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O Cérebro Ético

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Atahualpa Fernandez Æ 

Podemos educar para ser solidários? É ético nosso cérebro? Somos egoístas ou cooperadores? Responder a estas três perguntas implica , sobretudo, proceder uma análise – ainda que com caráter de generalidade – sobre as bases neuronais do comportamento social, moral e ético-jurídico. É o que trataremos de fazer ao longo deste artigo.

E começaremos recordando que o peso das adaptações filogenéticas no desenvolvimento da conduta moral do ser humano parece estar fora de qualquer discussão em toda teoria social normativa com traços de seriedade, coerência e consistência. A evolução da conduta moral não é apenas o resultado da adaptação ao meio ambiente material, tal como pressupôs Engels em ensaio publicado em 1876. Também implicou a seleção de atributos que determinaram o sucesso nas interações entre os membros da mesma espécie.

Em termos mais gerais, nossa capacidade ética e nosso comportamento moral (e jurídico- normativo) devem ser contemplados como um atributo do cérebro humano e, portanto, como um produto mais da evolução biológica e que está determinado pela presença (no ser humano) de três faculdades que são necessárias e, em conjunto, suficientes para que dita capacidade ou comportamento se produza: a de antecipar as conseqüências das ações; a de fazer juízos de valor e; a de eleger entre linhas de ações alternativas.

O desenvolvimento neurocognitivo do ser humano favoreceu o aparecimento de tais faculdades e, a partir delas, surgiu inevitavelmente a moralidade[1].  Na advertência de Changeux, o cérebro é evidentemente a “base” da linguagem e da moral. E o ser humano é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo[2]. De fato, se se borrasse o conjunto de cérebros humanos da face da terra, a moral e o direito desapareceriam ao mesmo tempo. As normas e teorias  jurídicas seguiriam plasmadas em livros guardados em estantes de bibliotecas abandonadas. Todas estas obras do gênio humano não teriam já a oportunidade de viver cada vez  que uma mirada humana recai sobre elas. A moral e o direito não existem mais que no cérebro  do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir e compreender. Somente os cidadãos individuais têm direito ou sentido de justiça e bondade, e as têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. O resto é mitologia.

De fato, toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas idéias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem , da moral,do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro (Mosterín). Daí que Gazzaniga  defenda a idéia de que poderia existir um conjunto universal de respostas biológicas aos dilemas morais, uma sorte de ética integrada no cérebro[3].

Assim que nosso comportamento, nossas sociedades, nossa cultura e nossas normas de conduta (éticas ou jurídicas) parecem ser a resposta que elaboramos, com os mecanismos psicológicos evolucionados de que dispomos, para solucionar os problemas relativos às exigências  e contingências de uma existência essencialmente grupal. E isto se dá graças a uma arquitetura cerebral que confirma a longínqua idéia de Konrad Lorenz, a saber: a existência de um imperativo biológico capaz de combinar respostas instintivas e códigos morais.

Nesse sentido, as transformações evolutivas do último período do gênero Homo modelaram a conduta moral primitiva e se serviram dela para a aparição de grupos cuja sobrevivência dependia sobremaneira da relação mútua entre o grau muito elevado de altruísmo/cooperação e a emergência de uma inigualável capacidade preditiva da conduta humana. E os subprodutos de tais estratégias (sócio-)adaptativas  (nelas incluídas, por certo, o direito), baseadas na complexidade cognitiva e lingüística do ser humano, são o resultado da enorme riqueza de nossa insólita e complicada  “inteligência social”.

Ora, se damos por boa a afirmação anterior, chegamos a uma cadeia causal que justifica parte do processo de surgimento da moral e do direito. Tem que ver com a circunstância da evolução filogenética, fixada já em nossos antecessores do gênero Homo, de uns cérebros o bastante grandes e complexos como para sustentar a arquitetura cognitiva que nos permite realizar juízos avaliativos a respeito do comportamento humano.

Mas a obtenção induvidável durante a filogênese humana de uns cérebros maiores e complexos levanta desde logo um enigma. Dado que o tecido neuronal é o mais “custoso” em termos de necessidades biológicas e energéticas (Aiello & Wheeler), não se pode pensar que se conseguira de forma acidental. Devem existir benefícios importantes derivados da disposição de maiores cérebros. Mas, quais são estes benefícios? Em que consistem?

A resposta pode intentar buscar-se mediante a comparação das condutas filogeneticamente fixadas. Outras espécies de certa complexidade social resolvem suas necessidades adaptativas por outras vias. Durante a evolução dos seres vivos em nosso planeta apareceram ao menos quatro vezes os comportamentos altruístas extremos nas chamadas “espécies eusociales”: os himenópteros (formigas, vespas, abelhas, térmitas), os camarões parasitários das anêmonas dos mares coralinos (Synalpheus regalis, Duffy), as ratas-topo peladas (Heterocephalus glaber, O’Riain, Jarvis, & Faulkes) e os primatas (com os humanos como melhor exemplo). Pois bem, nem os insetos sociais, nem as ratas-topo e nem os camarões parasitários dispõem de uma linguagem como a nossa.

Seus meios de comunicação podem ser muito complexos. As abelhas, por exemplo, efetuam um exercício de dança específico para transmitir informações sobre a localização e qualidade dos alimentos. Inclusive os animais da espécie mais próxima à humana, os chimpanzés, dispõem de uma variada gama de gestos, gritos e outras condutas para manifestar ou dissimular o medo e a agressividade, da mesma maneira com que manifestam certo sentido de justiça, mostram desejos de congraçar-se e mantêm relações sexuais complexas (de Waal)[4]. Mas jamais fazem uso de uma linguagem de dupla articulação com estrutura sintática.

A linguagem, pois, pode ser considerada como a chave para rastrear benefícios adaptativos capazes de supor uma pressão adaptativa no sentido dos grandes cérebros dos seres humanos.

A capacidade lingüística própria de nossa espécie, que é a ferramenta mais importante para a transmissão da cultura, aporta-nos certas vantagens claras na estratégia de sobrevivência social que os sistemas de comunicação mais simples não poderiam sustentar. Sem embargo, seguimos sem conhecer por que a vantagem adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez o que a quem”. Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as conseqüências das ações de nossos congêneres mas, por outro lado, não somos capazes  de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.

Para intentar entender e superar a obscuridade tradicional das discussões teóricas na análise da moral e do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural dos mesmos, senão que intenta dilucidar para que servem a moral e o direito no âmbito da (evolucionada) existência humana[5].O ponto de partida funcional não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou tradicional) de condicionar o conhecimento moral ou jurídico aos limites obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria experiência humana.

Não é necessário propor a existência de verdades morais ou jurídicas independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência da moral e do direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo. Com efeito, as discussões  funcionais sobre a existência  da moral e do direito contribuem para dissolver (ou pelo menos para amenizar) a bruma piedosa de limites indeterminados gerada pelas teorias habituais , uma vez que há uma grande diferença entre estudar o que um mecanismo pode fazer e estudar o que está desenhado para fazer. Saber para que foi desenhado um determinado artefato cultural – qual é  sua função – tem um enorme valor heurístico porque sugere os traços que deve conter. Permite-nos também inferir os tipos de problemas que um artefato deve poder resolver à perfeição assim como possibilita desenvolver tarefas que especifique que características funcionais devem ter um artefato para poder resolver determinados problemas. Muitos filósofos e juristas estudam a moral e o direito sem perguntar-se com que propósitos foram desenhados. Preferem mais bem descobrir suas estruturas estudando as coisas que são capazes de fazer. Sem embargo, na investigação acerca da singularidade da moral e do direito, o pensamento funcional é simplesmente iniludível; não podemos enumerar suas possibilidades sem pressupor um conceito de função.

Afinal, a moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade, e precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas bem informadas e justas.  Embora haja riscos e desconfortos envolvidos, nesse tema,  devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância  tradicional de investigar cientificamente os fenômenos éticos e jurídicos, de modo a compreender  como e por que a moral e o direito inspiram tal devoção, e descobrir  como deveríamos aperfeiçoa-los a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana.

E uma vez redimensionado e situado este tipo de análise sobre a moral e o direito a uma dimensão propriamente evolucionista e funcional, é possível conjeturar – no que aqui nos interessa de forma prioritária –  que se ambos foram criados pelo homem, para os propósitos do homem, então todos os propósitos que porventura possamos encontrar e extrair deles devem ser devidos, em última instância, aos propósitos do homem. Mas, “quais são estes propósitos?”, é algo assim como um mistério.

Sem embargo, e porque os humanos são sempre um problema tão sensível, parece razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que a resposta se encontre nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto é, de que a moral e o direito aparecem e se justificam  pela necessidade de competir com êxito em uma vida social extremamente complexa. Ao enfrentarem-se nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal, apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo capazes de manejar o universo de normas e valores.

Trata-se, insistimos, de uma hipótese. Mas é ao menos a mesma que justifica o tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas (Humphrey)[6]. Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de interação de  certas formas elementares de sociabilidade e valores que parecem estar arraigados na estrutura de nossa arquitetura mental.

Nesse sentido, uma explicação darwinista sobre a evolução da ética e do direito supõe que as normas de conduta representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade inata de inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o comportamento dos indivíduos.

De tal maneira se ampliaria o conhecimento social entre  os membros do grupo e se desenvolveria  nossa também inata capacidade para cooperar e resolver conflitos sociais sem necessidade de recorrer à formas de hierarquização e organização social típicas de numerosas espécies animais como é a agressividade[7]. Um tal mecanismo normativo supõe a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando (mais do que compondo conflitos) por uma via não conflitiva os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, possam ser válida e socialmente exercidos (Ricouer).

E entendido assim, parece razoável admitir que a evolução humana desenvolveu no homem a capacidade de estruturar valores morais e determinadas formas elementares de sociabilidade por meio das quais constrói estilos aprovados  de interação e de estrutura social. Neste particular, o avanço das ciências cognitivas tem ajudado a compreender melhor o funcionamento do cérebro, os correlatos cerebrais  que intervêm  no processo cognitivo de formular juizos morais acerca do justo ou injusto e a forma em que se ativam as neuronas, como as denominadas neuronas espelhos, que são as responsáveis do mecanismo de mimetização do que sucede no entorno por meio do processo de aprendizado[8]. Tudo isso nos adverte da plasticidade e da modificabilidade do cérebro, assim como da não-determinação do comportamento e as normas éticas, da íntima dependência que existe entre estas, o cérebro e o entorno social.

Esta plasticidade do  cérebro permite que cada experiência seja adaptada pelo sistema nervoso e que este mude ou se adapte segundo as circunstâncias, quer dizer, que o cérebro humano tem uma grande capacidade, através das ativações neuronais, para o aprendizado e a evolução. Mas este aprendizado dependerá da natureza e o contexto social, que são dois fatores essenciais na elaboração da conduta. Na sociedade atual, onde o respeito a muitos dos valores dos direitos humanos se encontram em crise, este contexto joga um papel fundamental. A educação é uma maneira de ensinar-nos a pensar. A genética é uma parte do cérebro, mas não podemos olvidar que há outra parte muito importante que é o entorno[9].

Daí porque  Dennet faz referência a que os indivíduos aprendem muito por imitação de modelos e ressalta que «não são os genes os que dão o aprendizado, senão esta imitação de modelos com a interação do entorno». O ser humano aprende de diversas maneiras e as mais fundamentais são, como lembra Dennet, a experiência e a imitação de modelos. A experiência é um background que se absorve consciente ou inconscientemente, mas é importante destacar que a distinção entre umas e outras não radica no cérebro senão no  tipo de atividades que realiza o indivíduo  e as percepções que este recebe de ditas atividades. O aprendizado dependerá então da própria experiência pessoal do indivíduo e de sua relação com o entorno familiar e social.

Assim , o ensino, os processos de educação explícitos e implícitos, formais e informais, resultam indispensáveis para assimilar o cooperativismo no indivíduo porque permite a interação entre o entorno e o cérebro. O cérebro  serve às crianças para aprender, mas  não é o cérebro a chave para este processo altruísta, senão o que se lhe ensina, os valores que se lhe trasmitem, os modelos que imita dentro do contexto social onde se formará.

O importante neste processo é que o ser humano seja consciente desta forma de aprendizado pois isso lhe permitirá apreciar as questões que lhe são diferentes como algo que não aprendeu, ainda que isto não significará que deva rechaçá-lo. Quer  dizer, que deve partir de uma certeza com perspectiva já que uma certeza sem perspectiva, sem um posicionamento consciente que lhe permita entender e aprender que suas certezas não são as únicas nem as superiores, pode levar o indivíduo a um individualismo injustificável e a pensamentos intolerantes. Esta perspectiva  e o respeito farão possível  que , no ato de conhecer ao Outro, o indivíduo se conheça a si mesmo e seja consciente da fragilidade da condição humana.

Para assimilar este processo de aprendizado de normas cooperativas ou altruístas, os seres humanos contam com uma ferramenta indispensável produto da própria evolução do cérebro e que o diferencia do resto dos seres vivos do planeta: a linguagem. Sem linguagem , já dissemos antes, não pode haver cultura. É o que nos diferencia dos animais e que foi criada a partir da evolução do homem e seu cérebro. A linguagem não é somente um meio de comunicação senão uma maneira de arrumar o mundo ( Derek Bickerton). A linguagem é ao mesmo tempo uma ferramenta para o aprendizado e um aprendizado em si mesmo. Um conteúdo e um formador de conhecimentos e normas. Aportações  fundamentais das disciplinas humanísticas e naturais ao longo de todo o século XX se dão a mão nestas afirmações  e o urgente que é converter estes consensos em planos de ação: entender e fazer da palavra , da linguagem, do diálogo, a chave para a convivência pacífica da Humanidade.

Sem embargo, o problema ao que se enfrenta o indivíduo é que na sociedade atual existe uma desorientação psicológica-ética já que não sabe armonizar as normas sociais com os traços característicos da natureza humana. Valores que imperam na sociedade atual como o consumismo, o egoísmo ou a intolerância produzem uma dissociação entre a mente, a ética e o direito. A ciência é a ferramenta que pode levar-nos a entender melhor o fato de que o desenho de um modelo normativo (moral ou ético-jurídico) adequado pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia  de uma ponte entre natureza e cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana, isto é, em forma de uma explicação de como são  os seres humanos, considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Assim que o grande reto da sociedade é, a partir destes conhecimentos científicos, encontrar a maneira que os indivíduos aprendam a comportar-se de forma altruísta ante uma sociedade que tende cada vez mais ao egoísmo. Cientistas, psicólogos e filósofos já concluíram que não há uma distinção clara entre cérebro e sentimientos morais. Mas sim que o aprendizado através de modelos (quer dizer, a educação) – e isto inclui a todos os setores de uma sociedade – poderá ajudar a construir um ser humano altruísta, assim como uma sociedade mundial que viva mais longe do conflito.

Dito de outro modo, porque nosso cérebro está desenhado pela seleção natural para termos tanto instintos sinistros como instintos luminosos ( os seres humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e anti-social) precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes (Ridley) ; ou, na aguda observação de Sandel : na presença de indivíduos dotados de certas qualidades de caráter, de certas disposições morais que os levam a identificar com a sorte dos demais e, em definitiva, com os destinos de sua comunidade, o melhor será deixar de lado a idéia liberal do Estado neutral, para substituí-la por um Estado ativo em matéria moral, e decidido a “cultivar a virtude” entre seus cidadãos.

