibilidade. Agora, eles são deferidos e apensados por dependência, sem a imposição do seguro dos valores discutidos. 

O mestre Luiz Rodrigues Wambier, sobre o tema embargos e a mudança legiferante, assim os sintetiza: "Daí a previsão dos embargos: instrumento que se confere ao devedor para que possa discutir o mérito do direito pretendido pelo exeqüente, bem como suscitar defeitos na constituição e andamento da execução, tendo a possibilidade de desde que presente determinados requisitos, obter a suspensão do processo executivo enquanto se apreciam suas alegações."

 As vantagens da objeção de pré-executividade frente aos embargos diminuíram sensivelmente, mas não resta dúvida que co-existirão simultaneamente. A objeção em tela, de plano, impende à suspensão processual da execução, até que se analise o incidente e sobre ele se decida favoravelmente, com a extinção do processo, ou negativamente, com o prosseguimento do feito. Não se pode deixar de fazer menção à crítica doutrinária acerca da pré-executividade, no que tange ser um incidente de natureza cognitiva, realizada num momento de execução, qual seja, o do processo executivo. O momento para análise de prova e proferição de decisão, segundo a corrente criticista, é somente o do processo de conhecimento, que, grosso modo, minuciará um futuro procedimento de execução, mediante título executivo, de natureza judicial ou extra-judicial. A fase executiva, portanto, seria somente para fins de quitação patrimonial entre as partes, ou seja, fazer com que a obrigação seja resolvida. Entretanto, como foi dito acima, ainda que haja corrente criticista minoritário, é assente o uso da objeção de pre-executividade, na forma que se conhece hoje, como um incidente de perfunctória análise probatória, na busca da mais justa execução.

 O ajuizamento dos embargos do devedor somente gerará de suspensão do processo executivo, mediante requerimento, e preenchidos requisitos de lei, havendo, pois, perigo de dano de difícil reparação, ainda assim, mediante segurança do juízo, como regra. Não há que se duvidar que haja casos futuros em que pode o julgador, de plano, deferir o requerimento da suspensão sem obrigar a prevenção do juízo, após uma análise preliminar das provas apresentadas, mas, como o estudo e a produção dessa idéia aqui defendida é atual, sublinhamos haver o imperativo na caução ou depósito para que os embargos suspendam o procedimento. Enquanto o efeito suspensivo é regra na pré-executividade, não o é nos embargos, o que faz efeito substancial para o devedor que lança mão da ação, já que o patrimônio será somente molestado após a apreciação do incidente, no caso da objeção, sem prevenção da execução, enquanto nos embargos urge o depósito ou caução se não quiser o devedor ter seu patrimônio invadido após o prazo de 15 (quinze) dias para a resposta do credor.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
EVERTON CAMPOS DE OLIVEIRA JÚNIOR: Servidor do Tribunal de Justiça do Estado 
de  Sergipe.    Bacharel  em   Direito pela   Universidade Federal  de Sergipe  e  Pós-
Graduando em  Processo Civil pela IELF/Unisul.


A segunda Conferência de Paz de Haia

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Leon Frejda Szklarowsky

"A paz não pode ser mantida à força. Somente pode ser atingida pelo entendimento" (Albert Einstein)

Pode-se não gostar da História, mas o ser humano não pode ignorá-la. A História retrata os momentos importantes, desastrosos ou heróicos da existência do homem. É a medida exata do que acontece e deve ser transcrito e rememorado para sempre.

Comemora-se neste ano o centenário da Segunda Conferência de Paz, realizada em Haia, na Holanda, em 1907, por convocação da Rainha da Holanda e do Czar da Rússia, a fim de evitar (o impossível!) a eclosão de uma guerra de proporções mundiais. Em 15 de junho, instalou-se solenemente a assembléia.

Afonso Pena sucedia a Rodrigues Alves na presidência da República, marcando seu governo pela participação do Brasil nessa Conferência. O Barão do Rio Branco, Ministro do Exterior, indicara Rui Barbosa para representar o Brasil nesse Conclave. O Brasil comparecia como expressão anã, ante os poderosos da época, mas a presença de Rui alçou-o ao primeiro plano, portando-se como Davi ante o gigante Golias.

Por sua significativa intervenção na defesa das nações exploradas e da absoluta igualdade jurídica dos Estados Soberanos, qualquer que fosse seu tamanho, recebeu o título de Águia de Haia, saindo o País engrandecido com a atuação deste advogado e notável tribuno.

Naquele ano, coincidentemente, Ernesto Teodoro Moneta, militante pacifista italiano, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Num dos inúmeros congressos de que participou, pronunciou as seguintes palavras: "Quiçá não tarde o dia em que todos os povos, esquecendo os antigos ódios, se unam sob a bandeira da fraternidade universal e, deixando as disputas que os envolve, cultivem as relações pacifistas, estreitando sólidos laços entre si". Em 1887, doze anos antes da realização da primeira conferência de paz, em Haia, fundou a União Lombarda para a Paz e Arbitragem.

Juntamente com o pacifista Moneta, o eminente professor francês, Louis Renault, catedrático de Direito Internacional, da Universidade de Paris, também recebeu o prêmio Nobel da Paz, por seus esforços em prol da solução dos conflitos, pacificamente. Nomeado árbitro da Corte Permanente de Arbitragem, de Haia, foi um dos grandes nomes deste Pretório e emprestou sua inteligência e talento em favor da arbitragem internacional e da paz. Teve participação exemplar nas conferências de 1899 e 1907, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento do Direito Internacional.

O Brasil e outros países do hemisfério sul estiveram ausentes na primeira conferência, realizada em 1899, por não haverem sido convidados. Os latino-americanos sentiram-se, então, desprezados. Entretanto, graças à intervenção dos Estados Unidos da América, os países latino-americanos tiveram sua presença garantida em 1907, como afirmação da Doutrina Monroe de defesa da soberania e integridade dessas repúblicas.

A humanidade sempre se pautou pelas guerras, desde a pré-história. O século XIX europeu caracterizou-se pelas trincheiras e valas bélicas, que semearam entre seus povos o ódio e a destruição. Entretanto, no final desse século, reinava ironicamente relativa paz. Havia terminado a guerra entre a França e a Alemanha. Aqui e acolá brotavam pequenas lutas, embora as tensões estivessem sempre presentes, e que desencadeariam a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial e as guerras regionais permanentes, com ameaças de destruição total do planeta, perdurando até o presente este horrendo e apocalíptico vaticínio.

Paradoxalmente, as grandes descobertas, o progresso das ciências, as ferrovias, a eletricidade (uma das mais importantes invenções, matriz de todas demais), a industrialização, em oposição à decadente agricultura, a economia nascente, a massificação, a migração do campo para as cidades, produziram grandes transformações nas sociedades. Seria o despertar para um mundo novo, jamais imaginado, não fossem a insensatez e as destruições trazidas pelas guerras.

Despontava, na década de 1870, um novo país que se tornaria, em breve, o mais poderoso da Terra e o sucessor dos grandes impérios de então: os Estados Unidos da América.

Neste panorama, a Primeira Conferência da Paz palmilhava a criação de um foro internacional – corte arbitral – com o objetivo de mediar os conflitos entre os Estados, evitando, destarte, que estes resolvessem as disputas por meio das armas. Na segunda conferência cristaliza-se a idéia da criação de uma Corte Internacional de Justiça. A arbitragem surgia, então, como a melhor forma de solução pacífica dos conflitos internacionais.

Desgraçadamente, não foi o que ocorreu. As guerras continuaram modelando o mundo de nossos avós, com requintes cada vez mais sofisticados e perversos, e assim prossegue o homem, sem se preocupar com o futuro daqueles que deverão sucedê-lo. O Século XX trouxe revolucionárias e novas esperanças de momentos de felicidade que ficaram apenas nas intenções.

Com o fim da guerra fria, a sociedade humana vive, hoje, paradoxalmente, ranços de um fundamentalismo de todas as correntes religiosas se alastrando, desastradamente, por toda a parte, o que é verdadeiramente aterrador. É tão nefasto quanto o era a discriminação político-ideológica e racial de tempos não tão longínquos. O que parecia sepultado, para todo o sempre, nas cinzas do passado, recrudesce com mais intensidade, atingindo as raias do absurdo e da insanidade. Os homens prosseguem se digladiando em nome da fé e os fundamentalistas de todos os credos, religiões e ideologias se dizem donos do Universo, como se a humanidade lhes houvesse outorgado o mandato e este lhes pertencesse.

No patamar em que se encontra a humanidade, somente o congraçamento e a solidariedade poderão afastá-la da tragédia de uma hecatombe, porque o ser humano ainda não aprendeu que, antes da guerra (e jamais esta), devem os homens sentar-se à mesa de conversações. Nunca depois, quando a destruição terá arrasado a civilização, pouco ou nada restando dela.

Os seres humanos podem perfeitamente viver em paz, se quiserem. Basta a vontade política, única capaz de remover fronteiras, etnias, barreiras religiosas e sólidas e antigas desavenças. Ainda há tempo. Ainda há pessoas lúcidas. Algumas vociferam. Outras, porém, – a maioria – encontram energia para o diálogo e para a diplomacia da palavra, da vida, e não da morte! A diplomacia, e não a guerra, deve resolver as crises entre nações e povos.

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Notas

01 Cf. Augusto Zimmermann, Rui Barbosa, o Águia de Haia, in www.achegas.net/numero/33/aug_zimmermann_33.pdf. Confere também www. casaruibarbosa.gov.br/template_01/default.asp?VID_Secao+2988VID_Materia=773. Consulta em 28.9.2002. Consulte-se, ainda, de Antônio Augusto Cançado Trindade, O Direito Internacional em um Mundo e Transição, Renovar, Rio de Janeiro – São Paulo, 2002.

Haverá sempre a fé, a alegria de viver, a esperança.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

LEON FREJDA SZKLAROWSKY: é escritor, poeta, jornalista, advogado, subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, mestre e especialista em Direito do Estado e metodologia do ensino superior, conselheiro e presidente da Comissão de Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, juiz arbitral da American Arbitration Association, Nova York, USA, juiz arbitral e presidente do Conselho de Ética e Gestão do Centro de Excelência de Mediação e Arbitragem do Brasil, vice-presidente do Instituto Jurídico Consulex, acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (diretor-tesoureiro), da Academia de Letras e Música do Brasil, da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal, da Academia de Letras do Distrito Federal, da Associação Nacional dos Escritores, da Academia Brasileira de Direito Tributário e membro dos Institutos dos Advogados Brasileiros, de São Paulo e do Distrito Federal, Entre suas obras, destacam-se: LITERÁRIAS: Hebreus – História de um povo, Orquestra das cigarras, ensaios, contos, poesias e crônicas. Crônicas e poesias premiadas. JURÍDICAS: Responsabilidade Tributária, Execução Fiscal, Medidas Provisórias (esgotadas), Crimes de Racismo, Contratos Administrativos, ensaios sobre arbitragem, religião, e Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade. Condecorações e medalhas de várias instituições oficiais e privadas.

 

A história da formação da cidadania no Brasil, da Independência até a “Constituição Cidadã” de 1988

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Clovis Brasil Pereira  

Sumário:     1.   A  formação da cidadania ao longo das Constituições no Brasil    2.  A Constituição do Império, de 1824      3.  A Constituição de 1891    4.  A Constituição de 1934      5. A Constituição de 1937       6.  A Constituição de 1946     7.  A Constituição de 1967.


1.  A formação da cidadania ao longo das Constituições no Brasil

Desde a independência política do Brasil do jugo português, em 7 de setembro de 1822, até nossos dias,  muitas fases se passaram na história do país e, em cada uma delas, diferenciam-se as formas de participação do Estado, como outorgante da norma constitucional, ora em nome próprio, ora em nome do povo,  no relacionamento  com seus habitantes,  brasileiros ou estrangeiros que escolheram o Brasil como terra para morar.

Em cada constituição outorgada, ou promulgada em nome do povo, são encontradas as regras mínimas estabelecidas entre o Estado e sua gente, através do estabelecimento de direitos individuais, ora garantidos, ora retirados, ora reconquistados, ora ampliados.

