Home Blog Page 288

Prescrição do dano moral trabalhista

0

* Marcelo Pessoa –

1. Delineamento Inicial

           A magistrada Maria Inês Moura S. A. da Cunha pondera com sabedoria que: "… a Constituição Federal, em seu art. 5°, X, erigiu, a princípio, a inviolabilidade da intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas assegurando a indenização não apenas pelo dano material, mas também pelo dano moral. (…). O indivíduo, portanto, não é apenas titular de um patrimônio material, mas de direitos integrantes de sua personalidade, que não podem ser atingidos impunemente …" (1).

          O Acórdão do Recurso de Revista, número 450338, ano 1998, da Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, cujo Relator foi o Ministro João Oreste Dalazen, traz esclarecimentos relevantes no que concerne aos direitos inerentes à personalidade, verbis: "… durante largo período a doutrina reconheceu que eram apenas a vida e a honra. A doutrina moderna, todavia, avançou para reputar dano a direito personalíssimo da pessoa humana e, portanto, passível de configurar dano moral, as seguintes espécies: a) dano estético; b) dano à intimidade; c) dano à vida de relação (honra, dignidade, honestidade, imagem, nome); d) dano biológico (vida); e) dano psíquico."

          Diante disso, convém expor que: "entende-se por dano moral, segundo a lição de Roberto Brebbia, aquela espécie de agravo constituída pela violação de algum dos direitos inerentes à personalidade" (2).

          Por conseguinte, o dano moral pode ser caracterizado como todo aquele que resulta de uma ofensa que atinge os valores abstratos humanos e que tem como causa impulsiva uma ação ou omissão, não estribada em exercício regular de um direito, em que o agente produz um prejuízo ou transgride direito de outrem, por dolo ou culpa.

          Sua reparabilidade tem previsão expressa em vários textos legais e encontra fundamento na teoria da responsabilidade civil, porém, o seu principal preceito está incrustado na Constituição Federal de 1998 – artigo 5 °, incisos V e X. Essa obrigação de ressarcir surge quando estão presentes os seguintes elementos: a ilicitude, manifestada pela ação ou omissão do causador; o dano propriamente dito; e o nexo de causalidade entre ambos. Assim, tendo em vista a importância de se tutelar esse direito subjetivo, os pretórios também assimilaram essa diretriz que se irradia largamente em reiterados julgados nacionais.

 

2. O Dano Moral Trabalhista.

          O advogado Valdir Florindo salienta que: "… Na vida em sociedade, estamos sempre sujeitos a causar um dano ou então a sofrê-lo. Na relação de emprego, a questão não é diferente …" (3).

          Deveras, tal afirmação é verosimilhante pois os direitos imateriais do cidadão podem ser afetados de maneira lesiva não só na esfera civil mas inclusive nas relações laborais, consideradas um campo propício e fértil quanto a esse tipo de violação, em virtude do caráter pessoal, subordinado e duradouro desse vínculo oriundo de um contrato prestacional

          Sobre essa corrente doutrinária, o juslaboralista Arnaldo Süssekind pontifica que: "O quotidiano do contrato de trabalho, com o relacionamento pessoal entre o empregado e o empregador, ou aqueles a quem este delegou o poder de comando, possibilita, sem dúvida, o desrespeito dos direitos da personalidade por parte dos contratantes. De ambas as partes – convém enfatizar …" (4). Por conseqüência, tanto o empregado como o empregador podem ser vítimas de dano moral, ou de "dano não-patrimonial", conforme o conceito preferido pela doutrina alemã e italiana.

          Trago o posicionamento coeso de Gislene A. Sanches como complemento: "… No cotidiano laboral, empregado e empregador, como tais, podem ser agentes ativos ou passivos de ilícitos dos quais derive a obrigação de repara o dano. Há, em tese, uma potencial igualdade dos sujeitos das relações de trabalho em causar lesões com repercussão, inclusive, na esfera moral, embora o mais comum seja o empregado figurar no pólo passivo da conduta danosa." (5).

          Acrescentando, o juiz Márcio Flávio Salem Vidigal assevera que: "… não só a pessoa física do empregado ou do empregador pode ser alvo de dano moral, pois a pessoa jurídica, quando sob esta forma se constituir o empregador, também poderá sofrer lesão desta natureza, por isso que ela é dotada de valores éticos." (6).

          Deste modo, "resta configurado o dano moral, no âmbito trabalhista, quando a reputação, a dignidade e o decoro são violados por atos abusivos ou acusações infundadas dos contratantes." (7).

 

3. A Controvérsia sobre o Prazo Prescricional da Ação de Indenização por Danos Morais.

          A legislação pátria (art. 7°, XXIX "a" da CF/1988 e art. 11 da CLT/1943) fixa um prazo específico para propor na Justiça Trabalhista ações referentes a créditos resultantes das relações de trabalho. (destaques)

          Esse lapso temporal denomina-se prazo de prescrição. Seguindo o entendimento de Câmara Leal, esse fenômeno jurídico pode ser conceituado como sendo a "extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso" (8).

          Significa, portanto, o prazo assegurado para alguém ingressar com a demanda perante a jurisdição competente. Por outro lado, a perda do referido prazo traz um resultado prejudicial ao interessado, que é a extinção do processo sem apreciação do mérito. O prazo é de 2 (dois) anos contados da extinção do contrato de trabalho tanto para trabalhadores urbanos quanto para os rurais, consoante a Emenda Constitucional n°28. No curso deste, é de 5 (cinco) anos, a contar do ato lesivo conhecido.

          Acontece que, os órgãos jus-laboralistas que adotaram o argumento positivista de que possuem competência para julgar os danos morais (ante o comando dos arts. 652, inc. IV, da CLT e 114, da CF) , estão decidindo, de forma equivocada, que o prazo para intentar tal demanda nessa Justiça Especializada é de 2 (dois) anos contrariando o prazo ordinário de 20 (vinte) anos já estipulado pela regra civil para ações pessoais, senão vejamos: "Código Civil, art. 177 – As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos …".

          Além do que, cumpre avultar o que a respeitável Maria Helena Diniz sabe sobre esse assunto: "Aplicação subsidiária do art. 177 do Código Civil. Nos casos em que o Código Civil ou lei esparsa forem omissos, relativamente ao prazo prescricional, deverá ser aplicado o disposto no art. 177, incidindo, então a prescrição ordinária." (9). Ora, é evidente que a legislação trabalhista não trata dessa matéria – dano moral –, logo, deve ser utilizado o disposto no comando legal pertinente que se encontra prescrito na norma civil já citada.

          Junto como substrato uma fonte jurídica relevante: "A prescrição relacionada a direito não previsto na Consolidação não é a do art. 11, do mesmo diploma legal, porém, a prevista no Código Civil" (TRT da 5ª Reg. (Bahia), 2ª T. RO-1.717/85, em 3.10.85, Rel.: Juiz Hylo Gurgel).

          O erro está simplesmente no fato de considerarem a reparação pecuniária um crédito decorrente da relação de trabalho. Esta posição em hipótese alguma corresponde com a verdade, posto que a indenização é simplesmente um quantum compensatório que tem como causa um evento antijurídico e lesivo, portanto, constitui uma satisfação ao ofendido e uma responsabilidade do causador, conseqüentemente, não se trata de parcela ou contraprestação garantida legalmente aos empregados e que notoriamente se encontram elencadas em leis específicas, principalmente, na Consolidação das Leis do Trabalho, como: salário mínimo, adicionais por serviço extraordinário, noturno, insalubre ou perigoso, remuneração de férias, abono pecuniário e outros.

          Ademais, a doutrina e a jurisprudência apontam outros tipos de reparação do dano moral. A fim de demonstrar o aduzido, transcrevo algumas citações ipsis litteris:

          "… no dano moral, outras modalidades de reparação existem, não se encontrando no dinheiro a exata reparabilidade e, haja vista a impossibilidade de se repor as coisas ao estado primitivo; contudo, o dinheiro exercerá à vítima o efeito compensatório, diminuindo as conseqüências da lesão a direito personalíssimo …" (10)

          "… Não se deve esquecer que a sentença condenatória poderá impor obrigação diversa da pecuniária, como a de fazer, exemplificando-se com a retratação pública, quer seja perante a empresa, ou nota esclarecedora em jornal de grande circulação …" (11)

          "… O dano moral não precisa ser recomposto, necessariamente, mediante indenização. Este posicionamento doutrinário é ratificado pela jurisprudência em grande número de decisões …

          O importante é que se refaça a ordem sócio-jurídica lesada, o que se pode obter mediante providências outras, tais como publicações e prestações de serviços …" (12)

          A propósito, convém destacar que a retratação feita publicamente sequer tem valor econômico, assim, obviamente não se enquadra na terminologia de crédito trabalhista, todavia, é como vem sendo tratada a matéria. Percebe-se desse contexto que é uma incoerência, pois, se porventura um empregado vir ajuizar uma ação, após o biênio estipulado quanto aos créditos trabalhistas, requerendo apenas a retratação do empregador, esta estará extemporânea caso seja aplicada a prescrição bienal, portanto, verificado o absurdo da adoção da tese dos dois anos, torna-se mais correta e justa a utilização da prescrição vintenal.

          O jurista Valentin Carrion, expôs em sua obra – Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho – que: "A única disposição diferente à norma genérica constitucional (cinco anos ou dois) é a referente ao PIS-PASEP; tal contribuição é trabalhista apenas indiretamente, pois a lei não considera rendimento do trabalho, nem o incorpora à remuneração (…). Nesse caso, a prescrição é de 10 anos (DL. 2052/83, art.10)" [grifo nosso].

          Entretanto, é de bom alvitre adicionar que a indenização ou a reparação aos danos morais também deve ser compreendida por período prescricional distinto do geral, sendo assim, para esse instituto há que vigorar a tese da prescrição longi temporis subordinada ao princípio segundo o qual as ações pessoais somente prescrevem em 20 (vinte) anos.

          Para reforçar esse entendimento, mister se faz expor uma jurisprudência notável do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª região – (RO, n° 27-00378-96-5, data de publicação: no DJE/RN n° 9.424, em 15/01/99, Acórdão n° 21.164): "EMENTA: DANO MORAL. 1. Em sendo o dano moral, resultante da relação de emprego é competente a Justiça do Trabalho para apreciar o pedido formulado. 2. Embora a competência seja da Justiça Obreira, a prescrição a ser aplicada é a do Código Civil, por não se tratar de verba trabalhista propriamente dita (…)" [grifo nosso].

 

4. Reflexão Final

 

          Em vista do apresentado, importa arrematar enaltecendo que o Direito do Trabalho também deve contribuir para que haja o respeito entre os homens (sejam eles trabalhadores, patrões ou outros), a fim de possibilitar a conseqüente evolução da Justiça.

          Por isso, não é coerente que se delimite um tempo para requerer judicialmente uma reparação por danos morais que seja inferior ao disposto no ordenamento civil que é o mais certo e favorável. Paralelamente, é o que se deve aplicar como fonte subsidiária ao Direito Laboral, conforme o preceito do art. 8°, parágrafo único, da CLT.

          Desta forma, se faz indispensável que prevaleça a prescrição estipulada pela norma civil, uma vez que reflete a adequada solução dessa intrigante questão jurídica e formal.

 

NOTAS

Breve consideração sobre o dano moral. In: Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 103

El daño moral.. Buenos Aires: Ed. Bibliográfica Argentina, 1950. p. 91 apud João Oreste Dalazen. Aspectos do dano moral trabalhista. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. vol. 65, n.1°, out/dez, Porto Alegre/RS: Síntese, 1999, pág. 69.