Assim pois, o objetivo de uma boa educação e o objetivo de uma sociedade próspera, deveriam ser o de fomentar a virtude de cultivar o melhor da natureza humana e, do mesmo modo, reprimir o pior.Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um conviver ( a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum[10]: o modo como se cultivem os traços de nossa natureza e a forma  como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo da cultura , da civilização , da nossa condição de cidadão e de nossa própria educação. 


NOTAS

ÆPara a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006.

[1]E parecem ser três as condições (necessárias e suficientes) que contribuiram para a evolução da moralidade: 1. valor do grupo ou inclusão social, que consiste na dependência  do grupo para encontrar comida ou para defender-se dos inimigos e depredadores; 2. apoio mútuo ou preocupação pela comunidade,  que consiste na cooperação e intercâmbio recíproco dentro do grupo; 3. conflito dentro do grupo, condição segundo a qual os membros individuais de um determinado grupo têm interesses díspares (de Waal).

[2] Assim, por exemplo, os animais não humanos matam, mas não cometem um “assassinato”: é impossível para um pássaro “assassinar”  outro pássaro, porquanto a palavra  “assassinato” se reserva para a morte intencionada, deliberada, iníqua, de um ser humano por outro (podemos matar  um cachorro, mas não assassiná-lo e se um cachorro nos mata  não é um assassinato). Da mesma forma, não parece razoável afirmar que um pato  violou   outro pato. E muito embora exista  “canibalismo” sexual entre as aranhas  ( as fêmeas esperam que o macho haja terminado de fecundá-las e então o matam e o comem), gaivotas  “lésbicas”, gusanos “homossexuais” e pássaros “cornudos”, o significado destes termos só adquirem potenciação cultural quando produzidos e metabolizados  por  nosso mecanismo cognitivo neo-cortical e vinculados a aspectos da existência  humana (Dennett).

[3] Imagine uma situação onde a sua interferência pode significar o sacrifício de uma vida para salvar outras cinco. Note-se que, na filosofia, não há consenso acerca da solução para este tipo de dilema. Para a neurociência, contudo, o  raciocínio consequencialista de John Stuart Mill ( segundo o qual o que importa são as ações que produzem a maior felicidade à maior quantidade de pessoas, ou seja, o “bem maior”) parece estar associado a um padrão de ativação cognitiva ( pré-frontal) , enquanto buscar o comportamento moral de Kant (segundo o qual o importante é “agir moralmente”, a intenção de quem produz a ação, independente do seu resultado relativamente ao “bem maior”: é mais importante não vulnerar os direitos de outra pessoa que obter um resultado ideal) envolve um padrão “social-emocional” de ativação cerebral que envolve, predominantemente, circuitos emocionais. O que acontece quando há um conflito entre esses dois tipos de raciocínios? Pois bem, para responder esta pergunta, Greene e colaboradores  criaram cenários onde decisões pelo bem maior envolvessem a quebra de uma promessa, colocando as predições de Mill e Kant em pratos opostos da balança. Como esperado, e com um resultado que não dista muito dos experimentos anteriores, a manutenção de uma promessa em detrimento do “bem maior” encontra-se associada a ativação de circuitos sociais-emocionais. Essa ativação também acontece enquanto se decide por quebrar a promessa em prol de um julgamento utilitário – mas é sobrepujada pela ativação , instantes mais tarde, do córtex pré-frontal dorso-lateral. Confrontado com dilemas, portanto, a primeira reação do cérebro parece ser emocional, em prol de uma moral interna que, no entanto, pode ser silenciada se o córtex pré-frontal optar pelo bem maior, contra os impulsos de outras regiões do mesmo cérebro. Um exemplo ilustrará melhor ao que estamos nos referindo: suponhamos que um indivíduo vá em seu carro novo e vê a um homem estendido na calçada. Sofreu um acidente e está ensanguentado. Poderia levá-lo ao hospital e salvar-lhe a vida; sem embargo, mancharia de sangue seu carro novo. É moralmente aceitável deixá-lo aí? Cambiemos de cenário. Um indivíduo recebe um pedido por correio donde se diz que, se envia 100 reais, salvará a vida de 10 crianças famintas.É aceitável enviar o dinheiro? Ao analisar este tipo de dilemas, Greene e colaboradores descobriram que, ainda que as opções são superficialmente as mesmas – não faças nada e preserva teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é pessoal, enquanto que o segundo é impessoal. Em síntese, os estudos comprovam que as decisões ante dilemas pessoais supoem mais atividade cerebral nas zonas associadas com a emoção e a cognição moral. E a teoria que justifica esta circunstância é a de que, desde uma perspectiva evolutiva, as estruturas neuronais que associam os instintos com a emoção se selecionaram ao largo do tempo porque resulta benéfico ajudar à gente ou cumprir uma promessa de modo imediato; o instinto visceral, ou moral, é o resultado de processos selecionados ao largo do processo evolutivo: dispomos de processos cognitivos que nos permitem tomar decisões morais rápidas que aumentarão nossa probabilidade de sobrevivência ( se estamos programados para salvar a um indivíduo ou cumprir as regras de reciprocidade do intercâmbio social, todos sobreviveremos melhor). O certo é  que, de acordo com os experimentos provenientes da neurociência cognitiva, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Por exemplo, Casebeer, tendo em vista as numerosas filosofias morais que existem, tomou como ponto de partida de suas investigações acerca das zonas cerebrais  que se ativam durante o raciocínio ou juízo moral, as três filosofias ocidentais mais importantes: o utilitarismo de Stuart Mill , a deontologia de Kant e a teoria da virtude de Aristóteles (que trata de cultivar a virtude e evitar os vícios). Concluiu sua análise com a seguinte observação: “Assim que poderíamos dizer […] que estes três enfoques situam-se em diversas zonas do cérebro: frontal (Kant); préfrontal, límbica e sensorial (Mill); a ação corretamente coordenada de todo o cérebro (Aristóteles)”. Seja como for, no atual panorama  científico tem aparecido vários estudos donde se afirma que  existe , no cérebro, uma versão do raciocínio ou juízo moral. Já se descobriu que determinadas regiões do cérebro, normalmente ativas durante os processos emocionais, se ativam diante de alguns tipos de juízo moral, mas não diante de outros. Os encarnizados debates seculares sobre a natureza das decisões morais e sua similitude ou diferença se resolvem agora de maneira rápida e clara com a moderna imagem cerebral. E os novos resultados indicam que, quando alguém está disposto a atuar segundo uma determinada crença moral, é porque a parte emocional de seu cérebro se ativou ao pensar na questão moral. Assim mesmo, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa. Trata-se de uma assombrosa novidade para o conhecimento humano, porque ajuda a entender que a resposta automática do cérebro pode predizer nossa resposta moral. Resumindo: os novos resultados das imagens cerebrais parecem indicar que o cérebro responde aos grandes dilemas morais subjacentes, isto é, de que parece haver mecanismos subconscientes inatos comuns que se ativam em todos os membros de nossa espécie como resposta aos desafios morais. É como se todos os dados sociais do momento, os interesses de sobrevivência pessoal que todos possuímos, a experiência cultural que já vivemos e o temperamento básico de nossa espécie alimentassem os mecanismos subconscientes e inatos que todos possuímos e daí surgira uma resposta, um impulso para atuar ou deixar de atuar (Gazzaniga).Nesse sentido, o fato de que os juízos morais são maioritariamente intuitivos e inatos talvez seja (ou constitua) a chispa moral, o aglutinante que impede que nossa espécie se destrua a largo prazo.

[4]Sarah Brosnan e Frans de Waal indicaram mediante um experimento muito elegante como os monos capuchinos (macaco prego), Cebus apella, dispõem de um sentido agudo da justiça. Em condições experimentais, aprendem a intercambiar fichas por comida com seus cuidadores humanos, mas se negam a fazê-lo se o trato oferecido é pior do que aquele com que se brinda a outro mono cujo intercâmbio é por ele contemplado e avaliado. Este descobrimento de que os monos capuchinos estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre um  amplo campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se à perfeição com as idéias dos etólogos e psicólogos (como Humphrey) acerca do “porquê”  do aparecimento dos grandes cérebros dos primatas. Note-se, neste particular, que já se encontraram algumas evidências etológicas no sentido de que o castigo retributivo se acha inserto no mais profundo de nosso desenvolvimento evolutivo (Brosnan & de Wall; Fehr et al.). Uma hipótese plausível sustenta que o retributivismo foi uma ferramenta útil para a manutenção da ordem social durante a evolução , com o que certos mecanismos psicológicos que o sustentam puderam haver sido fixados no  transcurso da mesma (Clark). Robin Dunbar  chegou a conclusões semelhantes: descobriu uma correlação direta nos primatas sociais entre o tamanho do neocórtex (a parte do cérebro que pensa) e o tamanho dos grupos, típico daquela espécie. Dunbar deduziu que o poder intelectual evoluiu em função das exigências  da vida social : a sofisticação cognitiva de nossos ancestrais primatas interagiu com o tamanho crescente dos grupos  e produziu uma forte  pressão seletiva que acelerou o crescimento do cérebro e a conseqüente sofisticação da mente humana. Em resumo, teríamos aqui a resposta de que as vantagens dos cérebros residem nas atividades sociais (na complexidade das relações sociais) e que quanto maior for o grupo social, maiores serão os benefícios conferidos pela evolução do cérebro e mais fortes serão as pressões seletivas para essa evolução. Dito de outro modo, é a sociabilidade que impulsiona a evolução da inteligêngia e, conseqüentemente, do tamanho do cérebro ou , nas palavras de Humphrey : a função do intelecto  é resolver problemas sociais.(Foley).

[5] Tal como Aristóteles fez notar no nascimento da ciência humana, nossa curiosidade pelas coisas manifesta-se de diferentes formas, todas inerentes ao mundo mundano (ao reino do espaço e do tempo) e que não podem existir separadamente dele. Seus pioneiros esforços por conseguir uma classificação destas formas estão prenhados de sentido. Identificou Aristóteles quatro perguntas básicas para as quais buscamos respostas a respeito de algo e  denominou   estas (as suas respostas) de as quatro  aitia – um termo grego inexprimível , ainda que tradicionalmente traduzido, de maneira um pouco estranha, pelas quatro “causas”. Nos interessa, aqui, a que se refere ao fato de que podemos mostrar curiosidade acerca do  propósito, objetivo ou  fim de algo, a qual Aristóteles chamou  telos, às vezes traduzido, também estranhamente, como  causa final”. É necessário grande esforço de compreensão e adaptação para conseguir que estas quatro aitias de Aristóteles se acomodem como respostas às quatro interrogações habituais “que”, “onde”, “quando” e “por que”; esta acomodação é só parcialmente boa. Não obstante, as perguntas que começam com “por que” mantêm mais estrita correspondência com a interrogação pela quarta “causa” de Aristóteles, isto é, pelo telos de uma coisa. “Por que isto?”, perguntamos constantemente. “Para que serve isto?” é pergunta tão habitual, que já passou a fazer parte de nossa cotidiana existência.  De fato, durante séculos estes “por quês” foram reconhecidos como problemáticos por filósofos e cientistas; e tão distintos, que os problemas que suscitam acabaram por merecer um nome: teleologia (Dennett). Assim que uma explicação teleológica é aquela que explica a existência ou a ocorrência de algo citando como prova o objetivo ou propósito ao que serve essa coisa. Os artefatos são os casos mais óbvios: o objetivo ou propósito de um artefato é a função a cumprir para a qual foi desenhado por seu criador. Não existe controvérsia acerca do telos de um martelo: golpear e introduzir pregos. O telos de artefatos mais complicados, como uma câmara de vídeo, um telefone celular com suas inúmeras opções de programação, um scaner para tomografia axial computadorizada (TAC) é, inclusive, mais óbvio. A idéia é certamente natural e atrativa: se observamos um relógio de bolso e nos perguntamos por que tem um vidro transparente em um de seus lados, a resposta nos induz a pensar nas necessidades e desejos de quem utiliza estes relógios: porque desejam saber que horas são, olhando através do vidro transparente e protetor, e assim em diante. Se não fosse por estes fatos que se relacionam conosco, para quem (e por quem) o relógio foi criado, não haveria explicação para o “por que” de seu vidro. E o mesmo ocorre , por exemplo, com esse artefato cultural a que denominamos de “direito”.

[6] O estudo de populações de primatas sugere que uma das estratégias evolutivas desenvolvidas para lidar com as exigências da vida social foi a construção de mapas sociais mentais, ou seja, mapas de relacionamento capazes de informar a hierarquia social de cada primata do grupo. De acordo com Sterelny, a capacidade de construir mapas sociais mentais pode ser uma origem plausível das representações em termos de intencionalidade (crenças/desejos), mas depende do preenchimento de algumas condições, que incluem : a) exigências mnemônicas, para reconhecer os outros indivíduos do grupo e sua posição na hierarquia social; b) o desenvolvimento da racionalidade estratégica, tendo em vista que a ação mais eficaz em um ambiente social depende da expectativa sobre a ação dos outros indivíduos, e isso exige maior flexibilidade comportamental; e c) o aprendizado social, que é capaz de diminuir muito os custos do aprendizado por tentativa e erro, tanto em termos de segurança quanto em termos de eficiência, porque os adultos moldam o ambiente de forma a selecionar o que os filhotes devem aprender (ensinam, assim, o que é relevante aprender), ao mesmo tempo em que os protegem de ambientes potencialmente perigosos (Sterelny).

[7] Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander, a principal força hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os conflitos de interesses estão onipresentes e os esforços competitivos dos outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais caracteristicamente marcante de nosso panorama evolutivo. Em virtude de que todos temos as mesmas necessidades, os outros membros de nossa própria espécie são nossos mais temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego, companheiro sexual, comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, são também nossa única fonte de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e proteção. Isto significa não somente que a qualidade de nossas relações sociais foi sempre vital para o bem estar material de nossa espécie, como a solução pacífica dos conflitos e a igualdade passaram a ser uma estratégia eficaz para evitar os altos custos sociais da competição e da desigualdade material. Essas considerações vão ao âmago mesmo dos dois tipos distintos de organização social encontrados entre os humanos e os primatas não hominídeos: o que se baseia no poder e domínio (“agônico”) e o que se baseia em uma cooperação mais igualitária (“hedônico”). Devido a que as sociedades de classes tem sido predominante ao largo da história da humanidade, temos a tendência a considerar como norma humana as formas agônicas de organização social. Mas isso passa por alto da evidência de que durante nossa pré-história como caçadores-recoletores – a maior parte da existência humana – vivemos em grupos hedônicos. De fato, os antropólogos qualificaram de “firmemente” igualitárias as sociedades modernas de caçadores-recoletores. Em uma análise de mais de um centenar de informes antropológicos sobre vinte e quatro sociedades recentes de caçadores-recoletores extendidas ao largo do planeta, Erdal e Whiten  chegaram à conclusão de que estas sociedades se caracterizavam por um “igualitarismo, cooperação e reparto a uma escala sem precedentes na evolução dos primatas…, de que não há hierarquia dominante entre os caçadores-recoletores…, e de que o igualitarismo é um universal intercultural que provém sem lugar a dúvidas da literatura etnográfica”. Em resumo, o igualitarismo das sociedades de caçadores-recoletores – recentes em termos evolutivos –, que marcou as pautas de nossa existência passada enquanto seres humanos “anatomicamente modernos”, deveria considerar-se como uma eficaz estratégia sócio-adaptativa que evitava os altos custos sociais da desigualdade material. Paralelamente a este processo evolucionou a justiça – e a igualdade proporcional aristotélica é uma manifestação explícita deste paralelismo – , cujo núcleo duro e indisponível reside na circunstância de que  todos os seres humanos devem ser considerados como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração igual em todos os vínculos sociais relacionais que se consideram constitutivos da autonomia e liberdade do indivíduo , quer dizer, que permitem a cada um viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em uma comunidade de homens livres e iguais unidos por um comum e fraterno sentimento de legitimidade e de submetimento ao direito, e em pleno e permanente exercício de sua cidadania. Neste particular, o descobrimento de que os Cebus apella (macaco prego) estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre  igualmente um  amplo campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se à perfeição com as idéias  acerca da origem e da evolução da igualdade entre os primatas. Tem, portanto,  sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade. Dito de outro modo, estas três virtudes que configuram a noção de justiça  somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional à dignidade humana. (Atahualpa Fernandez).