As transformações políticas, sociais e econômicas, decorrentes do relacionamento Estado-povo, mostram um pouco da história da cidadania no Brasil,  fortalecida,  sobremaneira, com a Constituição Federal de 1988, denominada de “Constituição Cidadã”,  promulgada para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,  e que escolheu como fundamentos a cidadania e a dignidade humana que  caminham juntas, de mãos dadas, uma vez que tais preceitos se confundem, se harmonizam, sendo válido afirmar: não existe dignidade  humana, sem cidadania,  sendo a recíproca também  verdadeira.

2.   A Constituição do Império, de 1824

A primeira Constituição do Brasil, outorgada após a Independência do Brasil,   conhecida como “Constituição Imperial de 1824”,  reconheceu no artigo 179, e seus 35 incisos, os direitos civis liberais presentes nas declarações de direitos européias e americanas: direito à igualdade, à liberdade de pensamento, à propriedade, entre outros. 

Tais direitos permaneceram, ao menos em seus fundamentos, nas Constituições posteriores.

Segundo a Constituição Imperial, em seu artigo 179, in verbis:  

“A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”. (sic)

Dentre o rol de direitos civis e políticos, contidos na primeira Constituição pós-independência política  do Brasil destacam-se:  a exigência de Lei anterior, para obrigar o cidadão a fazer ou deixar de fazer alguma coisa; a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade religiosa;  a garantia da casa como asilo inviolável; a possibilidade de  prisão, apenas com culpa formada;  o julgamento por autoridade competente; a independência do Poder Judiciário;  a proibição da tortura, marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis; o direito de propriedade; o direito de invento; a inviolabilidade da correspondência; o direito de petição ao Poder Legislativo e Executivo, contra qualquer infração da Constituição;  e a  instrução primária gratuita a todos os cidadãos.

Na lição de José Afonso da Silva, in Direito Constitucional positivo, p. 169:

“[…] a primeira constituição, no mundo, a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva, foi a do Império do Brasil, de 1824, anterior, portanto, à da Bélgica de 1831, a que se tem dado tal primazia.”

Na ótica de Paulo  Bonavides e Paes de Almeida, apud Vladimir Brega Filho, in Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, p. 32:

“[…] o período constitucional do Império é portanto aquela quadra de nossa história em que o poder mais se apartou talvez da Constituição formal, e em que essa logrou o mais baixo grau de eficácia e presença na consciência de quantos, dirigindo a vida pública, guiavam o País para a solução das questões nacionais da época.”

Os movimentos de insatisfação popular ganharam notoriedade, principalmente a partir do Segundo Reinado, mas  não tiveram a mesma importância  dos movimentos populares da Europa e da América do Norte, e  que culminaram com as primeiras Declarações de Direitos.

Segundo José Murilo de Carvalho, in Cidadania no Brasil: o longo caminho, p. 75:

“[…] O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não intervir em sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não podiam ser consideradas politicamente apáticas. Como disse a um repórter um negro que participara da revolta: o importante era ‘mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo’. Eram, é verdade, movimentos reativos e não propositivos. Reagia-se a medidas racionalizadoras ou secularizadoras do governo. Mas havia nesses movimentos rebeldes um esboço de cidadão, mesmo que em negativo”.

 A independência do Brasil, mescla de liberal e conservadora,  representou um avanço com relação aos direitos políticos, e  manteve a escravidão, não provocando  mudanças efetivas e, sim, mais de natureza formal, com relação aos direitos civis.     

O regime político adotado exigia o voto e a separação de poderes. A Constituição de 1824 regulou os direitos políticos de forma bastante liberal para a época, instituindo o voto censitário obrigatório para os maiores de 25 anos que recebessem mais de 100 mil-réis por ano, o que atingia a maioria da população trabalhadora. O limite de idade caía em alguns casos, tendo como exemplos os chefes de família, oficiais militares, bacharéis, cléricos, dentre outros.

 No âmbito local, votava-se para eleger o juiz de paz e os vereadores, votava-se ainda para a Assembléia Provincial, para a Câmara dos Deputados e para o Senado, sendo que até 1880 as eleições para os cargos locais era direta, para os demais, indireta.

 Em 1881, a Lei Saraiva introduziu severas mudanças no processo eleitoral, a qual cerceou o acesso ao voto para  um número muito grande de brasileiros. A exigência de renda subiu para 200 mil-réis, excluiu os analfabetos e extinguiu as juntas paroquiais de qualificação, deixando a cargo da magistratura a formação das listas de votantes. A conseqüência disso foi que, em 1872, havia um  milhão de eleitores e, em 1886, votaram para as eleições parlamentares apenas 100 mil eleitores.

 Apesar do grande avanço que representou para a formação da cidadania, notadamente porque reconheceu, no artigo 179, direitos sociais fundamentais  de segunda geração, como o direito à educação primária gratuita (inc. XXXII)  a todos os cidadãos, bem como o direito aos socorros públicos (inc. XXXI), não se pode esquecer que muitos direitos assegurados, o foram apenas formalmente, já que sua efetividade ficou comprometida pelo Poder Moderador atribuído ao Monarca, estabelecendo o absolutismo. 

3.  A Constituição de  1891

A Constituição nascida na era republicana,  inspirada nos ideais republicanos e pelo liberalismo, deu maior importância aos direitos individuais,  ao prever em seu artigo 72, caput,  que:

“A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade”. (sic)

Além dos direitos individuais  assegurados na Constituição de 1824, novos direitos e garantias foram incorporados ao novo texto constitucional, ao longo dos parágrafos 1º a 31, tais como:  igualdade de todos perante a lei,  prisão apenas com culpa formada ou em flagrante delito, liberdade de reunião e livre associação, direito a  ampla defesa, abolição da pena de galés e do banimento judicial, proibição da pena de morte, direito ao exercício de  qualquer profissão moral, intelectual e industrial,  direito de propriedade, gratuidade do casamento civil,  instituição do tribunal do júri, habeas corpus e ensino leigo.

De todos os direitos novos trazidos na Constituição, um   teve grande importância  para a cidadania,  pois não apenas estendeu o exercício dos direitos aos estrangeiros, fato que não ocorria na Constituição Imperial, bem como ampliou o conceito de igualdade,  ao assegurar que:

“Artigo 72, § 2º: A República não admite privilégio de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as ordens honorificas existentes de todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliarchicos e de conselho”.

A Constituição resguardou ainda a possibilidade de outros diretos fundamentais  serem reconhecidos, expressando em seu artigo 78, in verbis,  que:

“a especificação de garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias que ela estabelece e dos princípios que consigna”.

A Constituição de 1891, nascida após a proclamação da república, também foi marcada pela grande distância existente entre o formal e o real, sendo esse fato histórico, que pôs fim ao período  do Brasil Império, um episódio emblemático na história dos direitos políticos e do exercício da cidadania.

Na  visão de José Murilo de Carvalho, na obra citada, p. 83:

“[…] até 1930 não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos. A grande maioria do povo tinha com o governo uma relação de distância, de suspeita, quando não de aberto antagonismo. […] Era uma cidadania em negativo, se se pode dizer assim. O povo não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República.  O Brasil era ainda para ele uma realidade abstrata. Aos grandes acontecimentos políticos nacionais, ele assistia, não como bestializado, mas como curioso, desconfiado, temeroso, talvez um tanto divertido.”

Segundo o autor, a  política era  uma grande trapaça, um engodo, pois a população não participava efetivamente das decisões políticas.

Os direitos políticos foram na verdade exercidos apenas de fachada, e o que prevaleceu foi uma alternância no Poder  entre  Chefes do Executivo Federal.

Essa alternância, pelo que se depreende dos registros históricos, foi adredemente programada pelas elites dominantes, e se tornou possível graças ao controle minucioso dos processos eleitorais através dos mecanismos da política que ficou conhecida como "Café com Leite", com a eleição de  Presidentes da República  oriundos dos estados de São Paulo e de Minas Gerais, conduzidos ao poder pelo voto de cabresto, desenvolvendo-se, nessa fase da história republicana, um verdadeiro clientelismo político.

Exemplo dessa insatisfação foi uma  das mais interessantes revoltas do período, denominada como “Revolta da Vacina”, acontecida  no Rio de Janeiro, quando foi instituída a vacina obrigatória contra a varíola e o atestado de vacinação passou a ser exigido para quase todos os atos da vida civil, tais como matrícula nas escolas, empregos públicos e domésticos, empregos nas fábricas, viagens, casamento, voto, etc.         

José Murilo de Carvalho assim analisa esse fato histórico, p. 73-75:

“[…] A revolta urbana mais importante ocorreu em 1904, por motivo na aparência irrelevante. O Rio era conhecido pelas freqüentes epidemias de febre amarela, varíola, peste bubônica. Era cidade ainda colonial, de ruas desordenadas e estreitas, com precário serviço de esgoto e de abastecimento de água. As residências não tinham condições higiênicas.[…] Em 1904, Oswaldo Cruz iniciou o combate à varíola, tradicionalmente feito por meio de vacinação que uma lei tornara obrigatória. Os políticos que se opunham ao governo iniciaram uma campanha de oposição à obrigatoriedade.  Os positivistas também se opuseram ruidosamente, alegando que a vacina não era segura, que podia causar outras doenças e, sobretudo, que o Estado não tinha autoridade par forçar as pessoas a se vacinarem, não podia  mandar seus médicos invadir os lares para vacinar os sãos ou remover os doentes.  […] A revolta da Vacina foi um protesto popular gerado pelo acúmulo de insatisfação com o governo. A reforma urbana, a destruição de casas, a expulsão da população, as medidas sanitárias (que incluíam a proibição de mendigos e cães nas ruas, a proibição de cuspir na rua e nos  veículos) e, finalmente, a obrigatoriedade da vacina levaram a população a levantar-se para dizer um basta.

[…] A oposição à vacina apresentou aspectos moralistas. A vacina era aplicada no braço com uma lanceta. Espalhou-se, no entanto, a noticia de que os médicos do governo visitariam a família para aplicá-las nas coxas, ou mesmo nas nádegas, das mulheres e filhas dos operários. Esse boato teve um peso decisivo na revolta. A idéia de que, na ausência do chefe da família, um estranho entraria em sua casa e tocaria partes íntimas de filhas e mulheres era intolerável para a população. Era uma violação do lar,  uma ofensa à honra do chefe da casa.”

 Para os revoltosos, a vacina obrigatória, além de ser uma afronta à  liberdade individual, representava ameaça à moralidade da mulher e à honra do chefe de família. As forças repressoras do Estado passaram a ser consideradas inimigas do povo, após intensos conflitos em que resultaram, segundo registros da época, 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 foram deportados para o norte do país.

 A mola propulsora da insatisfação popular, que  começou emergir, foi na verdade o surgimento de uma classe trabalhadora que começou se formar na região Sul e Sudeste do Brasil, no início do século XX, e que foi marginalizada  pelos republicanos, já que os dois direitos sociais mais importantes regulamentação dos direitos trabalhistas e direitos previdenciários não ocorreram.

 Outro grande retrocesso da carta republicana foi o não reconhecimento  do  dever do Estado de garantir tanto a educação primária, quanto a assistência social.

 Nos primeiros confrontos ocorridos na época, na luta pela regulamentação dos direitos trabalhistas e previdenciários, o Governo se posicionou ao lado do patronato, prendendo e perseguindo as lideranças trabalhadoras que emergiam, protegendo com força policial as fábricas, fechando as gráficas e jornais que eram considerados subversivos, além de proceder a extradição dos trabalhadores estrangeiros, que haviam chegado pelo movimento migratório, acusados de colocarem em perigo a segurança nacional.

 Como se vê, ao longo desse período, pouco se avançou no campo social, destacando-se apenas a regulamentação do trabalho dos menores (1891) e, posteriormente, o Código de Menores, já em 1927; criação da Caixa de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários, em 1923, e o regulamento do direito de férias, que  se deu em 1926, através do Decreto nº 17.496.  Realmente foi muito pouco, em termos de direitos sociais, para um período de praticamente 40 anos.