Dano moral e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. p. 46

Tutela da personalidade do trabalhador, In Rev. LTr, mai/95, pág. 595 apud João de Lima Teixeira Filho. Dano moral. In: Instituições de Direito do Trabalho. Arnaldo Sussekind et al. 17 ed. atual. v. 1. São Paulo: LTr, 1997. p. 637

Dano moral e suas implicações no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 65

A reparação do dano moral na órbita do Direito do Trabalho. In: O que há de novo em Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 39

Gislene A. Sanches. Dano moral e suas implicações no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 42

apud Código Civil Anotado. Maria Helena Diniz. 5 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 171

ibid., p. 195

Valdir Florindo. Dano Moral e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. p. 31-32

Gislene A. Sanches. Dano Moral e suas implicações no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 93

Glaci de Oliveira Pinto Vargas. Reparação do Dano Moral: controvérsias e perspectivas. Porto Alegre/RS: Síntese, 1997. p. 22

 


Referência Biográfica

Marcelo Pessoa  –  Bacharel em Direito, aluno da Escola Superior da Magistratura (ESMAGIS/MT), pós-graduando em Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho pela UNESA/RJ

E-mail: mar.pessoa@zipmail.com.br

A prescrição trabalhista, o marco constitucional inicial para a sua contagem

0

    * Luiz Salvador –            

               E a questão da ilegimitidade da Procuradoria do Trabalho para argüi-la

             Apesar do caráter tutelar e alimentar assegurado aos créditos trabalhistas, até 4 de outubro/88, o trabalhador só podia demandar seu empregador para pagamento de seus créditos trabalhistas impagos, observados os dois últimos anos de trabalho a teor do normatizado pelo art. 11 da CLT. A partir de 05/10/88, o inciso XXIX do art. 7º da CF alargou o instituto da prescrição de dois anos para cinco, desde que o empregado ajuíze a reclamação trabalhista dentro de dois anos do respectivo desligamento (extinção do contrato), incluído o prazo do aviso prévio por força da nº 83 da E. SDI do C. TST, que cristalizou o entendimento de que o prazo prescricional só começa a fluir no final do término do aviso prévio (Art. 487, § 1º da CLT). Durante muitos anos a Justiça do Trabalho se recusava a acatar aplicação subsidiária do disposto pelo art. 172 do C.Civil, até que o C. TST pacificou a divergência editando o Enunciado 268, que assim, dispõe: "A demanda trabalhista, ainda que arquivada, interrompe a prescrição". Pacificado este entendimento, a jurisprudência cuidou de delinear os demais contornos que envolvem a questão.

            "Como se vê, a posição de certa corrente jurisprudencial no sentido de que quanto aos pedidos não formulados no primeiro ajuizamento, o prazo prescricional tem fluência normal, contraria o sentido de que o simples ajuizamento da reclamação trabalhista adquire no processo do trabalho. Além do mais, desconsidera os princípios interpretativos inerentes ao direito e o processo do trabalho, que devem se guiar pela características próprias do tipo de relação jurídica que regulamentam. Neste sentido são várias as normas que procuram atenuar o formalismo do processo civil, como, por exemplo, a já anteriormente mencionada que permite que o simples ajuizamento da ação interrompa a prescrição, independente de se consumar a notificação da parte contrária. Por outro lado, é sabido que o hipossuficiente nem sempre tem conhecimento de todos os seus direitos, ou pelo menos daqueles que foram violados no curso da relação de emprego. Por esta razão também, de ordem teleológica, é mais do que justificável que se tenha uma interpretação mais benéfica quanto aos efeitos da interrupção da prescrição, em face da natureza da controvérsia existente para deslinde na Justiça do Trabalho, presumindo-se ter sido este o objetivo do TST, ao editar o En. 268/TST". (TRT 3ª Região, RO5.888/97, AC. 15.11.97, Rel. Juiz Luiz Ronan Neves koury, in LTR62-05/697/97).

             Examinando esta mesma questão, o TRT-PR, assim já decidiu:

            "PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. EXTINÇÃO DO FEITO ANTERIOR SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. Ainda que sindicato atuante como substituto processual venha a ser considerado parte ilegítima -ad causam- em reclamação anteriormente ajuizada com o mesmo objeto, referida ação deve ser tida como válida para efeitos de interrupção da prescrição relativamente a substituído, já que induvidosa a inocorrência de inércia deste quanto ao direito de ação, devendo ser relevado, ainda, que em caso tal, a entidade sindical, apesar de se valer, de meio inadequado, ingressa em Juízo, como pretensa credora. Aplicação subsidiária das disposições dos arts. 172, inciso I, 173 e 174, inciso III, do Código Civil e art. 219, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil e Lei 8.036-90, art. 3º ". (TRT-PR-RO 12.083-98 – Ac.4ª T 13.453-99 – Rel. Juíza Rosemarie Diedrichs Pimpão – decisão publicada no DJ-PR de 25-06-1999). A contagem do prazo prescricional se inicia com o da extinção do contrato, como se extrai do exame do art. 7º, inciso XXIX (A) da CF: "cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos APÓS A EXTINÇÃO DO CONTRATO".

            Apesar da clareza redacional do texto, que fixa o início do marco prescricional de modo a não pairar dúvida, teima a jurisprudência em delinear um outro contorno diferente do pretendido, insistindo numa construção de sentido diverso pretendendo seja o marco inicial contado não da extinção do contrato, mas do ajuizamento da ação, restringindo assim a eficácia de uma norma de claro e nítido caráter tutelar. A jurisprudência respeitadora da vontade da Carta Política vigente no País, divergindo do posicionamento conservador apontado, orienta-se, corretamente, na vontade expressa do legislador constitucional, como se extrai das lúcidas conclusões seguintes:

            "O prazo de dois anos após a extinção do contrato de trabalho, previsto no art. 7°, item XXIX, letra a, da CF/88 é o limite dado pelo legislador constitucional ao trabalhador urbano para propor ação em que reivindicará direitos trabalhistas até os últimos cinco anos. Portanto, não se pode incluí-lo neste lapso temporal, pois ele seria diminuído para três, contrariando, desta forma, a vontade expressa do legislador constitucional, que foi a de conferir ao trabalhador o prazo prescricional de 5 anos para fazer valer direitos oriundos da relação de emprego. Ao intérprete não cabe limitar a eficácia da normas constitucionais de tutela do empregado através da exegese restritiva, principalmente quando se trata de prescrição de créditos provenientes de relação de trabalho, de natureza alimentar e considerado por ela própria como valor fundamental da República Federativa (art. 1°, item IV),base da ordem econômica (art. 170) e primado da ordem social (art, 193), TRT 3ªReg. RO 1848/92 – Ac. 3ªT., 21.01.93, Rel. Antonio Alvares da silva" ( Revista LTr -ano 57 – n° 06 – junho de1993 – São Paulo – págs. 755/756). "A Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXIX, prevê, a prescrição dos direitos anteriores a cinco anos da extinção do contrato de trabalho. Interpretação teleológica esta que atende aos princípios basilares do Direito Material, qual seja, na dúvida sobre o alcance da norma, deve a mesma ser aplicada no sentido mais favorável ao obreiro, "in dubio pro operario" (TRT-PR RO 00011/95, Ac. 3ª T- 00404/96, Rel. Juiz Mario Antonio Ferrari, in DJP 19-01-96, PAG. 56). "A prescrição na Justiça do Trabalho é contada a partir da rescisão contratual. Note-se inclusive, que a Carta Magna, em seu arg. 7º, inciso XXIX, não fez a menor referência à data do ajuizamento da ação para a contagem do prazo prescricional, fazendo referência tão somente à data da extinção contratual. Assim, resta indene de dúvida que o marco prescricional é a data da rescisão contratual"(TRT-PR RO 4.791/95, AC. 1ª T. 12.997/96 – Rel. Juiz Wilson Pereira, in DJPR 05.07.96). " Segundo o art. 7º, XXIX letra a, da Constituição Federal de 1.988 o início do prazo prescricional ocorre na data da extinção do contrato de trabalho, e não na data em que foram pagas as verbas rescisórias" (TRT-PR RO 9799/91, AC. 1ª T 3180/93, Unân, Rel. Juiz Tobias de Macedo Filho, in DJPR 02.04.93, PÁG. 151).

            De todos sabido que o instituto da prescrição é de direito patrimonial e não de direito público (Cód. Civil, arts. 161/179), sendo que o momento aprazado para sua invocação é o do oferecimento da defesa, sob pena de preclusão, para que produza os efeitos então pretendidos – o atingimento direto do direito e por via reflexa extinção da ação, fazendo fenecer o direito do obreiro mesmo diante do seu caráter tutelar e alimentar. Tal conclusão se extrai do exame do disposto no art. 269, inciso IV do vigente Código de Processo Civil que elevou a prescrição como matéria de mérito. Assim, até em obediência ao princípio do contraditório e da ampla defesa, a matéria de mérito não pode ser invocada fora do primeiro grau (em grau de recurso, em memorial, sustentação oral, sob pena de permitir-se a supressão de instância. Tratando-se então, como visto, de direito patrimonial, não detém o Ministério Público do Trabalho legitimidade para argüir a prescrição mesmo em favor de entes públicos, já que não é parte no processo e sua atuação se dá na qualidade de defensor da lei (Custos Legis), impedidos do papel de representação judicial e consultoria jurídica de entidades públicas, inciso IX do art. 129 da CF/88:

            "A prescrição de direitos patrimoniais somente pode ser suscitada pelas partes que compõem a lide, sendo vedado até mesmo sua decretação ex officio, a teor do disposto no art. 219, § 5º, do CPC, c/c o art. 166, do CC. Seguindo esta diretriz, o MPT somente tem legitimidade para argüir prescrição de direitos patrimoniais quando figurar como parte na ação, o que não in casu, sob pena de estar exercendo verdadeira representação judicial do ente público demandado, o que lhe é constitucionalmente vedado – art. 129, IX, CF/88 – TRT da Décima-Nona Região, por unanimidade, RO Nº 97612141.70 – Procedência: JCJ de Arapiraca/AL – Presidente em exercício: Juíza HELENA E MELLO – Relator: Juiz PEDRO INÁCIO DA SILVA, Maceió, 28 de julho de 1998. (DOE 04.09.98).

            Neste mesmo sentido, também, por último a Orientação Jurisprudencial n.º 130, do C.TST:

            "Prescrição. Ministério Público. Custos legis. Ilegitimidade. O Ministério Público não tem legitimidade para argüir a prescrição a favor da entidade de direito público, em matéria de direito patrimonial, quando atua na qualidade de custos legis (arts. 166, do CC, e, 219, § 5º, do CPC). Parecer exarado em Remessa de Ofício"

 

Conclusão.

            Tratando-se a prescrição de direito patrimonial deve ser argüida no primeiro grau com a defesa, pena de preclusão, sendo que o MPT não detém legitimidade para sua argüição por não ser parte e estar impedido de exercer o papel de representação judicial e consultoria jurídica de entidades públicas, a teor do inciso IX do art. 129 da CF/88. O arquivamento de ação anterior ajuizada interrompe a prescrição, assegurando-se íntegros todos os direitos incumpridos, mesmo os não constantes da ação anterior arquivada, observando-se, ao propor a ação, apenas, o prazo prescricional de dois anos contados da extinção do contrato de trabalho (art. 7°, item XXIX, letra a, da CF/88), atendendo-se assim à vontade do Legislador Constituinte.

 


Referência Biográfica

 LUIZ SALVADOR   –   Advogado trabalhista no Paraná, diretor para assuntos legislativos da ABRAT, integrante do corpo técnico do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).

E-mail: defesatrab@uol.com.br

Responsabilidade civil decorrente de extravio de bagagem aérea

0

* Eduardo Sens dos Santos  –

1. Introdução.

          Como deverá se auferir a responsabilidade civil do transportador aéreo quando do extravio das bagagens, malas, documentos de seu transportado? Qual o tipo de responsabilidade a que está sujeito o transportador? É aplicável o Código de Defesa do Consumidor?

          São as perguntas que surgem quando da avaliação de um caso concreto no âmbito da responsabilidade civil do transportador, e que merecem a atenção deste pequeno estudo. E são a elas que procura-se oferecer resposta adiante.

          Ressalte-se que pouca importância prática tem o fato de o transporte ter se dado no âmbito internacional ou nacional, pois o direito aplicado (Convenção de Varsóvia), foi quase que totalmente absorvido pelo Código Brasileiro de Aeronáutica (CBAer). Tal pergunta, pois, merece o estudo das quatro áreas do direito: o Direito Internacional, o Direito Civil, o Direito do Consumidor e o Direito Constitucional.

          Quanto ao Direito Civil, deve-se perquirir acerca da espécie de responsabilidade a que está sujeito o transportador (subjetiva, objetiva ou objetiva agravada), bem como sobre os direitos do transportado.

          No Direito do Consumidor, atenta-se para a relação consumidor/fornecedor, e a amplitude da responsabilidade deste último.

          No Direito Internacional e Constitucional, deve-se procurar a verdade sobre a validade da Convenção, sua recepção pelo ordenamento nacional, atentando também para a constitucionalidade de suas normas.

 

2. Qual norma se aplica à hipótese?

          É necessário, num primeiro momento, verificar-se qual a legislação a ser aplicada ao caso, já que se está diante de um possível conflito entre normas internacionais e de direito interno.