[8] Uma larga e rica história de investigação psicológica esboçou a chamada hipótese do altruismo empático, que intenta explicar a conduta pró-social que adotamos quando vemos a outro ser em apuros. Automática e inconscientemente simulamos estes apuros em nossa mente, que a sua vez nos fazem sentir mal, não de uma maneira abstrata senão literalmente mal. Nos contagiamos das sensações negativas da outra pessoa, e para aliviar esse estado próprio nos vemos motivados a atuar. Vários estudos corroboram a idéia de que a manipulação dos sentimentos com relação a um indivíduo incrementa a atitude cooperativa. Por exemplo, a percepção de gestos de angústia ou dor no outro propicia que a conduta seja mais altruísta. Já se realizaram incontáveis experimentos para corroborar essa idéia geral. John Lanzetta e colaboradores  já demonstraram em várias ocasiões que a gente tende a responder ao sentido do tato, do gosto, da dor, do medo, da alegria e do entusiasmo dos demais com análogos padrões fisiológicos de ativação.Literalmente sentem os estados emocionais dos demais como se fossem próprios. Esta tendência a reacionar ante o sinal de dor ou sofrimento dos demais parece inata: se há demonstrado em crianças recém nascidas, que choram em resposta ao sinal de dor de outras crianças nos primeiros dias de vida (Simner). Alguns experimentos neurofisiológicos e de imagem cerebral sugerem que as neuronas espelho existem nos seres humanos e que são as responsáveis da “compreensão das ações”, quer dizer, que têm a função de contribuir à compreensão e à imitação das ações alheias.(Rizzolatti et al.). Em resumo, este sistema neuronal parece ser o causante de que os humanos tendamos a imitar aos que nos redeiam e o responsável de que sintamos uma emoção quando vemos a alguém emocionar-se: literalmente, sentimos essa mesma emoção. Estas “neuronas expelo” também nos permitem “ler” a mente do Outro e a identificar-se com ele.

[9] Dito de outro modo, significa dizer que também resulta precipitado e pueril pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral e normativo já nos abre a porta  a uma humanidade melhor. Me temo que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor  conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples! Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida da moral e do direito, a própria idéia e essência da moral e do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural. O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência, a ciência cognitiva, a primatologia, a genética do comportamento e a psicologia evolucionista – para citar apenas as mais representativas-  nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a busca de um adequado critério ético ou moral pode considerar-se, antes de tudo,  como a arqueologia das estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações morais e ético-jurídicas.

[10] Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer : “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzi-la (…) isso, creio eu, consiste a esquerda (…) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para  levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”. 

 

ATAHUALPA FERNANDES: Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular/Unama-PA; Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

A pobre justiça rica

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  * Mário Antonio L. de Paiva 

Tenho acompanhado o noticiário e deparo-me com uma onda de prisões de figurões envolvidos em falcatruas realizadas pela Polícia Federal com ordem de juízes federais e, concomitantemente, vejo a revolta de colegas e do público em geral no momento em que os mesmos são liberados pelos próprios juízes que ordenaram a prisão ou por seus pares em instâncias superiores.

Colegas afirmam que o país não tem leis rígidas, que os juízes não são severos e, principalmente, que as pessoas envolvidas nesses crimes tem grandes posses e que, por isso, não ficarão muito tempo na cadeia.

Em parte o povo tem razão mas, se olharmos a nossa volta, perceberemos que isso acontece em todos os setores. Na saúde se você tem recursos financeiros poderá contratar os melhores médicos com especializações realizadas nos grandes centros ou até mesmo fora do país, poderá também utilizar-se dos melhores hospitais particulares com equipamentos de última geração que diagnosticam com precisão doenças diminuindo assim, sensivelmente, os riscos da intervenção cirúrgica. De outro lado temos o SUS que na sua grande maioria encontra-se desaparelhado, com falta de médicos e sem leitos suficientes para atender as necessidades dos enfermos além, é claro, das longas esperas em filas para receber atendimento médico o que resultará, no mínimo, em maiores sofrimentos advindos da dor sem contar com o próprio óbito.

Na engenharia acontece algo similar. Para a realização de uma obra existem profissionais especialistas em várias áreas, iluminação, fundação, arquitetura, decoração tudo para que a obra tenha solidez e beleza e satisfaça o gosto do proprietário. Já aqueles que não possuem recursos chamam apenas um bom pedreiro e alguns ajudantes e seguem em frente com a obra porém sofrendo todo o tipo de risco de uma possível e provável incorreção e até mesmo, em alguns casos, levando a obra ao desabamento.

Em sendo assim poderíamos elencar ainda diversos outros exemplos em que poderíamos constatar que a influência do poder econômico é decisiva para delinear os caminhos a serem atingidos pelo cidadão. E, é claro, na Justiça não seria diferente.

Cumpre informar, primeiramente que, as leis brasileiras não tem tantos erros como apontam alguns especialistas, pois, muitas delas, são feitas por grandes e renomados juristas com alto poder de avaliação e elaboração. Cabe ainda dizer que elas são sim iguais para todos. Porém como acontece em outras áreas o poder econômico exerce influência no deslinde da causa e, não estamos falando aqui de corrupção, e sim de habilidade, poder de convencimento, inteligência, dedicação, organização e busca dos melhores resultados.

Para o leitor entender citaremos um exemplo, imaginemos que um banqueiro seja preso por desvio de verbas dos correntistas e/ou do governo. Imediatamente este, detentor de grandes posses, contratará um dos melhores escritórios de advocacia do país que, em geral, possui de 100 à 300 advogados, para tentar sua liberação. Contratado o escritório de advocacia, imediatamente é formado um grupo que confeccionará a petição no mesmo dia para o juiz que ordenou a prisão. Não satisfeito já encontram-se de prontidão advogados das sucursais destes escritórios de advocacia em Brasília com profissionais especializados em tribunais superiores que são acionados para conseguir a liberação perante as cortes extraordinárias.

Em geral o réu é primário, tem bons antecedentes, residência fixa e não oferece perigo para investigação criminal não havendo por isso necessidade de ser preso preventivamente até mesmo porque este tipo de prisão é extremamente pernicioso e condenável a nível nacional e internacional já que ninguém pode ser privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Portanto não há juiz que possa legalmente manter na cadeia referidos figurões que, libertos, recorrerão reinteradamente das decisões por longos anos até que as discussões cheguem ao Supremo Tribunal Federal.

Não podemos esquecer que a lei que não permite a permanência desses empresários na prisão é a mesma para o ladrão de galinha porém este último dificilmente irá ter uma defesa a contento e será preso infinitamente até que uma alma caridosa lembre-se do pobre coitado e resolva realizar sua defesa.

Vale lembrar que, infelizmente, essa é a lógica do sistema. Portanto, para que o cidadão tenha serviços dignos ou até mesmo de alto padrão precisa de posses pois sem isso não haveria nem mesmo profissionais habilitados a realizar serviços dessa natureza.

Em sendo assim espero que, após a leitura deste ensaio as pessoas entendam que a Justiça é para todos, porém o direito de defesa englobando o asseguramento de todos os direitos previstos na legislação é para poucos.

Por isso intitulei este artigo de pobre justiça rica já que aos olhos do povo a justiça dos ricos é pobre pois não prevalece já que não é efetivamente ou a contento concretizada em virtude da ampla gama de recursos e da excessiva demora na prestação jurisdicional final.

Quero deixar claro que, neste ensaio, estou apenas apontando as causas reais do não aprisionamento da maior parte das pessoas que possuem estrutura econômica avantajada. Soluções existem e podem ser implementadas como, por exemplo, o fortalecimento e estruturação da Defensoria Pública e leis mais rígidas e que visem a efetivação das punições de crimes considerados de relevância social ou de colarinho branco não tratando assim os desiguais de forma igual.

Acredito diante desta realidade que a mitológica deusa Themis (deusa da justiça) deva, nos dias de hoje, retirar a venda de seus olhos e julgar sim, com parcialidade sob esse aspecto levando em consideração o status social do acusado e os efeitos de sua conduta em relação a comunidade utilizando assim essas duas diretrizes como termômetro para a aplicação da pena e, o que é principal, para a efetivação real da punição.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MÁRIO ANTONIO LOBATO DE PAIVA: Advogado em Belém; Conselheiro da OAB/PA; sócio do escritório Paiva & Borges Advogados Associados; Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática (OMDI), sócio-fundador do Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática (IBDI); membro da Associação de Direito e Informática do Chile; Presidente da Comissão de Estudos de Informática Jurídica da OAB-PA e conferencista

 

O Princípio da Legalidade no Direito Tributário.

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* Renato Bernardi

O art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, expressão jurídica do princípio da legalidade. 

A história mostra que o Princípio da Legalidade surge da necessidade de consentimento do povo para a imposição de obrigações, sendo que a reserva de lei nessa matéria é exigida, de forma universal, nos Estados Constitucionais de Direito. 

A legalidade é a base na qual se assenta o Estado de Direito, conforme disposto no art. 1º da Constituição Federal: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. 

O conceito de lei, tal como previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, refere-se a todo ato normativo editado ordinariamente pelo Poder Legislativo, ou, excepcionalmente, e de modo genérico, pelo Poder Executivo, no caso de Leis Delegadas (artigo 68 da Constituição Federal) e das Medidas Provisórias (artigo 62 da Constituição Federal), no desempenho de suas competências constitucionais.  

Contudo, em se tratando de Direito Tributário, o princípio da legalidade vem reforçado no que tange à sua aplicação, já que não se satisfez o legislador constitucional com a disposição genérica do art. 5º, II, indo além no detalhismo característico dos temas constitucionais tributários e formulando, na especificidade do art. 150, I, a exigência de lei para a instituição ou majoração de exações tributárias.  

Visceralmente ligado aos Princípios da República e da Democracia, pela ponte da representatividade popular, também a Legalidade, inclusive a Tributária, como irrecusável direito e garantia individual do cidadão-contribuinte que constitui, nos termos expressos do art. 150, caput, encontra-se seguramente protegida entre as cláusulas de pedra da Lei Maior (art. 60, § 4º, IV).[1][1] 

Invoca-se o princípio da legalidade, com muito mais razão, em matéria tributária, haja vista que o constituinte reservou nessa seara do Direito um dispositivo especial dentro do Texto – art. 150, inciso I – para ressaltar a sua importância, quando se tratar de criação ou aumento de tributo. 

No direito brasileiro, o Princípio da Legalidade deve ser entendido como uma relação de conformidade com a lei em sentido formal, ato oriundo do órgão que detém a competência constitucional para legislar e revestido da forma estabelecida para as leis, e não só em sentido material, como regra de comportamento genérica e coativa. 

Tão robusto é o papel do Princípio da Legalidade no Brasil, que Pontes de Miranda viu-se impelido a cunhar-lhe novo rótulo, dada a sua especificidade e a despeito de riqueza da língua-mãe. Batizou-o de “legalitariedade”.[2][2] 

Legalitariedade tipificada na Constituição Federal, configurando o Princípio da Estrita Legalidade da Tributação (art. 150, inciso I).  

Entre nós, o princípio da legalidade foi albergado desde a Constituição Federal de 1824, que, em seu art. 179, inciso I, estabelecia:

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

I – Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de Lei.” 

Na primeira Constituição Federal Republicana, de 1891, o princípio em tela constou do art. 72: 

“Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros, residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes:

§ 1º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei.

(…)

§ 30. Nenhum imposto de qualquer natureza poderá ser cobrado senão em virtude de uma lei que o autorize.” 

A Carta Magna de 1934 dispôs em seu art. 113: 

“Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual, e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

2) Ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.” 

A Constituição Federal de 1946 tornou expressos os princípios da legalidade e da estrita legalidade em seu art. 141, §§ 2º e 34. No Texto Constitucional de 1967, os princípios em tela foram registrados expressamente no art. 153, § 2º, e no art. 19, inciso I. 

O princípio da estrita legalidade ou princípio da reserva absoluta da lei formal foi enfatizado pelo legislador constituinte de 1988, que fez questão de reforçar a obrigatoriedade desse princípio em matéria tributária ao fazer constar, no art. 150, inciso I, da atual Constituição, em dispositivo integrante do capítulo reservado ao Sistema Tributário Nacional, vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça.  

É um comando genérico à Administração Pública e traduz a idéia de que é preciso resguardar o contribuinte da aplicação de tributos arbitrários. Isso significa que a lei tributária deve proteger o contribuinte, estabelecendo previamente o fato que, se e quando ocorrido, nos termos previstos em lei, dará surgimento à obrigação do particular de recolher aos cofres públicos valores determinados a título de tributo.  

Destaque-se que a previsão que deve constar em lei sobre a exigência ou majoração de tributos deve ser completa.  

Por isso, a majoritária doutrina entende que o princípio da legalidade em sede tributária tem hodiernamente o mesmo cunho de reserva legal que o Direito Penal, dada sua especificidade; elevado, pois, à categoria de princípio da tipificação tributária. 

Certamente, o princípio da tipificação tributária conduz todos à certeza e à segurança de que a tributação só terá seu conteúdo especificado por lei, em seu sentido formal (instrumento normativo proveniente do poder legislativo) e material (norma jurídica geral, impessoal, abstrata e compulsória), obstando interferências ocasionais e contingenciais tanto da parte do administrador quanto da parte do juiz. 

Ensina Roque Carrazza, referindo-se à lei como limitação ao exercício da competência tributária: 

“De fato, em nosso ordenamento jurídico, os tributos só podem ser instituídos e arrecadados com base em lei. Este postulado vale não só para os impostos, como para as taxas e contribuições que, estabelecidas coercitivamente, também invadem a esfera patrimonial privada.

No direito positivo pátrio o assunto foi levado às últimas conseqüências, já que uma interpretação sistemática do Texto Magno revela que só a lei ordinária (lei em sentido orgânico-formal) pode criar ou aumentar tributos. Dito de outro modo só à lei -tomada na acepção técnico-específica de ato do Poder Legislativo, decretado em obediência aos trâmite e formalidade exigidos pela Constituição – é dado criar ou aumentar tributos.”  

Trata-se, pois, de princípio inderrogável, erigido como direito individual, absolutamente insuperável, até mesmo pelo legislador. Esse primado da legalidade impõe que as leis sejam votadas e aprovadas por representantes eleitos pelo povo. É, acima de tudo, uma garantia ao Estado de direito.  