 Para  Paulo Bonavides e Paes de Andrade, referidos por Vladimir Brega Filho, p. 34:

“Entre a Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enorme distância; nesse espaço se cavara também o fosso social das oligarquias e se descera ao precipício político do sufrágio manipulado, que fazia a inautenticidade da participação do cidadão no ato soberano de eleição dos corpos representativos.”          

O período histórico que se iniciou em 1930 levou a uma nova carta constitucional, cuja assembléia constituinte foi instaurada em 1933, e cuja Constituição foi promulgada no ano seguinte.  

 4.  A Constituição de 1934

O período histórico iniciado em 1930, com o  governo de exceção comandado por Getulio Vargas perdurou no país por 15 anos,  foi marcado pela supressão dos direitos políticos, e pelo fortalecimento do chefe do poder executivo, que passou a desenvolver políticas assistencialistas, o  que, de um modo geral, foi uma característica dos regimes populistas e de cunho fascista do período, embora a  Constituição de 1934 tenha trazido uma inovação interessante, em seu artigo 57, letra “d”, definindo como crime de responsabilidade do Presidente da República, os atos que atentassem contra "o gozo ou exercício dos direitos políticos, sociais ou individuais".

Logicamente que tal disposição não passou de letra morta, pois não saiu do campo formal, já que o regime de exceção não permitia o exercício dos direitos políticos, em sua plenitude,  pelos cidadãos. Ganhou destaque, então, a política assistencialista adotada, como forma de acalmar a insatisfação da classe trabalhadora,  que tentava se organizar, apesar das condições precárias para o exercício das liberdades públicas, o que dificultava sobremaneira  a prática política.

Foi assim que influenciada pelos movimentos sociais de então, e pelas Constituições européias, a Constituição de 1934 inaugurou o que se denominou chamar de “Estado social brasileiro”, e, em seu bojo, além de repetir os tradicionais direitos individuais  (artigo 113, incisos 1 a 38),   previu  novos direitos sociais, relativizando o conceito de propriedade, que segundo previa o texto constitucional (art. 113, inciso 17), in verbis,  “não poderá ser exercido  contra o interesse social ou coletivo”.

Segundo  Paulo Bonavides e Paes de Andrade, apud Vladimir Brega Filho, p. 34-35

“[…] produziu uma extraordinária inovação, com o acolhimento dado a um instituto desconhecido de defesa dos direitos da pessoa humana: o mandado de segurança, a ser ministrado toda vez que houvesse direito ‘certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade’.”

A grande inovação  trazida na Constituição de 1934, de efêmera vigência, foi a inclusão de um Título específico, para a “Ordem Econômica e Social”, onde previa, no artigo 115, caput,  que:

“a ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna”.

 

Os direitos sociais de cidadania não foram resultados, portanto, da luta política dos movimentos sociais organizados mas, sim, o  resultado da benevolência do Estado, mormente daquele que detinha o controle  do Poder Executivo e de seus órgãos.

            

Verifica-se que,  embora os direitos estivessem previstos pelo corpo de leis,  só se efetivariam em razão da generosidade das autoridades.

 

Para Wanderley Guilherme dos Santos, in Cidadania e Justiça, p. 75:  

 

“[…]  o conceito chave que permite entender a política econômico-social pós-30, assim como fazer a passagem da esfera da acumulação para a esfera da eqüidade, é o conceito de cidadania, implícito na prática política do governo revolucionário, e que tal conceito poderia ser descrito como o de cidadania regulada. Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados, em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. ” (g.n.)

A cidadania, nesse período, é limitada por fatores políticos e estava atrelada a uma associação entre cidadania e ocupação, pois somente a pequena parcela de trabalhadores, com atividade regulamentada, é que tinham acesso aos direitos sociais.

Os efeitos da  política social eram concebidos como privilégio e não como direito, uma vez que uma grande legião de trabalhadores (os autônomos e, principalmente, as trabalhadoras domésticas) ficavam à margem dos benefícios concedidos pelo sistema previdenciário da época.

 

Dentre os direitos sociais contemplados na Lei maior, destacam-se:  a proibição do trabalho aos menores, o repouso semanal, as férias remuneradas, indenização por dispensa imotivada, proibição de diferença de salário por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil, salário mínimo e jornada de trabalho de 8 horas diárias.

Tais direitos sociais inauguraram um novo período na história da cidadania no Brasil, e  foram reiterados ou ampliados na legislação constitucional e  infraconstitucional que se seguiu  posteriormente.

 Segundo Vladimir Brega Filho, p. 35:

“[…]  mesmo sendo um texto moderno para a época, da mesma forma que as Constituições anteriores, faltou-lhe efetividade, nesse caso em razão do pequeno período em que vigorou, ou seja, apenas três anos.”

 No entendimento de Anna Cândida da Cunha Ferraz, citado por Vladimir Brega Filho, p. 35-36:

 “[…] quaisquer que tenham sido as causas de seu desmoronamento, o fato é que a festejada Constituição de 1934 teve vida curta. Seu caráter transitório não permitiu aferir, na dinâmica constitucional, as virtudes e os defeitos das inovações por ela introduzidos. No entanto, serviu a Constituição de 1934, do ponto de vista histórico-constitucional, de veículo para que muitas dessas inovações se firmassem mais adiante, fora de sua vigência e no bojo de constituições posteriores.”

 

5.  A Constituição de 1937

                                A Constituição de 1937  marcou o enrijecimento do regime de Vargas, com a suspensão definitiva dos direitos individuais e políticos, sendo, segundo José Afonso da Silva,  p. 169:

“[…] ditatorial na forma, no conteúdo e na aplicação, com integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os concernentes às relações políticas.”

A carta constitucional, denominada de “A Polaca”, teve inspiração na Carta Polonesa, de origem totalitária e fascista.  Em seu texto inicial, no Título “Dos Direitos e Garantias Individuais”, no artigo 122, incisos 1 a 17, foram preservados os principais direitos assegurados nas Constituições anteriores.

Com  o endurecimento  do regime ditatorial imposto por Getulio Vargas, tais direitos foram suprimidos por uma enxurrada de decretos, centralizando o poder nas mãos do Chefe do Poder Executivo, decretos esses que acabaram por restringir o exercício dos direitos e garantias individuais.  Foi instituída a censura prévia, a pena de morte para casos expressamente especificados, inclusive a subversão da ordem política e social, foram abolidos o mandado de segurança e a garantia da irretroatividade da lei.

Pela narrativa de Vladimir Brega Filho, p. 36-37:

“[…] A Carta previa a realização de um plebiscito para sua legitimação e este jamais foi realizado. Previa a eleição do Congresso Nacional, mas este jamais foi eleito. Previa que após seis anos de governo seria realizado um plebiscito para uma nova legitimação da Constituição, mas isto também não ocorreu. Assim, o país ficou sem Constituição, sem partidos políticos, sem imprensa livre, e embora o art. 122 reconhecesse direitos individuais, estes não tiveram efetividade, pois com a ditadura houve concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, que governava através de decretos-leis e de leis constitucionais”

 

Parecendo uma compensação, face às arbitrariedades impostas pelo governo ditatorial, que suprimira os direitos  políticos e civis, o Governo Vargas deu continuidade ao implemento de direitos sociais, com estreita associação e vinculação  aos órgãos sindicais, fato  que havia se iniciado no início da década, sendo, desde então,  o  peleguismo  a tônica entre a relação dos sindicatos com o Estado.

 

O sistema previdenciário controlado pelo Estado permitiu a vinculação das oligarquias políticas e sindicais no pós-30, de forma que as primeiras controlavam o Ministério do Trabalho e as segundas, o operariado.

 

Segundo  José Murilo de Carvalho, p. 118:

 

“De 1931 a 1939, quando uma legislação sindical mais rígida foi introduzida, o movimento operário viveu com mais intensidade o dilema:  liberdade sem proteção ou proteção sem liberdade. O ponto central era o desequilíbrio de forças entre o operariado e patronato.”

              

Com essa estrutura que atrelava os sindicatos ao poder do Estado, surgiu o peleguismo.  E o que era ser pelego?

 

 

José Murilo de Carvalho, p. 122,  assim o define:

 

“O pelego sindical, em geral um operário, embora  a expressão possa também ser aplicada aos patrões, era aquele funcionário que procurava beneficiar-se do sistema, bajulando o governo e o empregador e neglicenciando a defesa dos interesses da classe. Juntos, o imposto sindical, a estrutura piramidal e a justiça do trabalho construíram um viveiro de pelegos. […] Os pelegos eram aliados do governo e dos empregadores, de quem também recebiam favores. Sempre avessos a conflitos, alguns podiam ser bons administradores dos recursos dos sindicatos e com isto tornar o sindicato atraente pelos benefícios que oferecia. Mas, em geral, eram figuras detestadas pelos sindicalistas mais aguerridos.”

 

Nesse quadro fático e histórico, foi promulgado o Decreto-lei 5.452,  em 1o de maio de 1943, que  consolidou as Leis do Trabalho e ajustou o controle que já havia se intensificado com a Constituição de 1937,  foram estabelecidos o sindicato único, e o imposto sindical; criou-se a Justiça do Trabalho, em substituição às  Juntas de Conciliação que já existiam.

                                            

É possível  se afirmar que o governo Vargas foi a era dos direitos sociais, introduzidos em momento de supressão dos direitos políticos e civis. No entanto, em termos de valorização e fortalecimento da cidadania, esses direitos não vieram  em decorrência da luta política organizada dos movimentos sociais, mas como benesse, como um prêmio atribuído pelo Chefe do  Poder Executivo, que comandava o regime ditatorial em perfeita harmonia com a bem montada estrutura sindical então constituída.

 

 

Na ótica de José Murilo de Carvalho, p. 126:

 

 “[…] Era avanço na cidadania, na medida em que trazia as massas para política. Mas em contrapartida, colocava os cidadãos em posição de dependência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído. A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora.”

 

Em síntese, esta fase histórica, embora pródiga em direitos sociais reservados  a uma pequena parcela organizada da sociedade brasileira, pouco significado teve para o fortalecimento da cidadania, uma vez que, concomitantemente,  foi um período de  desprestígio aos direitos civis e políticos, o que inibiu e alijou a maior parte da população dos direitos sociais então incrementados pelo poder centralizador que dominou o Brasil, particularmente de 1930 a 1945

 

 Com o fim do longo período de exceção liderado por Getulio Vargas, foram convocadas eleições presidenciais e legislativas para dezembro de 1945, começando aí uma nova fase, que alguns estudiosos consideravam como a  primeira experiência democrática no Brasil.

 

 

6.  A Constituição de  1946

Pela Constituição de 1946, marcada pela democratização do país, foram restabelecidos os direitos fundamentais do homem, nos artigos 129 a 144, tendo a previsão expressa de tais direitos, nos capítulos referentes à Nacionalidade e à Cidadania e aos Direitos e Garantias individuais.

 É importante, para melhor compreensão desse período, se verificar qual o cenário social da época, em que tais avanços no Estado de Direito foram conquistados.

 

Wanderlei Guilherme dos Santos, p. 79-80,  assim descreve tal  cenário social:

 

“[…] O Estado regulava quase tudo, ou tudo, sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que a elite considerasse apropriados. O Estado autoritário brasileiro, que, em verdade, se estende de 1930 a 1945, buscou sua legitimidade, como acentuou Azevedo Amaral, na necessidade de conter os conflitos sociais nos limites da sobrevivência da comunidade, tal como os entendia e definia a elite dirigente. Era, em sentido estrito, um Estado de legitimidade hobbesiana. Suas instituições sociais e econômicas foram aparentemente adequadas aos propósitos da elite no poder mas, após 1945, tratava-se de administrar uma ordem relativamente democrática em termos políticos, em um contexto social e econômico extremamente regulado.”

            

Perdurou no novo período constitucional, liderado pelo governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra,  o dirigismo estatal  herdado do período anterior, notadamente com relação aos sindicatos, que mantiveram sua estrutura e relação com o poder, inalteradas.

 

No entanto, a ampliação dos direitos individuais e a garantia dos direitos políticos propiciou a organização das pessoas,  em associações civis de diversos segmentos sociais, antes alijados do processo social,  que tinham como objetivo, a reivindicação por melhores posições de captura de fluxos de renda, e por ampliação dos direitos sociais de cidadania de um modo geral.