          Primeiramente, cabe ressaltar que há dois tipos de vôo aéreo: o doméstico e o internacional.

          De acordo com o art. 215 do CBAer, "considera-se doméstico […] todo transporte em que os pontos de partida, intermediários e de destino estejam situados em território nacional". Os vôos domésticos acham-se regulados, em sua quase totalidade, pela Lei n. 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica).

          O transporte internacional é aquele em que o ponto de embarque e o destino estão situados em países diferentes. Os vôos internacionais foram regulados pela Convenção de Varsóvia, parcialmente alterada pelo Protocolo de Haia, introduzido no ordenamento brasileiro pelo Decreto 56.463/65.

          Neste estudo será abordada a questão tendo-se em conta a Convenção de Varsóvia, o que não impede uma leitura em vista do Código Brasileiro de Aeronáutica.

 

3. O conflito entre a Convenção e o Código de Defesa do Consumidor.

          Dentre as regras definidas na Convenção de Varsóvia, destaca-se, no presente estudo, a que limita o quantum indenizatório em caso de dano. Como ensinam Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge:

          "O art. 22 da Convenção de Varsóvia, parcialmente alterado pelo Protocolo de Haia (Decreto 58.463/65), estabelece o limite de 250 mil francos poincaré para indenização no caso de transporte de pessoas (n. 1 do art. 22), limitando o n. 2 a responsabilidade em caso de dano à bagagem registrada ou mercadoria". (In Revista de Direito do Consumidor. Vol. 19 pág. 129).

          Acontece que em 11 de setembro de 1990 foi publicado o Código de Defesa do Consumidor (DOU 12/09/90). Tal Código, em seu artigo 6º, inciso VI assegura: "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;"[grifei] e, de acordo com Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge: "A possibilidade de reparação do dano moral veio a ser constitucionalmente garantida com a atual Constituição, em seu art. 5º, incs. V e X" (in Revista de Direito do Consumidor. Vol. 19, pág. 122).

          Aí se estabelece o conflito de normas: enquanto a Convenção limita a responsabilidade do transportador em aproximadamente U$400,00, a Constituição Federal e o Código do Consumidor garantem a efetiva reparação de danos patrimoniais e morais.

          O Código ainda estabelece, em seu artigo 51 que:

          "São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

          I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor, pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;"[grifei]

          Neste sentido ensina o Professor Dr. Alberto do Amaral Jr., da USP:

          "São nulas, nos contratos de transporte de carga, as cláusulas limitativas de responsabilidade do transportador referentes à perda ou avaria da coisa transportada. O mesmo raciocínio aplica-se ao transporte de pessoas em que certa cláusula estabeleça a quantia a ser paga desde que sobrevenha o dano."(A Invalidade das cláusulas limitativas de responsabilidade nos contratos de transporte aéreo. In Ajuris. Março de 1998, Edição Especial, pág. 445).

          Diante de tal antinomia, haja vista a Convenção limitar o quantum indenizatório, enquanto que o CDC deixa livre o pedido de reparação de dano, proibindo expressamente as cláusulas que atenuem a responsabilidade do fornecedor de serviços, é mister saber-se qual norma utilizar. Importante frisar porém que, a Convenção, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro de Aeronáutica, nos dizeres de Antônio Herman V. Benjamim:

          "… Convivem de maneira harmoniosa, permanecendo aqueles dois primeiros documentos plenamente em vigor, exceto em relação a alguns de seus dispositivos, onde o conflito é evidente. Isso quer dizer que o Código de Defesa do Consumidor não revogou a integralidade da Convenção e do Código Brasileiro de Aeronáutica, a não ser onde patente a antinomia" (in Revista de Direito do Consumidor. Vol. 26. Pág. 39).

 

4. A relação jurídica de consumo.

          Mas, é necessário salientar que só haverá conflito entre as normas, diga-se de passagem, no tocante à responsabilidade civil do transportador, quando se estiver diante de uma relação jurídica de consumo. E o Código de Defesa do Consumidor diz ser consumidor: "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final" (art. 2º).

          Assim, Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge esclarecem:

          "No que diz respeito aos contratos de transporte em geral, inexistem maiores dificuldades em se concluir pela aplicabilidade do Código de Proteção e Defesa do Consumidor aos mesmos. […] Antônio Herman Vasconcelos e Benjamim observa, aliás, que esse tipo de contrato, dentre outros, tem ‘maior potencial para causar acidentes de consumo’" (in Revista de Direito do Consumidor. Vol. 19. Pág. 127-128).

          Portanto, o passageiro que tem sua bagagem extraviada é considerado consumidor, pois se encaixa na definição do Código de Defesa do Consumidor, configurando-se, entre o passageiro e a companhia aérea, a relação "consumidor-fornecedor-produto ou serviço".

          Destarte, está formado o conflito, sobrevindo a dúvida: prevalece a norma de direito internacional que fixa um limite ou o Código de Defesa do Consumidor que consagra a indenização integral, proibindo a cláusula limitadora de responsabilidade?

 

5. Qual norma prevalece: Convenção ou CDC?

          Cabe consignar aqui que, à época da Convenção de Varsóvia (1931), o avião tinha acabado de sair do papel. Santos Dumont em 23 de outubro de 1906 tinha realizado o primeiro vôo num aparelho mais pesado que o ar e, apesar da rápida evolução do aparelho, seu uso seguro ainda deixava muito a desejar.

          Era necessário uma norma que permitisse a evolução da aviação, pois não seria possível indenizar todos os acidentes acontecidos, sob pena de estagnação da indústria aérea.

          Sob este argumento foi erigida a Convenção de Varsóvia, que limitava as indenizações a determinado valor, sendo os passageiros indenizados totalmente apenas em caso de dolo ou culpa grave.

          Hoje tal argumento não vigora. A muito é sabido da segurança dos transportes aéreos, tanto que recebeu a alcunha de "transporte mais seguro do mundo". Mas a Convenção ainda não foi denunciada pelo governo brasileiro, estando em vigor, portanto.

          Num primeiro passo deve-se ter em mente que o Código de Defesa do Consumidor se trata de norma de "ordem pública e interesse social" de acordo com o seu artigo 1º, sendo que a autonomia da vontade foi deixada num plano secundário. Por este motivo é que a incidência das normas do referido Código "é cogente, não podendo ser afastada pela vontade das partes" (Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge. Op. Cit. Pág. 126).

          E o Código de Defesa do Consumidor, editado nos termos do art. 5º, inc. XXXII e do art. 170, V, da Constituição Federal, bem como a defesa do consumidor erigida à altura do princípio geral da atividade econômica (art. 170, inc. V), não podem ser relegados a um plano inferior ao da Convenção de Varsóvia.

          Entretanto alega-se, em parte da doutrina, que dita Convenção preponderaria sobre a legislação interna, o que não é totalmente verdade. Apesar de os tratados e convenções serem atos internacionais de grande importância, onde a "palavra" do Estado está em jogo, suas normas não podem ser sobrepostas à Lei Maior do país. Há sim, o controle de constitucionalidade também em relação aos tratados (Ver manual de Direito Internacional Público de Francisco Rezek, pág. 104), pois estes devem se submeter à ordem interna para poderem ter acolhida no ordenamento nacional.

          Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge arrematam:

          "Assim, o fato de a Convenção de Varsóvia não ter sido denunciada pelo Governo brasileiro (tal como previsto no art. 39 da Convenção) não quer significar que os limites de indenização nela previstos prevaleçam ainda hoje, pois que virtualmente incompatíveis com o regime do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que, como visto, deita raízes na própria Carta de 1988" (Op. Cit. Pág. 135).

          À assertiva de que a Convenção é lei especial e, portanto, nos critérios de solução de antinomias prevaleceria sobre o Código de Defesa do Consumidor, deve-se manter distância. Sucede que o Código de Defesa do Consumidor também é lei especial, pois regula universalmente toda e qualquer relação de consumo. Ademais, foi editada com o escopo de defender e proteger o consumidor que, diga-se de passagem, em nada era beneficiado pela Convenção de Varsóvia ou o Código Brasileiro de Aeronáutica.

          Resumindo, pode-se dizer claramente e com toda a certeza que em conflito entre a Convenção de Varsóvia e o Código de Defesa do Consumidor, prevalece este último, posto que hierarquicamente superior (editado nos termos do art. 5º, inc. XXXII da Constituição Federal), especial (o CDC regula toda relação de consumo) e, como se não bastasse, posterior (tendo sido publicado em 11/09/1990 e entrado em vigor em 13/03/1991, enquanto que a Convenção ingressou no ordenamento nacional em 24/11/1931).

          E este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

          "INDENIZAÇÃO — DANO MORAL — EXTRAVIO DE MALA EM VIAGEM AÉREA — CONVENÇÃO DE VARSÓVIA — OBSERVAÇÃO MITIGADA — CONSTITUIÇÃO FEDERAL — SUPREMACIA."

          "O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República — incisos V e X do artigo 5º, no que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil." (RE 172.720-9, Rio de Janeiro. Rel. Min. Marco Aurélio. 06.02.96).

          O Tribunal de Justiça de São Paulo também já decidiu neste sentido:

          "INDENIZAÇÃO — Responsabilidade civil — Transporte aéreo — Extravio da bagagem — Ressarcimento — Limitação prevista na Convenção de Varsóvia — Inaplicabilidade — Declaração do conteúdo e pagamento de tarifa compatível — Orientação inexistente no bilhete de passagem — Verba devida — Fixação por arbitramento — Recurso provido."(Apelação Cível n. 43.874-4, São Paulo. Relator: Des. Laerte Nordi. 12-8-97.)

          Finalizando o assunto, Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge ensinam:

          "Há, é claro, que se analisar se, no caso concreto, se está em face de relação albergada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Tal poderá perfeitamente suceder se se estiver em face de uma relação de consumo, pura e simples, como é o caso do consumidor que sofre danos em sua bagagem. Nesse caso, a responsabilização do fornecedor transportador aéreo não se limita ao teto do art. 260 da Lei 7505/86 [sic], supra mencionada" (Op. Cit. Pág. 133) (A lei referida é a Lei 7.565/86).

 

6. A responsabilidade civil no CDC.

          Visto o problema da antinomia das normas, parte-se agora para a responsabilidade civil no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.

          Citando mais uma vez os mestres Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim:

          "O Código de Proteção e Defesa do Consumidor regulamenta a responsabilidade por serviços fundamentalmente em dois dispositivos: no art. 14, trata da responsabilidade civil pelo fato do serviço; no art. 20, trata da responsabilidade civil pelo vício do serviço.

          […] É mister, pois, que tenha havido evento danoso, decorrente de defeito no serviço prestado, para que se possa falar em responsabilização nos moldes do art. 14. Ou, então, que o evento danoso tenha decorrido de informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos, o que se pode chamar de defeito de informação" (Op. Cit. Pág. 138).

          O artigo 14 que diz responder o fornecedor pelo evento danoso, independentemente de culpa, consagra a sua modalidade objetiva. Já seu parágrafo 3º comporta as causas de exclusão, in verbis:

          "§3º. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

          I — que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

          II — a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro."

          Assim, se provado o defeito do serviço (extravio da bagagem), o transportador somente deixará de ser responsabilizado quando a responsabilidade advier de fato de outrem ou fato próprio do consumidor.

          Colhe-se da jurisprudência:

          "Responsabilidade Civil. Transporte aéreo e extravio de bagagem. Indícios de extravio em terra, além de não estar relacionado com acidente. Responde a transportadora pela indenização integral regulada no Código Civil, afastando a indenização tarifada da Lei 7.565/86, prevista para acidente aéreo. Interpretação que também se harmoniza com o Direito do Consumidor. Ação procedente. Decisão mantida." (Ap. Cív. 548.098-4, rel. Márcio Franklin Nogueira, j. 26.05.93, in JTA-LEX 142/144).

          Deve-se agora tratar, haja visto que a lei aplicável ao caso é o Código de Defesa do Consumidor, da espécie de responsabilidade civil do transportador, qual seja, a responsabilidade objetiva.

6.1. Responsabilidade Objetiva

          O Professor Fernando Noronha conceitua responsabilidade objetiva como "a obrigação de reparar determinados danos causados a outrem, independentemente de qualquer atuação dolosa ou culposa do responsável, mas que tenham acontecido durante atividades realizadas no interesse ou sob o controle da pessoa responsável" (Apostila do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Pág. 370).

          Do conceito apresentado inferem-se três requisitos básicos para que se configure a responsabilidade objetiva: 1) o fato; 2) o dano; 3) o nexo de causalidade.