Assim sendo, para a instituição de qualquer tributo, é preciso que a lei, compreendida em sentido formal, traga em seu bojo todos os critérios identificadores do fato jurídico tributário e da relação jurídica tributária, não podendo qualquer dos aspectos da regra-matriz de incidência ser introduzido por veículo diverso.  

Deve o legislador, portanto, ao formular a lei, definir, de modo taxativo e completo, as situações, os tipos tributáveis cuja ocorrência será necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária e os critérios de quantificação do tributo. 

Disso decorre a tipicidade tributária cerrada, de tal sorte que o brocardo nullum tributum sine lege traduz o imperativo de que todos os elementos necessários à tributação do caso concreto se contenham e apenas se contenham na lei. 

Medida Provisória e Tributação 

Não obstante a estrita legalidade, a Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, alterando a redação do art. 62 da Constituição Federal, trouxe a possibilidade de instituição ou majoração de tributo por medida provisória, espécie normativa que não é lei, na acepção estrita do termo, uma vez que não resulta do trabalho do Poder Legislativo – que, em nosso País, tem a função típica de estabelecer regras de conduta gerais e abstratas – mas é editada pelo Presidente da República, irradiando efeitos tão logo seja publicada no órgão da Imprensa Oficial.

 

            Diante de tal previsão constitucional, resultante de atividade constituinte reformadora, estabeleceu-se um conflito de normas constitucionais: de um lado a estrita legalidade (art. 150, inciso I), texto original da Constituição Federal; de outro, a possibilidade de instituição ou majoração de tributo por medida provisória (art. 62, § 2º), inserção feita pelo Poder Constituinte Derivado Reformador. 

            A função do intérprete não é questionar a falta de técnica legislativa, mas sim encontrar soluções para os conflitos normativos eventualmente existentes. 

            Sendo assim, há que se buscar, no sistema jurídico, uma solução para o conflito acima identificado. Essa solução vem apontada com a aplicação de princípios e de lições de constitucionalismo. 

            Num primeiro momento, há que se privilegiar o princípio da estrita legalidade em prejuízo da regra reformadora. Recorrendo-se à eficácia negativa dos princípios, lembre-se que decisões, regras, ou mesmo sub-princípios que se contraponham a princípios serão inválidos, por contraste normativo.  Assim, a regra do art, 62, § 2º, deve ceder em função do princípio tipificado no art. 150, inciso I, ambos da Constituição Federal. 

            Como se não bastasse, necessário que se leve em consideração que a estrita legalidade consta na Constituição Federal desde sua edição ou seja, é fruto do Poder Constituinte Originário, poder ilimitado responsável pela elaboração de uma nova Constituição, ao passo que a possibilidade de instituição ou majoração de tributo por medida provisória foi inserida na Constituição Federal por obra do Poder Constituinte Derivado Reformador, poder que somente pode ser exercido de modo válido uma vez observados os limites previstos – explícita ou implicitamente – no texto constitucional do qual deriva. 

            E uma das limitações diz respeito aos direitos fundamentais, que não podem ser abolidos por emenda constitucional, ex vi o disposto no inciso IV do § 4º do art. 60, da Constituição Federal. 

            Considerada a estrita legalidade como um direito fundamental do contribuinte (art. 150, inciso I da Constituição Federal), tanto quanto a anterioridade, a malsinada Emenda Constitucional n. 32 não poderia prever a possibilidade de instituição ou majoração de tributo por medida provisória.  Ao fazê-lo, contrariou dispositivo constitucional originário, o que permite concluir pela inconstitucionalidade do disposto no § 2º do art. 62, contrastado com a norma originária tipificada no art. 150, inciso I, ambos da Constituição Federal. 

            Nunca é tarde relembrar que a medida provisória é medida excepcional para momentos de urgência, desde que relevante a matéria; não pode ela ser instrumento de instituição de impostos sem o debate dos cidadãos interessados por meio de seus representantes eleitos (no taxation without representation). E se já era assim compreendido desde a Magna Carta do João Sem-Terra no início do século XIII, quanto mais hodiernamente, quando se busca cada vez mais o fortalecimento do Estado Democrático de Direito! 

            No momento histórico em que está mergulhada toda a humanidade, amedrontada com ameaças terroristas capazes de abalar as mais sólidas estruturas, cabe a analogia feita por José Roberto Vieira ao comentar a Emenda Constitucional n. 32, no que se refere ao disposto no § 2º, do art. 62 [3][3]: 

Aliás, promulgada em 11 de setembro de 2001, mesma data dos ataques terroristas a Nova Iorque e Washington, quiçá pudéssemos identificá-la, por analogia, como algo próximo de um ataque terrorista ao Estatuto Supremo.   

Lei Delegada e Tributação 

             A Lei Delegada é elaborada pelo Presidente da República, em virtude de autorização concedida pelo Poder Legislativo. Trata-se de instrumento comum em regimes parlamentaristas, em que o Gabinete, chefiado pelo Primeiro Ministro, representa a maioria parlamentar.

            A delegação, obviamente, só pode ser feita pelo Poder Legislativo, o titular da função legislativa. A delegação é feita pelo Congresso Nacional ao Presidente da República. No presidencialismo, a utilização de leis delegadas reforça ainda mais o Poder Executivo, pois o Legislativo abre mão de sua atribuição principal, a função legislativa. 

            A delegação é feita por resolução do Congresso Nacional, que deve especificar "seu conteúdo e os termos de seu exercício" (CF, art. 68, § 2º). Não se admite uma delegação ilimitada da função legislativa. 

            No que diz respeito á possibilidade de instituição ou majoração de tributops por meio de Lei Delegada, por primeiro, há que se observar a existência de vedações constitucionais expressas em se tratando de empréstimos compulsórios (art. 148 CF), impostos residuais da União (art. 151, I, CF), contribuições sociais (art. 195, § 4º, CF). Tais decorrem da vedação material expressa contida no § 1º do art. 68 da Constituição Federal: 

§ 1º. Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre:

(destacou-se) 

            Tendo em vista que, por obrigação imposta pela Constituição Federal, empréstimos compulsórios (art. 148 CF), impostos residuais da União (art. 151, I, CF) e contribuições sociais (art. 195, § 4º, CF) somente podem ser instituídos por meio de Lei Complementar, impossível à Lei Delegada, que não pode versar sobre matéria reservada à tal espécie legislativa, criar ou majorar tais tributos. 

            Quanto às demais espécies tributárias, a vedação da instituição ou da majoração é implícita. 

            Não de pode perder de vista que a Lei Delegada, tanto quanto a Medida Provisória, é meio excepcional de veicular regramento de condutas por ato do Chefe do Poder Executivo, já que a tarefa de legislar é típica do Poder Legislativo. E, assim sendo, a excepcionalidade deve, sempre, ser interpretada de modo restritivo, donde se conclui que, na falta de autorização expressa, deve prevalecer o disposto na regra geral que, para espécie, é a disposição contida no art. 150, inciso I da Constituição Federal: 

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.

Emenda Constitucional e Tributação 

            Emendas à Constituição são alterações do próprio Texto Constitucional. Trata-se de uma manifestação do poder constituinte derivado de reforma. Essa função, no Brasil, foi atribuída pelo poder constituinte originário ao Poder Legislativo.  

             A Constituição brasileira é classificada como rígida, quanto à estabilidade, pois é possível a modificação de normas constitucionais, desde que observado um procedimento mais rigoroso do que o previsto para as demais normas infraconstitucionais. 

            Após um estudo mais apressado, poder-se-a concluir que, pensado o plano hierárquico, a Emenda Constitucional poderia instituir ou majorar tributos, uma vez que tal tarefa é deferida tanto à Lei Complementar como à Lei Ordinária, espécies legislativas que, seriam hierarquicamente inferiores á Emenda Constitucional. 

            Contudo, a questão não pode ser resumida a um exame tão simplista. 

            É preciso observar que, tecnicamente, para a feitura de uma lei, deve estar presente a conjugação das vontades de dois dos três Poderes, Legislativo e Executivo. O primeiro, após um amplo debate, decide, em seu âmbito, se a proposta seguirá adiante, ao passo que o segundo, após a deliberação legislativa, terá a possibilidade de manifestar sua discordância (por meio do veto) ou sua aquiescência (pela sanção) ao projeto de lei. Somente com a participação dos dois Poderes é que, ao final, pode-se falar, no rigor técnico, em lei, tal como prevista no art. 150, inciso I da Constituição Federal. 

            Contudo, no procedimento elaborativo de uma Emenda Constitucional, não há a concorrências das vontades Legislativa e Executiva para a construção da espécie legislativa. 

              Uma emenda constitucional para ser promulgada precisa ser discutida, votada e aprovada em ambas as Casas do Congresso Nacional em dois turnos, exigindo-se maioria qualificada de 3/5. Sendo aprovada alguma emenda em uma das Casas, há necessidade de ela ser aprovada também pela outra Casa Legislativa que compõe o Congresso Nacional.

              As emendas constitucionais aprovadas são promulgadas conjuntamente pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (CF, art. 60, § 3º). Em razão do elevado quorum exigido para aprovação de emendas à Constituição, não estão sujeitas à sanção ou veto do Presidente da República. 

               Diante disso, não obstante o entendimento que considera a Emenda Constitucional hierarquicamente superior à Lei, aquela, tecnicamente, não é essa, não se constituindo em instrumento legislativo hábil a instituir ou majorar tributo, tendo em vista o disposto no já referido e transcrito art. 150, inciso I da Constituição Federal.

Aparentes exceções ao princípio da legalidade tributária

            Dispõe a Constituição Federal ser facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas do imposto sobre importação de produtos estrangeiros, do imposto sobre a exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados, do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (art. 153, § 1º). 

            Há quem veja em tal disposição uma exceção ao princípio da legalidade tributária uma vez que o Poder Executivo estaria autorizado a majorar tributos sem a necessidade de Lei. 

            No entanto, tal possibilidade, facultada pela Constituição Federal ao Poder Executivo, não configura, absolutamente, exceção ao princípio da legalidade tributária que vem tipificado no art. 150, inciso I da Constituição Federal. 

            A respeito da matéria, ensina Roque Antonio Carraza[4][4]: 

A correta proposição descritiva do § 1º. do art. 153 da CF, a nosso ver, é: "O legislador poderá fixar teto e piso de alíquotas dos impostos alfandegários, do IPI e do IOF, permitindo, assim, que o Executivo, obedecendo as condições fixadas na lei, as faca variar dentro desses limites".

Admitimos, no entanto, que, em relação aos impostos apontados nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Carta Magna, o principio da legalidade não foi levado às últimas conseqüências. Assim, no que tange a estes tributos, vigora, simplesmente, o princípio da legalidade (não o princípio da estrita legalidade). Como quer que seja, a única justificativa para o § 1º. do art. 153 da CF, é a vedação absoluta da mitigação da estrita legalidade das alíquotas nos demais casos, isto é, em relação a todos os outros tributos, sejam eles impostos, taxas ou contribuições.

            Em conclusão, porém longe de esgotar a matéria, finaliza-se sinalizando-se que o instrumento legislativo adequado à criação e à majoração do tributo é, sem exceção, a Lei, não se prestando a tais objetivos outras espécies legislativas, tais como medida provisória, lei delegada e emenda constitucional.

Referencial bibliográfico

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BERNARDI, Renato. A impossibilidade de instituição ou majoração de tributo por meio de Medida Provisória (um conflito de normas constitucionais: § 2o do artigo 62 X inciso I do art. 150). São Paulo: Lex Editora. Artigo publicado na Lex – Revista do Direito Brasileiro, nº 18, novembro/dezembro de 2005, pp. 07/44.

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SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1952.


NOTAS

[1][1] VIEIRA, José Roberto. op. cit. p. 185.

[2][2] Comentários à constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, t. V, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1.

[3][3] Op. cit. p. 212.

[4][4] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito Constitucional Tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp 296/297.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

RENATO BERNARDI:  Procurador do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Constitucional-ITE-Bauru; Doutorando em Direito Tributário-PUC-SP; Autor do livro A Inviolabilidade do Sigilo de Dados; Professor e Coordenador da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos.

 

Quando só resta acorrentar?

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PENSANDO ALTO: * Marlusse Pestane Daher  –  Três noticias chocantes colhidas na mesma hora em um mesmo jornal.

1. “Menino de 11 anos foi acorrentado pelos próprios pais, para evitar que a criança fuja de casa para comprar e consumir crack”.

2. “Jovem (18) que estaria acorrentada há três meses em uma cama de ferro, logrou fugir de casa na manhã “desta sexta-feira”, arrastando o móvel. Quando abordada pela polícia que acorreu a chamado, parecia alterada e não sabia dizer o porquê de tal situação. Mas a mãe disse: é usuária de drogas desde os 15 anos. Antes já buscara sem êxito, tirar sua filha das drogas”.

2. “Mãe de um garoto de 17 anos acorrentou filho por dois meses em casa, para tentar livrá-lo do vício das drogas. Descoberto o caso, o juiz da Vara da Infância e da Juventude mandou internar o adolescente em uma clínica para tratamento”.

Se existem coisas que nos chocam tremendamente, imensamente, é tomar conhecimento de fatos como esses, enquanto ao mesmo tempo se fica, por acréscimo autorizado a pensar que se trata tão somente dos casos cujo conhecimento vieram a público. Quantos outros muitos mais estarão acontecendo?

Que “a droga é uma droga” não têm dúvida nem mesmo os que se tornaram escravos dela. Quantos gostariam de emergir, de sair dessa e não conseguem. Quantas pessoas atormentadas, quantas crianças e jovens enveredam pelo vício por um caminho muitas vezes sem volta.

As penas altas, o rigor policial que chega às raias da tortura em muitos casos, quando logra prender algum desses incautos; a inclusão do tráfico entre os crimes hediondos, enfim tudo que já se fez ainda não dá nenhum sinal de que a batalha esteja próxima do fim e que ainda se poderá recuperar muitos usuários ao menos.

Nas promotorias que cuidam do crime respectivo, tudo praticamente tem sido feito, do mapeamento das cidades, para aferição dos pontos mais críticos, ao depósito dos cheques apreendidos, à tentativa de mais que provocador da ação penal o converter-se em assistente social, como acontece ao Ministério Público, buscando soluções que levem as famílias a encontrarem uma saída.

Quando se sabe que pais adotam atitudes como as acima transcritas é de se imaginar o estado em que se encontraram, a dor que provam, o amor mediante o qual são impelidos a agir. É certo que procuram quem pensam que os pode ajudar. Nem sempre têm êxito já está provado. E não é porque a pessoa buscada se omita, mas por igualmente, não ter como.

Quantas vezes pais chegam ao Promotor de Justiça pedindo que “prendam” seus filhos, pois já não sabem mais o que fazer com eles. Nas escolas, as Professoras são ameaçadas, já houve caso de morte, dessas e de pais, tudo em momento de loucura, provocada pela droga. O medo está sempre presente.

O que é oferecido como solução ainda é muito precário. As providências tomadas não alcançam ao menos uma boa parte. Faltam clínicas especializadas às quais os pobres tenham acesso e sejam tratados visando que se curem. Nas de maior porte, onde o tratamento é pago, são poucos os que podem chegar.