 Dentre as principais mudanças trazidas no novo texto constitucional,  destacam-se a abolição da pena de morte e da prisão perpétua, o restabelecimento dos institutos do habeas corpus, da ação popular e do mandado de segurança. E, ainda, para a segurança jurídica, foram restabelecidos os princípios da legalidade e da irretroatividade da lei.

 Para o fortalecimento dos direitos individuais, foi assegurada a  liberdade de pensamento, sem censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas.

 A Constituição aprovada não permitia o cerceamento das liberdades e garantias individuais, por meio de expedientes autoritários, reservando a aprovação do estado de sítio ao Congresso Nacional. Além disso, assegurou ampla liberdade de organização e funcionamento aos partidos políticos, possibilitando, de início, a legalização do Partido Comunista.  Este, porém,  teve um curto período de existência na legalidade, uma vez que seu registro foi cassado no ano seguinte, em 1947, passando a atuar, a partir de então, na clandestinidade.

 Foram mantidos outros direitos individuais e sociais, já previstos nas Constituições de 1934 e 1937, muitos dos quais existiam apenas formalmente, pois eram inatingíveis face ao período de exceção que vigorou no período ditatorial, da chamada “Era Vargas”.

 Foram importantes, para o estabelecimento do Estado de direito e a independência e harmonia dos três poderes, duas  garantias, dentre outras,  previstas no artigo 145, parágrafos 3º e 4º, que respectivamente,  asseguravam:

“§ 3º. A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”;

“§ 4º. A lei não poderá excluir da apreciação do Poder judiciário qualquer lesão de direito individual”.

Por fim, no campo dos direitos sociais previstos  de forma paternalista e em grande escala, e que se destinavam a uma pequena parcela da população,  durante as Constituições de 1934 e 1937,  se somaram outras  conquistas, advindas de disposições trazidas na Constituição de 1946,   tais como: o aperfeiçoamento da Justiça do Trabalho que não teve alteração até a extinção dos juízes classistas na década de 1990,  a instituição da participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros das empresas, o repouso semanal remunerado,  o reconhecimento do direito de greve. Posteriormente, já em 1963, foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, que estendeu os direitos previdenciários, trabalhistas e de sindicalização aos trabalhadores rurais, antes alijados desses direitos  sociais.

 

Apesar dos avanços nos direitos políticos e civis, e a preservação dos direito sociais, e até  sua expansão, o período de vigência da Constituição de 1946 foi cheio de conflitos no campo político.

Getúlio Vargas, mesmo afastado do governo, continuou  influenciando de forma significativa nos acontecimentos desse período. Foi eleito no ano de 1945, senador, adotando a partir de então, uma postura discreta, preparando o seu retorno pelo voto em 1950;  enquanto isso,  seus opositores articulavam manobras políticas e legais para impedir a sua posse. Depois de sua recondução democrática até a presidência da república em 1950 e seu suicídio, em 1954,  tornou-se um verdadeiro herói nacional.

Para José Murilo de Carvalho, p. 131,

“O choque de forças que levou a  seu suicídio resolveu-se apenas com o golpe militar de 1964. Foram mais dez anos de intensa luta política que poderiam ter resultado em consolidação democrática, mas que terminaram em derrota dos herdeiros de Vargas e também do primeiro experimento democrático da história do país.”

O segundo período de Getúlio Vargas, de 1950 a 1954,  foi marcado por seguidos embates com a oposição, liderada pela União Democrática Nacional – UDN, liderada por Carlos Lacerda, e engrossada por setores militares, que se mostravam descontentes com algumas decisões adotadas pelo chefe do poder executivo.

Os principais fatos que acirraram a disputa entre  governo e oposição, foram a disputa pelo monopólio do petróleo, ao final assegurado à Petrobrás, em 1953, através de lei aprovada pelo Congresso Nacional;  a política sindical e trabalhista, liderada pelo então Ministro João Goulart, que sugeriu o aumento do salário mínimo em 100%, o que afinal foi acatado por Vargas, em Primeiro  de Maio de 1954.

O clima de insatisfação se evidenciou com a eclosão de greves, conspiração dos líderes da oposição e de grupos militares, que passaram a exigir a renúncia do presidente, que não resistiu às pressões, e acabou por  se suicidar, ao invés de ceder ou enfrentar seus opositores.

Em 1955, envolto em clima de tensão política que dominava o cenário nacional, e a despeito da oposição civil e dos militares, foi eleito o novo Presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, que habilmente controlou o governo sem o recurso a nenhuma medida de exceção, ou a qualquer meio legal ou ilegal de restrição da participação popular.

Juscelino Kubitschek fundou sua política no desenvolvimentismo nacionalista da CEPAL, construiu Brasília, no Distrito Federal, para onde transferiu a sede da capital do Brasil,  para o centro do país, investiu em obras de infra-estrutura, e instituiu programa de industrialização para várias regiões do país.  

Embora tivesse enfrentado oposição dos nacionalistas mais radicais que se opunham à abertura ao capital internacional e aos acordos com o Fundo Monetário Internacional, conseguiu terminar seu governo em paz e transmitir a faixa presidencial ao sucessor eleito pelo voto popular, Jânio da Silva Quadros.       

O governo de Jânio Quadros foi extremamente curto. Eleito em 1960,  tomou posse em janeiro de 1961 e renunciou em agosto do mesmo ano, por razões nunca satisfatoriamente esclarecidas. Os registros da época cogitam de  uma manobra política para a conquista de poderes extraordinários do Congresso, o que redundou em fracasso, pois sua renúncia foi prontamente aceita pelo Parlamento.

 A partir da renúncia,  o país acabou por entrar numa séria crise política precipitada pelos ministros militares que não aceitaram a posse do vice-presidente João Goulart. Como saída para a crise, o Congresso adotou um regime parlamentarista de emergência para manter a sucessão presidencial dentro da legalidade e retirar do presidente empossado  grande parte de suas atribuições.

 Depois de uma sucessão de primeiros ministros que não conseguiam governar, em 1963, foi realizado um plebiscito para escolha da forma de governo, tendo obtido a preferência popular o regime presidencialista, restabelecendo então ao presidente João Goulart os plenos poderes para governar.

 A partir daí, o conflito entre direita e esquerda se acirrou. Os trabalhadores começaram a se organizar em Centrais Gerais de Trabalhadores, muito embora organizações desse caráter fossem expressamente proibidas por lei; os partidos políticos ganharam alguma expressividade e a mobilização política atingiu a base da sociedade. A mobilização política girava em torno das chamadas reformas de base, que buscavam as reformas  agrária, fiscal, bancária, política e educacional.          

O amadurecimento democrático observado a partir dos anos 30, para José Murilo de Carvalho, p. 148-150, pode ser verificado na evolução partidária: 

“[…] Eram partidos no sentido moderno da palavra e apenas necessitavam de tempo para criar raízes na sociedade.

[…] Como era de esperar, dada a novidade da experiência, houve grande movimentação de políticos dentro desses partidos, e entre eles, durante os quase 20 anos que duraram [1945 1964].

[…] Pesquisas de opinião pública feitas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em 1964, antes do golpe, em oito capitais, e só, recentemente, trazidas a público por Antônio Lavareda, revelam aspectos muito positivos. O primeiro deles é que 64% da população dessas capitais tinha preferência partidária, índice alto mesmo para padrões internacionais. […] outra revelação das pesquisas de 1964 refere-se à orientação ideológica do eleitorado das oito capitais às vésperas do golpe. Enquanto as lideranças se radicalizavam, o eleitorado mostrava tendência claramente centrista […] Indagados sobre qual a linha política mais indicada para o governo, 45% dos pesquisados preferiram o centro, contra 23% que preferiram a direita e 19% a esquerda.”            

Pelos números da pesquisa, a maioria da população acreditava no sistema partidário, ponto central no sistema representativo e democrático, resultando, ainda, que a população não era ideologicamente radical, dado importante para o desenvolvimento de uma cidadania eficaz. O colapso da democracia, em 1964, deu-se principalmente em virtude da falta de convicção democrática das elites, que disputavam o poder afastando as práticas da democracia representativa: a direita queria evitar as reformas de base defendidas pela esquerda, e esta, posicionava-se contrariamente por acreditar que a direita preparava um golpe. Não havia organizações civis suficientemente fortes e representativas que pudessem refrear a radicalização, o que precipitou o Golpe Militar de 1964.

 Dado o golpe, os direitos políticos se viram atingidos de forma brutal  pelas medidas de repressão, que se seguiram nos vinte anos subseqüentes. Foi implantado o bipartidarismo, de forma  obrigatória,  e o Congresso Federal foi por duas vezes fechado. Assim mesmo, os militares, detentores do poder,  insistiam em afirmar que se tratava de um regime democrático, sustentando tal assertiva, no fato de haver eleições proporcionais que não foram suspensas. O voto serviu como fachada  para a  garantia de uma pretensa  legitimidade ao regime.

 Nesse período, embora estivesse em vigor a Constituição de 1946, todos os direitos políticos e individuais  foram maculados, pela edição de sucessivos Atos Institucionais, editados pelo regime militar que  tomou à força o poder,  suspendeu os efeitos da Constituição, então vigente, o que resultou no amordaçamento da sociedade brasileira e, consequentemente, maculou  a cidadania que se desenvolvera ao longo de quase 20 anos de vigência da carta constitucional.           

 O  Ato Institucional nº 1, editado  em 09 de abril de 1964, dentre  outras medidas atentatórias à cidadania, suspendeu por seis meses as garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade e estabilidade dos juízes (art. 7º),  estabeleceu a eleição indireta do Presidente e do Vice-Presidente da República, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional (art. 2º), e permitiu a cassação dos mandatos legislativos e a suspensão dos direitos políticos, pelo período de dez (10) anos, excluindo tais atos  de apreciação judicial (art. 10).

 O Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, estabeleceu novas regras para proposição de emendas à Constituição (art. 2º), alterou a organização e  a competência do Poder Judiciário (art. 6º), deu poderes ao Presidente da República para decretação do estado de sitio, para prevenir ou reprimir a subversão da ordem interna (art. 13),  suspendeu as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade dos magistrados, por tempo indeterminado (art. 14), reiterou a possibilidade de suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, pelo prazo de dez (10) anos (art. 15), determinou a extinção dos partidos políticos (art. 18), culminando com a outorga de poderes ao Presidente da República para decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, em estado de sítio ou fora dele (art. 31).

 O Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de 1966, extinguiu a eleição direta para Governador e Vice-Governador dos Estados e, a partir de então, tais cargos passaram a ter os nomes escolhidos pelo voto indireto dos membros da Assembléia legislativa, em sessão pública e votação nominal (art. 1º), sendo que os Prefeitos dos Municípios das Capitais passaram a ser nomeados pelos Governadores de Estado, mediante aprovação da Assembléia Legislativa (art. 4º).

 O Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966, convocou o Congresso Nacional, para se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, para discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República (art. 1º), estabelecendo ainda as regras que deveriam ser seguidas para a aprovação do novo texto constitucional.

 Observa-se que o período que se seguiu ao regime militar implantado no Brasil, a partir de 31 de março de 1964, e que abriu as portas para a Constituição autoritária de 1967, representou um duro golpe para os direitos individuais e políticos dos brasileiros, ferindo de morte a consolidação dos princípios fundamentais que asseguravam o exercício da cidadania.

7.   A  Constituição de 1967

 A Constituição de 1967, cujo projeto foi idealizado pelo Governo Militar, foi homologada pelo Congresso Nacional, e pouco representou da vontade dos anseios da sociedade brasileira, não tendo ocorrido resistência ou qualquer pressão popular  ou, mesmo, dos próprios deputados e senadores, uma vez que, praticamente, foi imposta pelo Governo Militar, já que o poder legislativo, acuado pelas cassações de mandatos e suspensão de direitos políticos, se viu compelido a aceitar o texto originalmente encaminhado pelo poder executivo, sem alterações mais significativas.  