          O fato na hipótese levantada é extravio da bagagem e o dano configura-se pela perda de documentos, material pessoal, roupas, jóias, enfim o que sair do patrimônio do transportado em virtude da perda de suas malas. Quanto ao nexo de causalidade, diz a teoria da causalidade adequada que, um fato é causa de um dano quando este seja conseqüência normalmente previsível daquele. Conforme o Prof. Fernando Noronha:

          "E para sabermos se ele [o dano] deve ser considerado conseqüência normalmente previsível, devemo-nos colocar no momento anterior àquele em que o fato aconteceu e tentar prognosticar, de acordo com as regras da experiência comum, se era possível antever que o dano viesse a ocorrer. Quando a resposta for afirmativa, teremos um dano indenizável." (Apostila, pág. 228).

          Ora, é sabido da desordem que muitas vezes povoa nossos aeroportos, tanto que é muitíssimo comum as malas de um florianopolitano serem encontradas em Assunção ou em Porto Alegre. Portanto, pode-se afirmar que num aeroporto em que não há um controle rígido das bagagens, é perfeitamente possível antever-se que, sem serem tomadas estas as devidas cautelas, quaisquer malas teriam grande chance de se extraviarem. Assim sendo, no momento anterior ao fato era possível prever-se a ocorrência do dano, não tendo sido tomada nenhuma providência para que tal não ocorresse.

          Conclui-se, portanto que, presentes os requisitos configuradores da culpa objetiva, quais sejam o fato, o dano e o nexo de causalidade, estamos diante de um dano indenizável.

 

7. Inversão do ônus da prova.

          A prática ensina que, na maioria das empresas de aviação, não são exigidas declarações minuciosas do conteúdo da bagagem. O transportado, não teria pois como provar o conteúdo das malas, posto que seria considerado documento unilateral (o próprio consumidor, após a constatação do extravio, faz uma lista do que foi perdido). Mas de nada valem estes argumentos, pois no Código de Defesa do Consumidor o ônus da prova é invertido, devendo o transportador comprovar que a mala extraviada não continha tais objetos.

          E, nem mesmo é necessário o pedido de inversão do onus probandi, pois, em sede de direito do consumidor, pode-se operar de ofício, ou seja, sem requerimento das partes. É que o Código de Defesa do Consumidor elevou suas normas à condição de normas de ordem pública e de interesse social (art. 1º), e as normas de ordem pública, segundo Carlos César Hoffmann, com base em Nery Jr. "compreendem-se aquelas que devem ser apreciadas e aplicadas de ofício, e em relação às quais não se opera a preclusão, podendo, as questões que delas surgem, serem decididas e revistas a qualquer tempo e grau de jurisdição" (A Inversão do ônus da prova. FURB. Pró-Reitoria de Pesquisa em Pós-Graduação, 1998. Págs. 83-84).

          A Jurisprudência é vasta:

          "RESPONSABILIDADE DO PRESTADOR DE SERVIÇOS. Ônus da prova segundo o Código de Defesa do Consumidor. Suficiência da verossimilhança do alegado para transferir ao prestador de serviços o encargo probatório (Lei 8.078/90, arts. 6º, VIII, e 14, parág. 3º). Sentença Confirmada". (TJRS — Ap. Cív. 593133416-6 6ªC. — Rel. Des. Adroaldo Furtado Fabrício — RJTJRS 163/393).

          "PROVA — Ônus — Inversão — Critério do Juiz, quando reputar verossímil a alegação deduzida — Artigo 6º, inciso VIII, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, com o flagrante intuito de facilitar o ajuizamento da ação, reserva ao Juiz o poder de dispensar o autor do encargo de provar o fato constitutivo de seu direito, quando, a critério exclusivo do Magistrado, reputar verossímil a alegação deduzida" (TJSP — 7ªC. — Ap. Cív. 198.391-1- Rel. Des. Leite Cintra — JTJ/LEX 152/128).

          Ver ainda JTJ/LEX 167/147 e JTJ/LEX 169/138.

 

8. Conclusão.

          A principal conclusão que se pode extrair deste estudo é a de que, nos contratos de transporte aéreo, tanto internacional quanto nacional, a responsabilidade do transportador, pelos danos causados à bagagem, é sempre objetiva, tendo em vista a relação de consumidor-fornecedor que existe. Não é necessário se provar dolo ou culpa. Basta simplesmente a prova do fato ocorrido e o nexo de causalidade entre o fato e o dano.

          O ônus desta prova, de acordo com o Código do Consumidor, há de ser operado inversamente, ou seja, o fornecedor deve provar fato que desconstitua o direito alegado pelo consumidor.

          Como visto antes, a Convenção de Varsóvia se tornou parcialmente incompatível com o Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que a Lei 8.078/90 é posterior, especial e editada nos termos da Constituição Federal, não podendo, assim, sobressair-se no ordenamento nacional em detrimento de outros diplomas legais.


Referência Biográfica

Eduardo Sens dos Santos  –  Advogado em Florianópolis (SC)

E-mail: eduardo_sens@yahoo.com

Não há tortura no Brasil!

0

* Eduardo Sens dos Santos –

           Fiquei perplexo ao tomar conhecimento de umas mentiras que andam contando por aí!

          Ontem, dia 09.06.2000, o Jornal Nacional anunciava a situação crônica que vêm enfrentando os presídios brasileiros. Pessoas amontoadas, sujeira, ratos, torturas, AIDS, estupros… uma completa barbárie! Chegaram até a forjar imagens das celas imundas! Duvido que isto aconteça aqui no Brasil.

          A Folha de São Paulo de 14.05.2000 também apresentou resumo de relatório brasileiro sobre a tortura, que vergonhosamente foi entregue à ONU.

          Não acreditei no que li: "A tortura, muitas vezes, é utilizada como método primitivo e equivocado de investigação, a fim de dar respostas à sociedade, que exige eficácia na atuação da polícia"; "Há violência e maus-tratos nas prisões brasileiras"; "Quando ocorrem tentativas de fuga ou rebeliões, não é raro o registro de represálias por meio de espancamentos e outras formas de tortura"

          Também não acreditei, assim, como não creio haver tortura no Brasil, e que as formas mais utilizadas nas cadeias, presídios, delegacias e afins, de acordo com a Folha de São Paulo de 14.05.2000, são:

Choque elétrico;

"P. do boi" (membro do animal é seco e usado como chicote";

Perfuração sob as unhas com objetos pontiagudos;

Choque elétrico nos órgãos genitais;

Penetração do ânus com pedaço de pau;

"telefone" (golpes manuais no ouvido);

Espancamentos com cassetes e barras de aço;

Asfixia com sacos plásticos, afogamentos;

Surras com toalhas molhadas.

 

          Quanta mentira, quanto descaramento. Publicar uma coisa assim sobre um país tão sério e tão justo!

          Justo? Sério? Claro!

          A Constituição de 1988 que, segundo consta, é a "Lei Maior" "A Lei Fundamental", diz claramente que não haverá penas cruéis; que se deve respeitar a integridade física e moral dos presos; que todos são iguais perante a lei; que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante…

          É por isso que eu duvido que os presídios estejam lotados, que haja somente um Estado da Federação com mais vagas do que presos (Roraima), que, como querem fazer crer os editores do Jornal Nacional, algumas celas tenham 18 vezes mais presos do que as vagas existentes.

          Também não dou crédito à visita que fiz certa vez ao Presídio de Florianópolis. Certamente para me impressionar, propositadamente sujaram tudo, amontoaram os presos em celas miúdas, e pediram para o Chefe do Presídio mentir que havia, em média, três presos para cada cama. É óbvio que também não é verdade que alguns dormiam de dia e outros à noite, numa espécie de revezamento.

          Continuo incrédulo!

          E, realmente não vejo como acreditar nessa baboseira, simplesmente porque sei que nosso país tem ótimos juízes, juristas, advogados, promotores; pessoas da mais alta sensibilidade, da mais completa justeza, de tino irreparável. Pessoas que jamais envidariam seus esforços intelectuais para enviar seres humanos a locais onde pudesse haver tortura, onde as penas fossem cruéis, onde não fosse respeitada a integridade física do preso.

          Esse é o argumento que desmascara toda esta mentirada.

          Se realmente existisse tortura, maus tratos, superlotação dos presídios no Brasil, se em qualquer estabelecimento prisional brasileiro acontecesse qualquer ato contrário à integridade física e moral dos apenados, eu duvido que nossos nobres homens da justiça, que nossos aplicadores da lei mandariam alguém para a prisão!

          Quem dormiria com a consciência limpa depois de assinar uma mandado de tortura? Uma sentença de morte (social)? Um mandado de "pau de arara"? De choque elétrico? Quem pode sorrir depois de submeter uma pessoa (seja criminosa ou não) a tratamento tão degradante, tão desumano?

          Só se pode concluir uma coisa: obviamente não há tortura e maus tratos nas prisões brasileiras, pois, se houvesse, com toda certeza nossos homens-juristas não cogitariam sequer a hipótese de mandar alguém para a cadeia.

 


Referência Biográfica

Eduardo Sens dos Santos  –  Advogado em Florianópolis (SC)

E-mail: eduardo_sens@yahoo.com

Advogado representado na OAB tem direito a danos morais?

0

 *Eduardo Sens dos Santos –

O problema que nos é apresentado diz respeito a representação de advogado perante o Conselho da OAB (que apura denúncias contra advogados). Terá o advogado que foi representado direito a danos morais, decorrentes de possível dano causado a sua imagem?

          É o que se pretende responder com o presente estudo.

 

1. DEFINIÇÃO DE ATO ILÍCITO.

          Trata-se de responsabilidade civil e, como tal, deve ser fundada em ato ilícito – art. 159, CC – que deve ser entendido como todo fato que, não sendo fundado em Direito, cause dano a outrem.(1) Ato ilícito portanto, é o ato contrário a direito, quase sempre culposo, porém, não necessariamente culposo, do qual resulta, pela incidência da lei e ex lege, conseqüência desvantajosa para o autor.(2) E o Código Civil, em seu já citado art. 159 deixa claro que o principal efeito do ato ilícito é sujeitar seu autor à reparação do mesmo.

          Aí é que vem a pergunta principal: já que o dano moral é fundado em ato ilícito, eis que fere direito de outrem, deve o advogado representado perante Conselho da OAB ser indenizado a título de danos morais?

          A nós não parece que uma resposta afirmativa esteja de acordo com o direito vigente.

 

2. A REPRESENTAÇÃO É EXERCÍCIO LEGAL DE DIREITO?

          De fato, apesar de muitas vezes a representação causar problemas à imagem, ao crédito do advogado, quem a faz exerce seu direito — o direito de representar. Portanto, apesar de quaisquer danos que venha a experimentar o advogado, tal representação não configura ilícito, mormente por força do artigo 160 do próprio Código Civil.

          Art. 160. Não constituem atos ilícitos:

          I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. (…)

 

3. REQUISITOS DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR.

          Como um dos requisitos para que se configure uma obrigação de indenizar é o fato antijurídico(3), em não havendo tal, não se deve indenização. Mesmo tendo o dano sido comprovado, não há nem que se vislumbrar uma hipótese de dano moral, eis que um requisito essencial — fato antijurídico — não está presente.

 

4. MÁ-FÉ AO INTENTAR REPRESENTAÇÃO

          Por outro lado, se a representação for intentada com evidente intuito danoso, visando a lesão do patrimônio moral do advogado, sua credibilidade perante clientes, aí sim configurado está o ilícito. O exercício de um direito, embora possa gozar da mais ampla liberdade, não pode ir além de um justo limite. Por isso que todo direito acaba onde começa o direito de outrem.(4)

          Destarte, a representação contra advogado perante o Conselho da OAB, a menos que com evidente má-fé, o que necessita de prova, deve ser considerada exercício legal de direito. À representação que se vislumbra poder-se-ia equiparar a representação criminal, ou a queixa-crime. Sem dúvida são exemplos de exercício legal de direito; ou, se assim não o fosse, toda vez que alguém representasse criminalmente outrem, tendo a sentença final absolvido o réu, a este seria devida indenização a título de danos morais.

          Como já foi dito, mister se faz que haja prova inequívoca de má-fé por parte daquele que representa. Não havendo tal prova não há que se falar em ato ilícito.

 

5. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA.