Enquanto isto, travam-se discussões vazias em torno de coisas ou de assuntos que interessam ou beneficiam apenas a poucos, para a quase totalidade não têm nenhuma importância. Para as políticas públicas que permitiriam oferecimento de uma educação de melhor qualidade e dispositivos que evitassem adoecer, os recursos são minguados e mesmo os que existem não é sempre que chegam ao destino final.

Não sei porque insistimos em não querer admitir que esses fatos refletem mais que pobreza de recursos, pobreza de espírito, via de conseqüência mesquinhez que impede o crescimento, chegar ao verdadeiro desenvolvimento em profundidade, largura e altura.

Enquanto tivermos que conviver com situações do gênero, continuará distante o porto seguro da própria justiça e da paz


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
MARLUSSE PESTANA DAHER:   Promotora de Justiça, Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Mestranda em Direitos e Garantias Individuais.

Acidente de trânsito motivou indenização por danos morais e danos corporais

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DECISÃO:  TJ-MG – O juiz da 6ª Vara Cível da comarca de Belo Horizonte, Amauri Pinto Ferreira, julgou parcialmente procedente uma ação por danos morais no valor de R$ 57 mil, mais indenização por danos corporais no valor de R$ 40 mil, contra uma Empresa de materiais para Construção Civil que teve seu veículo envolvido no atropelamento que estava segurado por uma Companhia de Seguros. A decisão foi publicada no dia 02 de outubro.

Um aposentado e seus familiares entraram na justiça contra a empresa de materiais para construção e uma seguradora com uma ação de indenização por danos materiais e morais em decorrência de acidente de trânsito.

O acidente ocorreu no dia 10 de setembro de 2004, por volta das 17h30, na Avenida Teresa Cristina na altura do n° 4.563, bairro Nova Suíça, em Belo Horizonte, MG. O veículo pertencente à Empresa de Distribuição, que atropelou a esposa do aposentado e genitora e sogra dos demais, em decorrência do acidente a esposa do aposentado morreu
Segundo o aposentado o acidente se deu por culpa exclusiva do motorista da empresa de distribuição, que estava em velocidade acima da permitida para o local que é de 60 km/h, sua esposa, tinha prioridade, pois estava atravessando na faixa de pedestre, onde não existia semáforo. A vítima foi atropelada pelo veículo da empresa de Distribuição, sendo, em seguida, atingida pelo automóvel que vinha imediatamente atrás.

A empresa de distribuição alegou em sua defesa que seu veículo estava sendo conduzido por motorista habilitado, que desenvolvia a velocidade média compatível com o local, de 46,7 Km/h. Sustenta, ainda, que o laudo do Instituto de Criminalística indicou a participação de segundo veículo no acidente e que a vítima não observou o trânsito para realizar a travessia, conforme informou uma das testemunhas.

A companhia de seguros alegou que não possui qualquer vínculo contratual com os autores. Alega que somente pode ser responsabilizada quanto ao reembolso ao segurado. Também alegou a ausência de culpa pois diz que o acidente se deu por culpa da vitima, que efetuou a travessia de forma desatenta, além de a morte ter sido causada pelo segundo veículo que a atingiu. A seguradora ressaltou que “o contrato firmado com a seguradora exclui expressamente o pagamento de indenização por danos morais”.

No processo o juiz cita que de acordo com o laudo do Instituto de Criminalística, a curva na qual ocorreu o atropelamento “trata-se de um trecho plano e em curva de grande raio, dotado de mão dupla direcional, boa visibilidade e piso antiderrapante”. O laudo também informa que no local havia duas placas de advertência aos usuários com relação à travessia de pedestre. Foi comprovado no exame que a vítima não surgiu de repente na avenida, mas, ao contrário, estava a cerca de um metro da conclusão do percurso.

O magistrado ressalta, em sua decisão, que “o motorista da empresa infringiu o Código de Trânsito Brasileiro, pois agiu com imperícia ao deixar de observar placa indicativa de travessia de pedestres, além de imprimir alta velocidade motivo que não lhe permitiu evitar o atropelamento, agindo ainda com imprudência ao transitar no local sem o devido cuidado”. Assim, vale salientar que “constitui infração gravíssima, nos termos do artigo 214 do Código de Trânsito Brasileiro, quando o motorista deixar de dar preferência de passagem à pedestre e a veículo não motorizado, que se encontre na faixa a ele destinada ou quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja sinalização”.

O aposentado e seus familiares afirmam que sofreram danos materiais, pois a vítima contribuía com as despesas da casa, além de realizar os serviços domésticos, sendo necessária, após sua morte, a contratação de um a empregada doméstica. Mas o juiz ponderou que “os familiares nada comprovaram neste sentido, não sendo possível acolher tal pedido”. Ele julgou procedente o pedido de danos morais que, em razão da impossibilidade de qualificação da dor sofrida, “deve ser arbitrado e julgado a critério do magistrado”.

O magistrado julgou parcialmente procedente o pedido do aposentado e condenou a empresa de distribuição ao pagamento de R$ 57 mil correspondente a título de danos morais, a partir da data desta sentença até o efetivo pagamento. Ele também condenou a seguradora ao pagamento de indenização por danos corporais, no valor de R$ 40 mil, conforme previsto na apólice.

Esta decisão está em grau de recurso.


FONTE:  TJ-MG, 25 de outubro de 2007.

Guarda compartilhada de filhos em debate

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OPINIÃO:   O Juiz Arnoldo Camanho, da 6ª Vara de Família do DF, falou hoje no DF TV 1ª Edição, da TV Globo, sobre a aprovação, no Senado Federal, da guarda compartilhada de menores.

A inclusão no Código Civil Brasileiro da opção de guarda compartilhada de filhos de pais separados foi aprovada pelo Senado nesta semana, em votação simbólica. E o projeto ainda será votado pela Câmara Federal.

O juiz explicou as diferenças entre a guarda compartilhada, a guarda alternada e a guarda monoparental. Na guarda compartilhada, há a corresponsabilização simultânea do casal com relação às crianças, ou seja, os dois pais têm a plena responsabilidade sobre os menores, mesmo se essas crianças morarem com um ou com o outro. A responsabilidade sobre os filhos é dos dois. Segundo o juiz, “a guarda compartilhada é fruto de uma parceria entre o casal, quando este consegue se separar de maneira civilizada”. E o fato da criança morar com o pai ou com a mãe, não impede de um deles ter que pagar a pensão alimentícia.

Quando se tem a guarda alternada, as crianças ora estão com o pai, ora estão com a mãe, e a guarda é daquele com quem as crianças estão no momento. A guarda é exercida em momentos alternados e as despesas das crianças ficam por conta daquele que está com os menores. O juiz pode determinar de quem é a responsabilidade financeira com relação à saúde e à educação. Pode definir, por exemplo, que o pai será o responsável pelas despesas médicas e a mãe será a responsável pelas despesas escolares.

Nos dois sistemas, há um chamamento da responsabilidade do pai e da mãe com relação aos filhos, diferentemente do que pode ocorrer quando a guarda é a monoparental (a mais comum, em que apenas um dos pais tem a guarda dos filhos). Segundo o juiz, o que se observa é que neste tipo de sistema, muitas vezes o pai se exime da responsabilidade sobre os filhos e a deixa com a mãe, quando esta tem a guarda das crianças.

Segundo o juiz, na prática, a guarda compartilhada já existe. Nos casos em que o nível de entendimento entre o casal permite, o juiz da Vara de Família muitas vezes sugere que ela seja adotada. O que vai mudar com a inclusão da prática no Código Civil, é que o juiz terá um respaldo legal para sugerir ao casal a guarda compartilhada. Ficará mais fácil para o juiz sugerir a aceitação deste sistema por parte dos pais pois há o respaldo da legislação.

Para explicar a importância da guarda compartilhada e do bom entendimento entre os pais o juiz utilizou a seguinte metáfora: "o pai é o mar e a mãe a rocha. Os dois se chocam o tempo todo e quem sofre são os mariscos, ou seja, os filhos, que estão entre os dois". Os maiores beneficiados com o projeto de lei, sem dúvida, serão as crianças, que, vivendo em um ambiente cada vez mais amistoso, terão melhores condições de se desenvolverem de forma plena, mesmo tendo os pais separados.

 


FONTE:  TJ-DF, 25 de outubro de 2007.

Direitos fundamentais

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* Marlusse Pestana Daher

Todos têm ao menos uma idéia do que são direitos humanos. São direitos da pessoa e se traduzem em tudo que lhe diz respeito, pelo quê, deve ser respeitada. Sabe-se até onde se pode chegar, quando se está em frente ao outro. Tem-se absoluta certeza do que representa o mínimo gesto mediante o qual tais direitos podem ser afrontados. Desta forma, todas as vezes que fazemos ao outro, aquilo que não queremos, nem gostamos que conosco seja feito, estamos violando direitos humanos.  

Nosso país possui triste memória de violação dos direitos humanos a começar no “descobrimento”, quando o explorador português aqui chegou e sem exibir passaporte, aportou sua nave, desembarcou dela. Portando espelhos e outras quinquilharias ofereceu-os aos indígenas. Com isto, foi-lhes comprando a confiança, apossando-se do que lhe pertencia.  Sem contar que, nove meses depois, ouviram-se choros, levados para toda parte, por brisas ululantes. Entre lágrimas, surgia uma nova raça, acabavam de nascer os primeiros mamelucos. Não foram vistos como integrantes da “humanitas”. Eram índios… Quantos dos nascidos puderam chamar um português de pai?  

Aliás, os próprios degredados para cá trazidos representavam uma espécie cujos direitos humanos não é que fossem tidos em melhor conta. Quem sabe que crimes teriam cometido, a ponto de não se cogitar da possibilidade que “todo homem é maior que a sua culpa”, (Mario Otoboni) e para que fossem expatriados, sem terem sido consultados. Condenação: sejam mandados para o Brasil.   

Constitucionalmente, os direitos humanos se chamam direitos fundamentais. Fundamentais porque são o alicerce que arrima tudo e todos os demais. São o suporte do reconhecimento de cada pessoa como humana e via de conseqüência, de quem assim a vê como humano/a que   deve ser.

A Constituição Cidadã “chamou-os para frente”. Naquela outra, estavam lá no art  153. Precede-os tão somente, o que deve ser dito sobre o Estado que os recepciona, consagra e lhes dá status. Estão elencados no art. 5º precedidos da advertência: DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS são DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS, onde se lê:  “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.  E seguem em LXXVIII incisos, em outros dispositivos que se encontram também alhures, no que se refere à saúde, ao meio ambiente, à educação, entre outros.

Estão por ser lidos por quem ainda não leu; observados por quem a tanto se recusa; defendidos por quem compete fazê-lo, imediatamente concedida a tutela para quem dela carecer, sem delongas, até para que não se corra o risco de construir uma nação sem fundamentos e conseqüentemente, entregarmos até a alma ao estrangeiro antes de sermos por ele absorvidos.   

FONTE BIOGRÁFICA

Marlusse Pestana Daher, Promotora de Justiça.

Proteção de dados pessoais no âmbito judicial(*)

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  Por Carlos Gregório e Mário Paiva (**)

Sumário: I- Introdução; II- Regras de Herédia: a) Histórico; b) Finalidade; c) Direito de oposição do interessado; d) Adequação ao fim; e) Equilíbrio entre transparência e privacidade; f) Definições: f.1) Dados pessoais: f.2) Motor de busca: f.3) Pessoas voluntariamente públicas f.4) Anonimatizar; g) Alcances da regras; III- Danos concretos; IV- Responsabilidade Civil do Estado; V- Aplicação das Regras; VI- Considerações finais.

 I- Introdução 

Nos dias 11 a 15 de outubro de 2004 realizou-se na cidade de Cuzco no Perú o IV Congresso Mundial de Direito Informático com a presença de especialistas em Direito da Informática de mais de vintes países de todos os continentes do planeta.

Nele foram debatidos inúmeros temas de relevância para evolução e solução das questões judiciais advindas das relações estabelecidas pela e na internet bem como o impacto da informática no universo jurídico.

O tema que nos coube foi inserido, dada a sua relevância, na temática sobre Direitos Humanos na era Digital e abordou a questão da proteção de dados pessoais no âmbito judicial. Nele expusemos e comentamos as regras de Heredia que são orientações sobre o modo de difusão de informações pessoais dos litigantes em sites oficiais dos poderes judiciais.

Buscamos com as referidas regras nortear governos e poderes judiciais do mundo todo no que concerne ao tratamento de dados pessoais em seus sites com vistas a nos aproximar ao máximo do equilíbrio entre o direito de todos os cidadãos a transparência judicial não só dos julgados, mas de todas as atividades judiciais e o resguardo da privacidade e intimidade daqueles que procuram o Poder Judiciário para solucionar seus conflitos.

A seguir exporemos e comentaremos as regras de Heredia com o intuito de alertar a todos os profissionais do direito sobre sua importância bem como a necessidade de sua aplicação para o resguardo de direitos duramente conquistados ao longo dos séculos.

 

II- Regras de Herédia(*)

 

a)Histórico 

Em julho de 2003 o Instituto de Investigación para la Justicia Argentina com o apoio da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica e patrocínio da International Development Research Centre do Canadá reuniu em Heredia na Costa Rica representantes de diversos países da América Latina para discutir o tema “Sistema Judicial e Internet” com fulcro de analisar as vantagens e dificuldades dos sites dos poderes judiciais na rede, os programas de transparência e a proteção dos dados pessoais.

Nesta reunião, que contou com a participação de diversos ministros e magistrados de Cortes superiores de vários países da América do Sul e Central, foram desenvolvidas diversas teses e exposições que culminaram na formulação do mais importante documento já elaborado sobre a difusão de informação judicial em internet estabelecendo-se regras mínimas a serem adotadas pelos órgãos responsáveis por esta divulgação.

Referidas regras tem o fulcro de servir como modelo a ser adotado pelos tribunais e instituições responsáveis pela difusão de jurisprudência de todos os países da América Latina. Suas premissas auxiliarão os tribunais no trato de dados veiculados em sentenças e despachos judiciais em internet sem que haja prejuízos a transparência de suas decisões.

Como palestrantes do evento e elaboradores das regras juntamente com os demais fomos autorizados a propalar a Carta de Heredia no Brasil entendendo ser extremamente útil para evolução das relações estabelecidas pela informática e sistema judicial o debate e a utilização destas regras para o aprimoramento da Justiça eletrônica que deve ser corretamente usufruída sob pena de causar sérios prejuízos aos jurisdicionados.

A seguir exporemos as regras comentadas por nós explicando sua finalidade, conseqüências, manuseio, aplicação dentre outras utilidades para o mundo jurídico.

 

b) Finalidade

Regra 1. A finalidade da difusão em Internet das sentenças, e despachos judiciais será: [1]

(a) O conhecimento da informação jurisprudencial e a garantia da igualdade diante da lei;

(b) Para procurar alcançar a transparência da administração da justiça.

 

Comentários:  

A regra acima deixa clara a necessidade permanência da publicidade e transparência das decisões judiciais estabelecidas pelas legislações da grande maioria dos Estados latino americanos. No Brasil o artigo 5º.da Constituição Federal de 1988 estatui regra específica quanto à propagação de seus atos assegurando que:

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;

Podemos observar também na Constituição da Colômbia a garantia da publicidade das decisões judiciais estabelecida no artigo 31 que dispõe: “Toda a sentença judicial poderá ser apelada ou consultada, salvo as exceções consagradas em lei” e, no artigo 74 que: “Todas as pessoas tem direito a acessar documentos públicos salvo nos casos que estabeleça a lei

Outro exemplo de publicidade encontra-se previsto no artigo 6º. da Constituição do México reformada em 1977 que dispõe da seguinte forma : “o direito a informação será garantido pelo Estado”. Vale ressaltar que referido artigo inserto na Constituição foi à base para sanção no ano de 2002 da Lei de Transparência e Acesso a Informação Governamental.