 A nova Constituição,  precedida da  supressão dos mais importantes  direitos individuais e políticos,  trouxe a previsão de direitos e garantias individuais (art. 150) e direitos sociais dos trabalhadores (art. 158).

 Tais direitos e garantias, no entanto, por obviedade,  não saíram do plano formal, pois foi nesse período que a cidadania foi mais desrespeitada, com prisões arbitrárias, torturas, supressão das liberdades públicas, existindo um grande fosso entre os direitos previstos na Constituição e o exercício de tais direitos pelos cidadãos, de forma geral.

 O regime de exceção que se instalou no Brasil, pelo  golpe militar de 1964,  acabou, na prática,  por alterar, de alguma forma, o panorama dos direitos de cidadania, uma vez que a supressão dos direitos  políticos e civis, pelos Atos Institucionais que se sucederam ao longo de 5  anos, no período mais agudo  do regime de força ora implantado,  acabou por provocar retrocesso em alguns direitos civis conquistados durante o interregno democrático – 1946 a 1964 – notadamente o direito de associação. Porém,  os sucessivos governos militares continuaram a enfatizar os direitos sociais da mesma forma que o fizera  Getulio Vargas.            

A noção de cidadania continuava desvinculada de qualquer conotação pública ou universal e, ainda, era concebida como uma  benemerência do poder público, sendo que os benefícios  sociais eram gerados para uma pequena parcela dos brasileiros, apesar de grande parte da população continuar  excluída de quaisquer direitos fundamentais, embora ambos garantias individuais  e direitos sociais – constassem expressamente nos  artigos 150 e 158, da Constituição de 1967.

Para Tânia Regina de Luca,  in Historia da Cidadania, p. 484:

“Os direitos sociais sofreram alterações significativas durante a ditadura militar. No que diz respeito aos salários, condições de vida, direito de organização e manifestação, não há dúvidas quanto ao retrocesso. As centrais sindicais e as ligas camponesas foram proibidas, 87 dirigentes tiveram seus direitos políticos cassados entre 1964 e 1966, mais de quatrocentas entidades sofreram intervenção pouco depois do golpe. As prescrições da CLT, que previam estrito controle governamental sobre os sindicatos, foram aplicadas à risca, transformando-os em meros prestadores de serviços e de lazer.  O reajuste dos ganhos, por força da Lei 4725, de 1965, passou a ser determinada pelo governo, que subordinou a questão ao combate à inflação e à promoção do crescimento econômico.”

A ação repressiva do governo militar, ao limitar o exercício dos direitos individuais e políticos, representou um desserviço ao exercício da cidadania.  

Segundo Roberto Santos, citado por Tânia Regina de Luca:

“A política salarial não era, assim, posta a serviço do bem-estar social, mas manejada como instrumento monetário, subordinada ao crescimento global da economia.”

 

A clara orientação ideológica da elite pós-64 era a de  acelerar as taxas de poupança e acumulação e, para tanto, se fazia necessária a modernização da economia, para buscar o aumento da produtividade.  Esse  avanço tecnológico  traria como conseqüência inevitável, um sensível decréscimo no número de trabalhadores ocupados na industria, o que fazia crescer a insatisfação de grande parte da população brasileira, que continuava alijada do mercado de trabalho. Esta, no entanto, mostrava-se atônita, desorganizada, em face do desmantelamento dos organismos de associação, notadamente dos sindicatos rurais e urbanos, que acabaram por cair na clandestinidade, logo após o Golpe Militar de 1964.       

 

No entendimento de Roberto Santos:

 

“A desorganização da ordem social anterior propiciou as condições para solução do problema. Estando o sistema sindical enfraquecido e reprimido sob intervenção federal e severamente vigiado, nem mesmo as categorias profissionais mais fortes e vocais puderam opor resistência ao ‘achado’ da Lei 4725, de 13 de julho de 1965. Por ela, retirava-se a fixação do salário profissional, ou salário-piso, que era o salário da força de trabalho industrial qualificada, da área do mercado, sob arbitragem da Justiça do Trabalho, e colocava-se a delimitação do piso profissional sob o arbítrio das autoridades financeiras. Esvaziou-se, com isso, a Justiça do Trabalho e retirou-se parcela do operariado industrial a sua única forma de obter melhorias relativas na distribuição da renda nacional. Reforçava-se, aqui, o conceito de cidadania regulada, incluindo-se agora, entre as dimensões reguladas, não apenas a profissão, mas o próprio salário a ser auferido pela profissão, independentemente da força do mercado.”

 

Apesar de todo o intervencionismo do Estado, no período ditatorial nascido em 1964,  o exame dos índices econômicos divulgados na época pelos governos  militares, se mostravam particularmente curiosos, e até intrigantes, pois apesar de ter sido o período de maior  repressão e violação aos direitos individuais e políticos,  registrou-se forte crescimento econômico, o que acabou se refletindo diretamente  nos direitos sociais de cidadania.

 

José Murilo de Carvalho, citado por Wanderley Guilherme dos Santos,  ao analisar as taxas do crescimento econômico da época, diz que:

 

“[…] a  partir de 1968, exatamente o ano em que a repressão se tornou mais violenta, ela subiu rapidamente e ultrapassou a do período de Kubitschek, mantendo-se em torno de 10% até 1976, com um máximo de 13,6% em 1973, em pleno governo Médici. Foi a época em que se falou no ‘milagre’ econômico brasileiro.”

           

Dentre os direitos sociais, ganhou destaque o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), criado em 1966,  que substituiu a estabilidade garantida aos trabalhadores que completassem mais de dez anos de serviço. No mesmo ano foi criado o INPS (Instituto Nacional da Previdência Social) que unificou  o sistema de IAPs então existente para os diversos segmentos da classe trabalhadora.

No governo Médici, foi criado o FUNRURAL (Fundo de Assistência Rural), que assegurou aos trabalhadores rurais o acesso à previdência social, e a incorporação das empregadas domésticas e dos trabalhadores autônomos ao sistema previdenciário. No mesmo período, foi criado o  BNH (Banco Nacional da Habitação), com objetivo de garantir o financiamento de moradia aos trabalhadores, sendo que, em  1974, foi criado o Ministério da Previdência Social.

 

Esse foi um período  ambíguo, tendo, de um lado, ocorrido o esmagamento dos direitos  políticos e individuais, em contraste com a criação e expansão dos direitos, estes vindos como benesse, e não como conquista  da população, pelo exercício da cidadania.

 

José Murilo de Carvalho faz um síntese desse momento histórico, lembrando que:

 

“A avaliação dos governos militares, sob o ponto de vista da cidadania, tem, assim, que levar em conta a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos civis e políticos.”

 

 Foi, pois, no terreno dos direitos políticos e civis, que  o período pós-1964 mais se notabilizou negativamente,  ora suprimindo-os, ora desrespeitando-os, sob o bastão de um regime de opressão que esmagava as vozes discordantes que se atrevessem a contrariar os interesses da elite dirigente.

 Desse quadro de insatisfação, eclodiram movimentos sociais e políticos, com forte participação da classe estudantil, liderada pela UNE e pela UBES, que emergiram no aparente estado de direito que foi estabelecido pela Constituição de 1967, e que exteriorizavam a insatisfação da sociedade brasileira, de forma geral,  com o quadro político que se desenhava. Veio então  o Ato Institucional    5,  em 13 de dezembro de 1968, que de uma só vez modificou a Constituição recentemente homologada e, na prática, restabeleceu todas as medidas de força que haviam sido implementadas pelos Atos Institucionais anteriores, já referidos.

 Relato contido no livro Brasil: Nunca Mais, p. 62, explica as razões que levaram à edição do AI-5  pelo Chefe do governo militar, Costa e Silva, afirmando:

 “[…] A gota d’agua foi um discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves, considerado ofensivo às Forças Armadas. Ao contrário dos atos anteriores, no entanto, o AI-5 não vinha com vigência de prazo. Era a ditadura sem disfarces. O Congresso é colocado em recesso, assim como seis assembléias legislativas estaduais e dezenas de câmaras de vereadores em todo o país. Mais 69 parlamentares são castigados, assim como o ex-governador carioca Carlos Lacerda, que fora um dos três articuladores do golpe militar, ao lado do ex-governador Adhemar de Barros, já cassado antes, em 1966, e do governador mineiro Magalhães Pinto, que sobreviveu às punições. O resultado de todo esse arsenal de Atos Institucionais, decretos, cassações e proibições foi a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina.”

 Por esse novo Ato Institucional,  o mais duro golpe na cidadania no período pós-64,  o Presidente da República recebeu amplos poderes para decretar o recesso do Congresso Nacional e demais casas legislativas (art. 2º), decretar a intervenção nos Estados e Municípios (art. 3º),  suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos (art. 4º), suspender as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade dos Magistrados (art. 6º),   decretar o estado de sítio (art. 7º), confiscar os bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente no exercício do cargo ou função pública (art. 8º) e,  por fim, suspender  a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10).

 Posteriormente, foram editados  outros Atos Institucionais do 6 ao 17 todos  com objetivo de assegurar a supremacia dos atos do Poder  Executivo, e consequentemente, acabaram suprimindo as garantias e direitos individuais e políticos, previstos formalmente no texto da Constituição de 1967.

 Dentre as alterações mais significativas, e que atingiram de forma brutal o exercício da cidadania, destacam-se:  a alteração da  competência do Poder Judiciário, autorizando a Justiça Militar a proceder o julgamento de civis nos crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares (AI nº 6, artigo 1º, modificado pelo artigo 122, § 1º, 2º e 3º, da Constituição do Brasil); o banimento do Território Nacional, do brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo e perigoso à Segurança Nacional (AI nº 13. artigo 1º);  o estabelecimento  da pena de morte para os casos de Guerra Psicológica Adversa ou Revolucionária ou Subversiva (AI nº 14, artigo 1º, modificando o § 11, do artigo 150, da Constituição do Brasil).

 A Constituição de 1967 foi alterada pela emenda constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, sendo que alguns doutrinadores, chegam a analisá-la como uma Nova Constituição, dada a amplitude das alterações nela contidas. Parece  que tais mudanças foram mais na aparência, condensando as alterações feitas anteriormente, mas que não mudaram o cerne, a estrutura  do texto original.

 Embora na vida cotidiana a cidadania tenha sofrido sérios reveses, com a supressão dos direitos civis e políticos, no campo formal, não ocorreram mudanças significativas. Assim, dos direitos fundamentais previstos no texto emendado, foram preservados os Direitos da Nacionalidade (art. 145), os Direitos Políticos (art. 147), bem como os Direitos e Garantias Individuais (art. 153),  ao longo de seus  217 artigos.

  Em que pese a Constituição vigente, esse foi um período, na história do Brasil, em que efetivamente, os direitos civis, políticos e  garantias individuais mais foram solapados, atingindo frontalmente o exercício da cidadania.  O Brasil vivia uma situação real de supressão das liberdades, em contraste com um Brasil imaginário, apoiado num mentiroso estado de direito e de respeito aos direitos fundamentais previstos no texto constitucional.

 O regime autoritário que se instalou no país, a partir de 1964, e que enrijeceu em 1969, com o Ato Institucional nº 5, começou a dar sinais  de esmorecimento, apenas em 1974, quando teve início o que se denominou de reabertura do regime. Esta teve início com as eleições presidenciais de 1974 quando foram diminuídas as restrições à propaganda eleitoral, apesar de o único partido político admitido pelo regime, de oposição, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro ter sido novamente derrotado, o que se justificava, face a existência de um colégio eleitoral altamente manipulado. 

O aparato repressor havia se tornado meio independente dentro do próprio governo, razão pela qual as  principais esperanças das elites giravam em torno da possibilidade de controle da estrutura repressora pelo novo governo. Não sendo possível, naquele momento, a supressão do aparelho repressor, parte da elite dominante buscava, pelo menos, a diminuição da tortura.

 A recuperação dos direitos civis e políticos começou dar sinais de vitalidade da cidadania  10 anos depois, tendo, como marco, a eleição que ocorreu em novembro de 1974, ocasião do primeiro grande revés sofrido pelo regime ditatorial. Nessa eleição,  pelo voto direto para a Câmara dos Deputados e Senado da República, o MDB, único partido de oposição, conseguiu dobrar sua representatividade, representando um sinal da insatisfação da sociedade brasileira, que tinha acesso aos direitos políticos, com a situação reinante.