          A doutrina mais respeitada já se pronunciou a respeito:

          "Porém, joirando as várias fórmulas, o abuso de direito, que dá causa à indenização, constituiu o exercício egoístico, anormal do direito, sem motivos legítimos ou culposos, nocivos a outrem, contrário ao destino econômico e social do direito em geral e, por isso, reprovado pela consciência pública (Plínio Barreto, RT, vol. 79/506 — Carvalho Santos, Cód. Civil, vol. III, pág. 341; Clóvis Bevilacqua, vol. I, pág. 473 e Jorge Americano ‘Abuso de Direito’, pág. 8)" (in Apelação Cível n. 43.812, Rel. Des. Vanderlei Romer)

          Já se entendeu neste sentido:

          "Não configura ato ilícito, a ensejar indenização por dano moral, representação oferecida à OAB contra um dos seus membros, se ausente o propósito de ofender a honra do representado, constituindo tal prática exercício regular de direito" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais — RT 707).

          "Responsabilidade civil — danos morais e materiais — inocorrência — Representação contra causídico junto à Ordem dos Advogados do Brasil. A qualquer cidadão, por força de Lei Federal, é assegurado o direito de representação junto à OAB. O simples exercício desta faculdade, mesmo quando improcedente a demanda administrativa, não constitui abuso de direito capaz de justificar pleito indenizatório. Recurso improvido." (Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ap. Cív. 43.812, Capital. Des. Vanderlei Romer).

 

6. CONCLUSÃO

          Portanto, em não havendo má-fé no sentido de difamar o advogado através da representação administrativa, esta configura exercício legal de direito, o que, por ser ato lícito, não enseja responsabilidade civil, muito menos indenização por danos morais.

 

NOTAS

          1 – Carvalho Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, vol. 2, n. 739.

          2 – Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. 4ª ed. §28.

          3 – Fernando Noronha. Apostila de Responsabilidade Civil apresentada ao curso de graduação em Direito da UFSC. Item 7.7.

          4 – Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado. 14ª ed. Pág. 340.

 


Referência Biográfica

Eduardo Sens dos Santos  –  Advogado em Florianópolis (SC)

E-mail: eduardo_sens@yahoo.com

Justiça e Moral

0

* Eduardo Sens dos Santos –

1. Introdução

          A discussão acerca da justiça e da moral tem ocupado o pensamento de filósofos, pensadores e juristas por todo o mundo. É uma questão que se refere diretamente ao sentido que cada pessoa dá à palavra. Diante disso, trata-se de argumentação difícil, pois, como exemplifica Jostein Gaarder em "O Mundo de Sofia", a mente humana é por demais complexa, sendo, portanto, mais complexo ainda definir seus limites (1).

          Neste estudo não se tem o objetivo de acabar de vez, ou esgotar o debate "Justiça e Moral". Busca-se sim, chegar a uma ponto de vista simples do significado de tais palavras no âmbito do Direito.

          Num primeiro plano, estuda-se separadamente os conceitos e tendências contemporâneas das palavras Justiça e Moral, para, na parte conclusiva, tratar, breve e simultaneamente, das deduções próprias sobre as obras consultadas.

 

2. A Justiça

          Kelsen (2) identifica a justiça como a felicidade social. Uma explicação que seria quase matemática se o sentido da palavra felicidade não fosse tão complexo quanto o de justiça. Desta maneira, deve-se, portanto, perquirir o sentido da palavra felicidade.

          Miguel Reale tenta esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade em sua obra Fundamentos do Direito:

          "Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinação que nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nem mesmo necessidade de Justiça. A Justiça é uma valor que só se revela na vida social, sendo conhecida a lição que Santo Tomás nos deixou ao observar, com admirável precisão, que a virtude de justiça se caracteriza pela sua objetividade, implicando uma proporção ad alterum" (3).

          No entendimento, portanto, do Professor Reale, quando todas as pessoas atingissem a felicidade não haveria necessidade de Direito ou Justiça. Entendimento este que ouso divergir, baseado em Hans Kelsen, pois fica evidente não poder existir um ordenamento justo se o que é justo é o que traz a felicidade; e o que é felicidade para um, pode não ser para outro, e freqüentemente não o é.

          Por exemplo, quando duas mulheres brigam pela guarda de uma mesma criança. Se uma delas ficar com tal criança, a outra será infeliz. Caso nenhuma delas fique com o pedaço, ninguém ficará feliz. Assim, nenhum ordenamento pode garantir a justiça de modo que ambas as mulheres fiquem felizes.

          Deste modo, pode-se aferir que a felicidade, de acordo com Kelsen, depende da satisfação das necessidades, o que nenhuma ordem social pode garantir a todos.

          No entanto, certeira é a posição de Miguel Reale quanto às desigualdades humanas. Quando fala que ao se apreciar a natureza humana não devemos apenas atender ao que é idêntico em todos os homens, mas principalmente ao que lhes é diferente. (4)

          A par disso, a definição do filósofo inglês Jeremy Bentham, quando afirma que "uma ordem social justa é impossível, mesmo diante da premissa de que ela procure proporcionar, senão a felicidade individual de cada um, pelo menos, a maior felicidade possível ao maior número possível de pessoas" é de grande valia. Nesse ínterim, contudo, não se aplica ao valor felicidade nenhum sentido subjetivo. Fica clara a objetividade, haja vista pessoas diferentes terem concepções diferentes sobre o que seja felicidade.

          Kelsen afirma, ainda, que o conceito de felicidade deverá sofrer radical transformação para tornar-se uma categoria social: a felicidade da justiça. É que a felicidade individual deve transfigurar-se em satisfação das necessidades sociais. Como acontece no conceito de democracia, que deve significar o governo pela maioria e, se necessário, contra a minoria.

          Neste mesmo sentido, conceituando a Justiça, Miguel Reale escreve que a Justiça geral é a Justiça por excelência, tendo em vista que "o bem comum não se realiza sem o bem de cada homem e o bem de cada um não se realiza sem o bem comum" (5). Assim, considera-se o "bem comum" como o objeto mais alto da virtude da justiça, pois não pode tratar o direito de garantir todas as liberdades individuais em detrimento das liberdades comuns.

          Mas a justiça também depende de uma hierarquia de valores como, por exemplo, os valores vida e liberdade. Qual seria o valor hierarquicamente maior? Uns diriam ser a vida o bem supremo; outros argumentariam ser a liberdade o maior bem, posto que de nada valeria a vida sem liberdade. Neste sentido, poder-se-ia enumerar vários casos em que as hierarquias dos valores seriam diferentes, chegando-se à conclusão de Kelsen: "é nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito". (6) Destarte, o juízo só é válido ao sujeito julgador.

          Outro ponto que se deve analisar é o da justiça como um problema de justificação do comportamento humano. É o caso de certos valores serem aceitos por todos dentro de determinada sociedade – a unanimidade sobre um juízo de valor existente entre muitos indivíduos não pressupõe a veracidade desse juízo, isto é, não pressupõe sua veracidade objetiva. Assim, dentro de uma sociedade, por exemplo, a pena de morte poderia ser aceita por todos, o que seria justo. Neste sentido, a justiça estaria justificando o comportamento humano, qual seja, de instituir a pena de morte; em outras palavras, seria justo o comportamento humano que fosse aceito na sociedade.

          Em se tratando de justiça, importante se falar do Direito Natural. Diz Kelsen: "a doutrina do Direito natural afirma existir uma regulamentação absolutamente justa das relações humanas que parte da natureza em geral ou da natureza do homem como ser dotado de razão" (7). Neste aspecto a natureza seria colocada como legislador, sendo que quando dela se fizesse uma análise cuidadosa, sempre se encontraria uma conduta humana correta, justa. Infere-se então, que se o Direito natural deve ser deduzido da natureza do homem enquanto ser dotado de razão, sem se considerar uma origem divina, tem-se um caráter racionalista. Este método não merece credibilidade pois a natureza não é dotada de vontade, não podendo prescrever qualquer comportamento humano definido.

          Hans Kelsen passa também pela discussão absolutismo e relativismo na justiça, ensinando que a razão humana só consegue compreender valores relativos. Logo, nunca se poderá ter um juízo de valor que declare algo justo sem se ter outro juízo que o considere injusto. "Justiça absoluta é um ideal irracional" (8). Não obstante, se numa hierarquia de valores, a paz social é o maior valor, a solução por ela fundamentada (pela paz social), é vista como justa.

          Miguel Reale reconhece que o valor-fim próprio do Direito é a Justiça, não como virtude, mas em sentido objetivo como justo, como ordem que a virtude justiça visa realizar.

          "Todo homem procura o seu bem e como o homem se destina à vida em sociedade, esta é, em um certo sentido, uma ordem na incessante procura do bem, isto é, de todas aquelas coisas que representam um meio para a satisfação dos fins inerentes à nossa natureza de homens, à nossa qualidade de pessoas". (9)

 

2. A Moral

          A palavra moral, para De Plácido e Silva, "designa a parte da filosofia que estuda os costumes, para assinalar o que é honesto e virtuoso, segundo os ditames da consciência e os princípios de humanidade" (10).

          Num sentido amplo, moral é o conjunto de normas de comportamento, de procedimento, que são estabelecidas e aceitas segundo o consenso tanto individual, como coletivo.

          Para Giorgio Del Vecchio as ações humanas dividem-se em parte subjecti e parte objecti. A primeira diz respeito ao campo da moral, sendo a segunda relativa ao campo do direito. O autor insiste na distinção entre o aspecto exterior do direito (físico) e o aspecto interior (psíquico) da moral.

          Logo de início, portanto, depara-se com esta divisão que irá nortear toda a teoria de Del Vecchio em relação à moral e ao direito, tal seja: a moral ser parte do subjetivo do homem.

          Citando Cristiano Tomásio, Giorgio Del Vecchio concorda que a moral respeita apenas ao foro íntimo, enquanto o direito diz respeito ao foro externo. Discorda, entretanto, da afirmação de que apenas o Direito era coercível, ao passo que a moral não era, relacionando outras sanções inerentes à moral (remorso, sanção da opinião pública…). (11)

          A distinção entre o direito e a moral reside portanto, basicamente, no fato de que a moral impõe ao sujeito uma escolha entre ações que se pode praticar; mas que se refere somente ao próprio sujeito. O direito, é bilateral, pois refere-se ao foro externo do sujeito enquanto ser social. Este, por sua vez, não pode escolher entre obedecê-lo ou não.

          Ainda, para Giorgio Del Vecchio, a moral é unilateral e o direito bilateral. A unilateralidade da moral reside no seu efeito regulador, que só diz respeito ao próprio agente; por exemplo, somente a pessoa que tem como um valor moral a monogamia sentiria sua própria coerção (remorso etc.) perante a bigamia. Por outro lado, a bilateralidade do direito é clara, pois o comportamento do sujeito é sempre levado em consideração perante os outros.

          Kant defende a moral de modo a ser entendida como a diferença entre o "certo" e o "errado", ultrapassando a questão de sentimento, do que cada pessoa tem para si por certo ou errado. Neste ponto concorda com os racionalistas ao dizer que a diferenciação entre certo e errado é algo inerente à razão humana — todas as pessoas sabem o que é certo e o que é errado porque isso é inerente à razão(12).

          Ao argumentar sobre o "certo" e o "errado" Kant identifica uma lei moral universal que vale para todas as pessoas, em todas as sociedades, em todos os tempos. Ela não diz o que se deve fazer nesta ou naquela situação, ela prescreve o comportamento em todas as ocasiões.

          Portanto, de acordo com o pensador prussiano, a lei moral é um imperativo categórico. Categórico porque vale para todas as situações; imperativo porque é uma ordem, absolutamente inevitável.

          Uma das fórmulas do imperativo categórico de Kant é a que diz: devemos sempre agir de modo a podermos desejar que a regra a partir da qual agimos transforme-se em lei geral. Ora, se queremos agir de forma errada (errada perante a sociedade como um todo), devemos esperar que esta forma de agir se transforme em lei geral. Em último caso, a obediência à lei justifica-se pelo fato de ter sido criada pelo próprio homem, pois são os legisladores que se submetem à legislação (ou pelo menos assim deveria ser).

          Hans Kelsen considera o imperativo categórico uma fórmula vazia de justiça. Diz que ao examinarmos os exemplos concretos que Kant utiliza para ilustrar a aplicação do imperativo categórico, constataremos tratarem-se de regulamentos da moral tradicional e do direito positivo da sua época.