 

Regra 2. A finalidade da difusão em Internet da informação processual será garantir o imediato acesso das partes, ou dos que tenham interesse legítimo na causa, a seus andamentos, citações ou notificações.

 

Comentários:  

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dá ênfase ao princípio da publicidade dos atos judiciais quando diz que:

Art. 5º – .XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (grifado);

Verifica-se que a publicidade das informações processuais em internet constitui uma espécie de serventia sem precedentes para todos aqueles que fazem parte do contexto jurídico. Para advogados as informações são necessárias na fundamentação de petições com jurisprudência dos tribunais, consulta de processos sem que haja necessidade de dirigir-se a vara, opção pelo peticionamento eletrônico, informações institucionais que permitem saber quem são os julgadores dentre outras. Para as partes que, independentemente de qualquer ajuda, podem consultar seus processos para saber o andamento ou tirar dúvidas, e para o judiciário, que expõe de uma forma clara e transparente o teor de suas decisões e de seu próprio trabalho institucional.

 

C) Direito de oposição do interessado 

Regra 3. Será reconhecido ao interessado o direito de opor-se, mediante petição prévia e sem gastos, em qualquer momento e por razões legítimas próprias de sua situação particular, a que os dados que lhe sejam concernentes sejam objeto de difusão, salvo quando a legislação nacional disponha de modo diverso. Em caso de decidir-se, de ofício ou a requerimento da parte, que dados de pessoas físicas ou jurídicas estejam ilegitimamente sendo difundidos, deverá ser efetuada a exclusão ou retificação correspondente.

 

Comentários:  

O tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma segura respeitando os direitos à intimidade e privacidade do cidadão. No Brasil ainda não temos leis de proteção de dados e por isso devemos nos utilizar, por enquanto, de mecanismos constitucionais para viabilizar a proteção desses direitos. Como por exemplo, o instituto do habeas data assegurado no artigo 5º. Inciso LXII que permite ao indivíduo mecanismo:

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

Além disso a Carta Magna também assegura o direito de petição a todos os que dele necessitam para defesa de seus direitos:

Art. 5 XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

 

d) Adequação ao fim

 

Regra 4. Em cada caso os motores de busca se ajustarão ao alcance e finalidades com que se difunde a informação judicial. [2] 

Comentários:  

Através das palestras realizadas no Congresso Mundial e de nossa própria exposição entendemos que a busca livre realizada nos sites de tribunais apesar de trazer uma publicidade profunda dos processos e julgamentos acaba também trazendo sérios prejuízos à intimidade e privacidade aqueles que procuram as cortes judiciais. Na oportunidade demonstramos um desses prejuízos ocorridos na Justiça do Trabalho brasileira justamente na hora da admissão do empregado na empresa o empregador se valia da pesquisa livre disposta no site do tribunal do trabalho para vetar o acesso ao emprego entendendo que, o empregado já tivesse ajuizado ação na justiça do trabalho não poderia fazer parte de seu quadro de empregados por já estar “viciado”.

Por isso a necessidade da adequação dos motores de busca vedando em alguns casos os tipos de busca que trazem prejuízo à intimidade e privacidade do cidadão e, em outros, resguardando o anonimato dos litigantes.

Nesse aspecto a Constituição Peruana estabelece em seu artigo 2º. em capítulo que aborda a questão de Direitos fundamentais da pessoa no item seis que: Que os serviços informáticos, computadorizados ou não, públicos ou privados, não disponibilizem informações que afetem a intimidade pessoal e familiar”.

Sobre a necessidade de explicitar a finalidade da Constituição da Guatemala de 1985 seu artigo 31 (Título II- Direitos Humanos; Capítulo I – Direitos Individuais) garante que: “Toda a pessoa tem o direito de conhecer o que dela conste em arquivos, fichas ou qualquer outra forma de registros estatais e, a finalidade a que se dedica esta informação, assim como a correção, retificação e atualização”

 

e) Equilíbrio entre transparência e privacidade 

Regra 5. Prevalecem os direitos de privacidade e intimidade, quando tratados dados pessoais que se refiram a crianças, adolescentes (menores) ou incapazes; ou assuntos familiares; ou que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a participação em sindicatos; assim como o tratamento dos dados relativos à saúde ou à sexualidade; [3] ou vítimas de violência sexual ou doméstica; ou quando se trate de dados sensíveis ou de publicação restrita segundo cada legislação nacional aplicável [4] ou tenham sido considerados na jurisprudência emanada dos órgãos encarregados da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais. [5]

Neste caso considera-se conveniente que os dados pessoais das partes, coadjuvantes, aderentes, terceiros e testemunhas intervenientes sejam suprimidos, anonimatizados ou inicializados [6], salvo se o interessado expressamente o solicite e seja pertinente de acordo com a legislação.

 

Comentários: 

Equilíbrio foi à palavra-chave da palestra magistral apresentada no Congresso Mundial. A busca de uma forma de harmonizar os institutos da intimidade e privacidade com a publicidade das decisões judiciais foi o desafio principal. Daí a recomendação de anonimato e supressão do nome das partes envolvidas em litígios dentre outras medidas que tendam a resguardar direitos constitucionalmente protegidos como o da intimidade estatuído no artigo 5º. Inciso X que dispõe:

          X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

  A Constituição Política do Peru no artigo 2º estabelece sobre o assunto o seguinte: “Diretos fundamentais da pessoa: 5. A solicitar sem expressão de causa a informação que requeira e recebê-la de qualquer entidade pública, no prazo legal, com o custo que inerente ao pedido. Se exceptuando as informações que afetem a intimidade pessoal e as que expressamente se excluam por lei ou por razões de segurança nacional”.

No mesmo sentido a Constituição da República Bolivariana da Venezuela quando estabelece em seu artigo 60 que: “Toda pessoa tem direito à proteção de sua honra, vida privada, intimidade, própria imagem, confidencialidade e reputação. A lei limitará o uso da informática para garantir a honra e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e cidadãs e o pleno exercício de seus direitos”.[7]

Existem ainda as leis gerais de proteção de dados pessoais que guardam estreita semelhança com a legislação européia, na Argentina (2000) Chile (1999), Panamá (2002), Brasil (1997), [8] Paraguai (2000). Outros países tem avançado consideravelmente no que diz respeito à elaboração de leis sobre proteção de dados tais como a Costa Rica, Colômbia, Equador, México e Uruguai.

A proteção da difusão de dados pessoais de crianças e adolescentes encontra-se amplamente difundida na legislação latino americana, que alcança inclusive os infratores da lei penal. No Chile, por exemplo, a lei sobre Liberdades de Opinião e Informação e Exercício do Jornalismo, em artigo 33 dispõe: “É proibida a divulgação, por qualquer meio de comunicação social, da identidade de menores de idade que sejam autores, cúmplices ou testemunhas de delitos ou de qualquer outro antecedente que conduza a ela. Esta proibição se estenderá também no que diz respeito às vítimas e algum dos delitos contemplados no Título VII, “Crimes e simples delitos contra a ordem das famílias e contra a moralidade pública”, do Livro II do Código Penal, a menos que consintam expressamente a divulgação”

No Estados Unidos da América do Norte existe o costume judicial de proteger as partes que, mediante a solicitação, requerem a substituição de seus nomes em processos judiciais pelos de pseudônimos. A Concessão desta proteção foi inicialmente limitada a casos exclusivamente envolvendo menores, divórcios, custódia e manutenção de filhos ou paternidade, porém nos últimos anos tem sido aplicado também a pessoais jurídicas a exemplo dos seguintes casos: United States vs. Microsoft Corp.,[9] foi permitida as três companhias a participação como amici curiae em forma anônima sob o pseudônimo de “Doe Companies” e no caso todo o Federal Bureau of Investigation (F.B.I.) como “John Doe Government Agency” em John Doe Agency et. al. vs. John Doe Corp.[10] 

Regra 6. Prevalecem a transparência e o direito de acesso à informação pública quando a pessoa concernente tenha alcançado voluntariamente o caráter de pública e o processo esteja relacionado com as razões de sua notoriedade.[11] Sem embargo, consideram-se excluídas as questões de família ou aquelas em que exista uma proteção legal específica. 

Comentários: 

O artigo ressalta a importância da transparência judicial que deve ser mantida de acordo com as necessidades coletivas dos jurisdicionados sendo regida pelo interesse público em detrimento do particular desde que respeite a intimidade do afetado. No caso específico diz respeito a pessoa notória e pública onde o interesse público na divulgação dos fatos relacionados é necessário evitando, no entanto a publicidade de dados irrelevantes como o domicílio dos litigantes.

Nestes casos poderão manter-se os nomes das partes na difusão da informação judicial, mas se evitarão os domicílios ou outros dados identificatórios.

As regras tratam de criar categorias nas quais é possível estabelecer uma preferência, prevalecendo a proteção da intimidade ou garantindo o pleno acesso a informação pública. As categorias utilizadas na regra 5 se assemelham as enumeradas na Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa assim como nas previstas nas leis que definem dados sensíveis na Argentina (art.2), Chile (art.2.g.), Panamá (art. 1.5.), Paraguai (art. 4), e os projetos da Costa Rica, Equador e México. Também se tem reconhecido na Regra 5 que existem categorias de pessoas que recebem proteção na jurisprudência constitucional, estabelecendo com isso considerável dificuldade para que os textos legislativos possam resolver todos os casos através de uma só norma de caráter geral. Apesar do que as vítimas estariam incluídas no segundo parágrafo da regra 5, uma vez que os redatores enfatizaram a questão referente às vítimas de violência sexual ou doméstica no primeiro parágrafo.

A definição dada a categoria de pessoas voluntariamente públicas é relacionada diretamente com o ponto 10 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da O.E.A e com alguns Códigos de Ética Jornalística. Também parece afastar-se da jurisprudência da Califórnia, que considera também que as pessoas involuntariamente públicas perdem parte de sua privacidade.[12]

Porém nos dois extremos (ver dados sensíveis e pessoas voluntariamente públicas) das regras 5 e 6 podemos observar uma prevalência, para a situação residual estimando-se necessária limitação da capacidade de busca existente em sites oficiais dos Poderes judiciais (Regras 4 e 7). A adequação dos motores de busca a finalidade tem como antecedente a lei relativa ao marco jurídico das tecnologias da informação (de Quebec, Canadá), que em seu artigo 24 prevê: “A utilização de funções de investigação extensiva em um documento tecnológico que contenha informações pessoais e que, por uma finalidade particular, se público, deve ser restringida a esta finalidade”

Durante a discussão da Regras seus redatores rejeitaram outras categorias para precisar o equilíbrio entre acesso a informação e a intimidade. Por exemplo, não existiu consenso em distinguir em função da instância processual, como se propunha em alguns documentos preparatórios (esta proposta incluía na Regra 6 as sentenças ditadas em via recursal pelo mais alto Tribunal de cada Estado).

 

Regra 7. Em todos os demais casos se buscará um equilíbrio que garanta ambos os direitos. Este equilíbrio poderá instrumentalizar-se:

(a) nas bases de dados de sentenças, utilizando motores de busca capazes de ignorar nomes e dados pessoais;

(b) nas bases de dados de informação processual, utilizando como critério de busca e identificação o número único do caso. 

Comentários:  

A regra especifica as medidas a serem adotadas pelos tribunais no sentido de assegurar a publicidade e resguardar os direitos de intimidade dos litigantes através de procedimentos deixem no anonimato o nome das partes bem como seus dados pessoais. A criação de número que identifique a lide podendo então a parte interessada ter informações sobre o processo desde que conheça a numeração evitando assim exposição indiscriminada dos litigantes para fins abusivos e contrários ao direito do país.

As Regras de Heredia são linhas de discussão judicial e acadêmica, porém provavelmente o êxito que lhe é reconhecido é justamente de haver explicitado o dilema que existe entre o direito de acesso a informação judicial, e que tipo de equilíbrio que se quer alcançar entre esses direitos que podem vir a causar conflitos e gerar atos discriminatórios.[13] 

É natural que os legisladores não imaginaram a existência e o impacto da internet a partir da interpretação de acadêmicos e, portanto, é possível que este seja um caso de lacuna axiológica (presença de uma solução insatisfatória) e não de uma lacuna normativa (ausência de uma solução). Em outros campos do direito se tem observado que a generalização da internet – ou de outros avanços tecnológicos – tem produzido uma “necessidade” de modificar o direito, levando-se em consideração a circunstância que não existiam até então– porque até aquele momento não poderia ter havido-  além de não terem sido vistas pelo legislador.

Quiçá, para resolver este desacordo, faz-se necessário discutir qual o sentido da palavra “público” nos textos constitucionais e nas leis. Antes da internet era comum a interpretação de que os expedientes judiciais eram públicos significando que qualquer pessoa podia solicitar o julgado, lê-lo, e- salvo algumas poucas exceções legais- conferir-lhe a publicidade. Depois da internet, multiplicaram-se os sentidos atribuídos à palavra ou o caráter “público” (i) posto a disposição do público; i.e, incluídos no direito de acesso a informação; (ii) dar publicidade; i.e. forçar o conhecimento por parte do maior número pessoas possível- ou de determinadas pessoas. E neste contexto resulta – por exemplo- razoável que os juízes dêem publicidade dos julgados, cuja a finalidade é notificar ou criar a presunção de notificação.[14]

Hoje a condição de “público” é vinculada a necessidade de deixar determinado documento acessível ao público com a finalidade de facilitar o controle por parte do cidadão dos atos de governo. Sem embargo a existência de bases de dados no âmbito dos Estados chamados “públicos” e bases de dados em mãos de pessoas ou organizações privadas ou não estatais, denominadas, seguindo o mesmo critério “privados”, como afirma Cosentino não necessariamente transformam a condição dos dados pessoais que podem conter ou não  diminuição do nível de proteção que a lei lhe assina.[15]  

Se enfocarmos como uma lacuna axiológica, como um desacordo valorativo ou como uma questão semântica, resulta necessário redimensionar o caráter público da informação frente às novas tecnologias, as novas finalidades, os riscos e os conflitos de normas, e reestruturar o equilíbrio perdido.

 

Regra 8. O tratamento dos dados relativos a infrações, condenações penais ou medidas de segurança somente poderá efetuar-se sob controle da autoridade pública. Somente poderá ser realizado um registro completo de condenações penais sob o controle dos poderes públicos. [16] 

Comentários: 

Referidos casos foram também amplamente discutidos no Congresso Mundial por trazerem todo tipo de segregação social quando descobertos ou dispostos de forma pública a todos. Por isso a necessidade de ser mantido um controle por autoridades públicas para que o controle, manuseio e armazenamento desses dados são sejam utilizados de forma indevida e prejudicial ao afetado.

Sem embargo a Regra 5 não inclui explicitamente os antecedentes penais (por exemplo, o projeto de Lei de Proteção das Pessoas Frente ao Tratamento de Dados Pessoais da Costa Rica (artigo 2) que inclui entre os dados sensíveis os antecedentes delitivos). Indiretamente a Regra 8 impediria uma difusão indiscriminada dos dados pessoais de acusados ou condenados por delitos, e na medida que- a partir dessa difusão- qualquer particular poderia construir bases de dados de antecedentes penais. Entre as alternativas que não contaram com consenso estavam a de incluir a Regra 5 aos condenados primários (excluindo os reincidentes).

A difusão, no início, de casos penais (por exemplo os sorteios dos julgados parecem ser a que representam maior vulnerabilidade por duas razões: (i) as estatísticas assinalam que grande parte das ações penais terminam sem sentença definitiva; e (ii) que difundir ações penais obrigará a difundir brevemente a decisão judicial que dá por encerrado o processo (seja absolvição, condenação, sobrestamento, ou arquivamento), se não for assim estaríamos difundindo informação incompleta e não se ofereceria aos imputados à possibilidade de estabelecer com o mesmo nível de publicidade que a ação não prosperou (situação que violaria a presunção de inocência)

Nos Estados Unidos da América o tema de acesso aos antecedentes penais é motivo de ampla discussão.[17] Levando-se em consideração as opiniões dos cidadãos o problema começa a complicar-se, por exemplo, se se tratar de informação sobre arrestos, sobre condenações, inclusive quanto aos adolescentes, também é complexo discutir sobre se o acesso depende do tipo de delito. A complexidade do equilíbrio entre esses direitos e a mencionada discussão se agrega aqui a segurança pública que é parte normalmente de um debate muito mais amplo.

 

Regra 9. Os juízes, quando redijam suas sentenças, despachos e atos, [18] farão seus melhores esforços para evitar mencionar fatos inócuos ou relativos a terceiros, buscarão somente mencionar os fatos ou dados pessoais estritamente necessários para os fundamentos de sua decisão, tratando de não invadir a esfera íntima das pessoas mencionadas. Excetua-se da regra anterior a possibilidade de consignar alguns dados necessários para fins meramente estatísticos, sempre que sejam respeitadas as regras sobre privacidade contidas nesta declaração. Igualmente se recomenda evitar os detalhes que possam prejudicar a pessoas jurídicas (morais) ou dar excessivos detalhes sobre o modus operandi que possam incentivar alguns delitos. [19] Esta regra se aplica, no pertinente, aos editais judiciais.

 

Comentários: 

A regra traz consigo recomendação aos prolatores das decisões para que tenham maior zelo no ato de redigir decisões evitando a inserção de dados dos litigantes que não tenham necessariamente importância para o deslinde da questão.

Se forem mantidas as tendências atuais, o número de sentenças judiciais acessíveis em bases de dados será cada vez maior, e em conseqüência será também possível manter a indexação da sentença (com palavras chave ou com sumários). A falta de seleção introduz o problema e o conceito da saturação, ou seja, a “destruição de um corpo coerente de jurisprudência pela inundação criada pelos precedentes redundantes”

A redundância derivada da saturação poderia ser resolvida com o desenvolvimento da inteligência artificial, ou com a informação adicional que por hora significa maiores custos. Outra opção é tender para as decisões judiciais relativamente estandartizadas – porém isto é hoje provavelmente utópico para a tradição judicial latino-americana.

 

Regra 10. Na celebração de convênios com editoriais jurídicos deverão ser observadas as regras precedentes. 

Comentários: 

Como a difusão da jurisprudência não é propagada apenas pelos tribunais estendendo-se também a revista e outros periódicos recomendamos a revisão por parte das cortes das autorizações concedidas às editoras no sentido de que suas publicações sejam adequadas às regras estabelecidas na Carta de Heredia.

A edição de revistas de jurisprudência tem sido um negócio editorial em vários países da América Latina. Supõe-se um árduo trabalho para a obtenção das sentenças- normalmente em papel- selecionadas e editadas em volumes. Hoje os custos tem sido reduzidos notavelmente, pois as sentenças podem se obtidas em formato eletrônico, sendo a seleção feita a partir da geração de grandes bases de dados e a edição tem optado também pelos suportes informático e os buscadores em sites na web. Muitos poderes judiciais tem tido dificuldades ao negociar com estas empresas, no que diz respeito ao envio para editoração de decisões impressas e/ou em suportes informáticos,  no sentido de saber a maneira de pagamento e/ou parceria advinda da publicação de coleções impressas ou do fornecimento de chaves de acesso de dados na internet. A Regra 10 poderia ser o começo para reequilibarar esta negociação.

 

f) Definições 

f.1) Dados pessoais: Os dados concernentes a uma pessoa física ou moral, identificada ou identificável, capaz de revelar informação sobre sua personalidade, suas relações afetivas, sua origem étnica ou racial, ou que se refiram às características físicas, morais ou emocionais, à sua vida afetiva e familiar, domicílio físico e eletrônico, número nacional de identificação de pessoas, número telefônico, patrimônio, ideologia e opiniões políticas, crenças ou convicções religiosas ou filosóficas, estados de saúde físicos ou mentais, preferências sexuais ou outras análogas que afetem sua intimidade ou sua autodeterminação informativa. Esta definição se interpretará no contexto da legislação local sobre a matéria.

f.2) Motor de busca: são as funções de busca incluídas nos sites de Internet dos Poderes Judiciais, que facilitam a localização e recuperação de todos os documentos no banco de dados, que satisfazem as características lógicas definidas pelo usuário, que possam consistir na inclusão ou exclusão de determinadas palavras ou família de palavras; datas; e tamanho de arquivos, e todas suas possíveis combinações com conectores booleanos.

f.3) Pessoas voluntariamente públicas: o conceito se refere a funcionários públicos (cargos efetivos ou hierárquicos) ou particulares que tenham se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público (neste caso se julga necessária à manifestação clara de renúncia a uma área determinada de sua intimidade).

f.4) Anonimizar: Todo tratamento de dados pessoais que implique que a informação que se obtenha não possa associar-se a pessoa determinada ou determinável.

 

g) Alcances das regras de Heredia 

Alcance 1. Estas regras são recomendações que se limitam à difusão em Internet ou em qualquer outro formato eletrônico de sentenças e informação processual. Portanto não se referem ao acesso a documentos nos cartórios judiciais nem a edições em papel.

Alcance 2. São regras mínimas no sentido da proteção dos direitos de intimidade e privacidade; por isso, as autoridades judiciais, ou os particulares, as organizações ou as empresas que difundam informação judicial em Internet poderão utilizar procedimentos mais rigorosos de proteção.

Alcance 3. Embora estas regras estejam dirigidas aos sites em Internet dos Poderes Judiciais, também são extensivas –em razão da fonte de informação– aos provedores comerciais de jurisprudência ou informação judicial.

Alcance 4. Estas regras não incluem nenhum procedimento formal de adesão pessoal nem institucional e seu valor se limita à autoridade de seus fundamentos e sucessos.

Alcance 5. Estas regras pretendem ser hoje a melhor alternativa ou ponto de partida para obter um equilíbrio entre transparência, acesso à informação pública e direitos de privacidade e intimidade. Sua vigência e autoridade no futuro podem estar condicionadas a novos desenvolvimentos tecnológicos ou a novos marcos regulatórios.

 

III- Danos concretos 

Ao longo dos debates pudemos perceber que, em vários casos ocorridos em tribunais da América Latina, houve prejuízos efetivos com a vinculação indiscriminada de dados pessoais do cidadão que pode ter sua privacidade e intimidade devassadas por qualquer indivíduo que tenha acesso a rede mundial de computadores.

No Brasil, por exemplo, vários trabalhadores tiveram o seu direito a livre acesso ao emprego vetado pelo futuro empregador em virtude da disponibilização de consulta por nome dos reclamante nos sites dos tribunais. Tal procedimento trouxe reconhecidos e concretos prejuízos a milhares de trabalhadores tanto que foi admitido pelos próprios tribunais que alguns anos mais tarde resolveram abolir este tipo de pesquisa.

Vários tribunais de justiça comuns continuam a trazer prejuízos aos jurisdicionados ao veicularem em processos judiciais dados que invadem a esfera íntima do indivíduo como por exemplo, seu estado de saúde ou doenças que levam a pessoa a sofrer situações discriminatórias como AIDS.

Sendo assim consideramos que este tipo de violação do direito à intimidade e privacidade daquele que procura a Justiça Estatal para solucionar suas inquietações gera o direito a pleitear uma indenização respectiva e proporcional ao dano causado por intermédio da teoria do risco administrativo que responsabiliza civilmente o Estado a ressarcir o lesado pelos danos ocasionados em virtude de sua conduta.

 

IV- Responsabilidade Civil do Estado 

Teoria adotada atualmente pela grande maioria dos doutrinadores é a de que a responsabilidade Estatal é de natureza objetiva compreendendo atos omissivos ou comissivos que independem de prova de culpa. A Constituição Federal do Brasil 1988 não deixa dúvidas quanto a sua responsabilidade quando dispõe que:

 “Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Em seu artigo 5º que prevê a indenização por dano moral que deverá ser fixada conforme o prudente arbítrio do juiz:

"Art.5. X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

José Cretella (20) ao abordar a questão da responsabilidade civil do Estado entende que: “a) a responsabilidade do Estado por atos judiciais é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público; b) as funções do Estado são funções públicas, exercendo-se pelos três poderes; c) o magistrado é órgão do Estado; ao agir, não age em seu nome, mas em nome do Estado, do qual é representante; d) o serviço público judiciário pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações (cível); ou na qualidade de réus (crime); e) o julgamento, quer no crime, quer no cível, pode consubstanciar-se no erro judiciário, motivado pela falibilidade humana na decisão; f) por meio dos institutos rescisórios e revisionista é possível atacar-se o erro judiciário, de acordo com as formas e modos que alei prescrever, mas se o equívoco já produziu danos, cabe ao Estado o dever de repará-los; g) voluntário ou involuntário, o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo o Estado civilmente pelos prejuízos causados; se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa; h) provado o dano e o nexo causal entre este e o órgão judicante, o Estado responde patrimonialmente pelos prejuízos causados, fundamentando-se a responsabilidade do Poder Público, ora na culpa administrativa, o que envolve também a responsabilidade pessoal do juiz, ora no acidente administrativo o que exclui o julgador, mas empenha o Estado, por falha técnica do aparelhamento judiciário, ora no risco integral, o que empenha também o Estado, de acordo com o princípio solidarista dos ônus e encargos públicos

Basicamente para a caracterização da responsabilidade deve existir o nexo causal, ou seja, a relação entre o dano causado a ser reparado e a conduta do agente. A conduta lesiva no caso dos tribunais do trabalho brasileiro foi à disposição do nome do reclamante no site por intermédio do instrumento de pesquisa processual eletrônica e o dano é a vedação de acesso ao emprego em decorrência daquela disposição de dados.

Nos tribunais comuns de vários países existem inúmeros exemplos de condutas que trazem lesão ao cidadão por intermédio da busca processual pelo nome dos litigantes que vão desde o abalo ao crédito até situações vexatórias que expõem os litigantes como no caso do mesmo ter contraído doença grave que tenha sido ventilada ou discutida no mérito do processo.

Podemos observar uma clara violação da intimidade e privacidade dos jurisdicionados que tem em muitos casos sua vida invadida em questão de segundos por qualquer pessoa que tenha acesso ao site do Tribunal violando estes direitos assegurados na Constituição Federal Brasileira, no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5°.

Portanto é plenamente viável a ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado que através dos sites oficiais dos tribunais divulgue indiscriminadamente informações judiciais pela internet que venham a lesar direitos constitucionalmente assegurados ao cidadão como o direito à intimidade, privacidade e livre acesso ao emprego.

 

V- Aplicação das Regras 

A Regra 5 faz referência ao conceito de “dado sensível”, porém não se incluiu definição explicita para este conceito. Na Itália o Codice in materia di protezione dei dati personali (de 30 de junho de 2003) criou (artigo 4) categorias mais precisas: define em primeiro lugar “ dado pessoal” criando três subcategorias, dado identificatório, dado sensível e dado judicial. Quando se trata de dados – não enumerados entre os sensíveis nem judiciais – porém cujo o tratamento pode gerar um risco para os direitos fundamentais e para a dignidade do interessado, o artigo 17 estende as garantias de proteção dadas pelo Codice. Este conceito traz resultados de muita utilidade na aplicação das Regras, por exemplo, sobre a publicidade de ações trabalhistas. É neste sentido a tendência atual para definir dados sensíveis e complementar a enumeração que faz a regra 5 e agregar “ qualquer outra informação cujo o tratamento possa gerar algum tipo de discriminação”.

Os alcances estabelecem um conceito também relevante: é impossível regular as novas tecnologias da informação em forma definitiva, uma vez que estas se transformam permanentemente e, em função dessas transformações são criados novos tratamentos para os dados. Sua necessidade de adaptar-se a novos desenvolvimentos tecnológicos ou normativos concorre com a restrição posta para sua adesão. Sem embargo cremos que os poderes judiciais consideram necessário estabelecer um regulamento interno para o tratamento dos dados, segundo  informação que dispomos, os poderes judiciais da Costa Rica, do Estado de Rio Grande do Sul (Brasil) e da província de Rio Negro (Argentina), tem deliberado sobre as Regras. Um exemplo interessante de incorporação das Regras como regramento interno é a Acordada 112/2003 do Poder Judicial da Província de Río Negro que resolveu “declarar de aplicação obrigatória no Poder Judicial da Província a partir de 1° de fevereiro de 2004 as ‘Reglas de Heredia’”.

 

VI- Considerações finais 

Devemos nos conscientizar que passamos por uma intensa fase de transformação, prosperidade e evolução.  Nos deparamos como uma nova Civilização à da Informação, com modos inteiramente distintos daqueles vividos há alguns anos atrás, que precisam ser bem compreendidos sob pena de gerar conseqüências graves a humanidade.

Assim como a Civilização Inca adorava a terra, o puma e o sol acreditando em seu poder, nós devemos acreditar na informática como um instrumento de socialização e inclusão que facilitará e transformará a vida de milhares de pessoas desde que seja acompanhada de medidas que previnam ao máximo os impactos negativos inerentes a toda mudança ocorrida na sociedade.

Portanto podemos afirmar que todas as inovações tecnológicas possuem efeitos positivos e negativos. No caso vimos que o efeito positivo é justamente a intensificação da publicidade das informações judiciais dispostas virtualmente e o negativo é o da vunerabilidade imposta por esta difusão indiscriminada de direitos fundamentais como o da privacidade e intimidade dos afetados. Por isso para que haja efetiva conciliação entre esses dois direitos necessitamos de orientações que definam quais os dados que devem ser dispostos gerando um equilíbrio de direitos que deve ser alcançado com aplicação das regras de Heredia.



NOTAS

(*) O presente ensaio é uma transcrição das mais importantes considerações feitas em duas exposições apresentadas no IV Congreso Mundial de Derecho e Informático realizado em Cusco no Peru. São elas: La Ponência Magistrale sobre “La difusion dela Información Judicial em América Latina y el Caribe (Las Reglas de Heredia)” e o Taller sobre “Protección de Datos Personales en el âmbito Judicial”.

(*) Recomendações aprovadas durante o seminário Internet e Sistema Judicial realizado na cidade de Herédia (Costa Rica), nos dias 8 e 9 de julho de 2003, com a participação de Poderes Judiciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos de Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, México, República Dominicana e Uruguai.