 A resposta pronta veio pelas mãos do Presidente Ernesto Geisel, que  fechou o Congresso e passou a legislar por decretos, o que representou mais um  retrocesso,  embora não tenha sido interrompido o processo de abertura.      

Apesar dos entraves opostos pelo regime militar, a oposição continuou, de forma gradual,  desde o início do governo Geisel, se posicionando e  exigindo o retorno ao estado de direito.  Passados quatro anos, em 1978, o governo deu um grande passo no sentido da reabertura e democratização do país,  com a revogação do Ato Institucional nº 5, o estabelecimento do fim da censura prévia e a possibilidade do retorno dos primeiros brasileiros exilados.  

Esse momento histórico, de fundamental importância, e que encerrou praticamente o período mais agudo da ditadura militar, é assim descrito no Livro Brasil: Nunca Mais, p. 68:

“[…] Em primeiro de janeiro de 1979, é revogado o AI-5, a face mais ostensiva da ditadura, embora boa parte de seus dispositivos passassem a estar embutidos na Constituição, como o “estado de emergência”, que o executivo poderia decretar em momentos de crise, atribuindo-se poderes excepcionais e suspendendo as garantias dos cidadãos por um prazo de 60 dias, prorrogáveis por mais 60.”

 No mesmo ano – 1979   no governo do General João Batista Figueiredo, foi aprovada a Lei de Anistia, que beneficiava tanto aos acusados de crimes contra a segurança nacional, quanto aos torturadores e assassinos dos opositores do regime.

 No ano de 1980, no limiar na nova década, que deu início à democratização plena do Brasil, um episódio marcante no processo de reabertura  foi a fundação do PT Partido dos Trabalhadores. O partido nasceu numa  reunião da Igreja Católica, dos sindicalistas renovadores e, principalmente, dos metalúrgicos paulistas, bem como de alguns intelectuais, que se posicionavam em favor de uma nova ordem política e social  para o país.

Com a realização de eleições diretas para Governador, no início da década de 80, a oposição galgou a chefia do Poder Executivo Estadual em nove, dos vinte e dois Estados da Federação.

O processo de reabertura, culminou em 1985 com a eleição do candidato oposicionista, que representava o MDB, Tancredo Neves. Com a prematura morte do presidente eleito, antes mesmo de assumir a Presidência da República, o que era  um marco histórico da maior importância, pois acabava ali, uma era de repressão das liberdades individuais, assumiu a Presidência o Vice-Presidente da República, eleito com Tancredo Neves, o  Senador José Sarney,  antigo aliado político dos militares, mas que tinha bom trânsito no movimento político que se viabilizou com a reabertura democrática.

O novo governo, então empossado, abriu o caminho para  a  Constituição de 1988, amplamente discutida e promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte,  em 08 de outubro de 1988, representando um importante avanço e fortalecimento ao exercício da cidadania, com o desmantelamento, pouco a pouco, nos anos subseqüentes, da estrutura do regime ditatorial que dominara o país, por mais de 20 anos.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL:  NUNCA MAIS. Petrópolis, Editora Vozes, 1989.

BREGA FILHO, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constiotuição de 1988, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2005.

COUVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é Cidadania. São Paulo. Brasiliense, 2005.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é Participação Política. São Paulo. Brasiliense, 2004.

PINSKY, Jaime; PINSKY Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. São Paulo. Contexto, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 1995.

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REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLOVIS BRASIL PEREIRA: é Advogado, com escritório na cidade de Guarulhos (SP); Especialista em Processo Civil; Mestre em Direito (área de concentração em direitos difusos e coletivos),  Professor Universitário;  ministra cursos na ESA – Escola Superior da Advocacia, no Estado de São Paulo,  Cursos Práticos de Atualização Profissional e Palestras sobre temas atuais; é membro da Comissão do “Advogado Professor” da OAB-SP; membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-Guarulhos; é colaborador com artigos publicados nos vários sites e revistas jurídicas. É coordenador e editor do site jurídico  www.prolegis.com.br 

Contato:   prof.clovis@terra.com.br

 

 

Da necessidade de um tipo penal específico para o tráfico de animais: razoabilidade da Política Criminal em defesa da fauna[1]

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 * Lélio Braga Calhau  

1. Introdução – 2. Direito Penal Ambiental e o tipo penal do artigo 29 da Lei 9.605/98 – 3. Um tipo específico para o tráfico de animais: uma necessidade – 4. Conclusões – 5. Referências bibliográficas.  

1. Introdução.  

O início de nossa colonização foi marcado pela exploração dos recursos naturais sem compromisso com o futuro, pois se pensava que os recursos naturais eram infinitos e renováveis. Os sucessivos ciclos econômicos baseados no extrativismo ou em monoculturas, desempenharam papel decisivo no desmatamento e na degradação ambiental.[2]

 As florestas foram sendo devastadas e nossos animais dizimados, levados para fora do nosso país, a maioria sem nenhum controle ou condição mínima adequada para o seu transporte, tendo um elevado número morrido nos navios. Ao contrário do que a maioria imagina, o pensamento crítico ambiental deita raízes há muito tempo em nossa história, existindo diversos trabalhos publicados no século XVIII e IXX que tratam da crítica ambiental, não com a abordagem atual, mas também, pelo contexto histórico, não menos importantes.

 Reproduzo trecho[3] abaixo que ilustra bem o fato:

A Natureza fez tudo a nosso favor, nós, porém, pouco ou nada temos feito a favor da Natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados. Nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas ou mal aproveitadas. Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítima do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então este dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos.

José Bonifácio de Andrade e Silva,

Representação à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, 1823. 

O que se vê é que desde a colônia o Brasil vem sendo saqueado, sua fauna destruída e o comércio de animais silvestres, já bastante arraigado na cultura do empobrecido povo brasileiro, cada vez mais audacioso e buscando lucros cada vez maiores, onde a vida dos animais não vale quase nada na mão dos traficantes, sendo que na grande maioria dos casos a quase totalidade de animais silvestres transportados morre durante a travessia ilegal das regiões onde são capturados até os distribuidores nas grandes cidades.

Desde, então, o Brasil-Colônia passou a ser explorado pelos portugueses, franceses e holandeses. A ocupação do Brasil por esses povos teve por escopo contrabandear espécies da flora e da fauna, bem como os metais preciosos aqui existentes. A invasão do território brasileiro pelos povos europeus e as diversas fases do ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do gado e dos metais preciosos foram a causa da devastação do meio ambiente. A caça indiscriminada fez desaparecer diversas espécies da fauna silvestre como, por exemplo, o curupira etc.[4]

 A formidável transformação histórica desencadeada pela Revolução Industrial ocorrida no século XIX, que resultou na introdução de máquinas no processo produtivo, conduziu a relevantes reflexos econômicos e políticos, além dos sociais, no Ocidente. A evolução histórica que se seguiu determinou a superação da doutrina liberal, ensejando nova ordem.[5] A velocidade da devastação do meio ambiente e a incapacidade dos governos em impedir ou deter a progressão geométrica dessa devastação, tem levado os países a se reunirem e tentarem adotar medidas em conjunto em prol da defesa do meio ambiente.

 Recentes tragédias ambientais como o derramamento de petróleo no Alasca do navio Exxon Valdez, o morticínio de peixes em vários rios europeus (tendo produtos químicos atravessado diversos países), o efeito estufa etc têm levado a uma reflexão social. O Direito não poderia ficar alijado dessas transformações sociais.

 É inconteste o fato que o advento da Lei 9.605/98 foi um grande avanço para a defesa e a proteção do meio ambiente no Brasil. Foram criados novos crimes e instituiu-se um sistema de proteção administrativo e penal bem mais eficaz na defesa do meio ambiente. Entretanto, passado pouco mais de cinco anos da sanção da Lei 9.605/98 fica claro que nem tudo foi avanço em termos ambientais.

 Um dos grandes problemas que a Polícia e o Ministério Público têm enfrentado no seu dia-a-dia é a fragilidade do único tipo penal voltado para ao combate do tráfico de animais.

 Não cabe dúvida de que o ser humano pode dispor dos bens e frutos que a natureza lhe proporciona para viver e melhorar a sociedade em que vive, mas sempre deverá ter em vista que, se quer seguir desfrutando desse privilégio, deve servir-se dela atuando como o que poderíamos chamara de bom administrador: poderá servir-se da madeiras das árvores, mas terá que efetuar a reposição das mesmas, para que assim as novas gerações possam seguir desfrutando dela; poderá seguir caçando ou pescando sempre que o faça por procedimentos e quantidades que permitam a manutenção das espécies, poderá seguir semeando e arando a terra, recolhendo os frutos, sempre que não leve ao esgotamento; poderá inclusive construir novas cidades, sempre que nos planos de urbanismo sejam observadas a coabitação do homem com a Natureza e nelas não seja destruída a esta última e nem as cercanias da mesma, reduzindo cada vez mais o espaço destinado ao habitat natural, tão necessário para a vida humana.[6]

 O traficante de animais é a pessoa que se coloca como contraposto da figura desse bom administrador do meio ambiente.  Ele busca obter o maior lucro possível saqueando quantos ecossistemas forem necessários para que atinja o seu fim. Se ele envia 1000 pássaros escondidos dentro de um caminhão da Bahia para a cidade de São Paulo e morrem 950 na viagem, para o mesmo não há problema, pois com os 50 vivos que chegam vivos ao destino ele já tem garantido o seu lucro, o qual o autoriza financeiramente a uma outra empreitada criminal-ambiental.

A legislação em vigor está preparada para dar uma resposta penal adequada ao tráfico e aos demais crimes contra a fauna?

Este trabalho concluirá pela necessidade da criação de um novo tipo penal para o crime de tráfico de animais, diferenciando-se já na tipicidade, a pessoa que eventualmente possui um animal silvestre daquele que comercializa, obtendo lucro com a exploração da fauna brasileira, este sim, um dizimador que não deveria, em tese, ser beneficiado com instrumentos políticos-criminais voltados para beneficiar os infratores de crimes de pequeno potencial ofensivo. 

 

2. Direito Penal Ambiental e o tipo penal do artigo 29 da Lei 9.605/98.

O objeto do Direito Ambiental é a harmonização da natureza, garantida pela manutenção dos ecossistemas e da sadia qualidade de vida para que o homem possa se desenvolver plenamente. Restaurar, conservar e preservar são metas a serem alcançadas através deste ramo do Direito, com a participação popular.[7]

Até épocas recentes, a tutela ambiental era confiada exclusivamente ao Direito Administrativo. O Direito Penal, ao contrário, se mantinha à margem dessa tutela e acordou tarde para o convite de cobrir os vazios de punibilidade existentes, ainda quando a necessidade de seu auxílio coercitivo era sentida por um bom número de juristas.[8] O Direito Penal Ambiental tramita numa zona muito tênue, ora sendo pressionado pelos princípios gerais do Direito Penal, ora sendo influenciado pelo próprio Direito Ambiental, muitas vezes deparando com a aplicação de princípios que chegam a ser quase que antagônicos como o principio penal da insignificância ou da aplicação do princípio ambiental da precaução.