          Apesar disso, Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, delineia os conceitos de vontade e dever. Para ele, o conceito de dever contém em si o de boa vontade. Assim, com base no dever, Kant formula três proposições básicas: 1) a ação é moral quando praticada por nenhuma outra inclinação ou interesse, a não ser obedecer somente à lei do dever; 2) a ação é a que tem o seu valor não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; 3) dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei. Desta maneira, Kant afirma que somente o impulso subjetivo que for compatível com a moralidade diz respeito à lei.

          Neste sentido, somente quando os homens fazem alguma coisa por considerar seu dever, sua obrigação seguir a lei moral, é que se pode falar de uma ação moral.

          Pode-se então concluir que o dever contém em si a boa vontade. É a única forma de objetivação da vontade em si mesma. Para Kant, portanto, o imperativo categórico corresponde ao dever.

          O pensamento Kantiano assevera que, afirmar que o homem é livre é admitir que o homem pertence ao mundo sensível e inteligível. O imperativo categórico se prende ao pressuposto de que o ser humano pertença tanto ao mundo sensível quanto ao inteligível. Se não pertencesse ao mundo inteligível, não haveria possibilidade de existir a lei moral, e conseqüentemente, o imperativo categórico, que é a razão pura tornada prática. Se não pertencesse ao mundo sensível não haveria sensibilidade, e não haveria um ser ao qual estabelecer um dever a cumprir.

 

3. Conclusão

          O tema escolhido, como já dito na parte introdutória, é deveras complexo, razão pela qual me restringi a conceituar a justiça e a moral, perante os grandes pensadores do direito, comparando-os.

          Com respeito à justiça, restou forte a conclusão de Kelsen: "é nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito". A frase ajuda esclarecer o sentido da palavra justiça. A justiça é o que é justo ao emocional de quem julga.

          A moral, bem como a justiça, parece ser baseada nos mesmo pressupostos: só é moral do ponto de vista subjetivo de quem julga. Ou seja, pode ser moralmente certo a determinado sujeito matar o próprio filho, enquanto que para a sociedade em si tal atitude é totalmente hedionda. Se cada pessoa pudesse agir apenas de acordo com seus pressupostos morais, teríamos realmente o caos. Daí sobrevém, então o direito, que visando normatizar a moral dominante (o que nem sempre é seguido à risca), para que se tenha estabilidade social.

          Por fim, pode-se dizer que, tanto a justiça quanto a moral, têm caráter extremamente subjetivo, pois depende, tão-só, do juízo do agente a definição destes conceitos. Da mesma maneira, em relação aos fatos que serão julgados, o cidadão julgador terá sempre seus próprios juízos de valor.

 

NOTAS

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia : romance da história da filosofia. São Paulo : Companhia das Letras, 1995. Pág. 355.

KELSEN, Hans. O que é justiça? [tradução Luís Carlos Borges e Vera Barkow]. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3a ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1998. Pág. 306.

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 307.

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 309.

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 05.

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 21

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 23

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 306.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 10. Ed. Rio de Janeiro : Forense, 1987.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Vol. II. 3a ed. corrigida e atualizada. Coimbra : Arménio Amado Editor, 1959. Pág. 93.

GAARDER, Jostein. Op. Cit. Pág. 344-364.

 

Bibliografia

ALTHOFF, Cláudia Regina. Direito e moral: uma breve reflexão. Revista Jurídica. Blumenau. nº 1/2. Pág. 155-169, 1997.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Vol. II. 3a ed. corrigida e atualizada. Coimbra : Arménio Amado Editor, 1959.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia : romance da história da filosofia. São Paulo : Companhia das Letras, 1995.

GRAFF, Adelhard. A moral em Kant. Revista Jurídica. Blumenau. nº 1/2. Pág. 207-217, 1997.

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1961.

KELSEN, Hans. O que é justiça? [tradução Luís Carlos Borges e Vera Barkow]. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3a ed. São Paulo : Editora Revista dos tribunais, 1998.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. Ed. São Paulo : Saraiva, 1995

 


Referência Biográfica

Eduardo Sens dos Santos  –  Advogado em Florianópolis (SC)

E-mail: eduardo_sens@yahoo.com

Assédio Sexual: um crime que ninguém quer ver

0

* Maria Berenice Dias –

    Indispensável que primeiro se arroste a realidade: 31% das brasileiras assediadas sexualmente perdem o emprego, 30% se calam e apenas 2,6% vão à Justiça, segundo pesquisa realizada pela Revista IstoÉ e publicada em 21/4/99. Sem que se tenha um levantamento sobre o resultado dos processos, inquestionavelmente o número é escasso ou quase nulo, o que deixa à mostra que o assédio sexual, além de não ser criminalizado, não vem sendo punido sequer como delitos outros e nem na esfera civil.

    A necessidade de manter o emprego, a humilhação e o constrangimento levam as mulheres – pois elas são as grandes vítimas – a se calarem e não referir o ocorrido sequer no âmbito familiar, por vergonha de contar o que aconteceu.

    A dificuldade de denunciar, de ir atrás da Justiça decorre de um componente de ordem histórica e cultural, refletido no Código Civil, que é de 1916, e no Código Penal, de 1940. Face à sacralização do conceito de família com uma feição patriarcal, nítida era a hierarquização entre o homem e a mulher. A esta restava o reduto doméstico, com a única função de criar os filhos, enquanto o espaço público era reservado aos homens. A mulher casada tinha sua capacidade reduzida e era desprovida do direito de autodeterminar-se. Sendo considerada como propriedade do marido, devia a ele submissão e respeito. Estava sujeita a uma verdadeira servidão sexual, não podia manifestar qualquer resistência ao contato sexual nem manifestar prazer.

    De outro lado, a preservação da virgindade, como símbolo de castidade e honestidade, era atributo indispensável para o casamento. Assim, os contatos sexuais, ainda que consentidos, ao serem descobertos, eram denunciados como tendo ocorrido mediante violência, como delitos sexuais, com a finalidade de resgatar a reputação da família. Por tal, nos processos decorrentes dos crimes contra os costumes – como eram catalogados -, questionava-se a palavra da vítima, cuja credibilidade restava comprometida.

    Difícil era a aceitação da versão da mulher, valendo em dobro o depoimento do homem.

    Com a evolução da sociedade e a emancipação feminina, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer por sua inserção no mercado de trabalho, veio a Constituição Federal decantar os novos direitos assegurados à mulher, que passaram a ter visibilidade e a ser considerados como direitos humanos. A mulher adquiriu a liberdade de escolher seus parceiros e de decidir sobre seu corpo.

    O aumento da participação da mulher no espaço público deveria colocá-la em condições de igualdade, não se refletindo no âmbito do trabalho as diferenças dos papéis existentes na sociedade, descabendo persistir qualquer resquício de submissão que envolva uma questão de poder.

    Porém, como os homens ainda predominam nas chefias das empresas públicas ou privadas, passaram eles a usar uma nova maneira de obter favores femininos: a ameaça da demissão, da não-ascensão profissional.

    Como o assunto ainda é tabu, as mulheres calam por medo de não serem acreditadas. Além da dificuldade de denunciar, é também difícil comprovar. É a palavra de um contra a de outro, um homem frente a uma mulher, um superior ante um subalterno. Ao depois, existe um grave preconceito de que houve provocação por parte da vítima, acabando-se por investigar o comportamento da denunciante. Confunde-se liberdade sexual com a eliminação do direito de escolha, não se atentando em que as mulheres, por serem livres, não são disponíveis para todos.

    O certo é que as mulheres se calam por falta de mecanismos e espaço social que empreste credibilidade às suas palavras. É mister que o conceito de honestidade feminina não mais seja vinculado à sua atividade sexual e que se passe a acreditar que, quando ela denuncia, é porque foi vítima.

    Assim, impõe que se criminalize o assédio sexual. Também indispensável que haja a adoção de políticas de orientação e prevenção, como forma de inibir os comportamentos indevidos. É importante que os departamentos de recursos humanos das empresas e órgãos públicos sejam capacitados para servir como consultores e orientadores, a estimular a denúncia de fatos que podem caracterizar qualquer espécie de constrangimento ou aproximação indesejada.

    Por enquanto, a única lei que vigora é a lei do silêncio.

   


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

www.mariaberenice.com.br

A hierarquia da lei complementar

0

* Marcos Antonio Cardoso de Souza –

          Propõe-se, no presente estudo, a abordagem de tema que capta intensamente a atenção dos doutrinadores pátrios: a existência de hierarquia entre lei complementar e legislação ordinária. Os estudos desenvolvidos sobre o tema conduzem a conclusões divergentes. Respeitáveis estudiosos do Direito utilizam-se de louváveis supedâneos técnicos no patrocínio de seus conflitantes entendimentos.

          Diante de tal fato, a questão reveste-se de maior complexidade; na medida que existem argumentos relevantes a corroborar, tanto com o posicionamento a favor da observância de hierarquia entre as aludidas espécies legislativas, quanto com o pensamento em contrário. Não se limitará, todavia, nesta análise, ao elenco das diversas teses, desenvolvidas na doutrina nacional. Posição esta que, evidentemente, implicará na recepção de determinada linha de raciocínio.

          O processo de inserção de lei complementar no ordenamento jurídico brasileiro distingue-se, daquele referente à legislação ordinária, somente, no que cerne ao quorum exigido para a aprovação do projeto correlato, nas duas casas legislativas, que compõem o Congresso Nacional. Para a anuência de norma extravagante impõe-se a maioria simples, a qual se perfaz com número de votos correspondente a qualquer fração superior à metade dos presentes à sessão. A aceitação de proposta de lei complementar, contudo, subordina-se à aquiescência da maioria absoluta dos membros, a qual se obtém com a manifestação positiva de mais da metade dos componentes de cada plenário.

          Ao preceituar que determinada matéria dever ser tratada em lei complementar, o Constituinte, em constatando previamente a relevância da questão, impõe maior grau de dificuldade para a aprovação. Com tal medida, tem-se o escopo de se intensificar o comprometimento, o envolvimento e a participação dos congressistas, no processo de discussão e aprovação dos documentos legislativos, dos quais emanem intensas ressonâncias na ordem social, política ou econômica.

          Demonstra-se oportuna, no presente estágio da análise, a elaboração de considerações acerca de outra celeuma, que enseja conflitos doutrinários. Em vários trechos do texto constitucional, utiliza-se o termo "lei", desprovido de qualquer qualificação. Tal fato para juristas, como Paulo de Barros Carvalho(1), implicaria na possibilidade de que, nos casos em que a "grandeza do tema" assim exigisse, o legislador poderia tratar a questão, através de lei complementar. A estipulação das questões que suscitam a formulação de lei complementar, contudo, resulta de uma avaliação axiológica, por parte do legislador constituinte, conforme já foi frisado. Coube a este a tarefa de prever, no texto do diploma legal máximo, os temas que, em face da importância dos mesmos para o ordenamento jurídico, seriam postulados, por meio de lei complementar. Não se confere ao legislador ordinário, nem ao intérprete da norma, o poder de ampliar a enumeração exaustiva dos casos que ensejam lei complementar, por meio de nova análise valorativa da matéria a ser regulamentada. Caso se entenda que determinado tema deve ser tratado em lei complementar e isso não se encontra previsto na Carta Magna, existe o recurso à emenda constitucional. Hipótese esta, cuja execução não se julga adequada, diante do já extenso número de emendas e da patente desproporcionalidade, na situação em estudo, entre os esforços necessários para a alteração do texto constitucional e o resultado prático decorrente.

          Há de se observar, ainda, que no exercício da atividade legislativa, o agente competente, ao traçar os ditames legais norteadores de determinada matéria, usualmente, incide sobre questões que não são próprias da temática principal. Em se verificando hipóteses em que matérias diversas das previstas na Constituição são abordadas no conteúdo da lei complementar, os preceitos correlatos devem ser considerados como norma ordinária. Em decorrência disso, estes dispositivos revogam os preceitos da lei anterior, naquilo que esta disponha de forma diversa daquela. Além disso, os ditames da lei complementar podem, no caso em tela, ser revogados por norma ordinária superveniente.

          Pode-se extrair do acima exposto que a caracterização de lei complementar vincula-se às imperativas adequações de forma e de conteúdo. Na falta de um desses pressupostos não há de se considerar determinado instrumento legal como lei complementar.

          Com base em tais assertivas, pode-se conduzir à conclusão do saudoso doutrinador Geraldo Ataliba, o qual assevera, em sua obra "Lei Complementar na Constituição", que "a lei complementar fora de seu campo específico –que é aquele expressamente estabelecido pelo constituinte– nada mais é que lei ordinária." (2).