NOTAS (Sintetizam os documentos preparatórios, não fazem parte das Regras)

[1]Praticamente nenhum site do Poder Judicial em Internet definiu a finalidade de acumulação e difusão da informação. As Leis de Transparência de Michoacán e Sinaloa (México) obrigam a fazer essa definição. A referência mais relevante é a Recomendação n. R(95)11 do Comitê de Ministros da União Européia:

– facilitar o trabalho para as profissões jurídicas proporcionando-lhes dados rapidamente, completos e atualizados;

– informar a toda pessoa interessada em uma questão de jurisprudência;

– fazer públicas mais rapidamente as novas resoluções, particularmente nas matérias de direito em evolução;

– fazer público um número maior de decisões que afetem tanto ao aspecto normativo como ao fático (quantum das indenizações, das pensões alimentícias, das penas etc);.

– contribuir para a coerência da jurisprudência (segurança jurídica – “Rechtssicherheit”) mas sem introduzir rigidez;

– permitir ao legislador a análise da aplicação das leis;

– facilitar os estudos sobre a jurisprudência.

[2] O fundamento desta regra é a Lei relativa ao limite jurídico das tecnologias da informação (de Québec, Canadá), artigo 24. “A utilização de funções de investigação extensiva em um documento tecnológico que contém informações pessoais e que, por uma finalidade particular, se torna público, deve ser restrita a essa finalidade”.

[3] A regra é inspirada no artigo 8.1 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa assim como nas leis que definem dados sensíveis na Argentina (art. 2), Chile (art.2.g.), Panamá (art. 1.5.), Paraguai (art. 4), e nos projetos de Costa Rica, Equador, México e Uruguai. Ver também a Recomendação 01-057 de 29 de novembro de 2001, da Comissão Nacional da Informática e das Liberdades:

(1) os editores de bases de dados e decisões judiciais, livremente acessíveis em sítios de Internet, se abstenham de fazer figurar os nomes e os domicílios das partes e das testemunhas.

(2) os editores de bases de dados de decisões judiciais acessíveis em Internet, mediante pagamento por assinatura, se abstenham de fazer figurar os domicílios das partes e das testemunhas.

[4]A proteção das crianças e dos adolescentes é unânime em todas as legislações da América Latina. Muitos países da região têm suas próprias categorias de dados sensíveis, outros os estão desenvolvendo em novos projetos de lei. Em alguns casos a enumeração é mais ampla como as “atitudes pessoais” no Panamá, ou os “antecedentes penais” no projeto da Cosa Rica. Também em alguns países é muito rica a jurisprudência constitucional.

[5] Por exemplo, a Lei sobre a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA (AIDS) (Argentina) – Artigo 2 (d) e (e) – restringe a publicação dos nomes de portadores de HIV;  a Lei sobre Expressão e Difusão do Pensamento (República Dominicana), “Artigo 41. Fica proibido publicar textualmente a denúncia e as demais atas de pronúncia criminal ou correcional antes que tenham sido lidas em audiência pública”e outras Leis de Imprensa restringem a publicação de acusações penais (por exemplo, México (art. 9) que inclui divórcios e investigação de paternidade.

[6]Ver Acórdão do Pleno da Suprema Corte de Justiça da Nação 9/2003 (27 de maio de 2003) que estabelece os órgãos, critérios e procedimentos para a transparência e acesso à informação pública desse alto tribunal:

Artigo 41. As sentenças executórias da Corte Suprema têm caráter de informação pública e serão difundidas através de qualquer meio, seja impresso ou eletrônico, ou por qualquer outro que seja permitido por inovação tecnológica.

Artigo 42. Com o fim de respeitar o direito à intimidade das partes, ao fazerem-se públicas as sentenças, omitir-se-ão seus dados pessoais quando constituam informação reservada em termos do disposto nas diretrizes que a Comissão expeça sobre o caso, sem prejuízo de que aquelas possam, dentro da instância seguinte à desta Corte e até antes de proferir-se a sentença, opor-se à publicação de referidos dados, em relação a terceiros, o que provocará que adquiram eles o caráter de confidenciais.

Em todo caso, durante o prazo de doze anos contado a partir da entrada em vigor deste Acórdão, nos termos do previsto nos artigos 13, inciso IV, e 15 da Lei, os autos relativos a assuntos de natureza penal ou familiar constituem informação reservada, em razão do que nos meios em que se façam públicas as sentenças respectivas deverão ser suprimidos todos os dados pessoais das partes.

Nos assuntos da competência deste Alto Tribunal, cuja natureza seja diversa da penal e da familiar, o primeiro acórdão que neles se profira deverá esclarecer às partes o direito que lhes assiste de opor-se, em relação a terceiros, à publicação de seus dados pessoais, com o entendimento de que a falta de oposição configura seu consentimento para que a sentença respectiva se publique sem supressão de dados.

As referidas restrições à difusão das sentenças emitidas por este Alto Tribunal não operam conseqüências a quem, nos termos da legislação processual aplicável, esteja legitimado para solicitar-lhes cópia.

[7]. Cf. Constituição Espanhola de 1978, artigo 18.4: “A lei limitará o uso da informática para garantir a honra e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e o pleno exercício de seus direitos”.

[8]. Lei que regula o direito de acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data.

[9]. 56 F.3d 1448 (1995). 

[10]. 493 U.S. 146 (1989). Ver Adam A. Milani, ‘Doe vs. Roe: an argument for defendant anonymity when a pseudonymous plaintiff alleges a stigmatizing intentional tort’, 41 Wayne Law Review (1995) 1659-712.  Um aspecto similar é o da proteção de segredos comerciais; no México pela Lei Federal de Transparência e Acesso a Informação Pública inclusive (artigo 14) “Também se considerará como informação reservada: ….II. Os segredos comercial, industrial, fiscal, bancário, fiduciário e outro como tal por uma disposição legal”.. Também nos EE.UU. A Lei de Liberdade de Informação (FOLA) estabelece na Seção 552 ‘Informação Pública; ….(a) Toda a divisão do governo deverá pôr a disposição do público sua informação de modo que se estipule a continuação:… (b) A presente Seção não se aplicará a questões que fossem ou estivessem:…(4) segredos comerciais e informação comercial ou financeira obtida de uma pessoa que seja considerada informação privilegiada e confidencial”. Na Europa a Diretiva 95 protege somente as pessoas físicas apesar das leis existentes na Áustria Dinamarca, Itália e Luxemburgo terem estendido a proteção às pessoas jurídicas.

[11][7] A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA utiliza o conceito de “pessoas volutariamente públicas”:  “10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e difusão de informação de interesse público. A proteção da reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nestes casos, deve provar-se que na difusão das notícias o comunicador teve intenção de causar dano ou pleno conhecimento de que se estava difundindo notícias falsas ou se conduziu com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas”.

[12] Gary Williams, ‘El derecho constitucional a la privacidad en California ¿Protege a las figuras públicas de la publicacion de informacion confidencial personal?’, en Internet y Sistema Judicial en América Latina, C. Gregorio & S. Navarro (eds.) (2004) 325-338, Ad-Hoc, Buenos Aires.

[13] Provavelmente não existiu suficiente consenso entre os que firmaram a Declaración de Copán—San Salvador emitida pela VIII Encontro Iberoamericano de Presidentes de Cortes Supremas e Tribunais Supremos de Justiça —realizada de 21 a 25 de junho de 2004 em Honduras e El Salvador— pois não vinculou as novas tecnologias de informação com a transparência judicial e somente recomendou ações sobre a proteção de dados pessoais em relação aos centros de Documentação Judicial.

[14]. Victoria S. Salzmann, ‘Are Public Records Really Public?: the collision between the right to privacy and the release of public court records over the Internet’, 52 Baylor Law Review (2000) 355-79.

[15]. Guillermo Cosentino, ‘La información judicial es pública pero contiene datos privados, como enfocar esta dualidad’, en Internet y Sistema Judicial en América Latina, C. Gregorio & S. Navarro (eds.) (2004) 211-233, Ad-Hoc, Buenos Aires.

[16]Praticamente coincide com o Artigo 8.5 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e é coerente com a maioria das leis nacionais sobre registros penais e com a jurisprudência constitucional.

[17] U.S. Department of Justice, ‘Privacy, Technology and Criminal Justice Information: Public Attitudes Toward Uses of Criminal History Information’

[18]Poderiam também considerar-se os editais (por exemplo, são comuns os editais em que se cita a um dos pais para autorizar a crianças ou adolescentes a viajar ao exterior do país, os editais contêm os dados pessoais das crianças e dos pais, e ademais estão Internet, nos sites de internet de jornais, com facilidade de busca.

[19]Para o caso das pessoas jurídicas (morais) busca-se evitar difundir informação sobre propriedade industrial ou segredos comerciais. No caso dos moda operandi, o fundamento está em comentários realizados em relação com delitos que requerem sofisticação (por exemplo, seqüestros ou estelionatos).

(20) JÚNIOR, José Cretella. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, RF, 230:46.


 

REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS

Carlos G. Gregorio é doutor em direito e ciências sociais e bacharel em matemática pela Universidade de Buenos Aires; investigador do Instituto de Investigação para a Justiça e professor de jurimetría da Universidade Torcuato Di Tella; Consultor do Banco Mundial, PNUD e Unicef; Tem sido consultor na área de sistemas estatísticos e de informação judicial na América Latina, Marrocos, Eslováquia e Moldova.

Mário Antônio Lobato de Paiva é advogado em Belém; Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará; Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática; Coordenador da Comissão em Estudos em Direito da Informática da Ordem dos Advogados do Pará; Membro da Associação de Direito e Informática do Chile; do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática; do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico; E-mail: malp@interconect.com.br

Aguardar benevolência judicial

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CRÔNICA:  Elias Mattar Assad –   Estou submetendo ao amigo Dálio Zippin Filho a seguinte matéria: A palavra "delação" nos faz lembrar de imediato a figura de Joaquim Silvério dos Reis (Judas brasileiro). O nosso Código de Processo Penal é da decada de 40 e a nova legislação não previu a atuação do denominado "réu colaborador" e de seu advogado no processo. É um confitente que vai além, acusando outras pessoas.

Diferentemente dos demais réus no mesmo processo não refuta as provas que são produzidas pelo MP por sua colaboração nem é conceituado como acusador. Denunciado com o grupo, não assume a posição de assistente do MP, pela vedação do artigo 270 do velho CPP, e nem se defende amplamente. Para não incorrer em contradição, não produzirá provas defensivas. O processo nulifica-se em relação a sua pessoa, por falta do indisponível contraditório constitucional. Ausência ou insuficiência de defesa se equivalem.

Não se pode imaginar em uma audiência o "colaborador" e seu advogado compartilhando a bancada das demais defesas pela colidência de interesses. Mais próprio seria que tomasse assento ao lado do Ministério Público na nova figura de colaborador (direito a reperguntas, esclarecimentos, etc., após o MP).

Comparecer no processo criminal para contar a história de sua vida, motivos que o levaram a ter contato com os fatos, razões, e conviccões íntimas que o compeliram a figurar como colaborador ou delator, não é sinônimo de exercício de defesa ou contraditório. Atualmente, o réu colaborador fica "manietado" e seu advogado não poderá se desincumbir do dever de apresentar autêntica defesa (abortada pelo novo instituto). Ficar inerte, aguardando sentença de possível e incerta benevolência judicial, também não representa exercício de defesa. Digamos que no final não seja reconhecido pelo juiz ou tribunal como "colaborador" e sim como "hábil estrategista de seu interesse pessoal", como ficará o processo e a pena imposta?

Assim, em interpretação sistemática entendo que deva ser admitido como assistente, nas formas dos artigos 268 e seguintes do CPP, superando a barreira do artigo 270 do mesmo código. Se o colaborador/delator é um acusador que o seja por completo, funcionando ao lado do MP na persecução criminal. Há entre eles um atípico "litisconsórcio" na fase investigatória que lembra um "namoro envergonhado". Um lugar adequado no processo, que atenda tais objetivos deve ser estabelecido por decisão judicial, suprindo a lacuna processual deixada pelo direito posto, afastando conflitos, incertezas e contradições entre princípios vigentes. "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito" (art 3º do CPP).

Para essa nova figura, sugiro o nomen juris de "assistente colaborador". O juiz no despacho de admissão firmará tal disposição. Na sentença final, enfrentará o dilema de mensurar as condutas de Judas, Barrabás e congêneres em meio a contemporânea turba "sodogomorrense" do "crucificai-o"… Meio culpado, meio herói ou meio vilão. Quem é ele? Com a palavra o nobre processualista!


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Elias Mattar Assad:  (eliasmattarassad@sulbbs.com.br) presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.é

Fidelidade partidária

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OPINIÃO:   * João Baptista Herkenhoff  –  O Supremo Tribunal Federal decidiu, a meu ver acertadamente, que o mandato pertence à legenda, não ao parlamentar.

Não pretendo, neste artigo, cuidar de casos singulares que decorram da decisão do STF, mas sim abordar a matéria sob um ângulo doutrinário.

Aliás, procuramos sempre lançar um olhar de maior alcance sofre os fatos, mesmo aqueles do cotidiano. Assim aconteceu quando eu me manifestei contra o voto parlamentar secreto. Não se tratou de um "posicionamento de ocasião", como o que pudemos observar em alguns casos, ou seja, políticos que apoiaram a ditadura, sem nenhum compromisso com a Democracia, defendem o voto parlamentar aberto, à face de um caso específico, por mera conveniência circunstancial. Não nos confundimos com esses e até me incomoda que estejam defendendo tese idêntica à minha, por razões completamente diferentes.

Publicamos artigos contra o voto parlamentar secreto, em muitas outras ocasiões.

Agora, da mesma forma, aplaudimos, doutrinariamente, a tese de pertença do mandato ao partido, e não ao cidadão eleito.

Não é exclusivamente dentro do sistema partidário que pode haver regime democrático. Outros modelos podem cultivar os valores básicos da Democracia, adotando caminhos diferentes de representação política. O Ocidente não pode pretender o monopólio do ideal democrático.

Entretanto, no Brasil, a Democracia foi sempre fundada em partidos políticos. Nas fases da vida brasileira em que se suprimiram os partidos, não tivemos outros modelos possíveis de Democracia, mas sim ditadura.

Os partidos, no modelo de Democracia adotado pelo Brasil, devem corporificar correntes de pensamento. É indispensável que todo partido tenha um programa e seja fiel a esse programa. O programa partidário deve traduzir escolhas em face dos mais diversos temas. Como conseqüência, os que integram um partido devem lutar pelas teses do programa partidário.

Se assim acontece, o eleitor escolhe, em primeiro lugar, o partido de sua preferência. Depois, dentro do partido cujo programa apóia, o eleitor escolhe o candidato que julgue melhor. Decorrência lógica dessa estrutura política é que o candidato eleito, que muda de partido, perca o mandato. Se os partidos têm um programa, sair do partido significa abandonar o programa.

Esse sistema procura estabelecer um duplo liame. Primeiramente, entre partido e programa partidário. Depois, entre cidadão eleito e partido. Esses liames dão maior garantia ao eleitor, que não vota em pessoas, mas em idéias.

Uma observação atenta dos costumes vigentes entre nós mostra que a realidade está muito distante desses padrões teóricos. Mas a decisão do STF pode, a meu ver, indicar um horizonte que contribuirá para o saneamento da vida política brasileira.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br