Percebe-se, principalmente, no espaço ocupado pelo Direito Penal do Ambiente, na atividade dos tribunais, uma profunda carência de qualquer espécie de fidelidade hermenêutica, com os objetivos constitucionais indicados à formação do conteúdo, e do alcance da proteção ambiental adequada ao Estado Democrático de Direito.[9] Nota-se que a gravidade do problema é acentuada naqueles estados de elevado grau de conflituosidade que, de forma sedutora, têm atraído a aplicação do princípio da precaução, que demonstra essencialmente duas conseqüências altamente nocivas à consolidação do Estado de Direito do Ambiente: 1. a completa deficiência, ou até mesmo inexistência, de um modelo racional e coerente de justificação democrática do discurso penal do ambiente, que denotam, não raras vezes, comportamentos de completa infidelidade semântica com a literalidade do texto normativo; 2. a desconsideração do valor jurídico autônomo do bem ambiental  como critério metódico para a solução dos estados potenciais ou atuais de conflituosidade de valores e normas (regras e princípios), que tendem a utilizar critérios metodicamente alheios á ponderação, uma vez que nem mesmo chegam a dirigir atenção ao valor posicionado no outro pólo do conflito, o ambiente.[10]

Critica-se, ainda, muito o uso do Direito Penal como instrumento da proteção do meio ambiente. Para grande parte dos minimalistas o meio ambiente poderia ser protegido apenas com sanções de natureza administrativa (como se elas fossem mais justas para os jurisdicionado que as garantias penais e processuais penais como o devido processo legal e o princípio constitucional penal da presunção da inocência). Essa inflação legislativa penal onde novos campos passaram a serem protegidos também na seara penal (consumidor, meio ambiente etc) é objeto de grandes críticas.[11]

É nessa realidade que deve o intérprete da legislação penal ambiental buscar o método que melhor se enquadre na busca da Justiça, sem querer ferir os direitos dos acusados, mas, ao mesmo tempo, buscando uma efetividade na aplicação da norma penal ambiental. É a busca do ponto de equilíbrio entre esses dois ramos.

Como já há sido demonstrado pela experiência, uma proteção do meio ambiente e de seus recursos naturais baseada exclusivamente na previsão de medidas sancionadoras administrativa está condenada ao fracasso.[12] Nesse contexto e analisando a própria existência do Direito Penal Ambiental, Antonio Mateos Rodríguez-Arias afirma que o Direito Penal deve contemplar-se dentro do que Albin Eser denominou como sistema integrador pluridimensional, isto é, uma proteção integral do ambiente em que cada ramo do ordenamento cumpre uma função de forma coordenada com os demais, tais quais, o direito constitucional, o administrativo, o civil, o penal e o internacional.[13]

A qualidade de vida do homem está necessariamente atrelada ao equilíbrio ambiental, ao equilíbrio do ecossistema. O equilíbrio de um ecossistema, de seu turno, é alcançado mediante a interação de vários fatores, e a fauna, m todas as suas espécies e sub-espécies, é um deles.[14] É nesse contexto que está inserida a existência do tipo penal do artigo 29 da Lei 9605/98.

Diz o artigo 29 (caput) da Lei 9.605/98: Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida. Pena: detenção de seis meses a um ano, e multa. Segundo o § 1º, incorre nas mesmas penas: I – quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II – quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena (§ 2º). São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras (§ 3º). A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado (§ 4º): I – contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração; II – em período proibido à caça; III – durante à noite; IV – com abuso de licença; V – em unidade de conservação; VI – com emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa. A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça profissional. § 5º.  As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca.

O artigo 29 da Lei 9.605/98 possui diversas espécies de normas penais. Nele encontramos normas penais incriminadoras (ex: caput), normas penais não incriminadoras permissivas (ex: § 2º) e normas penais não incriminadoras explicativas (ex: § 2º). Tecnicamente é um tipo penal muito rico e que trata com uma relativa clareza sobre a principal proteção penal da fauna em nosso ordenamento jurídico.[15] Já para Luciana Caetano da Silva trata-se de um dispositivo com redação bastante dúbia, uma vez que permite extrair de seu texto várias interpretações, ferindo, por conseguinte, o princípio da legalidade/taxatividade, que exige que as normas sejam claras e perfeitamente delimitadas.[16] Milaré, comentando a prática da utilização das normas penais em branco, registra que o comportamento proibido vem enunciado de forma vaga, clamando por complementação ou integração através de outros dispositivos legais ou atos normativos extravagantes. E nem poderia ser diferente, em matéria regulada predominantemente por normas e instituições de Direito Administrativo.[17]

Todavia, inexiste um enquadramento típico específico para o caso do traficante de animais silvestres, deixando, mais uma vez, uma brecha na proteção jurídico-penal quando da aplicação da presente norma. Geralmente a Polícia e o Ministério Público acabam processando (quando não tem direito a transação) o empregado do traficante ( o motorista do caminhão, o funcionário da rinha de canários etc), ficando o traficante de animais protegido por um esquema jurídico onde a própria Lei é a primeira a lhe beneficiar. O resto de sua defesa (quando a norma penal chega a ele) é facilmente resolvido por um só advogado com pouco conhecimento das questões penais ambientais. A lei quase nunca alcança o traficante. Muitas vezes o infrator é flagrado pela Polícia novamente na prática de crime contra a fauna pouco depois de ser autuado e não chega a ser difícil o caso das pessoas que são flagradas e autuadas seguidamente como os saqueadores do carvão em Minas Gerais. 

 

3. Um tipo específico para o tráfico de animais: uma necessidade?

 A luta na defesa do meio ambiente tem encontrado no Direito Penal um dos seus mais significativos instrumentos. Muitas são as hipóteses em que as sanções administrativas ou civis não se mostram suficientes para a repressão das agressões contra o meio ambiente. O estigma de um processo penal gera efeitos que as demais formas de repressão não alcançam.[18] Deveria, então, o Direito Penal Ambiental dar uma resposta mais adequada à conduta do traficante de animais já no juízo de tipicidade.

 Poderíamos argumentar que o juiz criminal (ao sentenciar) levará em conta na fase do artigo 59 do Código Penal a conduta do traficante de animais. Penso que nas ocasiões em que o mesmo é flagrado e não consegue escapar pela utilização da transação penal, isso acabe sendo feito (quando existe prova da traficância de animais nos próprios autos), mas a verdade é que a resposta nesse momento jurídico para o meio ambiente já será tarde.

 A melhor saída, ao nosso ver, é transferir o momento do enquadramento da ação do traficante de animais para o juízo de tipicidade. Isso, evidentemente, só poderia ocorrer com a adoção de um tipo penal específico para a conduta mais culpável (e reprovável) que é a do traficante de animais silvestres.

 O advento de um tipo penal específico para o tráfico de animais restabeleceria o equilíbrio de ponderação de condutas lesivas ao meio ambiente (que inexiste no tipo penal do artigo 29 da Lei 9605/98), possibilitando uma ação mais adequada em face da conduta dos traficantes de animais silvestres.[19]

 O comércio de animais silvestres é um fator extremamente prejudicial à perenidade das espécies, já que acaba por incentivar a procura de toda sorte de bichos, sendo que essa demanda por espécimes da fauna silvestre é exatamente o que estimula a caça ilegal, isto é, a captura do animal na natureza.[20]

 O tráfico de espécies protegidas é semelhante ao de drogas, mas o primeiro apresenta uma diferença: embora seja proibido, na prática não é penalizado. Ou seja, a mercadoria é apreendida, mas o contrabandista não é preso. Por essa razão, o tráfico de animais está ligado ao tráfico de drogas: além de não ser punido, serve de apoio para a lavagem de dinheiro do narcotráfico. Na Europa, os principais pontos de comércio de espécies protegidas estão em Portugal, na Grécia, na Itália e, sobretudo, na Espanha. Atende a todo tipo de consumidor, a começar dos comerciantes de pele, de marfim, de cascos de tartaruga, de bicos de aves e animais exóticos vendidos como bichos de estimação.[21]

 O caçador não tem a menor preocupação com a função ecológica que os espécimes capturados cumprem no ecossistema e com o desequilíbrio ambiental que a retirada dos animais dessa engrenagem podem causar. Não respeita os ciclos de reprodução dos animais nem mesmo as etapas de desenvolvimento. Essa irracionalidade, misturada á ganância, é que impede a renovação do estoque de exemplares de uma espécie e provoca, por fim, a sua extinção.[22]

 O advento de um tipo penal específico para a conduta do traficante de animais facilitaria em muito a proteção do meio ambiente. Primeiro, porque passariam a ser objeto da ação do Estado (repressão) as condutas mais lesivas ao meio ambiente, pois um traficante de animais costuma ser mais agressivo ao meio ambiente que 200 possuidores de pequenos pássaros silvestres. Deve-se, ainda, reprimir primeiro o tráfico de animais (agindo de forma rígida na área administrativa e penal), mas deve-se buscar a ajuda e a conscientização da comunidade onde os animais estão inseridos, pois a realidade social não pode ser olvidada pelos legisladores.  

4. Conclusões.  

1. O Direito Penal ambiental é instrumento de suma importância para a defesa do meio ambiente, devendo ser utilizado como ultima ratio, mas em coordenação e equilíbrio com os demais ramos que tratam da proteção jurídico-ambiental, com o fito de garantir efetividade às suas intervenções.

 2. O Congresso Nacional deve aprovar um tipo penal específico para o tráfico de animais, visando dar uma proteção mais efetiva ao meio ambiente brasileiro, separando no juízo de tipicidade a ação do pequeno agressor da fauna com a do traficante de animais.

 3. O tipo penal de tráfico de animais deve ser regido pelo princípio da razoabilidade e o da precaução, buscando-se punir de forma mais severa o grande e o médio traficante de animais silvestres.  

 5. Referências bibliográficas.  

ABAD, Jesús Urraza. Delitos Contra los Recursos Naturales y el Medio Ambiente. Madrid, Laley, 2001.

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SIRVINSKAS, Luís Paulo. Direito ambiental, fauna, tráfico e extinção de animais silvestres. Revista Jurídica, São Paulo, v. 50, n. 298, ago. 2002.



NOTAS

[1] Tese aprovada por unanimidade no 8º Congresso Internacional de Direito Ambiental, realizado em junho de 2004, pelo Instituto o Direito por um Planeta Verde, em São Paulo, Brasil.

[2] SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 12.

[3] PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2002, p. 5.

[4] SIRVINSKAS, Luís Paulo. Direito ambiental, fauna, tráfico e extinção de animais silvestres. Revista Jurídica, São Paulo, v. 50, n. 298, ago. 2002, p. 75.

[5] LANFREDI, Geraldo Ferreira. Política Ambiental. São Paulo, RT, 2002, p. 17.

[6] ABAD, Jesús Urraza. Delitos Contra los Recursos Naturales y el Medio Ambiente. Madrid, Laley, 2001, p. 97.

[7] SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 59.

[8] RODRÍGUEZ-ARIAS, Antonio Mateos. Derecho Penal y Protección del Medio Ambiente. Madrid, Colex, 1992, p. 86.

 [9] LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 186.

[10] LEITE, op. cit., p. 186.

[11] Sobre essa inflação legislativa ensina Ferrajoli: “Por otra parte las políticas del Derecho Penal parecen orientarse hoy en sentido diametralmente opuesto. En efecto, prosigue la expansión incontrolada de la intervención penal que parece haber llegado a ser, al menos en Italia, el principal instrumento de regulación jurídica y de control social, aunque sólo sea por la total ineficiencia de los otros tipos de sanciones: civiles, administrativas, disciplinarias, políticas. Desde las pequeñas infracciones contravencionales hasta las variadas formas de ilícitos en materia monetaria y comercial, desde la tutela del ambiente y de otros intereses colectivos hasta la represión de las desviaciones políticas y administrativas de los poderes públicos, cada vez más la sanción penal aparece como la única forma de sanción y la única técnica de responsabilización dotada de eficacia y de efectividad. De ahí ha resultado tal inflación de los intereses penalmente protegidos, que se ha perdido toda consistencia conceptual de la figura del bien jurídico. FERRAJOLI, Luigi. Derecho Penal Minimo y Bienes Jurídicos Fundamentales. Ciencias Penales. Revista de la Associaçón de Ciencias Penales de Costa Rica. Marzo-Junio 1992, ano 4, no. 5.

[12] LOZANO, Carlos Blanco. La Protección Del Médio Ambiente em El Derecho Penal Español y Comparado. Granada,  Colmares, 1997, p. 121.

[13] RODRÍGUEZ-ARIAS, Antonio Mateos. Derecho Penal y Protección del Medio Ambiente. Madrid, Colex, 1992, p. 81.

[14] BECHARA, Érika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo, Juarez de Oliveira, 2003, p. 38.