          Ao citar o ensinamento acima exposto, em artigo de sua autoria, intitulado "Posição Hierárquica da Lei Complementar", o mestre Hugo de Brito Machado manifestou sua absoluta rejeição aos mesmos. Segundo este ilustre doutrinador, este pensamento "presta-se para desprestigiar a lei complementar, reduzindo-lhe o âmbito de sua supremacia relativamente à lei ordinária, e compromete a segurança jurídica, na medida em que torna questionável, em muitos casos a superioridade hierárquica da nova espécie normativa." (3).

          Ousa-se discordar das palavras deste eminente jurista. A princípio, há de se contestar a pretensa superioridade da lei complementar, em face da legislação extravagante. Adita-se que eminentes estudiosos do Direito, como Ives Gandra da Silva Martins e Raul Machado Horta, coadunam-se à corrente, defendida por Hugo de Brito Machado. Contrariando os ensinamentos destes renomados operadores do Direito, na presente exposição, entende-se que para se estabelecer gradação hierárquica entre modalidades de instrumento legal, faz-se imprescindível a inserção, na universalidade de preceitos da norma proeminente, das diretrizes que conferem validade à espécie normativa subjugada.

          Com o escopo de conferir contornos sólidos, acerca dos requisitos necessários para a caracterização de desnível hierárquico, compilar-se-á a palavra do jurista Celso Ribeiro Bastos, sobre a questão. Tal estudioso do Direito ressalta que "na hierarquia o ente hierarquizado extraí a sua existência do ser hierarquizante, (…) a espécie inferior só encontra validade nos limites traçados pelo superior." (4). Encontra-se o patrocínio de tese uníssona à ora explanada, na respeitável obra doutrinária de Michael Temer; o qual afirma que "hierarquia, para o Direito, é a circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade, numa norma superior." (5). Com supedâneo em tais ensinamentos, verifica-se a inexistência de hierarquia entre lei ordinária e complementar. Obtém-se tal conclusão ao se considerar que tratam-se, ambas, de espécie normativas, cujos contornos essenciais são ditados na Constituição; sendo que, não se insere no conteúdo de nenhuma das mesmas o fundamento de validade da outra.

          Ressalta-se, que são expressamente indicados na Constituição, os temas a serem postulados, por meio de lei complementar. Tal conjunto de matérias não pode ser objeto de lei extravagante, sob pena de se recair em inconstitucionalidade. No caso de invasão do campo destinado à legislação ordinária, por meio da edição de lei complementar, conforme já exposto, esta é tratada como norma extravagante. Em se assimilando tais assertivas, os campos de atuação de tais modalidades normativas demonstram-se perfeitamente distintos. Constatação esta que torna inviável suposto conflito entre tais espécies normativas e exaure o interesse pragmático nos estudos sobre a gradação hierárquica entre lei ordinária e complementar.

          Torna-se imperioso enfatizar, por fim, que a linha de raciocínio defendida no presente estudo não representa, em absoluto, ameaça à segurança jurídica. Ao contrário, ao se defender o respeito ao campo destinado na Carta Magna, tutela-se o imperioso respeito ao campo de atuação reservado à lei complementar no texto constitucional, base de sustentação de todo o ordenamento jurídico pátrio.

 

NOTAS

CARVALHO, Paulo de Barros: Curso de Direito Tributário. 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995, p.136.

ATALIBA,Geraldo: Lei Complementar na Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971; p. 36.

MACHADO, Hugo de Brito. "Posição Hierárquica da Lei Complementar". Revista Panorama da Justiça. Ano 4, nº 23. São Paulo, 2000, p. 20.

BASTOS, Celso Ribeiro: A inexistência de Hierarquia entre Lei Complementar e as Leis Ordinárias. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: RT, vol. 26/19-20.

TEMER, Michel: Elementos de Direito Constitucional. 16ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000; p. 146

 


Referências Bibliográficas

Marcos Antonio Cardoso de Souza  –  Bacharel em Direito em Teresina (PI), pós-graduando em Direito Empresarial em Recife
 
E-mail: souzamac@uol.com.br

Home-page: www.marcosadvogado.hpg.com.br

Visão hodierna dos contratos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH)

0

* Marcos Antonio Cardoso de Souza –

         As ações judiciais movidas pelos mutuários, que têm como objeto as cláusulas dos financiamentos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), multiplicam-se vertiginosamente nos órgãos jurisdicionais competentes. Nestas lides, a Caixa Econômica Federal (Caixa), por ser a gestora dos recursos do SFH, configura como sujeito passivo.

          O grande número de litígios e as óbvias implicações dos mesmos na condução dos contratos do SFH atraíram de forma substancial a atenção da imprensa. A abordagem da mídia sobre a questão, contudo, nem sempre se reveste do necessário embasamento econômico e jurídico. A complexidade que cerca a problemática inviabiliza a emissão de qualquer parecer, em benefício de quaisquer dos pólos da relação contratual, sem que se proceda uma análise precisa dos instrumentos legais que regulam a matéria. Há de se considerar, também, as influências da conjetura econômica do país.

           Antes de se dar continuidade à presente análise, faz-se indispensável acentuar que não se objetiva o patrocínio dos interesses de nenhuma das partes envolvidas. Pretende-se somente elencar dados relevantes sobre a questão, inseridos no atual quadro econômico, de forma desprovida de qualquer parcialidade.

          Isto posto, a princípio, deve-se acolher o entendimento de que as condições impostas aos mutuários, hodiernamente, demonstram-se insuportáveis. O valor das prestações vem onerando de forma crescente a renda familiar dos devedores do SFH. Além disso, o montante do saldo devedor não sofre uma amortização que conduza à extinção da dívida no prazo previsto. Para agravar ainda mais o quadro, o país encontra-se imerso em profunda recessão e as estatísticas indicam altos índices de desemprego. Ao se direcionar os efeitos de tais indicadores econômicos aos financiamentos do SFH , constata-se, como conseqüência imediata e inevitável, o aumento da inadimplência. A impontualidade do pagamento, por sua vez ocasiona a incidência de juros moratórios, dentre outros, que dilatam, ainda mais, o valor da dívida.

          A notoriedade da difícil situação dos mutuários, como suso revelado, torna desnecessário o prolongamento de sua exposição. No que cerne à apuração da responsabilidade da Caixa, entretanto, vincula-se nos meios de comunicação, que a culpa integral pelo presente cenário reside na imperícia da referida instituição financeira no cumprimento das funções a ela atribuídas. Acontece que tal acusação não pode subsistir, sem que se indique os necessários supedâneos técnico-jurídicos a lhe oferecer suporte.

          Os contratos, cujas prestações estão sendo submetidas à apreciação do Poder Judiciário, consistem naqueles regidos pelos Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional, PES-CP,(Lei nº 8.004/90 e 8.100/90) e Plano de Equivalência Salarial por Comprometimento de Renda, PES-CR (Lei nº 8.692/93). Assim, nos contratos assinados nas condições do PES-CP, as prestações só poderiam sofrer elevação no caso de ocorrência de aumento salarial para a categoria profissional do mutuário. Já nos contratos, em que se inseriu as normas do PES-CR, as prestações não poderiam comprometer o rendimento do devedor em níveis superiores à 30% (trinta por cento).

          A correção do saldo devedor representa o ponto de interseção entre essas duas modalidades de financiamento. Em qualquer dos instrumentos, o valor da dívida submete-se aos mesmos índices de atualização aplicados sobre a fonte dos recursos do empréstimo. Como os empréstimos do SFH têm lastro nas contas do FGTS ou na caderneta de poupança, deve-se fazer incidir sobre o saldo devedor o índice aplicável sobre estes fundos. Elucida-se que todas as instituições financeiras aplicam sobre a poupança a TR e juro de 6% ao ano; enquanto para o FGTS, TR e juro de 3% ao ano. A determinação contratual que atrela a dívida aos índices correspondentes do lastro da operação demonstra-se coerente, haja visto ser imperativo, que a mesma recupere o valor liberado no empréstimo acrescido da correção da poupança ou do FGTS, conforme o caso. Cabe ressaltar ainda, quanto à questão, que o titular da poupança e do FGTS percebe os valores decorrentes dos rendimentos inerentes a estas contas; sendo a Caixa a responsável por estas quantias adicionais.

          Decorre, dessa maneira, que, ao se atrelar o débito do financiamento aos índices do citado fundo, em respeito à previsão contratual, a Caixa não obtém nenhuma vantagem econômica. A remuneração do ente bancário é obtida mediante a apuração dos juros pactuados no contrato.

          Ações na justiça são propostas, com o escopo de se obter a declaração de nulidade das cláusulas que inserem a forma de correção do saldo devedor. Fundamenta-se tal pedido na alegação de que a imposição dos índices de reajuste contraria princípios do direito contratual.

          Nos julgamentos acerca da regularidade da atualização do valor das dívidas com base na TR, que corrige a poupança, revela-se clara divergência jurisprudencial. Com o objetivo de evidenciar a existência de decisões conflitantes, mencionar-se-á uma série de acórdãos de órgãos jurisprudenciais distintos e de diferentes instâncias. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela legalidade da aplicação da TR nos contratos do SFH, quando a matéria foi suscitada no Recurso Especial de número 1998/0030135-6. De forma diversa, os membros do Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisão para a ADIN-493/DF, entenderam ser inconstitucional a imposição do citado índice. No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a questão também não se demonstra pacífica. A título de ilustração, no Tribunal Regional Federal da 1º Região; existem, registros jurisprudenciais, que consagram a adequação da incidência da TR sobre os financiamentos do SFH (TRF 1º Região – AC 1999.01.00.019101-0 – BA – 3ª Turma – Rel. Juiz Orlindo Menezes – DJU 18.12.1998 – p. 1435) e outros que determinam o contrário, ou seja, sua inaplicabilidade sobre o saldo devedor (AC. 96.01.47386-6/GO, p. 43, j. 02.06.98, unânime).

          Faz-se oportuno, em benefício de uma análise desprovida de posicionamento tendencioso, atentar-se novamente para a situação dos mutuários. Os devedores do SFH, mesmo pagando os encargos devidos, não conseguem sequer diminuir de forma considerável o valor total do débito, por força da incidência da TR sobre a dívida. Para que se adquira noção do caráter nocivo desta taxa para os empréstimos do SFH, proceder-se-á breve exposição dos motivos de sua criação.

          Com a implantação do Plano Real, a inflação sofreu uma redução gradativa, fato este que beneficiou vários setores produtivos. Em contrapartida, a poupança, que no período inflacionário representava recurso a impedir a perda do valor aquisitivo da moeda, apresentou queda significativa no volume de investimentos. Tal indicador consiste,para qualquer nação, uma ameaça à estabilidade das contas do Estado; uma vez que o montante depositado na poupança é repassado para o Governo. Isto significa dizer que, em um país que apresenta elevados recursos nas contas da poupança, o Estado dispõe de recursos a custos (juros) mais baixos, do que daqueles angariados por outros meios viáveis. Destarte, a diminuição do interesse, do apelo, popular pela poupança, teve implicações diretas nas finanças estatais.

          Diante deste quadro, o Governo, através da Lei nº 8.177/91, editou normas para a estipulação de um índice que revitalizasse a poupança: a TR. A mesma, justamente por sua função teleológica, excede a simples correção monetátia, a fim de oferecer benefício ao poupador e, assim, incentivá-lo a fazer uso desta modalidade de investimento. Acontece que, ao se privilegiar o titular da poupança, onerou-se excessivamente o mutuário do SFH, já que a dívida deste se encontra vinculada aos índices da poupança e, consequentemente, do FGTS.

          Com a finalidade de se compreender tal fato esdrúxulo, deve-se considerar as constantes e inaceitáveis variações na política salarial do país. No momento da celebração dos contratos, no início da década de noventa, as categorias profissionais recebiam aumentos periódicos, para compensar as perdas decorrentes da inflação. Atualmente, contudo, devido à recessão econômica e à política governamental, há anos não são atribuídos aumentos salariais substanciais aos trabalhadores, do setor público e da grande maioria do setor privado.

          Com relação aos financiamentos do SFH, os reflexos destas alterações, que resultaram na estagnação dos salários, são facilmente identificados. Conforme anteriormente exposto, as leis que regiam tais empréstimos vinculavam o reajuste das prestações aos aumentos salariais da categoria profissional do mutuário ou a percentual de comprometimento da renda do mesmo. Se as regras salariais não tivessem sofrido alteração, a variação do salário, e conseqüente alteração do valor da prestação, poderia acompanhar a correção da poupança ou do FGTS, de acordo com o caso. Cumpre observar que obviamente os termos contratuais foram elaborados com base na realidade político-econômica do país à época da promulgação das leis, que determinaram o conteúdo das cláusulas. As modificações na política salarial e na economia brasileiras, realizadas ao longo dos anos seguintes à assinatura dos contratos, provocaram efeitos danosos ao equilíbrio das relações contratuais.

          Em função da inércia dos salários, as prestações restariam congeladas; enquanto o saldo devedor, em contínuo crescimento, por estar, o mesmo, atrelado à correção do fundo lastrador correlato.

          Como tentativa de contornar a questão, a Caixa, considerando que, nos contratos em tela, a prestação deveria ser relacionada com o saldo devedor, promovia a alteração do PES-CP e do PES-CR pelo SACRE, nos caso de assinatura do termo de renegociação da dívida. Mediante esta sistemática, a Caixa efetiva reajustes anuais nas prestações, visando possibilitar a amortização da dívida.

          Ao elevar as prestações, sem anterior aumento dos rendimentos dos mutuários, o mencionado ente bancário compromete de forma insuportável estes devedores, o que tem ocasionado uma avalanche de processos em razão desta conduta.

          Em resumo, há de se apreciar dois aspectos referentes aos empréstimos em questão: o índice da poupança e a política salarial. A instituição da TR, taxa fixada em índice acima da inflação, em conjunto com a paralisação dos aumentos salariais, provocou o atual e preocupante quadro.

          Quanto às prestações, os mutuários estão recorrendo à justiça com o escopo de lograr a redução dos valores cobrados. A análise da questão, todavia, revela que o acolhimento judicial de tal pretensão não seria benéfico para nenhuma das partes litigantes. Se for determinada a diminuição das prestações, para o valor cobrado na data da verificação do último aumento salarial, a dívida assumiria caráter perpétuo. O montante da prestação, neste caso, não possibilitaria a amortização do saldo devedor. Assim, mesmo na hipótese de que o mutuário honrasse em dia seus pagamentos, sua dívida só se dilataria.

          Também para a questão da forma de atualização do saldo devedor, não se vislumbra meio idôneo a dirimir o conflito de interesses entre a instituição bancária e os devedores. Se por um lado, os mutuários são submetidos à aplicação de índice especulativo sobre o débito. De outro, a incidência da TR, revela-se indeclinável para a estabilidade financeira do SFH e, consequentemente, da Caixa.

          Em respeito ao que se comprometeu com a presente exposição, não se indicou na mesma a solução para a celeuma, ou se protegeu uma parte em detrimento da outra; mas tão somente se elencou aspectos relevantes sobre a questão.

          Há de se aditar ao final nota a lamentar o fato de que, em um país como o Brasil, no qual existe um gigantesco déficit habitacional, os financiamentos do SFH estejam inseridos em um contexto tão caótico. Tais empréstimos são obtidos mediante juros subsidiários, em nome da função social dos mesmos. Mesmo assim, encontra-se estabelecida a discussão judicial acerca da regularidade das condições contratuais. Cabe aos jurisprudentes a emissão das decisões definitivas acerca do problema, para que se conduzam os casos concretos a um desfecho em consonância com a vigente noção de justiça

 


 
Referências Bibliograficas
 
Marcos Antonio Cardoso de Souza
  –  Bacharel em Direito em Teresina (PI), pós-graduando em Direito Empresarial em Recife 
 

E-mail: souzamac@uol.com.br

Home-page: www.marcosadvogado.hpg.com.br

A legislação e a Internet

0

* Marco Antonio Cardoso de Souza –

         Trata-se de característica fundamental do ordenamento jurídico, o dinamismo de seus preceitos, que permite a adequação das normas jurídicas às constantes evoluções nos diversos campos da atividade humana. Seria temerário se o Poder Legislativo restasse inerte aos relevantes fenômenos sociais; por não editar os ditames legais a reger as novas situações de fato.

         Ressalva-se que, evidentemente, seria impossível abranger no texto legal todos casos que se possam verificar em concreto. Por este motivo, nos casos de lacunas na legislação, o próprio ordenamento dita os meios a supri-lo; uma vez que o judiciário não pode escusar-se de apreciar a questão sob a alegação de falta de disposição legal quanto à matéria. Não se demonstra coerente, porém, que os operadores do direito vejam-se obrigados a utilizarem, por longo lapso temporal, as fontes subsidiárias para a resolução das celeumas. A necessidade de criação da norma pode ser indicada por diversos fatores, dentre estes, a conjectura econômica, política ou social do país.

         Diante destas considerações iniciais, propõe-se breve análise da atuação do legislador pátrio, no que se refere a das maiores revoluções na comunicação em toda a história da humanidade: a Internet. Recente lei (L. nº 9.800/99) preceitua sobre a possibilidade do envio de petições para o Poder Judiciário, através de mensagens eletrônicas. Encontra-se, também, em tramitação no Congresso Nacional, projeto de lei (nº 1589/99), o qual versa sobre o "spam", ou seja, mensagens indesejadas ou não solicitadas, via "e-mail". O conteúdo do referido projeto de lei revela-se satisfatório; já que determina que aqueles que optarem por esta modalidade de envio, devem informar sobre o que a mensagem aborda. A breve recepção do citado projeto no ordenamento jurídico demonstra-se salutar; na medida que, observa-se atualmente a proliferação do acesso gratuito à rede mundial. Revela-se notório que a percepção dos lucros por parte das empresas que disponibilizam este serviço dar-se-á por meio da vinculação de propaganda. Assim, nada mais conveniente do que regularizar a forma de envio das mensagens aos usuários da Internet.

         O Projeto de Lei nº 22 do Senado dispõe acerca dos documentos produzidos e armazenados em meio eletrônico. Outro Projeto de Lei, PL nº 148, trata da assinatura digital e fatura eletrônica. Os temas de ambos os Projetos de Leis correspondem a aspectos fundamentais para a validade jurídica dos documentos formulados e subscritos na Internet.

         As medidas do legislativo, adotadas até o momento, contudo, revelam-se absolutamente insuficientes para atribuir solidez às relações travadas por meio da rede.

         Certo que diversos diplomas legais podem ser perfeitamente aplicáveis nas relações em tela. A título de ilustração, cita-se o Código de Defesa do Consumidor e as regras de direito autoral. A tendência mundial, entretanto, consiste na formulação de regras específicas; uma vez que os países desenvolvidos, bem como os vizinhos argentinos, já possuem regras jurídicas próprias para os serviços "on- line".

 

         Em excelente artigo intitulado "A Lei e o Comercio Eletrônico", o advogado Gustavo Testa Correia menciona: "há mais de 4 anos estão sendo realizados congressos com a participação de todos os setores da sociedade, dentre estes um comitê formado por 43 Estados norte-americanos e a American Bar Association (espécie de Ordem dos Advogados), objetivando, em conjunto, a elaboração do UNIFORM COMPUTER INFORMATION TRANSACTIONS ACT " (Lei Uniforme Para Transação de Informações no Computador). Intenta-se, através da elaboração da citada lei, não só a regulamentação dos atuais meios de exploração comercial da Internet, como também analisar as potencialidades do comercio eletrônico. Trata-se indiscutivelmente de proposta louvável por parte das instituições americanas acima citadas; mas se deve ressaltar a complexidade envolvida para a consecução plena dos objetivos apontados. As dimensões da rede mundial e a quantidade de informações nela contidas consubstanciam-se em empecilhos a um controle mais rígido das relações travadas em seu ambiente.A superveniência de normas com a função teleológica de impor uma maior fiscalização, um maior controle sobre as operações na Internet, pode resultar na ineficácia da lei correspondente; tendo em vista as características dessa forma revolucionária de comunicação. Em ocorrendo tal hipótese os esforços no sentido de a Web podem ser inúteis.

         Se positivos forem os resultados do aludido esforço conjunto das entidades dos EUA, poder-se-ia utilizar as conclusões obtidas como base para a formulação dos preceitos aplicáveis no território nacional. Em razão disto, parecer ser relevante o acompanhamento dos debates e a observação dos efeitos e a reação do meio correlato às soluções que surgirem da elogiável iniciativa americana.

         O crescimento da rede, a nível global, iniciou-se por volta de 1995 e, desde então, segue em contínuo e vertiginoso crescimento. Os dados estatísticos, veiculados nos vários setores da mídia, expressam a progressiva representatividade da Internet para o comércio mundial ("e-commerce"). Na era da globalização, profetiza-se como sendo, a "World Wide Web", a ferramenta do futuro. Destarte, as empresas de todos os setores da economia investem maciçamente na divulgação se seus produtos e serviços e na comercialização dos mesmos através da rede mundial de computadores.

         Cumpre acentuar que, no Brasil, a exploração da "Web" consiste em um mercado bastante promissor. O país apresenta um dos maiores contingentes de internautas de todo o mundo e um considerável número de usuários em potencial. Ao contrário do que ocorre em países europeus e asiáticos, nos quais existem resistências à aceitação da rede, em função da língua dominante no meio ser o inglês, não existe entre os brasileiros qualquer rejeição desta natureza. O principal empecilho à massificação da rede, na nação, continua sendo o elevado custo dos computadores e a baixa renda da maioria da comunidade. Tais fatores, porém, não prejudicam as perspectivas amplamente favoráveis ao desenvolvimento da Internet. Ameaça real as projeções positivas representa, a defasagem da legislação pátria com relação a dos demais países com expressão mercadológica internacional.

         No que cerne à tributação dos serviços e produtos disponibilizados no ciberespaço, vêm-se tentando fazer incidir a legislação fiscal vigente, fato este que gera inúmeras discussões sobre a regularidade desta exação. A princípio pode parecer favorável ao empresário a falta de disposição tributária quanto à Internet; já que seria possível a este se escusar do não-pagamento em face da falta de disposição expressa. Porém, com o contínuo desenvolvimento da Internet e, conseqüente, deslocamento de maciços investimentos para este setor, aumentará de forma crescente, o interesses dos entes estatais na tributação da atividades, ora em foco. Dessa forma, a falta de lei específica possivelmente concederia margem à incidência bitributação, bis in idem ou cobrança indevida de impostos, diante da incerteza sobre a titularidade da competência tributária para a taxação dos lucros da atividade, ora em apreço. Diante de tais questões, a incursão da celeuma na esfera do Judiciário será inevitável. Há de se considerar que, além de ser dispendioso e lento, o litígio causa constrangimentos para ambas as partes litigantes

         Outro ponto que merece destaque no presente estudo, refere-se aos crimes praticados através da Internet. Alguns dos atos ilícitos e típicos efetivados na rede podem ser caracterizados como um dos crimes previstos no vigente Código Penal. Recentemente, contudo, um preocupante ataque de "hackers", representou alerta para todos aqueles que investem seus rendimentos e a própria carreira na Internet. Mister torna-se a previsão legal da transgressão descrita. O ataque clandestino aos dados de uma empresa ou corporação pode ter implicações danosas um extenso número de indivíduos. Não há como qualificar de forma idônea a ação dos "hackers" com algum dos tipos penais inseridos no Código Penal. O legislador deve considerar o grau de ofensa da conduta correlata e cominar os limites da penalidade a qual será submetido o agente. Assim ao se estipular punição severa a estes criminosos, pode-se coibir a atuação dos "piratas da Internet".

 

         Em face do exposto, não pode, o Legislativo, omitir-se na regulamentação das relações celebradas por meio da Internet, nos mais diversos fins, para os quais a mesma vem sendo utilizada. A inexistência de leis extravagantes, inevitavelmente aumenta a incidência de lides, em face das imprecisões que ainda cercam a matéria. Com a normatização das operações em tela, atribuir-se-ia maior segurança às mesmas, fator que propiciaria a captação de novos investimentos para o setor. Além disso, os profissionais do direito não teriam que utilizar de criatividade e princípios gerais do direito para defender os interesses de seus constituintes, nas causas que versam sobre a rede mundial de computadores. Urge-se, assim, breve iniciativa das autoridades competentes; a fim de que, sejam elaborados e discutidos novos projetos de lei voltados à regência das operações via Internet, este inovador e fantástico veículo de informações.

 


Referência Biográfica
 
Marcos Antonio Cardoso de Souza
  –  Bacharel em Direito em Teresina (PI), pós-graduando em Direito Empresarial em Recife
 
E-mail: souzamac@uol.com.br

Home-page: www.marcosadvogado.hpg.com.br