[15] As normas de Direito Administrativo Ambiental são até certo ponto mais severas que as normas penais, mas encontram grande dificuldade na sua efetivação. Geralmente as multas que são aplicadas (algumas de R$ 500,00 por animal apreendido) não são pagas ou os infratores vão recorrendo na esfera administrava até alcançarem benefícios como a prescrição. Critica-se também a falta de critério de alguns agentes públicos na aplicação dessas multas e a influência política que muitas vezes acaba por desestabilizar o frágil sistema de proteção administrativa do meio ambiente.  

[16] SILVA, Luciana Caetano da. Fauna terrestre no Direito Penal Brasileiro. Belo Horizonte, Mandamentos, 2001, p. 140.

[17] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, 2ª ed, São Paulo, RT, 2001, p. 445.

[18] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza. 6a ed., São Paulo, RT, 2000, p. 30.

[19] Tentando simplificar: podemos registrar a resposta jurídico-penal da Lei 6368/76, que separou a ação dos usuários e dos traficantes de drogas, que se não é a da mais perfeita técnica, ao mesmo demonstra mais coerência do que a regra universal do artigo 29 da Lei 9605/98, que pega ao mesmo tempo quem tem um animal silvestre em casa e o traficante que é apanhado com uma carreta cheia de animais silvestres.

[20] BECHARA, op. cit., p. 61.

[21] DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 115-116.

[22] BECHARA, op. cit. , p. 61.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

 

LÉLIO BRAGA CALHAU: Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha).  Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho – RJ.  Conselheiro do ICP – Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais.  Professor de Direito Penal da UNIVALE – Universidade Vale do Rio Doce – MG. 

 

A intimação da penhora em processos já em curso antes da vigência da Lei nº 11.232/2005

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 * Lúcio Delfino

1. Mesmo enobrecidas de boas intenções, as alterações legislativas mostram-se pródigas em trazer consigo problemas diversos. Por ser a compreensão da lei indispensável à sua adequada aplicação, grande parte deles diz respeito à interpretação jurídica. Não bastassem as lacunas legislativas, não raras vezes termos dúbios e expressões vagas são utilizados no texto legal, levando o intérprete a experimentar enormes dificuldades.

Ademais, muitos desses problemas, cuja essência também é de ordem hermenêutica, situam-se no campo do direito intertemporal. É que algumas vezes a colisão da lei nova com a anterior também acarreta contratempos. Afinal, determinadas circunstâncias estabelecidas pela lei antiga podem permanecer sob a vigência da nova lei; ou, por outro lado, situações outras, que foram criadas pela lei velha, já não vão encontrar guarida na novel legislação. Daí porque a necessidade de se estudar até que ponto a lei antiga pode gerar efeitos, e, até que ponto, a lei nova não pode impedir esses efeitos da lei antiga. [01]

E esse fenômeno, relacionado ao conflito de leis no tempo, tem sido hoje frequentemente observado na praxe forense, especialmente depois da publicação da Lei n.º 11.232/2005. E dentre as diversas controvérsias, é de se dar destaque a uma especificadamente: naqueles processos ajuizados antes da vigência da Lei n.º 11.232/2005, mas que se encontravam pendentes quando essa legislação entrou em vigor, a intimação da penhora deverá ser realizada pessoalmente ou na pessoa do advogado do executado? [02] Noutros termos: o novíssimo art. 475-J, §1.º, do Código de Processo Civil pode ser aplicado nos processos que já se encontravam em curso quando a Lei n.º 11.232/2005 entrou em vigor, em especial naquelas hipóteses em que, apesar de a constrição judicial ter sido efetivada, já lavrado o respectivo auto ou termo de penhora, ainda não se havia dado conhecimento dela ao executado mediante a sua intimação? [03]

2. De início, esclareça-se: para solver questões relacionadas ao direito intertemporal processual, não se afigura o melhor critério aquele que se prende ao momento mesmo em que a execução civil principiou-se, apontando-se, matematicamente, qual a lei, se a velha ou a nova, irá reger o caso concreto. É equivocado crer que esse fato – o de que a execução teve início antes da vigência da novel legislação – seria empecilho para a aplicação da nova lei, a qual entrou em vigor já quando o processo seguia o seu curso normal.

Focando-se na questão suscitada alhures, não é adequado defender que nos processos pendentes, em que a intimação da penhora ainda não se completou, esse ato necessariamente haverá de ser pessoal, e não na pessoa do advogado do executado, conforme reza o novo art. 475-J, §1.º, do Código de Processo Civil.

3. São basicamente três as correntes que procuram explicitar os problemas que envolvem a eficácia das leis processuais no tempo (direito processual intertemporal), todas fundamentalmente focadas numa perspectiva referente aos processos pendentes. [04]

Intitulou-se a primeira delas de unidade processual, e isso porque os seus adeptos vêem o processo como um complexo de atos inseparáveis uns dos outros, todos eles subordinados a tutela jurisdicional, fim ou objetivo de todo processo. Ao se considerar o processo como uma entidade única, é até natural a conclusão de que ele deve, sempre, ser regido por uma única lei. Se o processo está em curso e uma lei nova passa a viger, será ele disciplinado inteiramente por esta ou pela lei precedente. Acaso se opte pela lei nova, todos os atos já realizados serão tidos por ineficazes, e assim também os efeitos dela decorrentes – esse entendimento abaliza o efeito retroativo da lei processual. Num sistema como o brasileiro, se tal teoria fosse adotada, a escolha correta seria a aplicação da lei velha, evitando-se, assim, o efeito retrooperante da norma, cuja vedação encontra-se positivada no rol de direitos fundamentais. E não são raras as decisões que seguem esse rumo hermenêutico, negando eficácia à Lei n.º 11.232/2005, e isso por manter o processo já em curso, antes da sua vigência, sob os auspícios da antiga sistemática processual.

Já a segunda corrente, denominada de fases processuais, considera a existência de várias fases processuais autônomas (postulatória, probatória, decisória, recursal), cada qual compreendendo um conjunto de atos inseparáveis, e cada uma constituindo uma unidade processual. Encontrando-se um processo em curso, e sobrevindo uma lei nova, a esta não é autorizado disciplinar a fase ainda não encerrada, que continuaria a se reger pela lei anterior. Tão só as fases seguintes, nascidas sob a vigência da lei nova, passariam a dever-lhe respeito.

A última das teorias é a do isolamento dos atos processuais. Sem olvidar que o processo é uma unidade em vista do fim a que se propõe, seus defensores apontam que ele é um conjunto de atos, e cada um dos quais pode ser considerado isoladamente para os efeitos de aplicação da lei nova. [05] Assim, a lei nova, deparando-se com um processo em desenvolvimento, respeita a eficácia dos atos processuais já realizados e disciplina o processo a partir de sua vigência. Em outros termos, a lei nova respeita os atos processuais realizados e os seus efeitos, aplicando-se aos que houverem de realizar-se, mesmo que oriundos de fase processual pendente quando da passagem da lei velha para a nova, e sempre respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

4. A terceira teoria é a que vigora no País, e o seu uso implica o repúdio a critérios radicais oriundos das outras duas teorias, a saber: (a) a aplicação por completo da lei nova aos processos já pendentes no momento de sua vigência; (b) a imunização por completo desses processos à eficácia da lei nova, para que prosseguissem até ao fim sob o regime da velha; e (c) o respeito às fases procedimentais já superadas ou em curso (postulatória, ordinatória, instrutória, decisória), impondo a lei nova apenas quanto às fases subseqüentes. [06]

Aliás, o disposto no art. 1.211 do Código de Processo Civil consagra, expressamente, a teoria do isolamento dos atos processuais, ao dispor:

"Art. 1.211. Este Código regerá o processo civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes."

Destarte, importa mesmo é que atualmente a Lei n.º 11.232/2005 encontra-se em vigor, de maneira que os atos processuais já realizados e seus efeitos serão respeitados (tempus regit actum), mas aqueles que houverem de se realizar, mesmo que oriundos de fase processual pendente quando da passagem da lei velha para a nova, deverão, em regra, seguir os ditames dessa novel legislação. Não se trata de efeito retroativo da lei, senão de sua aplicação imediata.

De tal sorte, a processualística moderna repudia a imunização absoluta dos processos pendentes à eficácia das novas leis, abolindo, nos exatos termos do art. 1.211 do Código de Processo Civil, entendimentos alicerçados na teoria da unidade processual, para abraçar abertamente a teoria do isolamento dos atos processuais. Impedir a aplicação imediata da lei nova aos atos processuais pendentes é, tão-só, negar vigência ao art. 1.211 do Diploma Processual.

5. Daí a conclusão que melhor responde o questionamento feito no início desse ensaio: nos processos pendentes, em que a intimação da penhora ainda não se completou, a Lei n.º 11.232/2005 deve ser aplicada imediatamente, de maneira que esse ato se dê na pessoa do advogado do executado, e não pessoalmente, isso em consonância com o que reza o novo art. 475-J, §1.º e o já antigo art. 1.211, este último que, conforme já se afirmou, acoberta a teoria do isolamento dos atos processuais, ambos do Código de Processo Civil.


Notas

01 MACHADO, A. Paupério. Introdução ao estudo do direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 282.

02 Anteriormente à vigência da Lei n.º 11.232/2005, a regra geral era a de que a intimação da penhora haveria de ser feita por oficial de justiça, diretamente ao executado (pessoalmente). Apenas se o oficial não lograsse êxito na consecução do ato pelo modo ordinário, é que ele se faria, conforme o caso, com hora-certa ou por edital, desde que presentes os requisitos para tanto, fluindo o prazo para embargar a partir do momento em que fosse juntado aos autos o mandado cumprido ou o comprovante do decurso do prazo de espera estabelecido no edital – não se admitia a intimação por correio. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. IV. São Paulo : Malheiros Editores, 2004. p. 536). Hoje, com o novíssimo art. 475-J, §1.º, alterou-se a regra geral, de modo que a intimação da penhora deve se dar na pessoa do advogado do executado. Na falta desse, a intimação se dará na pessoa do seu representante legal ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio.

03 Deve-se excluir da hipótese sob análise aquelas situações envolvendo o §5.º do art. 659 do Código de Processo Civil. E isto porque, mesmo no regime anterior à Lei n.º 11.232/2005, o ordenamento processual positivo já era expresso ao prever que, naqueles casos referentes à penhora de bens imóveis, quando apresentada certidão da respectiva matrícula, a penhora de imóveis, independentemente de onde se localizem, será realizada por termo nos autos, do qual será intimado o executado, pessoalmente ou na pessoa de seu advogado, e por este ato constituído depositário. Ou seja, já se permitia, em tais hipóteses, que a intimação da penhora se desse na pessoa do advogado.

04 Dinamarco esclarece que as maiores dificuldades, com relação ao direito processual civil temporal, são as que se referem aos processos pendentes no momento de vigência da lei nova. Leciona o mestre: "Essas dificuldades ligam-se à natureza dinâmica e evolutiva do procedimento e da relação processual. Embora o processo seja um só e sempre o mesmo do início ao fim, o procedimento em que se exterioriza é composto de inúmeros atos e variadas fases que se sucedem no tempo. Com a realização de atos e ocorrência de fatos ao longo do procedimento que vai da propositura da demanda inicial até à sentença que põe fim a ele, novas situações jurídicas vão se criando e outras se extinguindo. Essas situações caracterizam-se como direitos processuais adquiridos, tomada essa locução no amplíssimo sentido tradicional de situações jurídicas consumadas." E continua o mestre: "Pensar, p.ex., no réu que não ofereceu resposta no prazo de quinze dias estabelecido pela lei vigente ao tempo (CPC, art. 297) – consumou-se a sua revelia e aplicou-se a regra de presunção de veracidade das alegações de fato contidas na demanda inicial (art. 319). Pensar também numa sentença publicada sob o regime da lei que admite recurso contra ela (art. 513) – criou-se para o vencido a faculdade de recorrer (art. 499). É dessas situações consumadas ao longo do processo que se está falando. Cada uma delas surge num momento, embora no mesmo processo, e cada uma é tratada, no plano da eficácia temporal da lei, como situação autônoma." (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I. 5ª. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2005. p. 118).

05 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Vol. 1º. 23ª. ed. São Paulo : Saraiva, 2004. p. 32.

06 DINAMARCO, Op.cit. p. 118.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

 LÚCIO DELFINO:  advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual.