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A realidade vigente dos chamados crimes passionais

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  * Marcelo Di Rezende Bernardes 

Derivado do latim passionalis, de passio (paixão), a expressão crime passional ou homicídio passional, como queiram, é utilizada na terminologia jurídica para designar o ato que se comete por paixão. 

Destarte, segundo notório dicionário jurídico, de autoria do ilustre De Plácido e Silva, “crime passional é o que se faz, por uma exaltação ou irreflexão, conseqüente de um desmedido amor à mulher ou de contrariedade a desejos insopitados”. 

Assim, no nosso modesto entender, é derivado de qualquer fato que produza na pessoa emoção intensa e prolongada, ou simplesmente paixão, não aquela de que descrevem os poetas, a paixão pura, mas paixão embebida de ciúme, de posse, embebida pela incapacidade de aceitação do fim de um relacionamento amoroso, que tanto pode vir do amor como do ódio, da ira e da própria mágoa.

Em um primeiro plano, o leigo poderia equivocadamente entender que o crime passional, por ser cometido por paixão, faria com que a conduta do homicida fosse nobre, mas, com certeza cremos que não a é, pois a paixão, neste caso, mola propulsora da conduta criminosa, tem no agente, a pessoa, seja homem ou mulher, o ente que comete o fato por perder o controle sobre seus sentidos e sobre sua emoção.

É preciso reconhecer também que, em matéria de política repressiva a essa forma de conduta violenta, o atual Código Penal rompeu com uma prática jurídica anterior, pois a lei penal que vigorava antes isentava de pena o agente que tivesse praticado o fato sob a influência de “completa perturbação dos sentidos e da inteligência”, o que era, por muitos, considerada como uma “válvula de impunidade” dos homicidas passionais.

No passado, o fato de um crime ser considerado passional rendia ao réu uma punição mais branda, mas isso ficou mesmo no passado. É claro que não podermos negar a existência da influência machista de nossa sociedade em décadas pretéritas; entretanto, não podemos também concordar com o entendimento de que somente era o homem poderia “defender a sua honra”, pois é fato que esta mesma sociedade machista nunca havia se acostumado com a idéia da infidelidade como um todo, seja feminina ou masculina, pois entendiam, como de fato entendem até os dias atuais que, a infidelidade causa ofensa à moral e à honra.

Se formos analisar a atualidade com o passado, de certa forma podemos dizer que praticamente foi extinta a utilização desta tese nos Tribunais do Júri. A aplicabilidade do homicídio privilegiado, acentuando a concretização da atenuante da violenta emoção, ou pela aplicação da excludente de ilicitude da legítima defesa, é que são as teses mais utilizadas hodiernamente. Deste modo, em tempos atuais, só haverá redução do juízo de culpabilidade, leia-se, redução e não extinção, quando o agente tiver sido acometido de “violenta emoção” logo após injusta provocação da vítima.

Não há dúvidas de que a utilização da tese da legítima defesa da honra ainda não esteja superada por completo, vez que ainda é plenamente possível a aplicabilidade desta tese, ou simples sustentação em plenário, principalmente nos rincões de cada Estado, onde a dita “honra” pode ser levada a estes casos extremos, ou seja, popularmente conhecido o termo “lavando a honra com sangue”.

O que vige no Código Penal brasileiro, é que a emoção ou a paixão não exclui a culpabilidade de quem fere ou mata uma outra pessoa. Portanto, para o direito penal positivado na norma escrita, não há tratamento específico e mais brando para o homicida passional. Ao contrário, pois se entendermos que o ódio, a inveja ou a ambição pode ser fruto de uma paixão incontrolável (ou, ao menos, difícil de ser controlada), temos de admitir que a lei não só não atenua a culpabilidade do agente, mas considera a conduta como uma forma qualificada de homicídio, muito mais grave pela maior quantidade de pena e, também, pelas conseqüências repressivas resultantes do fato ser considerado como crime hediondo.

Por certo que, se ficar provada a intenção escusa do homicida, ou seja, se uma pessoa mata o companheiro (ou manda matar) visando uma recompensa financeira (bens, seguro de vida), como hodiernamente acontece, esse crime em momento algum poderá ser considerado passional, vez que, conforme falamos, o crime passional é acometido por paixão, pela incapacidade de aceitação do fim de um relacionamento amoroso, e não visando uma recompensa financeira.

Para operar-se a exclusão do acusado da herança, não há necessidade da condenação criminal, e a prova no juízo cível pode ser produzida independentemente de ação penal. Agora, ocorrendo a condenação penal, reconhecendo-se não só a autoria e materialidade, mas principalmente o dolo, a decisão obrigatoriamente acarretará no efeito de exclusão por indignidade. Porém, se no juízo criminal reconhecer a inexistência do fato ou a negativa de autoria, fica afastada a retirada do direito à herança de sucessor capaz, no caso, o homicida passional, em virtude da acusação de atos de ingratidão que por ele ofenderam a integridade física, a honra ou a liberdade de testar do falecido.

Não há dúvidas de que o homicida passional, pratica o crime motivado pelo ciúme, egocentrismo, possessividade, prepotência e até vaidade, o que leva a um irresistível desejo de vingança, ao passo que, consumado o delito, o sentimento que o mortifica é o da perda, da desonra, de indignidade, de repúdio e do inconformismo que o faz matar para impedir que seu companheiro se liberte e siga sua vida de forma independente, dizendo em sua defesa, para ser absolvido pelo Tribunal do Júri, que foi compelido a tal ato pois se encontrava em estado de “violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”.

Resumindo, para o direito penal moderno, a regra que vige atualmente é esta: tanto a emoção quanto a paixão (a primeira, uma manifestação do psiquismo ou da consciência humana mais fugaz e passageira, a segunda mais duradoura e prolongada) não excluem a imputabilidade do agente, pois o bem jurídico maior – segurança coletiva, não pode transigir com a idéia de eventual e completa absolvição do homicida passional, mesmo nos casos de ter o agente se conduzido sob a influência de forte emoção ou paixão. O “Matei por amor”, frase dita por Raul Fernandes do Amaral, o Doca Street, já há muito foi substituída pelo slogan “Quem ama não mata”.


REFERÊNCIA BIOGRAFICA

Marcelo Di Rezende Bernardes:  Advogado, Especializado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Católica de Goiás (UCG), Especializando em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Presidente da Associação dos Advogados Criminalistas de Goiás (AACG), Diretor da Associação Brasileira de Advogados, Seção de Goiás (ABA-GO), e Associado Titular do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

O caso Minas Gerais: da atrofia do Estado Social à maximização do Estado Penal

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Cláudio Alberto Gabriel Guimarães[1]   

RESUMO:  O presente artigo objetiva demonstrar que o Brasil,  na esteira das Políticas Públicas desenvolvidas nos Estados Unidos da América, já se encontra deslocando seus gastos, até então empregados na área social, ou seja, cortando recursos empregados no desenvolvimento de políticas públicas sociais voltadas para os hipossuficientes, e aplicando tais recursos na área de segurança pública, cujo ápice é a privatização/terceirização de presídios.

Palavras-chave: Políticas públicas, privatização/terceirização de presídios, Estado Social, Estado Penal.

Sumário: 1. Introdução 2. Políticas públicas neoliberais 3. A indústria do controle do delito 4. A indústria do controle do delito no Brasil 5. Conclusão

Introdução

Recentemente foi anunciada pelo Governo do Estado de Minas Gerais e alardeada em toda a imprensa nacional, a implantação de um sistema de co-gestão do sistema penitenciário mineiro, co-gestão esta compartilhada entre o Estado e a iniciativa privada.

 Assim, todos os vinte e dois presídios do Estado de Minas Gerais, seguindo a linha já adotada nos Estados Unidos da América, serão geridos por empresas privadas, cujo maior objetivo, como é sabido por todos, é o lucro.

 Salvo melhor juízo, é mais um passo dado no sentido de adotar as políticas que interessam à ideologia neoliberal que, de forma simples, podem ser assim resumidas: quem não se adequar à ideologia do mercado pela incapacidade de gerar lucros através do consumo, ou seja, quem não puder comer o famoso sanduíche Big Mac da rede internacional Mac Donald’s, nem beber Coca-Cola ou, ainda, usar tênis Nike – entre outras tantas imposições midiáticas que alimentam o consumismo desenfreado –, necessariamente produzirá lucro como matéria prima da indústria do controle do delito.  

 Em tal contexto, várias questões ficam no ar ante as políticas de repressão máxima capitaneadas pelas políticas neoliberais. É inadiável que se discuta, nessa sociedade globalizada, como equacionar os custos que advêm da implementação de tais políticas, tanto na esfera financeira, como também e, principalmente, na esfera social.

 Quais as estratégias que o Estado adotará para arcar com toda a despesa decorrente da construção e manutenção de presídios, do aumento dos efetivos de pessoal ligado ao sistema penal, enfim, como sustentar financeiramente todo o aparato repressivo de contenção da maioria excluída pelo novo modelo de gestão política?

 No âmbito social, como o Estado poderá enfrentar o crescente processo de desestabilização das estruturas de relações comunitárias, onde impera o medo e a insegurança e a palavra de ordem é a segregação espacial, onde público e privado se confundem, havendo inclusive uma preponderância deste sobre aquele, enfim, como impedir o desenvolvimento do processo de ampla desestabilização das relações intersubjetivas na sociedade?   

2.  Políticas públicas neoliberais

 Como forma de legitimar a decisão tomada, o Estado de Minas Gerais elenca vários fatores que, em última instância, foram decisivos para a adoção da medida, sendo dois os preponderantes, quais sejam: diminuição do custo per capita dos detentos de R$ 1.623,00 mensais para R$ 1.300,00; agilização do processo de aquisição de equipamentos e realização de obras.

Em um dos mais sérios e elaborados trabalhos acadêmicos realizados sobre o tema no Brasil, o pesquisador Minhoto (2000, p. 92; 170) chama atenção para o fato de que:  

Se, de um lado, há evidências fundadas de que a operação privada de estabelecimentos correcionais não tem executado um serviço mais eficiente nem tampouco mais barato, como também não tem conseguido fazer frente aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, notadamente, o alívio da superpopulação e a reabilitação dos detentos, além de despertar forte polêmica, é certo que paradoxalmente as prisões privadas vêm se expandindo e as companhias ampliando largamente suas margens de lucratividade”. Em relação ao Brasil, adverte que “Em grande medida, essa proposta resulta de um intenso lobby realizado por uma empresa brasileira de segurança privada, a Pires Segurança Ltda., destinado a transpor as prisões privadas para o contexto brasileiro, a partir da manipulação seletiva da ‘experiência estrangeira’ – sobretudo da experiência norte-americana –, invocada como argumento de autoridade.

 Não sendo objeto do presente trabalho a abordagem de tal polêmica, opta-se por fazer uma análise mais ampla do problema e, para tanto, toma-se como ponto de partida a contextualização política e econômica, adotando-se o entendimento fundamental segundo o qual a globalização, fundada nos pressupostos da ideologia econômica neoliberal – traduzida como enfraquecimento da capacidade de intervenção social dos Estados e da perda de soberania política –, está a produzir um alarmante quadro de exclusão social. (BARATTA, 2001, p. 14-15)

 Somando-se o retro exposto ao fato de que a exclusão social se origina da concentração de riqueza nas mãos de uns poucos privilegiados, sobrando para a maioria da população mundial um grave quadro de desemprego, fome, doença, ignorância, em resumo, de ampla negação do mínimo que se pode definir como cidadania, chega-se a iniludível conclusão de que está a se concretizar um quadro sem precedentes em toda a história da humanidade: a triste constatação de que a miséria, traduzida em exclusão social, está mais visível do que nunca, e que a visibilidade dos pobres e miseráveis acaba por influenciar negativamente o bem-estar dos incluídos.

 No Brasil, a pobreza é um problema que pode ser adjetivado de gravíssimo. A pobreza absoluta – aquela que se caracteriza pelo não atendimento das necessidades vinculadas ao mínimo vital – e a pobreza relativa – aquela em que apenas o mínimo para a sobrevivência física é alcançado – são verificadas em larga escala no país, sem que se possa precisar, com algum alcance de certeza, qual das duas formas predomina. (ROCHA, 2003, p. 11-12)

 A única certeza que se tem em tal seara é a de que a pobreza brasileira[2] está diretamente ligada à desigual distribuição de renda; ao inacesso à educação; à desnutrição; à completa falta de acesso a mínimas oportunidades de inclusão social. A pobreza brasileira é um retrato vivo da impossibilidade do exercício da cidadania.

 Os sem-teto, os sem-terra, os sem-comida, os sem-saúde, os desempregados estão nas ruas, em todas as partes, sujos, ofensivos, provocantes em sua inutilidade, o que traz a reboque as inevitáveis exigências sociais dos com-terra, com-teto, com-comida, com-saúde, com-conforto, com-lazer, dos que têm emprego, de que eles sejam afastados da vista e se possível, também, dos pensamentos.      

 Não é à toa que novas prisões são construídas diariamente como fábricas de exclusão das pessoas habituadas a sua condição de excluídas, em que, como verdadeiros laboratórios, são testadas técnicas de confinamento espacial do lixo e do refugo social produzidos pelo ideal neoliberal[3].

 Nesses tempos de globalização, em que, cada vez mais, menos ganham e muitos perdem, os gastos orçamentários do Estado com as despesas ligadas à manutenção da ‘lei e da ordem’ – como os efetivos policiais e os serviços penitenciários e, principalmente, os gastos com equipamentos ligados à tecnologia de segurança nas prisões – crescem em todo o planeta. Os malefícios infligidos através da pena de prisão atingiram o nível de comercialização como de qualquer outro produto. 

 Percebe-se nitidamente que todo o processo globalizador é alimentado pela autopropulsão do medo. E isso se transforma em capital político, pois “o que se possa fazer a respeito da segurança é incomparavelmente mais espetacular, mais visível, ‘televisível’, que qualquer gesto voltado para as causas mais profundas do mal-estar, mas – pela mesma razão – menos palpáveis e aparentemente mais abstratas” (BAUMAN, 1999, p. 126).

 Todo o medo e insegurança gerados pela crescente parcela de excluídos da sociedade é então somatizado pela população ainda incluída, que vê como única saída para combater esse mal, que assola a humanidade, as instituições carcerárias. 

 Tal constatação acaba por acarretar uma inexorável conseqüência: o alívio dos governos, já que ninguém, ou muito poucos, tendem a pressionar politicamente para que se realize algo acerca de coisas que são frágeis demais para que se perceba e controle. Ao contrário, a construção de novas prisões, a hipertrofia da legislação punitiva, a disseminação das infrações punidas com pena de prisão tendem a aumentar a popularidade dos governos, conferindo-lhes a imagem da austeridade, da seriedade, da severidade, de quem faz algo severo, palpável, concreto, visível e convincente, em prol da segurança individual dos governados. (BAUMAN, 1999, p. 126-127).

 As punições são, portanto, um ato político, haja vista que demonstram o poder do Estado soberano e, em última instância, trazem ao conhecimento dos súditos qual o órgão que detém o poder absoluto[4].

 Quanto mais firme for o Estado em relação à dureza das punições, daquelas poucas que o Poder Judiciário pode impor aos infelizes que caíram em suas malhas, mais se afirma perante a incauta opinião pública como órgão apto a controlar o crime, suscitando vasto apoio popular, mas, na verdade, tais atos de barbárie punitiva objetivam escamotear a realidade da completa falência em prover segurança à população como um todo. (GARLAND, 2002, p. 83)

 Na concepção de Wacquant (2002a, p. 8),

O desequilíbrio do social para o penal é evidente nas inflexões recentes do discurso público sobre o crime, nas desordens urbanas e nas incivilidades, que se multiplicam à medida que a ordem estabelecida perde sua legitimidade para quem é condenado à marginalidade pelas mutações econômicas e políticas vigentes.

 Como forma de escamotear tal quadro desolador[5], a ideologia em voga aponta todas as mazelas para causas individuais e responde com a mais poderosa arma de que dispõe o poder estabelecido, que é o Direito Penal. Quanto maior o caos, maior a necessidade de repressão penal, o que acaba por confirmar uma equação há muito conhecida, ou seja, mais exclusão social, mais pobres, mais incômodos para as classes privilegiadas, mais repressão penal, mais presos e, agora, um novo dado: mais lucros para a indústria do controle do crime.

 A supremacia do mercado sobre todos os outros valores e instituições ligados à gestão política e econômica do Estado acaba por limitar em larga escala o poder outrora imanente à soberania, restando pouco a ser feito nessa área.

 Ao Estado, antes soberano, nada mais resta, ou quase nada[6]. A economia e a política, antes símbolos de sua soberania, não mais pertencem a sua esfera de atribuições. Restou apenas a função policial, o policiamento do território e da população, os poderes de repressão, já que  

No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos investidores’. (BAUMAN, 1999, p. 128).

 Os Estados Unidos da América[7], como matriz desse novo tipo de gestão dos problemas sociais, exportam para todo o planeta o lucrativo modelo de controle das massas miserabilizadas pelo neoliberalismo, como bem coloca Christie (1998, p. 122): 

 A população potencialmente perigosa é afastada e colocada sob completo controle, como matéria-prima para uma parte do próprio complexo industrial que os tornou supérfluos e ociosos fora dos muros da prisão. Matéria-prima para o controle do crime ou, se quiserem, consumidores cativos dos serviços da indústria do controle.  

Nunca é demais lembrar que toda indústria para se estabelecer, previamente, estuda os limites da potencialidade de oferta da matéria prima a ser utilizada, para garantir seus lucros a curto, médio e longo prazos, visto que sabe da imprescindibilidade da oferta desta para continuação de suas atividades, que no caso presente são seres humanos criminalizáveis e/ou criminalizados. 

 Assim sendo, todo o movimento que hodiernamente permeia o Direito Penal objetivando criminalizar condutas através de uma hiperinflação da edição de leis, aumentar penas, diminuir garantias e benefícios em sede de execução, entre outras medidas que possibilitam uma expansão da tipificação de condutas, assim como, o aumento do tempo de cumprimento de pena, com toda certeza atendem aos interesses da indústria do controle do delito.

 Queiramos ou não o ser humano foi transformado em mercadoria! 

3 – A indústria do controle do delito 

A princípio, a indústria do controle do delito estava voltada para a produção de equipamentos de segurança, para o recrutamento, seleção e treinamento de agentes de segurança privados, fabricação de equipamentos pessoais de segurança voltados principalmente para a proteção do patrimônio, entre outros tantos itens. 

Posteriormente, em razão do novo contexto social originado com as políticas neoliberais, perceberam os proprietários de tais indústrias um novo filão, com matéria prima inesgotável e lucro certo e garantido pelo próprio Estado.   

Um verdadeiro golpe de mestre: o que fazer com as pessoas que não produzem nenhum tipo de lucro – fim maior do capitalismo –, já que totalmente excluídas da possibilidade de consumo? Excluí-las mais ainda, só que agora com uma direção predeterminada, ou seja, em direção à lucrativa indústria dos presídios, privados ou não, pois os que não são privados são amplamente terceirizados, gerando lucro da mesma maneira[8].  

Entretanto, é bom que fique claro, os lucros da indústria do controle do crime não se originam tão-somente da administração e construção dos presídios. Outras importantes fontes de lucro se verificam na automação dos acessos às unidades carcerárias, na instalação dos controles de segurança, com alarmes, câmaras de vídeo, sensores, entre outros dispositivos e, até mesmo, com o controle dos que estão em sursis ou livramento condicional, através de braceletes que monitoram seu deslocamento.

 Parece haver ares de irreversibilidade neste novo filão a ser explorado pelo capitalismo, haja vista que a matéria prima, caso se utilize a estratégia certa – crescente exclusão social – é inesgotável.

 Para arcar com os elevados custos de implementação e manutenção da repressão intensiva e ostensiva, o Estado tem que deslocar seus gastos, suprimindo grande parte das despesas inerentes à assistência social e deslocando essa verba para o sistema de justiça criminal[9]. Ademais, a verba que era direcionada para programas de ressocialização e reinserção dos detentos, agora é utilizada para o aumento da capacidade de encarceramento do sistema. 

 Concisamente pode-se resumir a atual situação em uma frase: “a guerra contra a pobreza, nos idos do Estado de bem-estar, transformou-se agora em guerra contra os pobres”. (WACQUANT, 2001b, p. 24)

 Esse estado de beligerância, que se reflete na guerra declarada pelo sistema repressivo penal – principal política social do Estado neoliberal – contra a pobreza, pode ser analisado sob vários aspectos.

 Inicialmente, essa é a única forma de se lidar com os grandes contingentes populacionais excluídos pela retração do emprego e que precisam ser eficazmente controlados. A característica marcante das políticas neoliberais é exatamente o corte de empregos para maximização dos lucros, sem que com essa medida a economia perca a capacidade de crescimento e as empresas o constante aumento na auferição dos mesmos.

 Portanto, à massa excluída do consumo pela falta de trabalho resta a opção de obtenção de lucros com o encarceramento desta, em outras palavras, o dinheiro público ao invés de ir para programas sociais, inclusive de criação de empregos, vai para o sistema de justiça penal pagar pelo custo de seus detentos e, assim, fazer com que a economia continue aquecida.

 Outro importante fator é que as políticas de repressão, em razão do trabalho realizado pela mídia, são mais bem aceitas pela opinião pública que quaisquer políticas sociais, que hoje carregam o estigma de estímulo à desocupação, vez que tais políticas solapam a vontade de trabalhar, alimentando uma cultura de dependência para com o Estado.

 O princípio do less eligibility – segundo o qual as condições de vida no cárcere deveriam ser sempre menos favoráveis que as condições de vida das categorias mais baixas dos trabalhadores livres –, apesar de ter sido inventado há mais de duzentos anos, também está presente e em pleno vigor. Assim, é melhor aceitar a péssima remuneração que é oferecida no exíguo mercado de trabalho do que ficar desempregado arriscando-se a entrar para as estatísticas do sistema penal.

 Encarcerando em massa os miseráveis, via de regra por pequenos delitos contra o patrimônio ou por condutas ligadas ao uso de estupefacientes, que em nada afetam a harmonia da convivência social, desvia-se a atenção dos grandes crimes e criminosos, estes últimos responsáveis pela criminalidade econômica, delitos estes que abalam as estruturas do Estado e, conseqüentemente, da sociedade[10].

 Por fim, a característica mais execrável da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado policial ou penal, é o lucro fácil que os grandes grupos empresariais auferem com a administração do medo imposto à sociedade na forma de insegurança total. As empresas de segurança privada, de prestação de serviços para o sistema penitenciário, de pretenso combate ao crime de uma forma geral, nunca lucraram tanto como nos dias atuais[11].

 Explicitando, os próprios grupos responsáveis pelas políticas de exclusão social de grande parte da população são, via de regra, os que lucram com a situação deletéria por si próprios criada, encarcerando o “lixo social” produzido ou vendendo segurança contra os possíveis incômodos que possam vir a ser provocados por tal tipo de gente.

4 – A indústria do controle do delito no Brasil

No Brasil, já não se pode taxar de novidade a intensificação do uso do cárcere como forma privilegiada de controle social de uma determinada camada da população. Os espaços proibidos também já se fazem notar em toda sua pujança. O que surgiu de novo, por clara influência norte-americana, no âmbito do controle social punitivo, é tão-somente o fato da implementação em terras tupiniquins da incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime. 

Já existem por aqui empresas privadas lucrando com o fornecimento de alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da própria administração e manutenção dos presídios. Há toda uma política sendo desenvolvida, inclusive com apoio da mídia, para expansão do gerenciamento privado das penitenciárias brasileiras[12].

Portanto, a iniciativa mineira somente é pioneira na questão quantitativa, pois houve a terceirização de todas as unidades prisionais do Estado, ao contrário de Paraná, Ceará, São Paulo, entre outros Estados que somente terceirizaram algumas unidades.

A conjugação dos esforços para terceirização dos presídios parece refletir os indicativos políticos neoliberais que frente à desagregação social, à separação espacial urbana, à intolerância face à diferença, à constante suspeita em relação ao outro, à fragmentação do espaço público e sua transformação imposta em espaços privados, almejam que tudo isso seja resolvido através de medidas coercitivas.

Criam-se a todo vapor espaços proibidos, destinados a separar o joio – excluídos – do trigo – incluídos -, e para isso se paga muito bem. Mais uma vez o lucro se sobrepõe a qualquer valor ligado a essência do ser humano[13].

Há uma preocupante e crescente desumanização de vastas parcelas da população. Determinados estratos sociais são vistos e tratados abertamente como inimigos, como ofensores/infratores em estado de latência, que ao menor descuido desencadeariam uma verdadeira pilhagem contra o patrimônio daqueles que se acham – ainda – em condições de consumir. Logo, é premente e inadiável que se promova o total isolamento entre as classes sociais, hoje limitadas a incluídos e excluídos.

Desse modo confunde-se pobreza com delinqüência, violência estrutural com violência criminal. Não há mais classes sociais, as possibilidades de divergências políticas também estão sendo criminalizadas, reprime-se para manutenção do caos e dos lucros .   

Bauman (1999, p. 28), sobre o tema, afirma que  

Esses e outros ‘espaços proibidos’ não servem a outro propósito senão transformar a extraterritorialidade da nova elite supralocal no isolamento corpóreo, material, em relação à localidade. Eles também dão um toque final na desintegração das formas localmente baseadas de comunhão, de vida comunitária. A extraterritorialidade das elites é garantida da forma mais material – o fato de serem fisicamente inacessíveis a qualquer um que não disponha de uma senha de entrada.  

Em seu último livro publicado no Brasil, Bauman (2003b, p. 100-111) avança na questão da desagregação social e cunha o termo “guetos voluntários” para definir o isolamento forçado a que se estão auto-impondo as elites, com seus guardas, cães amestrados, alarmes, cercas elétricas, enfim, enclaves defensáveis com acesso seletivo em contraposição aos guetos de exclusão – no Brasil favelas – em que grande parte da população é isolada, para que fique confinada longe do território das elites. 

 Wacquant (2001c, p. 163-182), na mesma linha de raciocínio acima desenvolvida por Bauman, aponta para o fenômeno da marginalidade avançada, que está a surgir e se desenvolver exatamente nos territórios onde as classes excluídas são confinadas, como conseqüência da extrema pobreza e da destituição social. Assim, a marginalidade avançada é mais um fator de desagregação social, tendo em vista que se concentra em territórios bem-identificados, bem-demarcados e cada vez mais isolados, espaços estes vistos interna e externamente como purgatórios sociais, como infernos urbanos, onde somente o refugo da sociedade aceita habitar[14].  

 Para os excluídos, portanto, existem dois caminhos a serem trilhados no atual contexto social, político e econômico, pautado pelas políticas neoliberais do livre mercado: assentirem em ocupar os espaços que lhes restam ou engrossarem as estatísticas dos sensos penitenciários. Favelas e prisões são os dois tipos de estratégias usadas para confinar e imobilizar os indesejáveis.

5. Conclusão

O que inicialmente parecia uma tímida experiência no âmbito da gestão terceirizada de penitenciárias, com alguns poucos casos isolados, com o advento da total terceirização do sistema penitenciário do Estado de Minas Gerais, solidifica-se tal tipo de postura dos gestores públicos, ao mesmo tempo em que se mostra como um forte indicativo das políticas penitenciárias que doravante serão adotadas pelos outros Estados brasileiros.

Definitivamente, o Brasil já se filiou ao rol de países que optaram por gerir a sociedade sob a égide da repressão. Ao responder com repressão e punição a problemas cujo formato evidencia uma natureza explicitamente social, ao desrespeitar os mais básicos direitos humanos com o encarceramento massivo dos excluídos por suas próprias políticas públicas, está configurada e consumada a passagem do Estado social para o Estado penal. 

Como ponto culminante da gestão adotada, tem-se o início de um amplo processo de terceirização e, muito provavelmente em um curto espaço de tempo, de privatização total das penitenciárias brasileiras, evidenciando a importação e adoção das políticas americanas cujo principal instrumento utilizado no combate as injustiças sociais, principalmente o grave quadro de desemprego e, consequentemente, de exclusão social, é o encarceramento massivo e lucrativo dos indesejados pobres, na semântica dos neoliberais, não-cidadãos.  

REFERÊNCIAS

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_______________ . Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 2001b, 157 p.

_______________ . Os condenados da cidade: estudo sobre marginalidade avançada. Tradução de José Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro: Revan, 2001c, 198 p.

_______________ . A tentação penal na Europa. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 11, p. 7-12, 1º. Semestre de 2002.

WESTERN, Bruce, et al. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 11, p. 41-52, 1º. Semestre de 2002.



[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br 

[2] Segundo a pesquisadora Rocha (2003, p. 9), “Pobreza é um fenômeno complexo, podendo ser definido de forma genérica como a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada. Para operacionalizar essa noção ampla e vaga, é essencial especificar que necessidades são essas e qual nível de atendimento pode ser considerado adequado. A definição relevante depende basicamente do padrão de vida e da forma como as diferentes necessidades são atendidas em determinado contexto socioeconômico. Em última instância, ser pobre significa não dispor dos meios para operar adequadamente no grupo social em que se vive”.

[3] Na visão de Batista (2000, p. 107), “Uma das características dos novos sistemas penais do empreendimento neoliberal consiste numa radical transformação nas finalidades da privação de liberdade, que passam daquilo que Zaffaroni chamou de ‘ideologias re’ (reinserção social, recuperação laborativa, redisciplinamento, etc.) a uma assumida técnica de neutralização do condenado”.

[4] Segundo Christie (2002, p. 93), “São as decisões político-culturais que determinam a estatística carcerária e não o nível ou evolução da criminalidade. Essas decisões exprimem e definem ao mesmo tempo a que sociedade escolhemos pertencer”.

[5] Western, Beckett e Harding (2002, p. 41) chamam atenção para outro grave fato que se origina do proposital encarceramento em massa dos miseráveis, a saber: “O encarceramento em massa mascara uma forte tendência ao desemprego, subtraindo das estatísticas uma grande massa de adultos em idade de trabalhar. Assim, o baixo índice de desemprego americano dos anos 90 é, em parte, um resultado e um artifício do elevado índice de encarceramento. Longe de ser exemplo de regulamentação, como se procura demonstrar, o mercado americano é de fato modelado, através de seu sistema penal, por uma forte e coercitiva intervenção penal”.  

[6] Sobre o Estado social residual, cfr. Wacquant (2001b, p. 23).

[7] Garland (2002, p. 88) adverte que “Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde se manifestam divisões sociais e raciais profundas, que ensejam a experiência de taxas de criminalidade e de níveis de insegurança elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reinserção dos antigos delinqüentes pelo trabalho ou pela família e onde, para completar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa, a uma escala jamais alcançada nos países democráticos e raramente encontrada na maioria dos países totalitários”.

[8] Sobre o orçamento para cobrir os custos da indústria do controle do crime, cfr. Wacquant (2001b, p. 77).

[9] Segundo a visão de Farias (2000, p. 13), “Nesse contexto de reestruturação econômica, portanto, em cujo âmbito o mercado é quem passa a comandar o jogo, o acesso aos serviços essenciais não depende mais de políticas governamentais, mas de contratos privados de compra e venda firmados com base no que os consumidores podem ou estão dispostos a pagar numa troca livre. Desse modo, o que era basicamente um tema de direitos humanos ou de direitos sociais é convertido numa questão de caráter meramente mercantil. Aprofundando o argumento: tudo – trabalho, terra e até seres humanos – acaba sendo reduzido ao conceito geral de mercadoria. Inclusive aqueles que, por terem transgredido as leis penais, foram condenados pela justiça”.

[10] Segundo Wacquant (2001b, p. 37), “A gestão policial e carcerária da insegurança social tem certamente como efeito o controle dos membros da ‘gentalha’ infamante, mas tem também o efeito de ‘confirmar seu status e recompor suas fileiras’. […] a campanha de mortificação penal da miséria nos espaços públicos contribui para agravar o sentimento de insegurança e de impunidade ao ‘embaralhar a distinção entre o verdadeiro crime e os comportamentos que são apenas incômodos e chocantes’. Ela é feita realmente para desviar a atenção pública da criminalidade organizada, cujos estragos humanos e custos econômicos são bem mais importantes e mais insidiosos que os da delinqüência de rua”.

[11] Sobre a próspera indústria do controle do crime, cfr. Christie (1998), Wacquant (2001a), Wacquant (2001b).

[12] O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) elaborou as diretrizes em 1992, para adoção das prisões privadas no Brasil as quais, em resumo, propunham que “A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os estabelecimentos”. Sobre a incipiente privatização/terceirização dos presídios brasileiros, cfr. Minhoto (2000, p. 161-192), Oliveira (1997, p. 195-224), G. Rodrigues (1995, p. 30-32), Freire (1995, p. 106-110).

[13] Sobre a nova forma de administrar a insegurança, Bauman (1999, p. 29) entende que “As elites escolheram o isolamento e pagam por ele prodigamente e de boa vontade. O resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento. Aqueles incapazes de fazer de sua vida separada uma questão de opção e de pagar os custos de sua segurança estão na ponta receptora do equivalente contemporâneo dos guetos do início dos tempos modernos; são pura e simplesmente postos para ‘fora da cerca’ sem que se pergunte a sua opinião, têm o acesso barrado aos ‘comuns’ de ontem, são presos, desviados e levam um choque curto e grosso quando perambulam às tontas fora de seus limites, sem notar os sinais indicadores de ‘propriedade privada’ ou sem perceber o significado de indicações não verbalizadas mas nem por isso menos decididas ‘não ultrapasse’’’.

[14] Há mais de quinze anos Pavarini (1985, p. 641-661) já chamava atenção para o fenômeno da “ghetização” nas políticas de controle social. Para um melhor entendimento do processo, necessária a leitura de Bentham (2000).

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

   Cláudio Alberto Gabriel Guimarães: Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br 

 


No RJ, Justiça Federal garante direito de pensão por morte a mulher que manteve união homoafetiva com servidora federal

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DECISÃO: * TRF-RJ – A 3ª Seção Especializada do TRF-2ª Região decidiu manter acórdão do próprio Tribunal, assegurando a uma mulher o direito de receber pensão por morte de sua companheira, que era servidora pública federal. Ela sustentou que viveu com a falecida uma relação homoafetiva por quase 20 anos, até a data do falecimento.

A beneficiária havia ajuizado uma ação ordinária na Justiça Federal do Rio de Janeiro, porque a União se recusara a conceder a pensão administrativamente. Como a sentença de primeira instância fora favorável à companheira sobrevivente, a União apelou ao TRF, que manteve a sentença. Por conta disso, a União recorreu novamente, dessa vez através dos embargos infringentes que foram julgados pela 3ª Seção Especializada.

O relator do processo é o desembargador federal Antonio Cruz Netto.

Inteiro teor do Acórdão proferido no julgamento dos Embargos Infringentes

RELATOR

:

DESEMBARGADOR FEDERAL ANTÔNIO CRUZ NETTO

EMBARGANTE

:

UNIÃO FEDERAL

EMBARGADA

:

EDINÉIA FERREIRA DE SOUZA

ADVOGADOS

:

ARÃO DA PROVIDÊNCIA ARAÚJO FILHO E OUTROS

ORIGEM

:

8ª VARA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO/RJ (200051010174100)

 RELATÓRIO

 A UNIÃO, inconformada com o v. acórdão de fls. 173/174 que, por maioria de votos, deu provimento à apelação interposta por EDINÉIA FERREIRA DE SOUZA, opôs os presentes embargos infringentes.

A autora, ora embargada, ajuizou ação ordinária em face da UNIÃO, objetivando a percepção de pensão na qualidade de dependente de sua companheira, bem como o reconhecimento de todos os direitos decorrentes da condição de beneficiária.

Na sentença, a magistrada (fls. 110/112) julgou improcedente o pedido e extinguiu o processo com base no art. 269-I do CPC.

Apelou a autora, às fls. 117/126, alegando que manteve uma união homoafetiva com sua ex-companheira, servidora pública federal. Diz que o relacionamento perdurou por quase 20 (vinte) anos de convivência comum e dedicação recíproca, ficando evidenciada também a dependência econômica, em razão de ter ela se dedicado apenas aos afazeres domésticos. Acrescenta que a documentação que instrui a inicial comprova tal alegação, tendo sido ouvidas, nos autos, três testemunhas que atestaram a efetiva vida em comum e a dependência. Sustenta, outrossim, que é garantia fundamental a proibição de preconceito de sexo e igualdade entre homens e mulheres.

O acórdão embargado proferido pela antiga 3ª Turma deste Tribunal encontra-se assim ementado:

“ADMINISTRATIVO – PENSÃO ESTATUTÁRIA – COMPANHEIRAS HOMOSSEXUAIS – EXISTÊNCIA COMPROVADA DE SOCIEDADE DE FATO – TRATAMENTO ISONÔMICO ÀQUELE DISPENSADO AOS COMPANHEIROS HOMOSSEXUAIS – INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 25 DO DC/INSS – PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO DE QUALQUER ESPÉCIE – CONCESSÃO POST MORTEM DA PENSÃO.

– A comprovação da vida em comum e da dependência econômica existentes entre a apelante e a ex-servidora falecida ficou retratada, sendo inclusive produzida prova testemunhal da sociedade de fato que havia;

– A Instrução Normativa nº 25 do DC/INSS, de 07/06/00, aborda o tema referente às uniões estáveis de pessoas homossexuais, servindo de parâmetro para as hipóteses de pensão estatutária por morte;

– A sociedade de fato estabelecida entre homossexuais merece tratamento isonômico ao dispensado às sociedades de fato existentes entre heterossexuais, em consonância com os princípios constitucionais que vedam distinções de qualquer natureza em razão da opção sexual do indivíduo;

– É inteiramente descabida a recusa da União em conceder pensão à companheira da ex-servidora falecida pelo fato de que, na época em que essa se encontrava em efetivo exercício de sua função pública, vertendo contribuições para o Plano de Seguridade Social, o ente federativo, ora apelado, não levou em conta sua opção sexual, passando ela a ser somente relevante após sua morte para justificar aquela negativa de concessão de pensão estatutária vitalícia;

– A fim de que sejam resguardados os valores constitucionais da Não-Discriminação de Qualquer Espécie (art. 3º, IV, da CF/88) e da Isonomia (art. 5º da CF/88), não há como se deixar de contemplar a sociedade que existia entre as companheiras, diante da evolução experimentada por nosso meio social, dia após dia;

– Uma vez incluída a apelante como beneficiária da pensão estatutária da sua falecida companheira, também faz jus ela, à percepção das prestações vencidas desde a data do óbito da instituidora do benefício – 20/12/99 – bem como as vincendas, monetariamente corrigidas e acrescidas de juros e dos valores decorrentes dos expurgos inflacionários ocorridos nos períodos em que foram declarados indevidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça;

– Concessão post mortem à apelante da pensão estatutária vitalícia deixada por sua ex-convivente falecida;

– Apelo provido.”

 Em seu voto vencido, o relator, Desembargador Federal Chalu Barbosa, negava provimento à apelação por entender que “cabe ao Congresso Nacional o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo”.

A UNIÃO alega, em suas razões de embargos (fls. 184/202), que o entendimento consignado no voto vencido está em sintonia com a jurisprudência dos tribunais pátrios e oferece solução mais adequada à questão, interpretando corretamente os dispositivos constitucionais e legais aplicáveis ao caso concreto. Diz que a administração pública está sujeita ao princípio da legalidade, inscrito no art. 37 da CF. Argumenta que a administração está obrigada a aplicar as leis e atos normativos, quando verificado o caso concreto, não cabendo qualquer avaliação quanto à sua aplicação ou não. Sustenta que o art. 226, § 3º, da CF, reconhece a união estável entre homem e mulher, sendo “inadmissível a concessão de pensão entre duas mulheres, por relação homossexual” (sic), o que importaria na impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, afirma que não houve designação da “suposta companheira”, conforme determina o art. 217, I, ‘c’ da Lei nº 8.112/1990. Diz que os atos da administração foram praticados em perfeita consonância com os dispositivos legais reguladores da matéria. Insurge-se, ainda, quanto à inclusão dos expurgos inflacionários nos períodos em que foram declarados indevidos pelo STJ, contrariando os arts. 2º e 22, inciso VI, da CF, 460 e 467 do CPC, e as Leis nºs 7.730/1989, 7.777/1989, 7.788/1989 e o art. 1º da Lei nº 6.899/1981. Afirma que a decisão é extra petita, o que acarretaria sua nulidade. Sustenta que os citados dispositivos legais restaram violados também em razão de não ter o acórdão fixado quase seriam os percentuais cabíveis. Aduz que a atualização monetária dos débitos judiciais deve obedecer aos disposto nos Decretos-lei nºs 2.284/1986, 2.290/1986, 2.311/1986 e 2.335/1987 e Leis nºs 7.730/1989, 7.738/1989, 8.024/1990, 8.177/1991 e 8.660/1993. Diz que não cabe ao Judiciário fixar índices de correção diversos daqueles fixados em lei. Requer o provimento dos embargos infringentes, a fim de que prevaleça o voto vencido.

Regularmente intimada, a embargada deixou de se manifestar (certidão de fl. 203/verso).

Dispensada a revisão, nos termos do art. 43, IX, do Regimento Interno deste Tribunal.

É o relatório.

 ANTÔNIO CRUZ NETTO

Relator

CN/stv

 V O T O

 O Senhor Desembargador Federal ANTÔNIO CRUZ NETTO (relator):

Trata-se de embargos infringentes opostos pela UNIÃO do v. acórdão de fls. 173/174, que reconheceu o direito de companheira de servidora pública federal o direito à pensão estatutária vitalícia deixada por sua ex-convivente.

A questão da extensão de direitos a companheiros homossexuais já não é novidade no âmbito do Poder Judiciário. É matéria que tem sido objeto de muitos debates, especialmente porque a percepção da sociedade sobre o tema também vem se modificando ao longo dos anos.

Esta matéria foi até mesmo objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn nº 3.300-0/DF), que foi extinta por razões formais, tendo o eminente relator, Ministro Celso de Mello, consignado, em seu voto, a necessidade de se analisar a “relevantíssima tese pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas”. Naquela ocasião, assim se manifestou S. Excelência:

“(…) Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria – cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais.

Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas (LUIZ EDSON FACHIN, “Direito de Família – Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro”, p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar; LUIZ SALEM VARELLA/IRENE INNWINKL SALEM VARELLA, “Homoerotismo no Direito Brasileiro e Universal – Parceria Civil entre Pessoas do mesmo Sexo”, 2000, Agá Juris Editora, ROGER RAUPP RIOS, “A Homossexualidade no Direito”, p. 97/128, item n. 4, 2001, Livraria do Advogado Editora – ESMAFE/RS; ANA CARLA HARMATIUK MATOS, “União entre Pessoas do mesmo Sexo: aspectos jurídicos e sociais”, p. 161/162, Del Rey, 2004; VIVIANE GIRARDI, “Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: a possibilidade jurídica da Adoção por Homossexuais”, Livraria do Advogado Editora, 2005; TAÍSA RIBEIRO FERNANDES, “Uniões Homossexuais: efeitos jurídicos”, Editora Método, São Paulo; JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, “in” “Revista da AJURIS” nº 88, tomo I, p. 224/252, dez/2002, v.g.).

Cumpre referir, neste ponto, a notável lição ministrada pela eminente Desembargadora MARIA BERENICE DIAS (“União Homossexual: O Preconceito & A Justiça”, p. 71/83 e p. 85/99, 97, 3ª ed., 2006, Livraria do Advogado Editora), cujas reflexões sobre o tema merecem especial destaque:

“A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características.

Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso.

Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção.

Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetivas – como já fez a maioria dos países do mundo civilizado -, incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. (…).” (grifei)

Vale rememorar, finalmente, ante o caráter seminal de que se acham impregnados, notáveis julgamentos, que, emanados do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, acham-se consubstanciados em acórdãos assim ementados:

“Relação homoerótica – União estável – Aplicação dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade – Analogia – Princípios gerais do direito – Visão abrangente das entidades familiares – Regras de inclusão (…) – Inteligência dos arts. 1.723, 1.725 e 1.658 do Código Civil de 2002 – Precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas.” (Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, 7ª Câmara Civil – grifei)  

“(…) 6. A exclusão dos benefícios previdenciários, em razão da orientação sexual, além de discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas. 7. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana. 8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais. 9. A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial – em alguns países de forma mais implícita – com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes; em outros de maneira explícita, com a modificação do ordenamento jurídico feita de modo a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. 10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às modificações legislativas. 11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (…), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão.” (Revista do TRF/4ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira – grifei)

Concluo a minha decisão. E, ao fazê-lo, não posso deixar de considerar que a ocorrência de insuperável razão de ordem formal (esta ADIN impugna norma legal já revogada) torna inviável a presente ação direta, o que me leva a declarar extinto este processo (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175), ainda que se trate, como na espécie, de processo de fiscalização normativa abstrata (RTJ 139/67), sem prejuízo, no entanto, da utilização de meio processual adequado à discussão, “in abstracto” – considerado o que dispõe o art. 1.723 do Código Civil –, da relevantíssima tese pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas. (…)”

O eminente relator, Desembargador Federal Chalu Barbosa, em seu voto vencido, sustentou estar correta a sentença “quando a mesma preceitua que entre dois homens ou duas mulheres, pode-se caracterizar, no máximo, uma sociedade de fato”, não sendo possível a concessão de pensão estatutária sem prévia disposição legal a esse respeito.

No caso dos autos, a discussão maior prende-se à interpretação do art. 226, § 3º, da Constituição Federal, que assim dispõe:

“Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

A interpretação, como instrumento de extração do real sentido do texto constitucional, deve ser sistemática, não podendo se fixar a apenas um aspecto, mas considerar a busca da efetividade dos comandos constitucionais através de diversos métodos que devem integrar-se, tais como a interpretação literal (ou gramatical), a histórica, a teleológica, e a observância a diversos princípios de hermenêutica, dentre os quais destacam-se o princípio da supremacia da Constituição, o princípio da unidade da Constituição, o princípio da força normativa da Constituição, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais e o princípio da harmonização – que impede o sacrifício de determinados bens constitucionais em favor de outros (neste sentido, veja-se J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, ed. Almedina, p. 228/229).

Creio que a questão não passa apenas pela definição de haver ou não disposição legal, a respeito, mas acerca de qual é a interpretação possível de se extrair do contexto legal e constitucional, visto que, embora não seja dado ao juiz criar direito positivo, cabe a ele buscar a máxima eficácia do texto constitucional e das leis que tenham a finalidade de implementar direitos e garantias previamente assegurados no texto constitucional, bem como dar concretude a princípios que inspiram o sistema, tais como cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1º, da CF).

A respeito dessas evoluções a que o direito constitucional tem assistido, preleciona CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO (“A Constituição aberta e os direitos fundamentais”, ed. Forense, p.15/16):

“Os ordenamentos tipificadores do discurso constitucional do fim do século passado, notadamente os editados a partir da década de 70, caracterizam-se por uma extrema abertura do ponto de vista material. Tal fenômeno retrata a assimilação pelos estatutos supremos da tormentosa complexidade das relações sociais neste fim de século. É que o convívio humano foi impactado pelo avanço tecnológico em todas as frentes do conhecimento, pela insurgência de novos valores e direitos que passaram a integrar o receituário axiológico da democracia de massas e, ainda, pelas transformações do processo político permeável às condicionantes de uma nova ordem internacional que, longe de estabilizar o convívio das nações e melhorar a qualidade de vida dos povos do planeta, apresenta novos desafios e angústias para a humanidade. (…) A bem dizer, no que toca aos direitos fundamentais do homem, impende reconhecer que o princípio da dignidade humana tornou-se o epicentro do extenso catálogo de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, que as constituições e os instrumentos internacionais em vigor em pleno terceiro milênio ofertam solenemente aos indivíduos e às coletividades. O postulado da dignidade da pessoa humana universalizou-se como um pólo de atração para cada vez mais novos e novíssimos direitos refletores do modismo constitucional-democrático. Com isso, abriu-se o receituário dos direitos sublimados na Constituição, que se multiplicam na razão direta dos conflitos insurgentes no meio social e das exigências insaciáveis de positivação jurídica, na esteira do humanismo ultrapluralista, solidarista e internacionalizado destes tempos.”

Vale lembrar que o art. 5º da CF, em seu § 2º, dispõe expressamente que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifei). Quanto a esse dispositivo, manifesta-se o professor SÍLVIO DOBROWOLSKI, Desembargador Federal aposentado do TRF-4ª Região, em artigo intitulado “Direitos fundamentais: a cláusula de expansão do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição de 1988” (in: “Revista do Tribunal Regional Federal 4ª Região, Porto Alegre, a. 17, n. 61, p. 15-96, 2006):

“É possível adiantar que o mandamento sob análise tem a importante finalidade de servir para vivificar o sistema constitucional de direitos fundamentais, tornando-o efetivamente aberto. A cláusula “evidentemente, quis ensejar o reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir” (JACQUES, P. 1958, 387).”

Assim, se não é possível extrair-se do teor do art. 226 da CF a possibilidade de se assegurar direitos entre companheiros (ou companheiras) do mesmo sexo, mas apenas entre casais heterossexuais, não se pode desconsiderar o teor de outros dispositivos constitucionais que asseguram que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, “caput”, grifei) e “homens e mulheres são iguais em direito e obrigações” (art. 5º, I) e consagram dentre os objetivos do Estado “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, III). Nesse contexto, vale transcrever a opinião de GUSTAVO TEPEDINO & ANDERSON SCHREIBER (“Minorias no direito civil brasileiro”, in “Revista Trimestral de Direito Civil”, ano 3, vol. 10, abr/jun 2002, p. 135-155):

“O texto constitucional reprime discriminação fundada na origem, na raça, no sexo ou na religião, e “qualquer outra forma de discriminação” (art. 3º, IV). Da natureza não taxativa do dispositivo resta inequívoca a proibição à discriminação com base na orientação sexual de cada indivíduo, já recomendada pelo princípio da solidariedade social que se opõe, por definição, a toda forma de intolerância e preconceito.”

Logo, a solução do presente caso não se limita à mera aplicação ou interpretação do art. 226 da CF em si. É certo que esse dispositivo, de eficácia contida, criou já para as uniões estáveis entre homens e mulheres, um dever do legislador de concretizar tais direitos. Por outro lado, deve ficar claro é que tal norma constitucional não impede que, a par disso, o legislador infraconstitucional ou o próprio Poder Judiciário reconheçam que das uniões homoafetivas também possam resultar direitos. Volto a transcrever, sobre o tema, CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO (op. cit., p. 419/420):

“No campo da igualdade entre os sexos não se pode ignorar a momentosa questão acerca da união entre homossexuais. Trata-se de fato humano que não pode mais se esconder sob o manto do preconceito, da intolerância e, sobretudo, da discriminação jurídica. (…)

No Brasil, os opositores ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo argumentam, basicamente, que a Constituição Federal desautoriza essa modalidade de entidade familiar, tendo em vista o disposto no artigo 226, § 3º, ao preceituar: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. Desse modo, a menção à diversidade de gênero para a formação da união estável seria impediente do reconhecimento constitucional das uniões homossexuais. Contudo, acreditamos que essa questão, por relacionar-se diretamente com o direito constitucional à intimidade e por sua intensa dramaticidade social, não pode ser negligenciada pelo legislador pátrio, tampouco receber soluções simplistas e arcaicas, com base na interpretação puramente literal da letra da disposição constitucional, esta enfocada de forma isolada e dissociada do conjunto de normas e valores implantados na Constituição. Não se pode desconsiderar as conseqüências nefastas que podem resultar dessa exclusão jurídica para milhares de pessoas que exercem a opção no sentido da homossexualidade e da convivência com outra pessoa do mesmo sexo em estado de união estável, fazendo-o no legítimo exercício da liberdade garantida pela Constituição. Vale transcrever, bem a propósito, a escorreita advertência da Desembargadora do Rio Grande do Sul MARIA BERENICE DIAS, respeitado doutrinadora na área do Direito de Família: “Todos os temas ligados à sexualidade são sempre cercados de mitos e tabus… Essa visão conservadora e preconceituosa acaba inibindo o legislador de aprovar leis que possam ser consideradas fora dos padrões aceitos pela sociedade. A falta de uma regulamentação para a união civil entre homossexuais comprova esse preconceito. É como se as pessoas que assim vivem não pudessem ter direitos civis… Mas o que considero mais cruel é negar aos homossexuais o direito de constituir uma família, o que é outra forma de preconceito. Não podemos continuar excluindo milhares de pessoas da possibilidade de viver conforme sua orientação sexual, como parceiros do mesmo sexo, pois está cientificamente comprovado que não se trata de um desvio, nem de um vício, nem de um crime e não pode o Estado se arrogar o direito de definir o tipo de relações afetivas que as pessoas devem ter”. Assim, a nosso sentir, a matéria reclama grandeza exegética, que prestigie a integração e reconstrução humanitária de tal dispositivo em face de princípios e direitos fundamentais sublimados na Lei Maior, notadamente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a igualdade (art. 5º), a liberdade genérica (art. 5º, III), a intimidade (art. 5º, X), além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Sob essa ótica sistêmica e integrativa do conjunto de normas e princípios supralegais, somos inclinados a pensar que o estatuto supremo não impôs uma visão segregacionista em termos de orientação sexual, donde ser perfeitamente defensável a tese de que as uniões homossexuais acham-se protegidas pela cláusula constitucional tutelar da entidade familiar. A imprevisão do constituinte nesse campo das relações humanas não deve ser considerada uma vedação tout court à proteção jurídica de tais uniões de fato, especialmente no campo do direito de família, sucessório e previdenciário. (…) Vale salientar, sobremais, que o Supremo Tribunal Federal, mercê da hermenêutica construtivista e ampliativa do arco de relações humanas protegidas pela ordem jurídica, já tem dado mostras, em variados contextos, da necessidade de evolução jurisprudencial em face de preceitos jurídicos corroídos de obsolescência e pela dinâmica social. Exemplo notório acha-se consubstanciado no enunciado da súmula 380 de nossa Corte Suprema, formulada ainda sob a vigência da proibição constitucional quanto ao divórcio do vínculo matrimonial e do austero Código Civil de 1916, a reconhecer a existência de sociedade de fato entre os concubinos para fins de partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.” (os trechos sublinhados encontram-se em itálico no original).

O fato é que o Direito caminha de braços dados com as evoluções sociais. Isso é visível, de certo modo, até no próprio conceito de “família” que se tem hoje e que difere profundamente do conceito tradicional de 30 ou 50 anos atrás, tendo o direito pátrio reconhecido e expressamente tutelado, por exemplo, a família monoparental, no art. 226, § 4º da Constituição.

Com base nesses pressupostos e aprofundando uma evolução que já vinha se observando nos casos de partilha de bens e de sucessão entre companheiros homossexuais, diversos doutrinadores têm defendido ser necessário dar à questão um tratamento mais condizente com o direito de família do que a solução que se vinha adotando de considerar-se tal união como simples sociedade de fato. Com isto quer-se dizer que deve ser observado mais o aspecto humano do que o patrimonial de molde a reconhecer, em conseqüência, uma série de direitos advindos da convivência. A esse respeito, manifesta-se MARIA BERENICE DIAS, Desembargadora do TJ/RS e respeitada doutrinadora na área do Direito de Família (“União homossexual: aspectos sociais e jurídicos”, in: “A família na travessia do milênio”, Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, ed. Del Rey, 2000, p. 161-170):

“O Direito passou a valorizar a afetividade humana, abrandando preconceitos e formalidades. As relações familiares impregnam-se de autenticidade, sinceridade e amor, deixando de lado a hipocrisia da legalidade estrita.

Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.”

Com base nesses fundamentos, prossegue a autora:

“Não se pode afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano no que diz respeito a sua condição de vida. A orientação sexual adotada na esfera da privacidade não admite restrições. Presentes os requisitos legais – vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas –, não se pode deixar de conceder-lhe os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.

A matéria foi analisada também pelo ilustre Juiz Federal GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA, em sua obra “O companheirismo: uma espécie de família” (ed. RT, 2ª ed., p. 540-560), desenvolvendo autor linha de interpretação diversa da até aqui adotada, no sentido de que ainda não é possível, no atual estágio do direito positivo brasileiro, reconhecer-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Todavia, ressalta que “as repercussões patrimoniais, nas uniões homossexuais, surgem como reflexo direto da comunhão de vida e sentimentos mantida entre os parceiros durante certo período, não sendo razoável que um deles fique ao desamparo pela circunstância da dissolução da relação mantida entre eles”.

Já ROSANA BARBOSA CIPRIANO SIMÃO, promotora no Estado do Rio de Janeiro, inicia seu artigo intitulado “Direitos humanos e orientação sexual: a efetividade do princípio da dignidade” (in: Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 19, jan./jun. 2004, p. 259-280) com uma citação de ALBERT EINSTEIN, segundo o qual, “época triste é a nossa em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”. A autora sustenta que “o estado sexual é atributo intrínseco do ser humano, faceta da personalidade, projeção do ego”, o que se insere no contexto dos direitos humanos, merecendo, assim, a tutela do ordenamento jurídico “com vistas à proteção da dignidade da pessoa humana”. Essa autora defende que “através de interpretação harmônica de seus preceitos, verifica-se que a CR do Brasil, em seu § 3º do art. 226 disse menos do que deveria, comportando, ipso facto, interpretação extensiva para alcançar a proteção de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Somente desta forma consegue-se dar efetividade ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”. Assevera, ainda, a autora que a lacuna da lei não pode servir de justificativa para se negar tutela aos concretos que chegam ao Judiciário, demandando pela aplicação da justiça.

Em obra intitulada “Parceiras homossexuais: aspectos jurídicos”, resultado de dissertação de mestrado em “Direito das Relações Sociais” defendida na PUC/SP, DÉBORA VANESSA CAÚS BRANDÃO, faz uma análise acerca da legislação comparada sobre o tema, relatando que diversos países como Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, França, Islândia e Hungria já reconhecem, em maior ou menor extensão, as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Além desses países, também a Espanha, mais recentemente, e alguns estados dos Estados Unidos, como Massachussets, Vermont, Connecticut e Havaí, as províncias de Buenos Aires e Rio Negro, na Argentina, e Cidade do México e Coahuila, no México, têm legislação conferindo direitos aos parceiros do mesmo sexo. A mesma autora faz menção, ainda, aos avanços do direito previdenciário brasileiro, ressaltando que o INSS já reconhece, através da Instrução Normativa nº 20, de 08/05/2000, os benefícios de pensão por morte e auxílio-reclusão requeridos por parceiro ou parceira homossexual.

A respeito do reconhecimento de direitos previdenciários pelo Judiciário, também dá notícia SÍLVIO DOBROWOLSKI (op. cit., p. 79), justificando tal posição nos seguintes termos:

Em um Estado neutro entre as concepções de bem dos seus cidadãos, com opção pluralista expressa no texto constitucional, é descabida a discriminação dos seres humanos em função de sua escolha sexual. O contexto social da atualidade, por outra parte, exibe pessoas do mesmo sexo convivendo em uniões semelhantes àquelas formadas por heterossexuais. Não se encontram, pois, motivos para negar aos casais homossexuais os direitos sociais previdenciários atribuídos aos demais grupos familiares. (…)”

Na própria decisão do eminente Ministro Celso de Mello, transcrita no início deste voto, há menção à lição de LUÍS EDSON FACCHIN, segundo o qual é necessário se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas” (“Direito de Família –Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro”, p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar).

Seguindo esta linha de entendimento, já há manifestações jurisprudenciais, até mesmo do eg. STF, ainda que em sede de Suspensão de Segurança, na qual o então Presidente daquela Suprema Corte, Ministro Marco Aurélio assim se manifestou:

“DECISÃO AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TUTELA IMEDIATA – INSS – CONDIÇÃO DE DEPENDENTE – COMPANHEIRO OU COMPANHEIRA HOMOSSEXUAL – EFICÁCIA ERGA OMNES – EXCEPCIONALIDADE NÃO VERIFICADA – SUSPENSÃO INDEFERIDA. 1. O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, na peça de folha 2 a 14, requer a suspensão dos efeitos da liminar deferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, ajuizada pelo Ministério Público Federal. O requerente alega que, por meio do ato judicial, a que se atribuiu efeito nacional, restou-lhe imposto o reconhecimento, para fins previdenciários, de pessoas do mesmo sexo como companheiros preferenciais. (…)Não há como concluir que restou configurada lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, fazendo-o à margem do que decidido na origem, ao largo das balizas do ato processual implementado à luz da garantia constitucional de livre acesso ao Judiciário. Na prática de todo e qualquer ato judicante, em relação ao qual é exigida fundamentação, considera-se certo quadro e a regência que lhe é própria, sob pena de grassar o subjetivismo, de predominar não o arcabouço normativo que norteia a atuação, mas a simples repercussão do que decidido. Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do artigo 3o da Carta Federal). Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado. O tema foi bem explorado na sentença (folha 351 à 423), ressaltando o Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação isolada em relação ao artigo 226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Considerou-se, mais, a impossibilidade de, à luz do artigo 5º da Lei Máxima, distinguir-se ante a opção sexual. Levou-se em conta o fato de o sistema da Previdência Social ser contributivo, prevendo a Constituição o direito à pensão por morte do segurado, homem ou mulher, não só ao cônjuge, como também ao companheiro, sem distinção quanto ao sexo, e dependentes – inciso V do artigo 201. Ora, diante desse quadro, não surge excepcionalidade maior a direcionar à queima de etapas. A sentença, na delicada análise efetuada, dispôs sobre a obrigação de o Instituto, dado o regime geral de previdência social, ter o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial. Tudo recomenda que se aguarde a tramitação do processo, atendendo-se às fases recursais próprias, com o exame aprofundado da matéria. Sob o ângulo da tutela, em si, da eficácia imediata da sentença, sopesaram-se valores, priorizando-se a própria subsistência do beneficiário do direito reconhecido. É certo que restou salientada a eficácia da sentença em todo o território nacional. Todavia este é um tema que deve ser apreciado mediante os recursos próprios, até mesmo em face da circunstância de a Justiça Federal atuar a partir do envolvimento, na hipótese, da União. Assim, não parece extravagante a óptica da inaplicabilidade da restrição criada inicialmente pela Medida Provisória nº 1.570/97 e, posteriormente, pela Lei nº 9.497/97 à eficácia erga omnes, mormente tendo em conta a possibilidade de enquadrar-se a espécie no Código de Defesa do Consumidor. 3. Indefiro a suspensão pretendida. 4. Publique-se. Brasília, 10 de fevereiro de 2003. Ministro MARCO AURÉLIO Presidente” (STF, Pet. nº 1984/RS, DJU 20/02/2003).

No eg. STJ, a questão já mereceu apreciação, resultando o seguinte precedente:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO.  MINISTÉRIO PÚBLICO. PARTE LEGÍTIMA.

1 – A teor do disposto no art. 127 da Constituição Federal, “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” In casu, ocorre reivindicação de pessoa, em prol de tratamento igualitário quanto a direitos fundamentais, o que  induz à legitimidade do Ministério Público, para intervir no processo, como o fez.

2 – No tocante à violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil, uma vez admitida a intervenção ministerial, quadra assinalar que o acórdão embargado não possui vício algum a ser sanado por meio de embargos de declaração; os embargos interpostos, em verdade, sutilmente se aprestam a rediscutir questões apreciadas no v. acórdão; não cabendo, todavia, redecidir, nessa trilha, quando é da índole do recurso apenas reexprimir, no dizer peculiar de PONTES DE MIRANDA, que a jurisprudência consagra, arredando, sistematicamente, embargos declaratórios, com feição, mesmo dissimulada, de infringentes.

3 – A pensão por morte é : “o benefício previdenciário devido ao conjunto dos dependentes do segurado falecido – a chamada família previdenciária – no exercício de sua atividade ou não (neste caso, desde que mantida a qualidade de segurado), ou, ainda, quando ele já se encontrava em percepção de aposentadoria. O benefício é uma prestação previdenciária continuada, de caráter substitutivo, destinado a suprir, ou pelo menos,  a minimizar a falta daqueles que proviam as necessidades econômicas dos dependentes.” (Rocha, Daniel Machado da, Comentários à lei de benefícios da previdência social/Daniel Machado da Rocha, José Paulo Baltazar Júnior. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora: Esmafe, 2004. p.251).

4 – Em que pesem as alegações do recorrente quanto à violação do art. 226, §3º, da Constituição Federal, convém mencionar que a ofensa a  artigo da Constituição Federal não pode ser analisada por este Sodalício, na medida em que tal mister é atribuição exclusiva do Pretório Excelso. Somente por amor ao debate, porém, de tal preceito não  depende, obrigatoriamente,  o desate da lide, eis que não diz respeito ao âmbito previdenciário, inserindo-se no capítulo ‘Da Família’. Face a essa visualização, a aplicação do direito à espécie se fará à luz de diversos preceitos constitucionais, não apenas do art. 226, §3º da Constituição Federal, levando a que, em seguida, se possa aplicar o direito ao caso em análise.

5 –  Diante do § 3º do art. 16 da Lei n. 8.213/91, verifica-se que o que o legislador pretendeu foi, em verdade, ali gizar o conceito de entidade familiar,  a partir do modelo da união estável, com vista ao direito previdenciário, sem exclusão, porém,  da relação homoafetiva.

6- Por ser a pensão por morte um benefício previdenciário, que visa suprir as necessidades básicas dos dependentes do segurado, no sentido de lhes assegurar a subsistência, há que interpretar os respectivos preceitos partindo da própria Carta Política de 1988 que, assim estabeleceu, em comando específico:

“Art. 201- Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a:

[…]

V – pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou

companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 2 º.”

7 – Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida  a partir de outras fontes do direito.

8 – Outrossim, o próprio INSS, tratando da matéria, regulou, através da Instrução Normativa n. 25 de 07/06/2000, os procedimentos com vista à concessão de benefício ao companheiro ou companheira homossexual,  para atender a determinação judicial expedida pela juíza Simone Barbasin Fortes, da Terceira Vara Previdenciária de Porto Alegre, ao deferir medida liminar na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, com eficácia erga omnes. Mais do que razoável, pois, estender-se tal orientação, para alcançar situações idênticas, merecedoras do mesmo tratamento.

9 – Recurso Especial não provido.” (STJ-6ª Turma, REsp nº 395.904/RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJU 06/02/2006).

Nos TRF’s a matéria tem recebido o seguinte tratamento:

“PREVIDENCIÁRIO. O DIREITO. PENSÃO POR MORTE AO COMPANHEIRO HOMOSSEXUAL.

1. A sociedade, hoje, não aceita mais a discriminação aos homossexuais.

2. O Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo para efeitos sucessórios. Logo, não há por que não se estender essa união para efeito previdenciário.

3. “O direito é, em verdade, um produto social de assimilação e desassimilação psíquica …” (Pontes de Miranda).

4. “O direito, por assim dizer, tem dupla vida: uma popular, outra técnica: como as palavras da língua vulgar têm um certo estágio antes de entrarem no dicionário da Academia, as regras de direito espontâneo devem fazer-se  aceitar pelo costume antes de terem acesso nos Códigos” (Jean Cruet).

5. O direito é fruto da sociedade, não a cria nem a domina, apenas a exprime e  modela.

6. O juiz não deve abafar a revolta dos fatos contra a lei.” (TRF-1ª Região, 2ª Turma, Ag. nº 200301000006970/MG, rel. p/ acórdão Desembargador Federal Carlos Eduardo Moreira Alves, DJU 29/04/2004).

“PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRO DO MESMO SEXO. RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE DE FATO. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.

A  preferência sexual do indivíduo não deve ser fator de discriminação, sob pena de malferir preceito vigente na Carta Política de 1988 que contempla, dentre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, o objetivo de promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (At. 3º, inciso III).

O reconhecimento legal das uniões homossexuais, constitui, na verdade, conseqüência natural de uma situação fática que não pode mais ser renegada pelo estado contemporâneo, estando, assim, a merecer a tutela jurídica.

Preenchidos os  requisitos exigidos pela Lei nº 8.213/91, vigente à data do óbito do segurado, restando comprovada a qualidade de segurado do companheiro falecido, a convivência púbica e duradoura e a dependência econômica, que, inclusive é presumida, consoante o artigo 16, §4º, da Lei nº 8.213/91, o autor faz jus ao benefício de pensão.

Recurso provido.” (TRF-2ª Região, 4ª Turma antiga, rel. Desembargador Federal Fernando Marques, DJU 24/06/2004).

“PREVIDENCIÁRIO – PENSÃO POR MORTE – UNIÃO ENTRE HOMOSSEXUAIS – INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 25 do INSS.

1 – É de se reconhecer a união  entre duas pessoas do mesmo sexo, que conviveram por tempo razoável  num mesmo domicílio, dividindo as despesas domésticas, com vistas a  conceder o benefício previdenciário de pensão por morte, nos termos  da IN 25, de 07/06/2000 do INSS.

2 – Remessa Necessária e Apelação improvidas.” (TRF-2ª Região, 1ª Turma antiga, AC nº 200102010438518/RJ, rel. Desembargador Federal Abel Gomes, DJU 02/12/2003).

“ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. PENSÃO POR MORTE DE SERVIDOR PÚBLICO. REGIME DE UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DO DIREITO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. HABILITAÇÃO DA EX-CÔNJUGE. BENEFICIÁRIA DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. RATEIO EM PARTES IGUAIS. DIES A QUO DO BENEFÍCIO. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS DE MORA.

A falta de oportunidade para apresentar memoriais não tem o condão de prejudicar o processo, de forma que, para ser decretada a nulidade da sentença, é imprescindível que a parte demonstre o prejuízo decorrente da inobservância da norma processual, ônus do qual não se desincumbiu.

A impossibilidade jurídica do pedido revela-se como uma forma de limitação à regra geral, nas hipóteses em que a demanda se mostra incompatível com o ordenamento jurídico. Não é o caso dos autos, já que a tutela jurisdicional não encontra proibição no ordenamento.

A interpretação que vêm sendo consolidada pelos nossos Tribunais defende a ótica de que não se deve ignorar os princípios norteadores da Lei Maior, que consagram a igualdade em seu artigos 3.º, IV e 5.º em detrimento da discriminação preconceituosa.

Independentemente das teses enunciadas pelos diversos pretórios, é uníssono o repúdio da jurisprudência pátria à negativa aos companheiros homossexuais dos direitos que são ordinariamente concedidos aos parceiros de sexos diversos.

O companheiro homossexual concorre igualmente com os demais dependentes referidos no art. 16, inciso I, da Lei 8.213/91, assim como o cônjuge divorciado, separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos.

A jurisprudência do e. STJ já firmou o posicionamento de que, na hipótese versada nos autos, a pensão vitalícia deve ser repartida em partes iguais entre a ex-esposa do servidor falecido e a companheira, que com ele vivia em união estável, por ocasião do seu falecimento.

A União deve arcar com as parcelas vencidas da pensão desde o requerimento de habilitação do companheiro na via administrativa ou, na ausência desta, a partir do ajuizamento da ação.

Os valores a serem pagos deverão ser corrigidos monetariamente desde a data em que se tornaram devidos. Definida a utilização do INPC, e, caso seja extinto esse indexador, pelo que vier a substituí-lo.

Sendo a presente ação ajuizada após o início da vigência da MP 2.180-35/01, devem incidir juros legais de mora à taxa de 12% ao ano, por força do art. 406 do novo Código Civil, c/c art. 161, §1.º, do CTN, desde a data da citação inicial (art. 405, do Novo Código Civil). Precedentes da Turma.

Prequestionamento delineado pelo exame das disposições legais pertinentes ao deslinde da causa. Precedentes do STJ e do STF.” (TRF-4ª Região, 3ª Turma, AC nº 200471070067476/RS, rel. Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, DJU 31/01/2007).

“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE PENSÃO POR MORTE AO COMPANHEIRO HOMOSSEXUAL.

1. É uníssono o repúdio da jurisprudência pátria à negativa dos companheiros homossexuais dos direitos que são ordinariamente concedidos aos parceiros de sexos diversos.

2. Em que pese a negativa do pedido administrativo sob o argumento de que a sociedade de fato declarada na decisão judicial não seria suficiente para atender ao disposto no item "c" do inciso I do arts. 217 da Lei 8.112/90, tenho que a sociedade de fato estabelecida entre o autor e o servidor falecido restou suficientemente demonstrada nos autos, com sentença declaratória de reconhecimento transitada em julgado. Negar a existência da mesma consiste em violar os princípios basilares e consagrados da dignidade humana e da igualdade.

3. No que concerne ao fato de ausência de designação do autor pelo de cujus como seu beneficiário, nos termos do art. 217, da Lei n.º 8.112/90, a jurisprudência do Eg. STJ e dos Tribunais Federais é uníssona ao entender que não configura óbice ao reconhecimento da união estável a ausência de prévia designação expressa do companheiro para a concessão do benefício pleiteado.

4. Esta Turma já decidiu que é devida a pensão desde a data do requerimento administrativo ou, na ausência deste, do ajuizamento da ação (EDAC n.º 2000.70.02.003041-3; AC n.º 2004.72.00.001394-8; APELAÇÃO CÍVEL Nº 2004.72.00.007665-0/SC; APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.71.99.000922-7/RS) In casu, o pedido administrativo ocorreu em 20.5.2003. Dessa forma, provida em parte a remessa oficial, para fixar como termo a quo para o pensionamento, a data do pedido administrativo, conforme entendimento da Turma.

5. Os valores atrasados deverão ser corrigidos monetariamente desde a data em que se tornaram devidos, utilizando-se o INPC.

6. Segundo o entendimento da Turma, devem incidir juros legais de mora à taxa de 12% ao ano, por força do art. 406 do novo Código Civil, c/c art. 161, §1º, do CTN. No entanto, mantenho o percentual de 6% fixado na r. sentença, diante da ausência de recurso do autor. Os juros deverão ser contados a partir da citação, em conformidade ao disposto no art. 405 do novo Código Civil.

7. Improvimento da apelação da União Federal. Parcial provimento da remessa oficial, tão-somente para fixar como termo inicial para o pensionamento a data do pedido administrativo.” (TRF-4ª Região, 3ª Turma, AC nº 200371000524432/RS, rel. Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJU 22/11/2006).

“ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. PENSÃO POR MORTE. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE DE FATO. APLICAÇÃO DO PREVISTO NO ART. 217, I, "C" DA LEI 8.112/90 POR ANALOGIA À UNIÃO ESTÁVEL. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. JUROS MORATÓRIOS DE 1% AO MÊS. VERBA ALIMENTAR.

– A sociedade de fato estabelecida entre homossexuais merece tratamento isonômico ao dispensado às uniões heterossexuais em respeito aos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e o da promoção do bem de todos sem preconceito ou discriminação.

– O reconhecimento da sociedade de fato permite a aplicação do art. 217, I, "c", como pedido na inicial destes autos, embora não caracterizada a união estável, sob pena de discriminação sexual, interpretando-o de forma analógica e sistemática.

Fixação dos juros moratórios à razão de 1% ao mês, pois a jurisprudência dos Tribunais pátrios é massiva em relação à incidência dos juros fixados na taxa prevista por se tratar de dívida de natureza alimentar. Precedentes.” (TRF-4ª Região, 4ª Turma, AC nº 200104010273728/RS, rel. Desembargador Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior, DJU 20/11/2002).

“ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. PENSÃO POR MORTE. SERVIDOR PÚBLICO. COMPANHEIRO HOMOSSEXUAL. LEI 8.112/90. INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS-DC Nº 25.

1- A sociedade de fato existente entre homossexuais merece tratamento isonômico ao dispensado às uniões heterossexuais em respeito aos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da promoção do bem de todos sem preconceito ou discriminação.

2- A inexistência de regra que contemple a possibilidade da percepção do benefício da pensão por morte, por companheiro(a) homossexual de servidor público falecido, não pode ser considerada como obstáculo para o reconhecimento da existência de um fato notório, para o qual a proteção jurídica é reclamada.

3- Mesmo que se pudesse entender que a Lei nº 8.112/90 não contemplaria a  situação do Autor, se o Sistema Geral de Previdência do País cogita de hipótese similar – IN nº 25-INSS, que estabelece os procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual -, em respeito ao princípio isonômico, deve-se aplicar aos servidores públicos federais, por analogia, as disposições desse ato normativo.

4- A exigência de designação expressa pelo servidor visa tão-somente facilitar a comprovação, junto à administração do órgão competente, da vontade do falecido servidor. Sua ausência não importa em impedimento à concessão do benefício, se confirmada essa vontade por outros meios idôneos de prova.

5- Comprovada a união estável do Autor com o segurado falecido, bem como sua dependência econômica em relação ao mesmo, e tendo-se por superada a questão relativa à ausência de designação, cumpre que se reconheça em favor dele o direito à obtenção da pensão requerida. Precedentes. Apelação e Remessa Oficial improvidas.” (TRF-5ª Região, 3ª Turma, AC nº 200383000201948/PE, Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, DJU 06/12/2006).

Diante destas considerações e destes precedentes e, ainda, em razão de não ter a UNIÃO se insurgido em relação aos aspectos fáticos em que se baseou a Turma, ao entender configuradas a comprovação da vida em comum e da dependência econômica, não vejo razões para modificar o entendimento assentado no acórdão embargado.

No tocante à não-inclusão dos expurgos inflacionários no cálculo da correção monetária, entendo que a matéria sequer seria questionável em sede de embargos infringentes, por não ter havido dissenso quanto a isto. De qualquer modo, a jurisprudência pacífica do STJ é no sentido de que a correção monetária é mera recomposição da moeda, integrando o pedido principal, em face do que não se exige pedido expresso de incidência dos índices expurgados da inflação na petição inicial. Considero, assim, cabível a aplicação dos referidos índices, nos termos da jurisprudência dominante do STJ, bem como das resoluções do Conselho de Justiça sobre atualização de cálculos, ficando conhecidos para efeitos de prequestionamento os dispositivos invocados pela União sobre o tema (Decretos-lei nºs 2.284/86, 2.290/86, 2.311/86 e 2.335/87 e Leis nºs 7.730/89, 7.738/89, 8.024/90, 8.177/91 e 8.660/93 e arts. 2º e 22-VI da CF), com relação aos quais não há violação.

Ante o exposto, nego provimento aos embargos infringentes.

É como voto.

Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2007.

ANTÔNIO CRUZ NETTO

Relator

CN/stv

EMENTA

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PENSÃO ESTATUTÁRIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRAS HOMOSSEXUAIS. CF, ARTS. 1º, 3º, INCISOS I E III, 5º, “CAPUT”, INCISO I E § 2º, 226, §§ 3º E 4º. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IGUALDADE, NÃO-DISCRIMINAÇÃO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

I – A inexistência de previsão legal expressa não é causa para que o Judiciário se exima de reconhecer os direitos decorrentes da convivência entre parceiros do mesmo sexo.

II – Segundo ensina J. J. Gomes Canotilho, a interpretação, como instrumento de extração do real sentido do texto constitucional, deve ser sistemática, não podendo se fixar a apenas um aspecto, mas considerar a busca da efetividade dos comandos constitucionais através de diversos métodos que devem integrar-se.

III – A solução para a questão não passa apenas pela definição de haver ou não disposição legal, a respeito, mas acerca de qual é a interpretação possível de se extrair do contexto legal e constitucional, visto que, embora não seja dado ao juiz criar direito positivo, cabe a ele buscar a máxima eficácia do texto constitucional e das leis que tenham a finalidade de implementar direitos e garantias previamente assegurados na Constituição, bem como dar concretude a princípios que inspiram o sistema, tais como cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1º, da CF).

IV – O art. 5º da CF, em seu § 2º, dispõe expressamente que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

V – Se não é possível extrair-se do teor do art. 226 da CF a possibilidade de se assegurar direitos entre companheiros (ou companheiras) do mesmo sexo, mas apenas entre casais heterossexuais, não se pode desconsiderar o teor de outros dispositivos constitucionais que asseguram que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, “caput”, grifei) e “homens e mulheres são iguais em direito e obrigações” (art. 5º, I) e consagram dentre os objetivos do Estado “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, III). Nesse sentido, preceituam importantes juristas que têm se debruçado sobre o estudo de questões das minorias, tais como: Gustavo Tepedino & Anderson Schreiber, Carlos Roberto de Siqueira Castro, Débora Vanessa Caús Brandão e Rosana Barbosa Cipriano Simão.

VI – O próprio STF, seguindo a lição de Maria Berenice Dias e Edson Luís Facchin, já se manifestou, em pelo menos duas oportunidades, pela necessidade de “se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas”.

VII – Reconhecidos no acórdão embargado os pressupostos fáticos da união estável entre companheiros do mesmo sexo, impõe-se o reconhecimento dos direitos daí decorrentes, dentre os quais a pensão estatutária. Precedentes do STJ e TRF’s da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Regiões.

VIII – A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que a correção monetária é mero fator de atualização, devendo ser concedidos os índices expurgados da inflação, ainda que não haja pedido expresso na inicial.

IX – Embargos infringentes improvidos.

ACÓRDÃO

Decide a Terceira Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, por unanimidade, negar provimento aos presentes embargos infringentes, na forma do voto do Relator.

Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2007 (data do julgamento).

ANTÔNIO CRUZ NETTO

Relator


FONTE:  TRF-RJ, 12 de setembro de 2007.

Considerações sobre a nova execução de sentença ou a medievalização da execução

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* Gisele Leite 

O Código de Processo Civil Brasileiro foi elaborado a partir de teorias sustentadas pelo processualista italiano Enrico Túlio Liebman que até hoje exerce relevante influência sobre todo o sistema processual pátrio.

Assim não é exagero afirmar que o CPC Brasileiro é um monumento ao Liebman. Entre essas teorias está a que sustenta a completa autonomia do processo de execução em relação ao processo de conhecimento.

A doutrina européia considera como autônomas tanto a cognição como a execução. E, mesmo no direito romano, a actio iudicati era ação que não diferia de todas as demais ações senão por ter como pressuposto do iudicatum anteriormente proferido.

Tal distinção se obscureceu no direito medieval, em que a execução era feita em regra per officium iudicis, quase em continuação do processo em que a sentença foi proferida. Mas veio a prevalecer novamente nos tempos modernos, embora com sentido diferente.

A existência de sentenças que não comportassem execução (sentenças declaratórias e constitutivas) tornou evidente que o processo de cognição constitui já por si forma perfeita e completa de tutela jurídica, que se manifesta na coisa julgada.

A sentença condenatória também dar lugar à coisa julgada, como resultado concreto e imutável do processo de cognição. A execução embora possível nem sempre é necessária.

A ação condenatória, da mesma forma que as outras ações, e finda quando haver atingido o seu fim no momento em que passa em julgado a sentença.

O aparecimento de títulos executórios extrajudiciais, que dão azo à execução nem sempre depende de anterior processo de cognição. A execução possui seus próprios pressupostos processuais, partes e objeto: o juiz competente pode ser pessoa diferente da que processou e julgou a causa; as partes que podem ser distintas daquelas do processo de cognição.

O objeto da execução visa realização da sanção tal como indicada no título executório, e não a decisão de conflito de pedidos contraditórios.

É evidente a autonomia do processo de execução ante a condenação por perdas e danos for proferida por juiz criminal posto que a execução cível já não se processa com o processo condenatório.

José Frederico Marques lecionou que a execução forçada, além de não se confundir com o processo de conhecimento, porque é sobretudo instrumento de coação, não constitui, com aquele, uma única relação processual. Ao reverso, são distintos os dois processos, formando, cada qual, relação jurídica autônoma.

Moacyr Amaral dos Santos alude que a ação condenatória corresponde a uma relação processual, o processo de conhecimento em que se proferiu a sentença condenatória; a ação executória, destinada a assegurar a eficácia prática dessa sentença, corresponde outra relação processual, o processo de execução, autônomo e distinto daquele.

É pacífico em doutrina como se pode ver através da obra de Cândido Rangel Dinamarco que bem ensina que o processo executivo é processo autônomo, distinto e diferente do processo de conhecimento, ainda quando a execução tenha por base título judicial produzido neste.

Não apenas os juristas da Escola Processual de São Paulo capitaneados por Liebman sustentam a autonomia do processo de execução em relação ao processo de conhecimento. Apesar de às vezes a execução se originar de título oriundo do processo de cognição, mas sem ser deste uma mera continuação.

Também em doutrina alienígena defende-se fervorosamente a autonomia da execução em relação ao processo de conhecimento e, contou com apoio de juristas clássicos como Crisanto Mandrioli embora não seja unânime o entendimento, contando em sentido contrário o parecer de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo.

O processo de execução não é de geração espontânea, mas surge de título executivo judicial, fruto do processo de conhecimento, ou por títulos executivos extrajudiciais que implicam na substituição daquela, por isso foram incluídos por Carnelutti entre os equivalentes jurisdicionais.

Alexandre Freitas Câmara aponta com exatidão que é mais escorreito cogitar de fase processual de conhecimento e fase processual de execução (ou execução processual). Já com relação aos títulos executivos contratuais originam forma especial de processo, o executivo de índole documental, cambiária, derivado do processus executivus medieval que representa uma fase de conhecimento abreviada, mas não eliminada. Posto que deverá certificar-se de exeqüibilidade do título extrajudicial que lhe é apresentado.

A unidade do processo onde se sucedem as fases cognitiva e executiva. Afirmou Couture que declaração e execução não são, portanto, duas maneiras independentes de ser da jurisdição, que tenham entre si a relação de antecedente e conseqüente, ou vice-versa.

Na verdade, são dois instantes, unidos entre si por uma série de vínculos tão profundos que é impossível destruir a unidade do processo. Gabriel de Rezende Filho sustentou que sem a execução, a sentença condenatória não teria eficácia. Seria como sino sem badalo ou trovão sem a chuva (como diziam os praxistas).

A execução, portanto, é a fase lógica complementar da ação. Pela execução se aspira a mais completa tutela jurídica ou restauração do direito. A execução se revela como autêntico epílogo da ação condenatória, formando ambos momentos ou fases de uma só ação.

O nosso romanismo historicamente herdado por nosso sistema jurídico nos conduziu a uma dicotomia entre o processo de conhecimento e processo de execução sendo que de certa forma, desnecessária e perniciosa.

Humberto Theodoro Junior aponta como bom senso a não manutenção da atual dualidade entre conhecimento e execução. A obrigatoriedade de se submeter o credor a dois processos para eliminar um só conflito de interesses, é uma complicação desnecessária e superável, como aliás, ocorre no sistema jurídico anglo-saxônico.

Alexandre Freitas Câmara se manifesta em prol da teoria que enxerga a unidade entre conhecimento e execução, é o chamado processo sincrético.

Com a Lei 11.232/2005, o CPC muda complementamente de paradigma. Abandona-se o liebmaniano e se passa a um sistema em que a execução é mero prolongamento do processo de conhecimento. Com a referida lei, completa-se a reforma processual iniciada com a Lei 10.444/02.

Porém, o novo modelo não extingue e nem poderia o processo de execução autônomo que continua a ser figura autônoma em pelo menos dois casos: quando o título executivo é extrajudicial (que ocorre sem a prévia fase cognitiva) e quando o título executivo é judicial.

Já na execução de sentença arbitral a execução se revela como mero prolongamento da atividade cognitiva.

Não foi abolido do direito processual brasileiro o processo executivo. Transformou-se a execução da sentença em fase do mesmo processo onde o provimento jurisdicional foi proferido.

Deixa-se de cogitar no binômio processo de conhecimento – processo de execução e, se passa a reconhecer a existência de processo misto, sincrético onde se desenvolvem duas fases distintas (a cognitiva e a executiva).

A história da reforma do CPC é tão antiga quanto a história do próprio diploma legal. A rigor, a reforma do CPC começou na década de 1980 quando foi constituída comissão composta por Luís Antônio de Andrade, José Joaquim Calmon de Passos, Kazuo Watanabe, Joaquim Correia de Carvalho Junior e Sérgio Bermudes que elaborou anteprojeto da reforma do CPC que não foi levado adiante.

Na década de 90 surgiu nova comissão sob o comando da Escola Nacional de Magistratura e Instituto de Direito Processual. Essa segunda Comissão foi constituída por Sálvio de Figueiredo Teixeira, Ada Pellegrini Grinover, Athos Gusmão Carneiro, Celso Agrícola Barbi, Humberto Theodoro Junior, José Carlos Barbosa Moreira, José Eduardo Carreira Alvim, Kazuo Watanabe, Sérgio Sahione Fadel secretariado na época por Fátima Nancy Andrighi.

E deram início a uma série de minireformas do CPC. A intenção original era propor um grande anteprojeto de reforma integral do CPC, como o processo legislativo fosse excessivamente longo. Optou-se então, pela feitura de reformas setoriais.

A primeira fase da reforma do CPC houve a aprovação de dez leis (entre agosto de 1992 a dezembro de 1995) e alteraram profundamente o CPC.

Só a guisa de ilustração, listamos as modificações sofridas pelo CPC, a saber:

a) a Lei 8.455/1992 – alterou a prova pericial;

b) a Lei 8.710/1993 alterou a citação;

c) a Lei 8.898/1994 que alterou os recursos, criando o sistema de preparo simultâneo e trazendo para o bojo do CPC a regulamentação dos recursos para o STF e para STJ;

d) a Lei 8.950/1994 que alterou o procedimento da ação consignatória em pagamento e da ação de usucapião;

e) a Lei 8.952/1994 que alterou o processo de conhecimento introduzindo a tutela antecipada e tutela específica das obrigações de fazer e não-fazer (inibitória);

f) a Lei 9.245/1995 que substituiu o antigo procedimento sumaríssimo pelo processo sumário.

A segunda etapa da reforma do CPC, chamada de “reforma da reforma” inicialmente composta de três leis a salvar: a Lei 10.235/2001 (que alterou os recursos e reexame necessário). Revelando ser o direito processual o direito mais reformático de todos…

A Lei 10.358/2001 que alterou o processo de conhecimento; e a Lei 10.444/2002 que alterou dispositivos do processo de conhecimento e o processo de execução, tendo iniciado a ruptura do processo brasileiro com o módulo liebmaniano de execução de sentença.

É nessa segunda etapa da reforma do CPC que se insere a Lei 11.232/2005 e, posteriormente foram aprovadas as Leis 11.276 e 11.277, ambas editadas em 08/02/2006 com vacatio legis de 90 (noventa) dias e traz como maior inovação a “súmula impeditiva de recurso”. E, cria a possibilidade de indeferimento liminar da petição inicial com julgamento de improcedência.

Também foi aprovada a Lei 11.280/2006 e publicada em 17/02, igualmente com a vacatio legis de 90 (noventa) dias que foi segundo o entendimento de Alexandre Freitas Câmara a pior de todas as leis encarregadas da reforma do CPC.

Posteriormente surgiram as Leis 11.382/2006 e a Lei 11.417/2006 que regulamentou a súmula vinculante; a Lei 11.418/2006 que inseriu requisito específico de admissibilidade do recurso extraordinário, a repercussão geral da questão constitucional; a Lei 11.419/2006 que institui o processo eletrônico e a Lei 11.441/2007 que criou o inventário e a partilha, a separação consensual e divórcio consensual extrajudiciais.

A falsa premissa de se promover reformas setoriais por ser de maior rapidez a aprovação legislativa, ao revés de se elaborar um novo CPC se redundou em pernicioso. Até porque essa alternativa não excluía a outra.

Com as sucessivas reformas o CPC perdeu totalmente sua identidade e se tornou uma verdadeira “colcha de retalhos” ou uma massa amorfa sem coerência, e nem organicidade.

Defende Alexandre Freitas Câmara que é essencial para a evolução do processo civil brasileiro a elaboração de um novo do CPC.

E aponta como desastrosa a Lei 11.280/2006 que trouxe a inaceitável modificação da prescrição que agora pode ser conhecida de ofício de acordo com a nova redação do art. 219, §5º do CPC.Só mesmo tendo dotes mediúnicos que o juiz poderá perceber a prescrição mediante uma reles petição exordial.

Outro alvo da reforma do CPC foi o conceito de sentença que é, sem dúvida, o ato jurisdicional magno e sem acirrou grandes divergências doutrinárias. Para Chiovenda, “a sentença é provisão do juiz, que recebendo ou rejeitando a demanda do autor afirma a existência ou a inexistência de uma vontade concreta da lei que lhe garanta um bem ou interesse, respectivamente a inexistência de uma vontade de lei que garanta um bem ao réu”.

Para Satta apud Punzi, “a sentença é um provimento decisório seja sobre todo o mérito ou parte dele, seja sobre uma questão de competência ou outra prejudicial”.

Num ponto a doutrina brasileira é pacífica a sentença não é, necessariamente, um provimento sobre o mérito da causa, daí resultando a distinção entre as sentenças terminativas e definitivas (ou de mérito).

Nagib Slaibi Filho define sentença como “ato jurídico processual praticado pelo órgão estatal com o fim de produzir efeitos na relação processual”. Para Teresa Alvim Wambier a sentença é o ato do juiz que tem algum dos conteúdos previstos nos arts. 267 e 269 do CPC.

José Carlos Barbosa Moreira ao seu turno, conceitua a sentença como ato do juiz que “põe fim ao procedimento de primeiro grau, decidindo ou não o mérito da causa”.

Alexandre Freitas Câmara prefere definir a sentença como provimento judicial que põe termo ao ofício de julgar do magistrado, resolvendo ou não o objeto do processo. Conforme menciona o art. 463 do CPC que afirma que o juiz cumpre seu ofício de julgar com a sentença de mérito ou não.

Cumpre assinalar que a referida definição de sentença é anterior a Lei 11.232/2005, destacando-se que a sentença não é (nem era) capaz de pôr termo ao processo. O mero fato de ser possível a interposição de recurso prova que o processo sobrevive àquele provimento judicial.

Há alguns procedimentos que não têm (nem tinham) na sentença seu ato final, é o caso da ação de despejo, ação de depósito e das ações possessórias.

Dispensa-se a literalidade de interpretação sobre o art. 463 do C.C. que passa a ser aplicável a todas as sentenças e não só as de mérito. Quanto a acepção da expressão “ofício jurisdicional”, entendemos ser o ofício de julgar, pois o juiz poderá praticar atos jurisdicionais após a sentença ( como por exemplo, receber ou deixar de receber a apelação).

Mesmo após a prolação da sentença os atos jurisdicionais não eram jamais atos de julgamento da causa.

A sentença como o ato que poderia conter ou não a resolução do mérito. Destacando-se que resolução e, não julgamento. Pois nem todos os casos previstos no art. 269 do CPC (em seu texto original) apontam para julgamentos do mérito.

É o caso, por exemplo, quando o juiz homologa o ato praticado pelas partes (incisos II, III e V do art. 269 do CPC). Em todas as hipóteses do art. 269 do CPC o mérito da causa fica resolvido seja por um julgamento, seja por meio de autocomposição das partes onde o juiz homologa tal ato.

A Lei 11.232/2005 trouxe modificação no conceito de sentença. A nova redação dos arts. 267 e 269 do CPC troca a palavra “julgamento” por “resolução”. Além do art. 463 do mesmo diploma legal.

O legislador atual ao dar nova redação ao disposto no primeiro parágrafo do art. 162 do CPC parece ter acolhido o entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier, definindo a sentença com base em seu conteúdo (descrito nos arts. 267 e 269 do CPC).

O art. 267 com nova redação passou a referir-se aos casos que extingue o processo, sem resolução do mérito. Enquanto que o art. 269 do CPC passa simplesmente a expressar que nos casos enumerados “haverá” resolução de mérito.

O art. 463 do CPC alega que “publicada a sentença, o juiz poderá alterá-la nos casos ali previstos”.Conclui-se que sentença terminativa é aquela que não contém resolução de mérito. A sentença terminativa de fato não põe termo ao processo lembre-se da possibilidade de interposição da apelação.

O legislador quanto ao art. 269 do CPC deixou de referir-se à extinção do processo isto porque a execução dessa sentença ocorrerá no mesmo processo em que esta tenha sido proferida.

Muito embora o art. 329 do CPC continue a cogitar em extinção dos processos nos casos previstos anteriormente.

A transformação da execução como fase complementar do processo que produziu a sentença acarretou a modificação da definição legal de sentença definitiva. Não é só o conteúdo que deve servir para qualificação do provimento judicial, mas também sua eficácia processual.

A sentença definitiva é ato de resolução final do mérito da causa. Resoluções parciais ou provisórias de mérito devem ser consideradas como decisões interlocutórias.

É sentença o provimento que resolve o mérito da reconvenção e determina o prosseguimento do feito para exame da causa principal.

Repisando, a sentença definitiva é o ato final de apreciação do mérito da causa. A resolução final do mérito pode ser considerada sentença definitiva. A sentença também é capaz de encerrar uma fase ou módulo processual (seja este de conhecimento ou de execução).

Com a união das duas atividades jurisdicionais mais relevantes (cognição e execução) em um só processo que fez criar um novo modelo de processo que é chamado de misto ou sincrético.

Com precisão expõe o professor Marcelo Lima Guerra que ao invés de se referir às fases processuais prefere “módulos processuais” que compreende aqueles mecanismos processuais destinados à obtenção da declaração da existência do direito ou de sua atuação prática.

Então, originariamente o processo brasileiro só conhecia o processo de conhecimento e um processo de execução, e uma outra forma que é a justaposição dessas duas fases (cognitiva e executiva).

Assim no módulo processual de conhecimento contém processo de conhecimento ou uma fase de cognição em processo misto ou sincrético.

No módulo processual executivo contém o processo executivo ou fase executiva num processo misto ou sincrético. A sentença, conclui-se o ato final no sentido lógico de um módulo processual. O provimento final do módulo processual é sentença.

Há três categorias de sentença: as meramente declaratórias; as constitutivas e as condenatórias.

Porém, há uma mais nova categoria, a sentença mandamental, e, ainda a quinta categoria que os doutrinadores chamam de sentença executiva.

Ocorre uma dificuldade de conceituar a sentença condenatória. Sentença meramente declaratória é a que contém apenas, o acertamento da existência ou inexistência de uma relação jurídica ou da autenticidade ou falsidade de um documento.

Toda sentença de mérito contém um acertamento judicial, portanto, toda sentença de mérito é declaratória. Tais sentenças servem para resolver as chamadas “crises de certeza”, é a certificação oficial.

Assim é meramente declaratória, por exemplo, a sentença que julga procedente a ação investigatória de paternidade, na sentença de procedência da demanda em ação consignatória em pagamento.

Todas as sentenças de improcedência são meramente declaratórias.

As sentenças constitutivas possuem dois momentos lógicos: um declaratório e, outro constitutivo (que opera uma modificação jurídica, determina criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica).

São exemplos de sentenças constitutivas as que deferem a adoção, a de procedência da ação revisional de aluguel; a sentença que decreta o divórcio de um casal.

Tanto as sentenças meramente declaratórias e as constitutivas proporcionam a tutela jurisdicional plena. São sentenças auto-suficientes.

Há uma correlação necessária entre condenação e execução. Condenatória é a sentença se esta serve instrumentalmente a permitir a instauração da atividade executiva. Seria condenatória a sentença que determina ao réu pagamento em dinheiro, mas não seria de tal maneira, se determinasse que o réu (sendo um pintor famoso) a elaborar um quadro.

A sentença mandamental seria uma condenação, uma exortação ao cumprimento de uma ordem ou mandamento. São exemplos de sentenças tipicamente mandamentais, a que se dá na ação de interdito proibitório, a ação inibitória e a que concede o mandado de segurança.

A sentença condenatória só serviria de título para o processo executivo. Doutrinadores distinguem a sentença executiva da condenatória baseados nos critérios de direito material, e não processual.

A teoria mais tradicional defende a classificação tríplice das sentenças definitivas, incluem as mandamentais e as executivas no conceito de sentenças condenatórias.

A execução está fora da sentença condenatória, é exterior, não pode ser base de sua definição. A sentença condenatória é a que além de acerta a existência do dever jurídico, impõe ao réu o cumprimento de uma prestação de dar, fazer ou não fazer.

É sentença que possui dois momentos lógicos: o primeiro referente ao acertamento da existência da obrigação e, o segundo momento, propriamente condenatório em que impõe ao réu o cumprimento de um dever jurídico (de dar, fazer ou não fazer).

Essa sentença oferece tutela jurisdicional limitada e exige atos jurisdicionais posteriores para sua efetivação. Há dois tipos de condenatórias: as que podem ser executadas e as que só podem ser efetivadas através do uso de coerção. A primeira é a sentença condenatória executiva e a segunda é a sentença condenatória mandamental.

As sentenças executivas lato sensu não podem ser admitidas como subespécie das condenatórias. Isto porque a execução embutida no mesmo processo se dá por opção do legislador e, não em razão da natureza da sentença.(Lei 10.444/2002).

Isto porque a execução “embutida” no mesmo processo se dá por opção do legislador e, não em razão da natureza da sentença (Lei 10.444/2002).

Humberto Theodoro Junior já apontava a reação contemporânea contra o sistema de cumprimento das sentenças por meio de ação iudicati. O cumprimento da sentença que impõe obrigação de fazer ou não fazer.

Um dos pontos do direito processual que menos evoluiu foi a tutela relativa às obrigações de fazer ou não fazer, principalmente em razão de antigo dogma nemo praecise cogi potest ad factum ( o de que ninguém pode ser coagido a prestar um fato) que fazia se resolver em perdas e danos ante a inexecução por parte do devedor.

O credor poderia no máximo aspirar receber indenização o que afronta o princípio da efetividade do processo. A efetividade processual é sintetizada por Chiovenda “o processo deve dar, conforme seja possível na prática, a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo, a que tenha o direito de obter”.

Comecemos a depurar um erro de perspectiva, pois os civilistas alegam que o objeto da obrigação é a prestação. Na verdade a prestação não é o fim, e, sim o meio.

O objeto da obrigação não é o ato do devedor, mas o bem jurídico que através da prestação o devedor outorga o credor.

Carnelutti esclarece que, o objeto de relação jurídica é o bem, coisa ou o corpo humano. E esse bem sobre o qual incide o interesse de um dos sujeitos que integram a obrigação (conforme os casos, interesse protegido ou direito subjetivo).

A chamada ação do devedor mediante a qual se dá o bem que é o objeto da relação revela-se em ser o meio através do qual se dá o cumprimento da obrigação.

Polacco com mesmo tom alega que o não fazer do obrigado deve ser visto como objeto do direito real (que oponível erga omnes) e cujo cumprimento exige que o obrigado abstenha-se de turbar ou esbulhar o gozo do bem.

É a atitude do obrigado (seja positiva ou negativa) que é o conteúdo da obrigação e, portanto, da relação jurídica mas não seu objeto. Polacco distingue objeto mediato que seria precisamente o bem e o objeto imediato que é a ação pela qual o devedor faz com que o credor dele goze,

Com efeito, a falta de entrega espontânea do bem e o credor obtém sua entrega mediante o procedimento executivo, o que muda não é a coisa, mas o entregador que no primeiro caso era o próprio devedor, e no segundo é órgão executivo (Poder Judiciário).

Surge um novo modelo de tutela jurisdicional relativa às obrigações de fazer e de não-fazer e que acarreta o resultado prático do processo e mais efetivo.

A regra geral antiga a conversão em perdas e danos passou a ser excepcional ( art. 461, §2º. do CPC). Também quando houver título executivo extrajudicial se terá também tutela jurisdicional específica.

Nesse caso, o executado é citado para cumprir especificamente a prestação, e caso não o faça, o credor pode exigir que o bem devido lhe seja outorgado por terceiro à custa do devedor (art. 632 e 633 do CPC).

O que diferencia o processo de execução das obrigações de fazer e não fazer não é o resultado prático, mas o fato de que no caso de se buscar efetivar uma sentença o cumprimento desta deve se dar imediatamente, sine intervallo.

Afirma-se na doutrina italiana que a execução específica é das obrigações de entrega de coisa e das obrigações de fazer e não fazer através de atos praticados por um mais terceiros à custa do devedor, assim obtém-se um resultado equivalente que conseguiria se não ocorresse o inadimplemento.

A execução forçada em forma específica se diferencia da expropriação forçada porque o objeto da execução coincide com o objeto da obrigação (de entregar bem móvel, de desocupar bem imóvel, de executar obra ou destruí-la, por ser esta uma violação da obrigação original de não fazer).

Pelo art. 461 CPC o processo terá duas fases distintas: o módulo processual de conhecimento (1ª. Fase) que poderá seguir o procedimento comum ordinário ou sumário conforme o valor da causa. Onde se busca a sentença que conforme o valor da causa. Onde se busca a sentença que condene o réu a fazer ou não-fazer ou ainda desfazer.

Tal sentença condenatória passa a produzir efeitos, quando iniciar-se-á o segundo módulo processual, em que se dará o cumprimento da sentença.

Essa segunda fase não é processo executivo autônomo por essa razão não precisa haver citação e, sim a intimação do devedor.

O art. 475-I do CPC impõe a execução da obrigação de fazer ou não fazer que se faz segundo o art. 461 do CPC que dispensa o processo de execução autônomo. Assim, o módulo executivo da sentença se desenvolverá no mesmo processo onde se tramitou o módulo cognitivo como uma fase complementar.

È continuação do mesmo processo onde a sentença foi proferida. A efetivação da sentença condenatória de obrigação de fazer e não-fazer deve ser determinada de ofício uma vez que o processo civil se desenvolve por impulso oficial (art. 262 do CPC).

O mesmo sistema será adotado para o caso de ter concedido a tutela jurisdicional específica com caráter antecipado (art. 273 c/c art. 461 § 3º do CPC).

O despacho inicial para o cumprimento da sentença será o que manda intimar pessoalmente o demandado para cumprir a obrigação no prazo assinado no provimento jurisdicional (ou no prazo que o juiz fixar).

A intimação pessoal é absolutamente necessária para se computar o início do prazo para o cumprimento da sentença. É comum que a praxe forense considere que o mero trânsito em julgado da sentença ou a mera ciência de seu conteúdo já seja suficiente para dar início ao prazo para que o provimento judicial.

O art. 240 do CPC estabelece que os prazos correm da intimação. Assim, proferida a sentença, têm as partes de ser intimadas desta, a bem do princípio constitucional do contraditório.

Além de dar conhecimento do teor da decisão, abre-lhe a possibilidade de impugnar o provimento.Se ocorrer o cumprimento da sentença significará mera aceitação da sentença que é fato impeditivo do direito de recorrer (art. 503 do CPC).

A intimação deve ser pessoal apesar de que a regra constante do art. 236 do CPC considere as feitas pelo Diário Oficial. Na maioria das vezes a intimação deve sr dirigida ao advogado da parte e não a esta diretamente.

Aponta o CPC quais casos em que devem ocorrer intimação pessoal à parte ( ex:art.267,§1º CPC). Em todo caso em que o fim da intimação seja a prática de um ato que cabe à própria parte, pessoalmente praticar.

Desta forma visa o cumprimento da sentença a obtenção do próprio resultado que se teria se o devedor adimplisse sua obrigação ou ainda, um resultado prático equivalente.

Sugere Alexandre Freitas Câmara na hipótese que se a pessoa vende automóvel para outra, mas não transfere para seu nome, o registro de propriedade do veículo junto ao DETRAN. O vendedor vai judicialmente e propõe a demanda que condene o comprador a tomar essa providência.

Seria mais célere e prático se intimasse o comprador a cumprir a transferência do registro junto ao DETRAN sob pena de multa.

Na fase executiva destinada a dar cumprimento da sentença não poderá o réu se defender por meio de embargos do executado.

A defesa ocorrerá por meio de petição simples e avulsa e versará de defesas processuais ou de mérito, sempre respeitadas as preclusões e a coisa julgada que já tenha formado no módulo processual de conhecimento.

Essa defesa será a impugnação prevista pelo art. 475-L do CPC. Também incidem as medidas de apoio (§ 4º do art. 461 do CPC) poderá o juiz impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente e compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento da sentença condenatória.

Poderá também impor multa por tempo de atraso (periódica) busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

Tais medidas de apoio são enumeradas em caráter exemplificativo abrindo-se caminho para a utilização de meios sub-rogatórios e coercitivos atípicos conforme a necessidade do caso concreto, respeitadas as garantias constitucionais.

E que observe também o princípio da razoabilidade em seu tríplice aspecto: necessidade, adequação e proporcionalidade.

A multa é certamente a medida mais usada (§4º do art. 461 do CPC) mas o § 5º do mesmo dispositivo legal cogita de multa por tempo de atraso que se revela mais adequado. A referida multa é descendente direto do direito francês do instituto astreinte que é medida coercitiva de intimação que cunha uma sanção pecuniária e que não possuem natureza reparatória e sua imposição não prejudica o direito do credor à realização específica da obrigação ou o recebimento do equivalente monetário, ou ainda, a postulação de perdas e danos.

Ressalte-se que a multa, em suma, tem natureza puramente coercitiva. A multa representa execução indireta para persuadir o réu adimplir a obrigação.

A multa por atraso de cumprimento da decisão judicial de meio de coerção e poderá ser requerida pelo demandante (art. 287 do CPC) ou mesmo fixada de ofício (art. 461, § 4º do CPC), onde se fixa o seu valor e a periodicidade ( que pode ser não necessariamente diária).

O termo inicial (a quo) da multa, portanto, é o término do prazo para cumprimento da decisão judicial (que se prende a intimação pessoal do devedor para cumpri-la).

O termo final da multa (ad quem) é o cumprimento da decisão judicial ou, alternativamente, a data em que se verifica ser tal cumprimento impossível, ou ainda, a data em que o credor opta por converter a prestação em perdas e danos.

A multa deve ser fixada em valor suficiente para pressionar o devedor a cumprir a decisão judicial. Doutrinariamente se admite abertamente que esta deverá ser exorbitante, desproporcional ao conteúdo econômico do direito posto em causa, deverá ser fixado em função da capacidade econômica do devedor.

Deve ser mesmo expressiva, ou em outras palavras “pesada” para instar o devedor a adimplir a obrigação. Podendo a referida multa superar o valor da obrigação descumprida posto que não é aplicável a limitação da cláusula penal.

Aliás, a multa já fixada pode sofrer modificações de circunstâncias vindo a se tornar insuficiente ou excessiva, daí podendo ser majorada ou diminuída.

Vem como é possível alterar a periodicidade da multa (art. 461, §6º do CPC), mas essas modificações só se operam ex nunc, respeitado o direito do credor receber integralmente a multa anteriormente vencida.

Polêmica surge para apontar o momento em que se encerra o prazo para que o demandado cumpra a decisão judicial que lhe impôs o dever de fazer ou de não-fazer.

Não há no CPC regra específica, há a Lei 7.347/85 a regra o art. 12, § 2º, a estabelecer que a multa é devida desde o dia em que se configura o descumprimento mas só pode ser exigida após o trânsito em julgado da sentença.

Autores sustentam que a exigibilidade da multa se dá quando esta efetivamente vence, ou seja, a partir do descumprimento da decisão judicial. Outra corrente doutrinária entende que a multa só é exigível a partir em que se tornam preclusas as vias recursais contra a sentença.

Se a multa foi fixada por decisão interlocutória antecipatória de tutela, a multa será exigível quando a decisão se torna irrecorrível e, se a astreinte sido fixada na sentença, sendo a exigibilidade só se daria a partir de seu trânsito em julgado.

O art.12, §2º da Lei 7.347/85 disciplina o processo da ação civil pública deve ser aplicado aos processos regidos pelo CPC conforme indica Eduardo Talamini. A decisão que impôs o dever jurídico de fazer ou não-fazer se torna eficaz sendo possível a intimação do devedor para cumpri-la no prazo assinado.

Vencido o prazo, a multa então é imediatamente exigível.

Do contrário a multa perderia a sua força e Alexandre Freitas Câmara considera ser a multa logo exigível. Sua execução, porém, será provisória até o trânsito em julgado da sentença (aplicando-se o art. 475-O do CPC).

O presente artigo não pretende em absoluto exaurir o tema e, as perplexidades que as leis recentemente editadas geraram em razão da falta de organicidade do vigente CPC Brasileiro, que se transformou como bem cogitou Alexandre Freitas Câmara numa “colcha de retalhos”.

De qualquer maneira, todas as mudanças efetivadas surgiram com escopo de dar maior efetividade ao processo, e garantir o acesso à justiça e a composição tempestiva e útil da lide.

Esperemos que esse fim seja mesmo atingido.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

GISELE LEITE:  Formada em Direito pela UFRJ, em Pedagogia pela UERJ, Mestre em Direito, em Filosofia, professora universitária da Universidade Veiga de Almeida e outras do Rio de Janeiro.

 

 


Audiências virtuais

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  * João Baptista Herkenhoff

As invenções em geral devem ser celebradas como conquista da Humanidade. Não devemos, de forma alguma, recusar o avanço tecnológico, que se manifesta nos mais diferentes campos de atividade.       Entretanto, o progresso e o avanço tecnológico devem estar sempre submetidos a critérios éticos e humanos.

Por esta razão, não vejo com simpatia a supressão do contato de juízes com as partes, inclusive nos interrogatórios, através da substituição de audiências presenciais por audiências virtuais.

Em determinados casos são razoáveis as audiências on-line, como, por exemplo, para evitar gastos dispendiosos com a condução de presos até a presença do magistrado. Foi isto o que aconteceu recentemente quando Fernandinho Beira-Mar, conduzido por aviões militares, teve de comparecer perante juízos distantes do local em que se encontrava preso. A única conseqüência dessa condução aérea do preso foi a enorme repercussão que o fato teve na imprensa, justamente pelo absurdo da esdrúxula situação.

Também é razoável que se prefiram as audiências virtuais naquelas hipóteses em que se torna inteiramente desnecessário o contato humano, face a face.

Quando o contato humano é necessário, a audiência virtual é uma brutalidade.

Na minha vida de juiz, em inúmeros processos, somente a presença de réus ou rés diante de mim, permitiu que eu pudesse aquilatar os fatos com exatidão buscando a boa distribuição da Justiça.

Teria centenas de casos a mencionar, porém um dos mais apropriados para referência neste artigo parece-me que seja o de Edna. Prestes a dar à luz, Edna estava presa há meses porque fora encontrada com alguns gramas de maconha.

Talvez eu não tivesse libertado Edna, se a acusada não estivesse diante de mim. Foi ao vê-la grávida, incomodada com o peso do feto, pois recusou sentar-se dizendo que ficava mais à vontade de pé, que eu pude compreender a dimensão do seu sofrimento. Foi diante de Edna mulher, Edna ser humano, que pude perceber o que significava para ela estar presa.

Por outro lado, no reverso da situação, foi devido ao fato de Edna ver o juiz na sua frente que, ao ser solta, disse que a criança, que ia nascer, teria o nome do juiz, se fosse homem. Mas nasceu uma menina que se chamou Elke, em homenagem a Elke Maravilha.

Foi porque o juiz a libertou olhando nos seus olhos que Edna, que era meretriz, mudou de vida. Disse que poderia passar fome, mas que prostituta nunca mais seria.

Uma outra situação em que a audiência presencial tem extrema importância é na ausculta de testemunhas. Os magistrados experientes sabem quando a testemunha está falando a verdade e quando a testemunha está mentindo. Somente o “olho no olho” é que possibilita aquilatar a validade do depoimento e surpreender o perjúrio. Acho que nenhum juiz, calejado no seu ofício, deixa-se enganar por um falso testemunho. Nas audiências virtuais isso seria totalmente impossível.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.joaobaptista.com

 

Das Penas Alternativas em face da ineficiência das Privativas de Liberdade

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[1]  Marco Antônio Garcia de Pinho 

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE ESTUDO. 2.1. Tema. 2.2. Objetivo Geral. 2.3. Objetivos Específicos. 2.4. Problemática. 2.5. Hipótese principal. 2.5.1 Hipótese secundária. 2.6. Contextura. 3. REFERENCIAL TEÓRICO. 3.1. Panorama histórico e atual das medidas e Penas Alternativas. 3.2. Justiça Reparadora. 3.3. Conceitos de medidas e Penas Alternativas. 3.4. Conceito e Natureza Jurídica. 3.5. Circunstâncias que incidem a pena restritiva de direitos. 3.6. Conversão da pena restritiva de direitos por pena privativa de liberdade. 3.7. Das espécies de penas privativas de direitos. 3.7.1 Da prestação pecuniária. 3.7.2 Perda de bens e valores. 3.7.3 Da prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas. 3.7.4 Da interdição temporária de direitos. 3.7.5 Limitação de Fim de Semana. 3.8. Das outras formas de substitutivos penais. 3.8.1 Da Multa Substitutiva. 3.9. Justiça Reparadora. 3.10. A ineficiência da prisão e a necessidade de alternativas. 4. PENAS DE PRISÃO E A PERDA DO CARÁTER RESSOCIALIZADOR. 4.1. Evolução das penas. 4.2. A pena privativa de liberdade como principal meio de punição. 5. O PROCESSO DE APLICAÇÃO DE PENAS ALTERNATIVAS. 5.1. O monitoramento das Penas Alternativas. 5.2. Princípios Fundamentais do Monitoramento. 5.3. Penas Alternativas nos dias de hoje. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

RESUMO

A atual política criminal tem-se endereçado à desinstitucionalização da execução penal, transferindo a função de reeducação do agente de custódia, segurança e controle para equipes de tratamento comunitário ou alternativo. As Penas Alternativas, ampliadas a partir da Lei n. 9.714/98, constituem instrumento valioso no aperfeiçoamento do sistema prisional brasileiro, na ressocialização do infrator de menor gravidade e na conseqüente melhoria da qualidade de vida da população. Sob esse prisma, a presente monografia faz um estudo exploratório acerca da eficiência e avaliação da citada Lei a partir da situação carcerária deficitária, comprovando que as Penas Alternativas podem contribuir significativamente para a redução da população carcerária e da criminalidade.

      ABSTRACT

The current criminal policy has been addressing the deinstitutionalization of sentence implementation, transferring the function of re-education from the custody, security and control agent to the community or alternative treatment teams. The Alternative Sentences, increased since the Act 9714/98, constitute a valuable instrument in the improvement of the Brazilian prison system, in the resocialization of the less serious transgressor and in the resultant improvement in the quality of life of the population. In this light, the present monograph executes an exploratory study about the efficiency and assessment of the mentioned Act in relation to the deficient prison situation, confirming that the Alternative Sentences can contribute significantly to the reduction of the prison population and criminality.

Palavras-Chave: Penas Alternativas, execução criminal, prisão, ressocialização, direito penal brasileiro.

 Keywords: Alternative Sentences, sentence implementation, prison, resocialization, Brazilian penal law.



1. INTRODUÇÃO

O indiscriminado aumento da criminalidade tem imposto aos diversos segmentos da sociedade a busca de soluções para os problemas relacionados, seja para a crescente desigualdade social, para o desemprego, quer seja em busca de alternativas diversas para o caos social que se formou ao longo dos anos.

 O sucateamento da máquina penitenciária, somado ao despreparo dos que lidam no universo carcerário, e a omissão do Estado e da própria sociedade compõem o quadro da realidade penal brasileira. Os avanços concernentes à aplicação de medidas alternativas e à privação da liberdade ainda são diminutos face ao tamanho da crise na execução penal.

 As penas privativas de liberdade demonstram que o que se pratica é, na verdade, um flagrante desatendimento aos direitos humanos. A sociedade, tanto quanto as autoridades competentes, precisam sair da penumbra da indefinição e traçar, juntas, diretrizes de atuação concretas no combate a este tipo de absurdo. Os direitos humanos, antes de meros enunciados formais, têm de ser encarados como as verdadeiras e vigorosas premissas de um novo milênio. A tendência, então, é buscar outras alternativas para sancionar os criminosos, e não isolá-los socialmente. Isso porque a pena de prisão determina a perda da liberdade e da igualdade, que derivam da dignidade humana. E a perda dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade representa a degradação da pessoa humana, assim como a tortura e o tratamento desumano que hoje são expressamente proibidos pela Constituição Federal.

 A atual Política Criminal brasileira tem-se endereçado à desinstitucionalização da execução penal, transferindo a função de reeducação do agente de custódia, segurança e controle para a equipe de tratamento comunitário ou alternativo.

As medidas e Penas Alternativas, resultantes da crise na prisão, sobretudo nas hipóteses de penas de curta duração, permitem que o condenado cumpra a sua pena junto à família e ao emprego, eliminando a contaminação carcerária, diminuindo a superpopulação prisional e suprimindo a contradição entre segurança e reeducação.

 Além do benefício para o criminoso, ao possibilitar a sua reintegração no grupo social, as penas alternativas, como a restritiva de direitos, a prestação de serviços à comunidade, pecuniária, e limitação de fim de semana, são altamente benéficas para o Estado, pois a prisão é bastante dispendiosa para a sociedade, sendo o custo de um apenado maior que o de um estudante universitário, daí o porquê do prejuízo para os recursos humanos e societários.

Infelizmente, a prática forense atual tem demonstrado, não na sua totalidade, mas em proporções bastante expressivas, que as penas alternativas têm sucumbido em detrimento a outras medidas substitutivas, como o sursis e o livramento condicional, medidas já previstas no ordenamento jurídico brasileiro antes da edição da Lei que versa sobre as Penas Alternativas (Lei n. 9.714/98).

O quadro da aplicação de penas alternativas, prevista na Lei n. 9.714/98, no Brasil, apresenta-se em níveis de execução um tanto quanto acanhados, necessitando de serem implementados providências que efetivem a aplicação e a execução das sentenças.

O nosso trabalho não esgota o assunto, pelo contrário, abre caminho para a conscientização de que é preciso adotar políticas que viabilizem a efetivação da Lei n. 9.714, utilizando o instrumento legal para buscar e promover efetivas melhoras no sistema punitivo brasileiro, desafogando espaços nas cadeias e presídios que vivem um estado de deterioração completa.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE ESTUDO

2.1. Tema

Das penas alternativas em face da ineficiência das penas privativas de liberdade.

2.2. Objetivo Geral

 Avaliar a importância da aplicação de Penas Alternativas para a melhoria do sistema prisional, e combate a criminalidade.

2.3. Objetivos Específicos

a) Identificar os benefícios na aplicação de Penas Alternativas nos casos em que competem;

b) Apontar os benefícios para o Sistema Prisional Alternativo;

c) Demonstrar a ineficiência das Penas Privativas de Liberdade face as Penas Alternativas.

2.4. Problemática

As Penas Alternativas vieram para ajudar a solucionar o grave problema da criminalidade no Brasil, dando novo ânimo aos Poderes Constituídos e ao Ministério Público na execução de suas funções.

Vislumbra-se, sobretudo, a diminuição da população carcerária com o alcance da Lei n. 9.714/98 (Penas Alternativas). Com a redução dos presos com penas de maior gravidade e que oferecem maiores riscos à sociedade (penas privativas de liberdade), a execução penal tende a ser mais bem desempenhada, com diversos reflexos positivos, inclusive redução no índice de reincidência criminal.

Os cofres públicos também poderiam ser beneficiados, pois a diferença no custo de um preso em segregação e um outro cumprindo pena alternativa é relevante.

Está provado que a superlotação carcerária leva à ineficiência do sistema. Todavia, as Penas Alternativas encontram certa resistência por parte de alguns magistrados quando da prolação da sentença condenatória, optando esses por outras medidas, seguindo um raciocínio ancorado à pena de prisão e à falsa sensação de impunidade, emergindo daí o seguinte problema: a aplicação de Penas Alternativas retomaria a eficiência das penas privativas de liberdade, melhoraria o sistema prisional e diminuiria a criminalidade?

2.5. Hipótese principal

 Localidades onde se aplicam sistematicamente Penas Alternativas tendem a apresentar índices de criminalidade menores, melhores resultados com o sistema prisional e com os condenados.

2.5.1 Hipótese secundária.

a) Penas Alternativas apresentam melhores índices de ressocialização do condenado.

b) Penas Alternativas diminuem o custo com o condenado.

c) Penas Alternativas proporcionam diminuição da população carcerária.

d) Penas Alternativas reduzem a reincidência criminal.

e) Penas Alternativas requerem maior controle na execução penal.

2.6. Contextura

 Temos, no Brasil, dois tipos de delinqüentes: um que precisa ser preso face ao seu alto grau de periculosidade; o outro que cometeu um delito, mas não pode ser preso, porque, se assim o for, o mal que lhe será imposto será muito maior que aquele que cometeu, comprometendo sua vida futura.

Embora muitos reconheçam a impossibilidade de extinção das penas privativas de liberdade – prisão – que são necessárias aos crimes de grande potencial ofensivo (homicídio doloso, latrocínio, seqüestro, estupro, etc.), percebe-se que a modalidade de pena que mais traz benefícios é a prestação social alternativa, onde o criminoso, em vez de ficar preso, é obrigado a prestar um serviço à comunidade.

O princípio é antigo, pois a necessidade de se adequar individualmente a pena a cada criminoso já era defendida, há dois séculos por Cesare de Beccaria (JESUS, 2000).

Pessoas leigas e desprovidas de qualquer conhecimento jurídico dizem que essas penas são feitas para a Europa, para o “Primeiro Mundo”, como se lá a situação fosse melhor.

Vive-se no Brasil um problema cultural.

 As Penas Alternativas não soam como pena na própria definição da palavra e acabam gerando um sentimento nacional de impunidade. A segregação é necessária, contudo nos casos específicos onde o indivíduo delinqüente oferece risco potencial. Essa cultura de aplaudir a pena privativa de liberdade, em alta escala, custa muito caro.

Tem sido excessivamente dispendioso ao mundo todo: Nos Estados Unidos, a pena de morte não ajudou até hoje a diminuir a criminalidade. A China enfrenta situação ainda pior. Estatísticas comprovam que a pena de prisão gera 70% de reincidência no mundo, ou seja, mais da metade daqueles que são submetidos ao cárcere, voltam a delinqüir.

No Brasil, tal índice alcança 85%. O que importa não é a quantidade da pena, mas, sim, a certeza de punição, que não é o mesmo que certeza de cadeia.

As penas alternativas são hoje aplicadas, na maior parte dos países do chamado Primeiro Mundo, e com resultados animadores. Na Alemanha, por exemplo, apenas 17% dos condenados sofrem penas detentivas. Em Cuba, 85% das sentenças condenatórias aplicam penas restritivas de direitos. (JESUS, 1999).

Seguindo essa linha, a Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, cuidou de disciplinar, de forma mais abrangente, as penas restritivas de direitos previstas no Código Penal brasileiro, vindo ao encontro das mais modernas correntes doutrinárias.

Seu grande mérito está no fato de proporcionar maior discricionariedade ao juiz no momento de aplicação da sanção penal, limitando, por conseqüência, a aplicação das penas privativas de liberdade.

Na exposição de motivos do projeto da citada lei, o então Ministro da Justiça Nelson Jobim, assim se manifestou:

A prisão não vem cumprindo o principal objetivo da pena, que é reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não volte a delinqüir […] Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do condenado, mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os desígnios da prevenção especial e da prevenção geral. Mas a execução da pena não o estigmatizará de forma tão brutal como a prisão. Nessa linha de pensamento é que se propõe, no projeto, a ampliação das alternativas à pena de prisão. (JESUS, 2000)

A Lei n. 9.714/98 acompanha a tendência de manter na prisão apenas os criminosos violentos e os contumazes, pois, não raro, os condenados saem da cadeia piores do que lá chegaram. A segregação é medida necessária, mas, quando a estrutura do Estado não permite a soma de outros esforços para recuperar o indivíduo, tornando a prisão um mero lugar de amontoar presos, torna-se estímulo para a delinqüência.

 Segundo o Ministério da Justiça[2], como o custo anual do preso no Brasil é superior a R$ 5.000,00 e considerando que existem cerca de 75.000 presos que cometeram crimes sem violência, a sociedade gasta aproximadamente R$ 375.000.000,00 sem que ocorra uma diminuição aceitável da criminalidade convencional.

Estudos recentes demonstram que para cada um milhão de dólares investidos em prisões, deixam de ocorrer 60 crimes ao ano, enquanto a mesma importância investida na educação é capaz de evitar 258 delitos no mesmo período.

As estatísticas também apontam para a ineficácia da prisão na prevenção do crime, pois com o aumento da população carcerária de 25% da população reduz em apenas 1% a criminalidade convencional.

Assim, a Lei n. 9.714/98, ao prever a substituição de pena privativa de liberdade por prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana, estabelece um sistema penal que pretende diminuir a criminalidade convencional com base na realidade concreta e não na ultrapassada idéia da necessidade e suficiência da prisão.

A exemplo de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, onde se criou a 1ª Vara Especializada de Execução de Penas Alternativas, é preciso que se desenvolva projetos capazes de realmente implementarem o que a Lei n. 9.714/98 prevê: substituição das penas restritivas de liberdade por alternativas. Como vem ocorrendo na citada cidade nordestina, bem como em todo o Estado do Ceará, é preciso que o Amazonas, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e outras unidades da Federação cuidem de bem aproveitar o diploma legal, objetivando participar da cura do grave problema da criminalidade.

 Para a execução das Penas Alternativas, vislumbra-se o credenciamento de entidades que se beneficiem dos serviços a serem prestados pelos apenados, nos casos de penas de prestação de serviços à comunidade, funcionando como parceiras no processo.

 Pela análise da Lei, em se tratando de crime doloso, cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, cuja pena privativa de liberdade não seja superior a quatro anos, ou em se tratando de crime culposo, qualquer que seja a pena aplicada, e preenchendo o réu os requisitos legais de que tratam os incisos II e III do artigo 44 do CPB, há que se ter a substituição, não havendo que se falar em condenação no regime aberto ou em concessão de sursis, tal como vem acontecendo de forma reiterada.

Penal. Substituição da pena privativa de liberdade por uma das penas restritivas de direito. Sursis. Inadmissibilidade. Obrigatoriedade da substituição quando reconhecidas as circunstâncias favoráveis do artigo 59 e as condições dos incisos II e III do artigo 44, c/c o seu parágrafo único, todos do CP. Direito subjetivo do réu. Etapa obrigatória da aplicação da pena. Recurso especial provido. I – Só se admite a concessão do sursis quando incabível a substituição da pena privativa de liberdade por uma das penas restritivas de direito, conforme preceitua o artigo 77, inciso III, do CP.

Torna-se obrigatória a substituição das penas privativas de liberdade por uma das restritivas de direito, quando o juiz reconhece na sentença as circunstâncias favoráveis do artigo 59, bem como as condições dos incisos II e III do artigo 44, c/c o seu parágrafo único, todos do Código Penal, caracterizando-se direito subjetivo do réu (STJ, REsp. 67.570-SC, 6ª Turma, Rel. Min. Ademar Maciel, DJU 26.8.1996, p. 29730)

Dispõe o artigo 59, inciso IV, do CPB que o juiz, “atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime” estabelecerá a “substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”

Segundo Gomes (1999, p.155), “[…] cabe ao juiz, na sentença, verificar a pertinência de eventual substituição da pena de prisão por outra pena alternativa […]”.

Infelizmente é sabido que grande parte dos magistrados, quando por ocasião da prolação da sentença condenatória, não vem observando as inovações trazidas no Código Penal por meio da Lei n. 9.714/98, ignorando-as por completo, aplicando incorretamente as regras do regime aberto ou o sursis a réus que possuem o direito público subjetivo à substituição.

 Após a prolação da sentença pelo juízo da condenação, constando a aplicação de qualquer alternativa à prisão, prevista como pena para o delito cometido pelo condenado, verifica-se, ainda, que a execução da pena – papel desempenhado pelo juízo da execução – não tem sido bem desempenhada por falta de uma estrutura adequada que permita uma fiel aplicação da Lei n. 9.714 em sentido amplo, ou seja, que o condenado realmente cumpra a pena e seja devidamente acompanhado.

 A dificuldade na aplicação prática dos institutos alternativos à pena de prisão decorre não apenas da falta de estrutura, mas também do desconhecimento das penas alternativas pela sociedade em geral, da precária articulação dos diversos segmentos responsáveis pela sua implementação, da inexistência de programas de capacitação, acompanhamento e fiscalização das entidades que se prestam à execução da medida, bem como da ausência de avaliação sistemática da efetividade das alternativas à pena de prisão. Dessa forma, o presente trabalho, além de avaliar a efetividade da Lei n. 9.714, presta-se também a identificar carências para o efetivo aproveitamento desse valioso instrumento legal.

 3. REFERENCIAL TEÓRICO

3.1. Panorama histórico e atual das medidas e Penas Alternativas

Em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia-Geral das Nações Unidas adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o propósito de reconhecer a dignidade inerente a todos os membros da família humana, que é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

 O Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis e a Declaração Universal dos Direitos do Homem vieram consubstanciar as experiências das Nações Unidas no terreno da implantação, execução e fiscalização das medidas alternativas à pena privativa de liberdade.

 No Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinqüentes, expediu-se a Resolução n. 16, enfatizando a necessidade da redução do número de reclusos, de soluções alternativas à prisão e da reinserção social dos delinqüentes.

Coube, em seguida, em 1986, ao Instituto Regional das Nações Unidas da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente formular os primeiros estudos relacionados ao assunto.

Foram então redigidas as Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade, e o 8º Congresso da Organização das Nações Unidas – ONU – recomendou a sua adoção, o que ocorreu em 14 de dezembro de 1990, pela Resolução n. 45/110, da Assembléia-Geral, denominadas ‘Regras de Tóquio’.

 O primeiro e essencial objetivo que se pretende alcançar com as penas e medidas alternativas à prisão é a redução da incidência da pena detentiva. A prisão deve ser vista como a medida última do Direito Penal.

 Em 1996, surgiu o projeto de Lei n. 2.686 para alterar o Código Penal. A exposição de motivos do Ministro da Justiça Nelson Jobim a esse Projeto de Lei relatava a necessidade de repensar as formas de punição do cidadão infrator, já que a prisão, há muito tempo, não era capaz de cumprir o principal objetivo da pena, qual seja, reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não volte a delinqüir.

Posteriormente vieram as emendas do ilustre jurista e Professor Luiz Flávio Gomes e do Professor Damásio de Jesus a esse Projeto de Lei.

Tais emendas visavam a ampliação e aplicabilidade das Penas Alternativas.

Finalmente, em 25 de novembro de 1998, surgiu a Lei n. 9.714, alterando os dispositivos do Código Penal.

A Lei n. 9.714/98 ampliou, consideravelmente, as Penas Alternativas substitutivas.

 Há uma diferença substancial entre penas e medidas alternativas.

 As Penas Alternativas são sanções de natureza criminal diversas da prisão, como a multa, a prestação de serviços à comunidade e as interdições temporárias de direitos.

 As medidas alternativas são instrumentos que visam a impedir a aplicação de uma pena privativa de liberdade ao autor de uma infração penal, por exemplo, a suspensão condicional da pena.

 As Penas Alternativas são destinadas aos criminosos não perigosos e às infrações de menor gravidade, visando a substituir as penas detentivas de curta duração. Elas podem substituir as penas privativas de liberdade, quando a pena imposta na sentença condenatória por crime doloso (aquele em que há a intenção de se atingir o resultado do delito ou em que, pelo menos, é assumido o risco de produzi-lo) não for superior a 4 anos.

Tratando-se de crime culposo (aquele resultado do delito obtido em razão de imprudência, negligência ou imperícia), a substituição é admissível qualquer que seja a pena aplicada. Entretanto, o crime cometido com violência e grave ameaça não é passível de substituição, assim como a reincidência em crime doloso impede a concessão da alternativa penal.

 O Código Penal brasileiro, antes do advento dessa Lei, contava com seis Penas Alternativas substitutivas: multa, prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, proibição de exercício da profissão e suspensão da habilitação para dirigir veículo.

 Com o advento da Lei n. 9.714/98, foram acolhidas quatro novas sanções restritivas: prestação pecuniária em favor da vítima, perda de bens e valores, proibição de freqüentar determinados lugares e prestação de outra natureza.

 Os crimes sujeitos às Penas Alternativas são: pequenos furtos, apropriação indébita, estelionato (falsificação), acidente de trânsito, desacato à autoridade, lesões corporais leves e infrações outras, todas de menor gravidade.

A espécie de Pena Alternativa a ser aplicada depende da apreciação de elementos objetivos e pessoais do condenado, bem como da segurança de sua efetiva execução. Além disso, as Penas Alternativas são condicionais, isto é, somente poderão ser aplicadas se os condenados realmente cumprirem as obrigações que lhes foram impostas.

As penas e medidas alternativas poderão ser revogadas, isto é, poderão ser convertidas em pena privativa de liberdade, quando o condenado descumprir a restrição imposta ou quando sobrevier condenação à pena privativa de liberdade. Na primeira hipótese, a conversão é obrigatória, na segunda, a conversão é facultativa.

Em 27 de fevereiro de 2002, o Ministério de Estado da Justiça – MJ – editou a Portaria n. 153, que institui, no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça, o Programa Nacional de Apoio e Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas, cujos objetivos, dentre outros, são o de estimular a aplicação e fiscalização das medidas alternativas, difundir suas vantagens como instrumento eficaz de punição, desenvolver um modelo nacional de aplicação e apoiar, institucional e financeiramente, com dotação de recursos do Fundo Penitenciário Nacional, as iniciativas estaduais de criação de programas de penas e medidas alternativas.

3.2. Justiça Reparadora

 Na justiça reparatória ou reparadora, a pena tem a finalidade de reparar o dano sofrido pela vítima. Segundo Jesus, (1999, p. 27), “No Estado Democrático de Direito, o sistema que mais se ajusta à sua natureza é o direito penal que visa a ressocializar o delinqüente, reparar o dano sofrido pela vítima e prevenir o delito”.

O Código Penal brasileiro – CPB, após as reformas de 1984 e 1998, adota um sistema misto de penas (teoria eclética): É retributivo-preventivo. Nos termos do artigo 59, a pena deve ser aplicada conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. A idéia da retribuição perdura como medida necessária para a reprovação do crime. E deve ser suficiente para prevenir o delito (prevenção genérica especial).

Quanto ao aspecto preventivo especial, a pena, na prática, de modo geral, continua sendo um castigo, não produzindo nenhum efeito de natureza ressocializadora.

Caminha no sentido da justiça restauradora ou reparatória. Retribui a culpabilidade do condenado de acordo com o grau de reprovabilidade da conduta, repara o dano e procura prevenir o crime.

3.3. Conceitos de medidas e Penas Alternativas

 Pelas Regras de Tóquio (Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Medidas Não-Privativas de Liberdade), “Penas Alternativas constituem sanções e medidas que não envolvem a perda da liberdade”. Em todo o seu texto, refere-se a qualquer providência determinada por decisão de autoridade competente, em qualquer fase da administração da Justiça Penal, pela qual uma pessoa suspeita ou acusada de um delito, ou condenada por um crime, submete-se a certas condições ou obrigações que não incluem a prisão.

A expressão faz referência especial às sanções impostas por um delito, em virtude das quais o delinqüente deva permanecer na comunidade e obedecer a determinadas condições.

Jesus define as alternativas penais, também chamadas substitutivos penais e medidas alternativas, como sendo:

meios de que se vale o legislador visando a impedir que ao autor de uma infração penal venha a ser aplicada medida ou pena privativa de liberdade. São também denominadas medidas não-privativas de liberdade. Podem atuar antes do julgamento, como a fiança, liberdade provisória, suspensão condicional do processo. (JESUS, 2000, p. 29)

Sua imposição é também possível na sentença condenatória, como o caso do sursis. Podem ainda, atuar na fase de execução da pena privativa de liberdade, como, por exemplo, o indulto ou a situação prevista no artigo 18 da Lei de Execuções Penais – LEP, ao permitir que a pena possa ser convertida em restritiva de direitos. No entanto, são situações que se aplicam em penas de curta duração. 

Já as Penas Alternativas são sanções de natureza criminal diversas da prisão, como a multa, a prestação de serviços à comunidade e as interdições temporárias de direito, pertencentes ao gênero de alternativas penais. (JESUS, 1999, p. 30). 

Nesse sentido, Gonzaga trata da questão como sendo:

uma nova concepção que venha garantir a proteção eficaz da comunidade graças à apreciação das condições em que o delito foi praticado, da situação pessoal do delinqüente, de suas possibilidades e probabilidades de recuperação e dos recursos morais e psicológicos com que se pode contar, com vistas a um verdadeiro tratamento de ressocialização. (GONZAGA et al., 2002)

Os autores debatem ainda a ilusão de que a pena de prisão pode ser reformativa, mostrando o quanto esta alternativa pode ser perniciosa, pois “enquanto a sociedade permanece gravitando em torno dessa falácia, abstém-se de examinar seriamente outras viáveis soluções para o problema penal”. (GONZAGA et al., 2002)

3.4. Conceito e Natureza Jurídica

A prisão deve ser vista como a ultima ratio do Direito Penal.

Com a reforma do Código Penal de 1984, foram introduzidas com a Lei n. 7.209/84 as penas restritivas de direitos em nosso ordenamento jurídico pátrio, entre elas a prestação de serviço à comunidade ou às entidades públicas, a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana. Essas penas são de caráter substitutivo que a sociedade apelidou de “Penas Alternativas”. Quatorze anos mais tarde, a Lei n. 9.714/98 reformulou dispositivos do Código Penal, introduzindo mais duas penas restritivas de direitos – a prestação pecuniária e a perda de bens e valores.

A pena restritiva de direitos, ao contrário daquela explicitada na parte geral do Código Penal, não tem por objetivo constranger a liberdade de ir e vir do cidadão, e, sim, provocar um abalo na posição que esta pessoa desfruta na sociedade, ou seja, visa alterar seu status perante o meio em que ele vive, sem, entretanto, removê-lo, isolá-lo daquela coletividade, pois apesar de a pena restritiva de direitos atingir o prestígio que a pessoa em questão detém, ela visa, implicitamente, proteger a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental esculpido na Constituição Federal, que observa a necessidade de proporcionar a esse condições para uma vida digna, com destaque para o aspecto econômico. Destarte, a tal “Pena Alternativa” impõe uma sanção ao indivíduo, sem, no entanto, removê-lo de sua vida, de seu trabalho e de seus hábitos particulares.

As penas privativas de liberdade são de natureza autônoma e substitutiva, como explicita o artigo 44 do Código Penal. Em princípio, tais características podem parecer antagônicas. Porém, se realizarmos uma análise mais cuidadosa em relação a estes adjetivos, chegaremos à conclusão que tais conceitos convivem harmoniosamente.

Preliminarmente, é deveras importante esclarecer que a denominação “Pena Alternativa” é equivocada para o instituto tratado no presente trabalho. Inegável afirmar que tal expressão é sinônima do conceito utilizado no Código Penal. Tornou-se consagrada pelo uso, devido à sua utilização constante pela população e, principalmente, pela mídia. Essa expressão, no entanto, deixa subentendido que o julgador poderá aplicar tanto a pena privativa de liberdade, quanto a pena restritiva de direitos, valendo-se do que considerar mais adequado. Isto não é verdade.

Uma vez condenado o réu, o juiz sempre aplicará a pena privativa de liberdade, e, verificando o tempo que o indivíduo foi condenado e as circunstâncias exclusivas do caso, o magistrado a substituirá por uma pena restritiva de direitos. Daí a natureza substitutiva de tais penas. Tal fenômeno ocorre pela seguinte razão: As penas restritivas de direitos estão previstas in abstracto no Código Penal, logo, não podem ser aplicadas diretamente. Portanto, o juiz aplica a pena privativa de liberdade, e, se presentes os requisitos legais, ele a substituirá pela restritiva de direitos.

O conceito de autonomia, no referido dispositivo legal, diz respeito ao fato de que a pena restritiva de direitos, por si só, satisfaz o cumprimento da pena. A pena restritiva de direitos não coexiste com a pena privativa de liberdade, ou se aplica uma, ou se aplica outra, jamais as duas ao mesmo tempo. Mas nada impede que uma pena de multa seja aplicada conjuntamente com uma pena restritiva de direitos.

O fato de as penas restritivas de direito serem de caráter substitutivo, não podendo ser aplicadas diretamente, tem provocado algumas críticas por parte da doutrina. Alberto Silva Franco, por exemplo, afirma que:

é lamentável, contudo, que não se tenha erigido, em face de certas situações tipificadas, algumas das atuais penas restritivas de direitos em penas principais, ao lado da pena privativa de liberdade e da multa, em cominação isolada, cumulativa ou alternativa.

Dessa forma, as conhecidas resistências judiciais teriam fim e os juízes se viriam na contingência de aplicar, porque presentes no preceito sancionário, penas como a de interdição de direção de veículos que teriam, sem dúvida, enorme relevância em relação aos crimes de trânsito.

Porém, o emprego de uma pena restritiva de direitos de forma isolada, sem nenhuma manifestação prévia a uma pena de detenção ou reclusão, poderia se tornar perigoso. Assim com a pena restritiva de direitos pode substituir a pena privativa de liberdade, a recíproca também é verdadeira, como afirma o § 4º do artigo 44 do Código Penal. Assim, ocorrendo no um fenômeno previsto nesse parágrafo, impossível seria a transformação para uma pena privativa de liberdade, uma vez que não foi prevista constrição do direito de ir e vir do indivíduo condenado.

3.5. Circunstâncias que incidem a pena restritiva de direitos

As penas restritivas de direitos foram criadas com a intenção de proteger a dignidade daquele que pouco ou nenhum perigo oferece à sociedade. Logo, não pode o julgador substituir a pena privativa de liberdade sem nenhum critério, e por isso, o Código Penal apresenta requisitos legais a serem observados antes de aplicar a “Pena Alternativa”.

Conforme reza o artigo 44 do Código Penal, as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade quando:

 I – Aplicada a pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo.

Conforme afirmado no inciso acima, sendo o indivíduo condenado por um crime culposo, pode ser a ele aplicada a pena restritiva de direitos, independentemente do tamanho da pena imposta. No entanto, sendo doloso o crime, a pena restritiva de direitos só pode substituir a privativa de liberdade quando não foi cometida violência ou grave ameaça à pessoa e também quando a pena não for superior a quatro anos.

Todavia, para essa regra, existe uma exceção: o artigo 54 do Código Penal ensina que as penas restritivas de direitos são aplicadas em substituição à pena privativa de liberdade, fixada em quantidade inferior a um ano, ou nos crimes culposos.

 Entendem alguns juristas que esse dispositivo teria sido tacitamente revogado pela Lei n. 9.714/98, que alterou o Código Penal, exigindo a abstinência de violência ou grave ameaça para aplicar a sanção substitutiva.

Porém, analisando a vontade do legislador na elaboração da referida lei (ampliar as possibilidades de substituição de pena), efetuando conjuntamente uma interpretação extensiva nessa norma, que nas palavras de Carlos Maximiliano, realiza-se quando em havendo dúvida razoável sobre a aplicabilidade de um texto, por extensão, ao caso em apreço, resolvem pela afirmativa, veremos que o transcrito no artigo 54, do Código Penal, não foi revogado, nem mesmo tacitamente.

Portanto, o condenado a uma pena inferior a um ano, ainda que por um delito executado mediante violência ou grave ameaça, poderá ainda ser agraciado com uma pena restritiva de direitos.

O artigo 180 da Lei de Execuções Penais afirma que a pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, poderá ser convertida em restritiva de direitos, desde que: (I) o condenado a esteja cumprindo em regime aberto; (II) tenha sido cumprido pelo menos um quarto da pena; (III) os antecedentes e a personalidade do condenado indiquem ser a conversão recomendável. Todavia, com o advento da Lei n. 9.714/98, é evidente que tal prazo, de dois anos, foi ampliado de maneira tácita para quatro anos, respeitando, assim, a vontade do legislador e modernas teorias de política criminal.

Assim, respeitando o estatuído pela Lei n. 9.714/98, o condenado, que, no exercício da pena, lhe resta cumprir um quantum igual ou inferior a quatro anos, respeitadas as circunstâncias estabelecidas no artigo 180 da Lei n. 7.210/84, terá direito em converter a pena privativa de liberdade ainda a ser cumprida em pena restritiva de direitos.

Vale ressaltar que, no caso exposto no parágrafo anterior, a reincidência, uma das circunstâncias transcritas no artigo 44 do Código Penal, não é relevante, pois, o mais importante, nessa situação, não é a qualificação subjetiva do condenado, e, sim, o seu nível de recuperação social.

 II – O réu não for reincidente em crime doloso.

 A reincidência deve ser específica, ou seja, a pessoa deve praticar um delito tipificado igual a um já efetuado anteriormente. Nesse caso, uma pessoa já condenada por uma sentença irrecorrível pela prática de um crime doloso pode ser contemplada por uma substituição de pena caso o novo crime seja culposo, ou vice-versa, desde que pelo menos um deles não tenha sido praticado com doloso. Melhor explicando, o condenado por uma lesão corporal culposa, que já tinha sido condenado anteriormente pelo mesmo crime, no entanto sendo culposa naquela vez, não pode ser beneficiado pela pena restritiva de direitos, uma vez que praticou um novo crime que possui as mesmas elementares do primeiro.

Porém, mesmo se fosse reincidente em crime doloso, desde que tenha sido de outra natureza, diversa do primeiro, poderia ainda o juiz, conforme determina o § 3º do artigo 44 do Código Penal, caso a medida seja socialmente recomendável, e a reincidência, como já foi dito, não se tenha operado em virtude de prática do mesmo crime, aplicar uma alternativa penal.

 III – A culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja eficiente.

Isso significa que, para que seja aplicada uma pena restritiva de direitos, o juiz deve observar todas essas circunstâncias a fim de certificar-se que esta é suficiente, tanto para reprovar quanto para prevenir o crime. Cada um destes indicadores será alvo de consideração no artigo 59 do Código Penal.

Tais circunstâncias elencadas nos incisos I, II e III do artigo 44, CP, vale observar, devem ser encontradas simultaneamente, para que substitua a pena privativa de liberdade por uma alternativa penal. A ausência de qualquer um destes requisitos, por mais idôneos que sejam os outros encontrados, importa na impossibilidade de o julgador aplicar uma pena substitutiva.

Outro tópico que é importante ressaltar é que, em hipótese alguma, as penas restritivas de direitos serão aplicadas àqueles condenados em face de algum crime previsto na Lei dos Crimes Hediondos, onde a pena deve ser executada integralmente em regime fechado conforme expõe o artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90.

Segundo o § 2º do artigo 44 do Código Penal, na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa (conforme com o artigo 60, § 2º, CP) ou por uma pena restritiva de direitos, se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa, ou por duas restritivas de direitos. Tacitamente, esse dispositivo revogou o artigo 60, § 2º, do Código Penal, uma vez que este diploma permitia a substituição por multa somente quando a pena cominada não fosse maior que seis meses.

3.6. Conversão da pena restritiva de direitos por pena privativa de liberdade

O Código Penal expõe duas circunstâncias em que, na ocorrência de qualquer uma delas, haverá o retrocesso para uma pena privativa de liberdade.

 A primeira delas está prevista no § 4º do artigo 44 do Código Penal, e diz que se converterá em privativa de liberdade, a restritiva de direitos quando esta pena for descumprida injustificadamente. Dessa maneira, aquele que não cumprir a pena restritiva de direitos, não justificando o descumprimento, infalivelmente, terá sua pena transformada em privativa de liberdade. No entanto, vale ressaltar que o indivíduo que não cumprir a pena substitutiva a ele determinada terá reconhecido o seu direito ao contraditório e à ampla defesa para mostrar qualquer razão que justifique a inobservância da pena a ele imposta.

Por sua vez, o § 5º do mesmo diploma legal, informa que sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior. O juiz verificará se a nova pena privativa de liberdade é compatível com a pena substitutiva anteriormente imposta. Pois, em caso positivo, não haverá a conversão da restritiva de direitos por privativa de liberdade.

3.7. Das espécies de penas privativas de direitos

Elencadas nos incisos do artigo 43 do Código Penal, são elas: (I) a prestação pecuniária; (II) a perda de bens e valores; (III) a prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; (IV) a interdição temporária de direitos; e (V) a limitação de fim de semana (VI).

Essa relação de substitutivos penais deve ser interpretada de maneira exaustiva, isso quer dizer que, inexistente qualquer pena restritiva de direitos senão aquelas dispostas nos incisos do artigo 43 do Código Penal. Qualquer decisão que condene o réu à pena alternativa diversa, àquelas dispostas no artigo anteriormente referido, estará eivada de nulidade.

3.7.1 Da prestação pecuniária

Conforme já foi aduzido, o rol das penas privativas de liberdade é exaustivo, não sendo possível a aplicação de qualquer outra pena senão aquelas explicitamente transcritas no texto legal. No entanto, era praxe de alguns juízos imporem ao condenado o pagamento de uma quantia determinada de “cestas básicas” para uma instituição de caridade já estipulada. Tal sanção, apesar de moralmente ser alvo de aplausos pela sociedade, era totalmente estranha aos olhos da lei. Por isso, com o advento da Lei n. 9.714/98, essa anomalia foi eliminada.

Consiste a prestação pecuniária no pagamento em dinheiro (cujo quantum será não inferior a um, nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos) à vítima, a seus dependentes, ou à entidade pública ou privada, com destinação social. Via de regra, a prestação pecuniária reverterá à vítima, se ela não puder ser beneficiada, seus dependentes. Não havendo vítimas nem dependentes, ou havendo aceitação de um deles, aí sim a prestação pecuniária se reverterá em prol de uma entidade social. Caso a pessoa tenha sido condenada a essa prestação, o valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários.

O § 2º estende o raio de alcance dessa pena, uma vez que permite que a prestação pecuniária não precisa ser efetuada em dinheiro, podendo ser, devido ao seu caráter social, transformada numa outra prestação que tenha relevância pecuniária (com o pagamento de cestas básicas, por exemplo). Isso pode ocorrer desde que haja a concordância do beneficiário, que, no caso, é aquele que será favorecido pela nova forma de prestação.

 Vale deixar anotado que, sobre o exemplo acima demonstrado, alguns doutrinadores, como Alberto Silva Franco, são absolutamente contrários. Não cabe ao Poder Judiciário sustentar entidades assistenciais carentes de recursos e sim ao Estado. Para aquele que dispõe de dinheiro, não terá nenhum caráter corretivo se dirigir a um supermercado e comprar o quanto foi estipulado pelo juiz, abastecendo assim, uma rede de entidades favorecidas.

Outro tópico que é digno de consideração vem decorrente do esclarecimento de que  a prestação pecuniária e a multa são institutos diferentes.

Aquela, o montante adquirido é dirigido em favor de alguma pessoa (à vítima, aos dependentes, ou às entidades públicas ou particulares com destinação social) denominada beneficiário, enquanto nesta o montante arrecadado se reverte em favor do Estado.

3.7.2 Perda de bens e valores

 A perda de bens e valores está prevista no § 3º do artigo 45 do Código Penal. Salvo legislação especial, a perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, e seu valor terá como teto – o que for maior – o montante do prejuízo causado ou da vantagem recebida pelo agente ou por terceiro, em conseqüência da prática da conduta típica.

 Um caso exemplificativo de perda de bens e valores é aquele fornecido pelo Professor Damásio E. de Jesus, em que aponta o artigo 243 da Constituição Federal, onde prevê a expropriação de glebas destinadas ao cultivo de drogas, que devem ser revertidas no assentamento de colonos, para cultivo de produtos alimentícios, ou destinadas a entidades sociais.

Resta, ademais, salientar que o instituto disposto no § 3º do artigo 45, CP, nada tem a ver com a perda em favor da União, tratada pelo artigo 91, II, CP. Como bem diferencia Victor Eduardo Rios Gonçalves,

a perda em favor da União é um efeito secundário da condenação (aplicado conjuntamente à pena privativa de liberdade ou de outra natureza), dos instrumentos do crime, que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, ou do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do ato criminoso. (GONÇALVES, 2003)

3.7.3 Da prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas

A prestação de serviços à comunidade tem como escopo fazer com que o condenado retribua à sociedade os danos que provocou, reinserido nessa sem os estigmas que seriam absorvidos por uma pena privativa de liberdade de curta duração. Não se pode comparar essa modalidade de pena com a pena de trabalhos forçados, explicitamente vedada em nossa Carta Maior. Na pena inserida pelo artigo 46 do Código Penal, a gratuidade dos serviços tem caráter retributivo, é imposta por tempo limitado e serão observada as aptidões do condenado de maneira que o serviço a ser prestado seja semelhante à sua atividade exercida habitualmente, sem que seu trabalho seja prejudicado, ao contrário da pena de trabalhos forçados, em que os indivíduos são condenados a exercer atividades penosas ou à perpetuidade.

A prestação de serviços à comunidade trata-se de uma pena restritiva de direitos onde o apenado, condenado a uma pena privativa de liberdade superior a seis meses, efetuará gratuitamente tarefas em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais.

Quis o legislador que a prestação de serviços à comunidade seja aplicada somente para aqueles cuja pena privativa de liberdade seja superior a seis meses pelo seguinte motivo: Ao ser encaminhado à uma instituição, para cumprir sua pena, o condenado não começa exercendo de pronto as tarefas à ele incumbidas.

Ele passa por todo um processo de adaptação, de preparo e de treinamento, para que possa cumprir a função a ele imposta pelo Estado. Logo, pouco frutífera seria a prestação de serviços à comunidade do condenado a dois meses de detenção, por exemplo, uma vez que ele passaria a maior parte da sua pena se submetendo a treinamentos em vez do exercício de sua tarefa propriamente dita.

Compete ao juiz da execução designar qual entidade o sentenciado deverá executar as suas tarefas, como expõe o artigo 149 da Lei de Execuções Penais. Ademais, o artigo 150 do mesmo texto indica que a entidade beneficiada com a prestação de serviços encaminhará mensalmente, ao juiz da execução, relatório circunstanciado das atividades do condenado, bem como, a qualquer momento, comunicação sobre ausência ou falta disciplinar.

O Disposto na Lei n. 7.210/84, § 1º, foi tacitamente revogado pela Lei n. 9.714/98. Antes do advento desta lei, dispunha a Lei de Execução Penal – LEP, que a duração do trabalho seria de oito horas semanais. Atualmente, o apenado cumpre uma hora de trabalho para cada dia de condenação, fixada de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. Pouco adiantaria ele trabalhar de maneira gratuita em detrimento de um trabalho remunerado, cujo salário seria necessário para o sustento próprio e de sua família. Ademais, permite a lei que essa prestação seja cumprida em período inferior à cominação da pena privativa de liberdade, desde que a pena substituída seja superior a um ano, e que a prestação não seja efetuada em tempo inferior à metade da pena privativa de liberdade fixada, conforme reza o artigo 46, § 4º, do CP.

O § 1º do artigo 181 da Lei de Execuções Penais apresenta circunstâncias que convertem a pena de prestação de serviços à comunidade em uma pena privativa de liberdade, quando o condenado: a) não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido ou desatender à intimação por edital; b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que deve prestar serviço; c) recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que lhe for imposto; d) praticar falta grave; e e) sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade cuja execução não tenha sido suspensa.

3.7.4 Da interdição temporária de direitos

Considerada uma das mais importantes modalidades de penas alternativas, é assim classificada, pois reflete uma real limitação dos direitos individuais de uma pessoa. O artigo 47 do Código Penal estabelece quatro modalidades de interdição temporária de direitos:

I – Proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo.

II – Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público.

Tais sanções têm caráter temporário e exigem que o agente tenha praticado delito no exercício de cargo, função ou atividade, violando os deveres que lhes são inerentes, como afirma o artigo 56 do Código Penal. Possuem tanto o aspecto punitivo, uma vez que recai sobre seu meio de vida, quanto o aspecto preventivo, pois não permite que o agente tire proveito da sua profissão ou do seu status para cometer atividades ilícitas. É forçoso reconhecer, então que nestas circunstâncias, é necessária uma correlação ato ilícito – atividade.

 III – Suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo.

 O inciso acima se aplica aos crimes culposos de trânsito. Somente aos crimes culposos, pois com o advento do novo Código de Trânsito brasileiro (Lei n. 9.503/97), foram criados tipos penais em que a suspensão da habilitação ocorre conjuntamente com outra pena restritiva de direitos, assim, foi derrogado em parte o inciso exposto acima, tendo validade apenas para os delitos culposos.

Veículo, nessa norma, deve compreender não só os automotores, como também os de tração animal e ainda os veículos automotores habilitados no exterior.

IV – Proibição de freqüentar determinados lugares.

A proibição de freqüentar determinados locais refere-se a ambientes que têm a ver com a conduta ilícita praticada em que o indivíduo nele encontrará influência criminógena, sejam eles bares, boates, estádios de futebol, etc.

Também dispõe a Lei de Execuções Penais sobre causas em que a interdição temporária de direitos será convertida em pena privativa de liberdade. Determina o § 3º do artigo 181 da Lei n. 7.210/84, que tal fenômeno ocorrerá quando o condenado exercer, injustificadamente, o direito interditado ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras a e e do § 1º deste artigo. Logo, estando em local incerto e não sabido, desatender a intimação judicial, ou sofrendo condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa, automaticamente revoga-se a alternativa penal.

3.7.5 Limitação de Fim de Semana

A sanção prevista no artigo 48 do Código Penal consiste em permanecer, aos sábados e aos domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou estabelecimento adequado. Podendo ser ainda ministrados cursos e palestras ao condenado ou a ele atribuídas atividades educativas.

Tal medida não deixa de ser, no entanto, similar à privação da liberdade, com o diferencial de que o apenado não sofrerá os efeitos negativos de um cárcere, nem perderá o contato com os elementos do mundo exterior, tais como família e trabalho.

Todavia, realizando uma análise perfunctória nessa regra, nota-se que ela possui natureza programática, pois, para que esta pena seja efetiva, é necessário que tanto as casas de albergado (que são poucas) quanto os estabelecimentos adequados sejam dotados de infra-estrutura e pessoal especializado a fim de que o indivíduo, que por algum defeito em sua formação, receba necessária e específica reeducação para se reintegrar no meio social. Caso contrário, tal cominação seria apenas uma ficção jurídica como tantas outras em nosso ordenamento pátrio, tornando a sua aplicação inútil, senão impossível, como demonstra o v. Acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

A limitação de fim de semana pressupõe a existência de instalações adequadas e equipes devidamente preparadas (artigos 152 e 153 da Lei n. 7.210/84). Assim, se o Estado não cumpre o disposto na lei (artigo 203, § 2º, da lei citada), inaplicável a medida prevista no artigo 48 do CP (TJSC – AC – Rel. Wladimir D’Ivanenko – RT 644/313).

Portanto, para que a limitação de fim de semana seja dotada de plena eficácia, deverão ser efetuadas, em primeiro lugar, obras materiais que possibilitem a correta aplicação da norma, como, por exemplo, a aquisição ou desapropriação de prédios para instalação de casas de albergados.

Ademais, a Lei de Execuções Penais também cita circunstâncias pela qual a limitação de fim de semana se converte em pena privativa de liberdade. Diz o § 2º da referida lei, que a pena de limitação de fim de semana será convertida, quando o condenado não comparecer ao estabelecimento designado para o cumprimento da pena, recusar-se a comparecer ao estabelecimento designado pelo juiz da execução, recusar-se a exercer a atividade determinada pelo juiz ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras a (condenado em local incerto e não sabido, ou desatender intimação por edital), b (praticar falta grave) e e (sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa) do § 1º do artigo 181 da lei citada.

3.8. Das outras formas de substitutivos penais

3.8.1 Da Multa Substitutiva

Consiste a multa, neste aspecto, numa substituição que o juiz efetuará, em face de uma pena privativa de liberdade não superior a um ano, conforme dispõe o artigo 44 § 2º do Código Penal.

No caso da aplicação da multa, obedecem aos seus princípios convencionais, sendo ela fixada entrem 10 e 360 dias-multa, visto que o valor de cada dia multa pode valer entre a trigésima parte e cinco vezes o valor do salário mínimo.

Ao contrário da prestação pecuniária, cujo valor beneficiará a vítima, seus dependentes ou uma entidade pública ou privada com destinação social, e da perda de bens e valores, cujo valor equivalente à vantagem recebida ou ao montante do prejuízo se reverte ao Fundo Penitenciário Nacional, na multa substitutiva o quantum arrecadado será destinado, em princípio, ao Fundo Penitenciário Estadual (no caso de São Paulo, o FUNPESP), e não existindo tal fundo, reverter-se-á ao fundo penitenciário nacional (FUNPEN).

Para ser alcançado o quantum debeatur a título de multa, deve ser levado em consideração, primeiramente, as circunstâncias do artigo 59, as gravantes e atenuantes, as causas de diminuição e aumento de pena, na parte especial e, enfim, a situação econômica do réu.

3.9. Justiça Reparadora

Na justiça reparatória ou reparadora, a pena tem a finalidade de reparar o dano sofrido pela vítima. Segundo Jesus, “No Estado Democrático de Direito, o sistema que mais se ajusta à sua natureza é o direito penal que visa a ressocializar o delinqüente, reparar o dano sofrido pela vítima e prevenir o delito.” (JESUS, 1999, p. 27)

O Código Penal brasileiro – CPB, após as reformas de 1984 e 1998, adota um sistema misto de penas (teoria eclética): É retributivo-preventivo. Nos termos do artigo 59, a pena deve ser aplicada conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. A idéia da retribuição perdura como medida necessária para a reprovação do crime. E deve ser suficiente para prevenir o delito (prevenção genérica especial).

Quanto ao aspecto preventivo especial, a pena, na prática, de modo geral, continua sendo um castigo, não produzindo nenhum efeito de natureza ressocializadora. Caminha no sentido da justiça restauradora ou reparatória. Retribui a culpabilidade do condenado de acordo com o grau de reprovabilidade da conduta, repara o dano e procura prevenir o crime.

3.10. A ineficiência da prisão e a necessidade de alternativas

Ao se questionar o porquê da pena alternativa, há que se verificar as necessidades e também o princípio superior que lhe deu origem.

Para Silva Jr. (1999), “o caminho apontado para a investigação é a prisão, ou seja, por que a pena privativa de liberdade deve ser substituída?” Continua dizendo que a resposta é evidente após vários estudos e realização de um ciclo de palestras sobre Ciências Penais: “A pena de prisão deve ser substituída porque é ineficaz, cara e geradora de mais violência na sociedade.” (SILVA JR., 1999)

Os cientistas penais não têm dúvidas: diante dos dados fornecidos pelo Ministério da Justiça sobre a realidade carcerária brasileira, é necessário substituir a pena de prisão e não ampliar o seu alcance.

A prisão não é uma solução, mas um problema. (BRASIL, 2002)

Aprofundando os estudos acerca do assunto, percebe-se que essa realidade não é de agora, nem exclusividade do Brasil.

No II Congresso Internacional de Criminologia, realizado em Paris, 1950, restou constatado que:

(…) a prisão em vez de frear a delinqüência parece estimulá-la, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidade. Não traz nenhum benefício ao apenado, ao contrário, possibilita toda a sorte de vícios e degregações. (BITENCOURT, 1993, p. 146).

A Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a proceder ao levantamento da situação penitenciária brasileira, instituída na Câmara dos Deputados em 1975 e que serviu de base para a Lei n. 7.210/84, apurou que:

 

‘(…) grande parte da população carcerária está confinada em cadeias públicas, presídios, casas de detenção e estabelecimentos análogos, onde prisioneiros de alta periculosidade convivem em celas superlotadas com criminosos ocasionais, de escassa ou nenhuma periculosidade e pacientes de imposição penal prévia (presos provisórios ou aguardando julgamento) para quem é um mito, no caso, a presunção de inocência.’ E mais incisivamente foi dito que em tais ambientes de estufa, a ociosidade é a regra; a intimidade, inevitável e profunda. ‘A deterioração do caráter resultante da influência corruptora da subcultura criminal, o hábito da ociosidade, a alienação mental, a perda paulatina da aptidão para o trabalho, o comprometimento da saúde são conseqüências desse tipo de confinamento promíscuo, já definido alhures como sementeiras da reincidência, dados os seus fatores criminógenos.’ (DOTTI, 1998, p. 110-111).

As Regras de Tóquio na qual a ONU recomenda a adoção de “sanções e medidas que não envolvem a perda da liberdade”, aprovadas pela Assembléia-Geral de 1995 no Cairo, após os relatórios de mil e quinhentos delegados dos Estados-Membros a respeito de seus sistemas criminais, afirmam na sua introdução:

 

Existem cada vez mais dúvidas sobre se a prisão permite reabilitar os delinqüentes. Diz-se amiúde que a prisão pode converter os delinqüentes em criminosos ainda piores e que, por essa razão, a cadeia deve ser reservada àqueles que praticam delitos mais graves e sejam perigosos. A prisão, que por si mesma é dispendiosa, acarreta outros custos sociais.

Muitos países enfrentam o problema de superlotação carcerária. Nos estabelecimentos penais em que esse problema é muito grave pode ser impossível dar condições aos presos para que, ao voltar à liberdade, levem a vida sem infringir a lei. (…) Por causa destes fatos, acredita-se mais e mais que é melhor impor sanções e medidas não-privativas de liberdade como condição para que as penas sejam proporcionais ao delito cometido pelo delinqüente e propiciem maiores possibilidades de reabilitação e reinserção construtiva na sociedade. (JESUS, 1999, p.213).

Portanto, a necessidade de substituição da pena de prisão não é nova e nem tampouco exclusividade do Brasil. Também a criação de Penas Alternativas, como é sabido, não é recente e nem é novidade.

No ordenamento jurídico-penal brasileiro, o sistema de pena previsto no Código Penal de 1940, com as alterações da Lei n. 6.416/77, foi modificado por meio da Lei n. 7.209/84. Antes dividido em penas principais (reclusão, detenção e multa), acessórias e medidas de segurança ao imputável, passou a prever penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa.

Nesse sentido, observa Licínio Barbosa:

a despeito da Reforma Penal de 1984 ter mudado substancialmente o sistema de penas, recomendando a adoção de medidas alternativas, (…) a cultura das penas privativas de liberdade continua a permear a mente e a alma da Magistratura e do Ministério Público brasileiros. Tanto que, decorridos cerca de 14 anos da promulgação daquele estatuto, os magistrados aplicam, preferencialmente, penas privativas de liberdade (…) e, não raro, decretam a prisão provisória, a prisão temporária e a prisão preventiva, a pretexto de assegurar a instrução do processo criminal, quando, em muitos casos, não há indícios suficientes de autoria, inexistem vestígios de culpabilidade e, noutras hipóteses, são evidentes as causas excludentes da ilicitude. (Apud SILVA JR., 1999, p. 30)

Percebe-se, pois, que a Lei n. 9.714/98 é a resposta de um anseio antigo da necessidade de substituição da pena privativa de liberdade. Mudanças comportamentais objetivando a aplicação da lei devem, portanto, ser implementadas pela Magistratura e no Ministério Público, sob pena de nada mudar na solução do problema da criminalidade.

Complementando esse raciocínio, vale citar Silva Jr. (1999, p.16):

 

Como a prisão é a coluna vertebral do modelo punitivo, a sua falência é a falência do próprio modelo. A mentalidade clássica (século XVIII) de que a pena (punição) é necessária e suficiente para combater o crime está ultrapassada. A realidade teima em mostrar e demonstrar, o que cientificamente já se sabe desde a década de 1950: a ineficácia, o alto custo e o aumento da violência na sociedade são características de todos os sistemas de controle do crime baseados na punição do criminoso. É essa cultura da punição que não pode mais permear a mente e a alma da Magistratura e do Ministério Público brasileiros. Caso contrário, como ocorreu com a Reforma Penal de 1984, a Lei n. 9.714/98 terá ampliado inutilmente as Penas Alternativas e o seu alcance, porque será interpretada segundo um raciocínio ancorado na pena de prisão e não na necessidade da sua substituição. (SILVA JR., 1999, p. 16)

Essa mudança será benéfica em todos os sentidos e permitirá uma reforma profunda no sistema penitenciário brasileiro e nas cadeias em geral, depósitos de pessoas, o que não resolve o problema da criminalidade e não reeduca o indivíduo, além de impor ao indivíduo egresso uma discriminação generalizada por parte da sociedade – o que não deixa de ser motivado pela ineficiência do sistema.

4. PENAS DE PRISÃO E A PERDA DO CARÁTER RESSOCIALIZADOR

4.1. Evolução das penas

Quando do surgimento da Sociedade Política, os indivíduos que integravam o grupamento social abdicaram de suas liberdades individuais e firmaram um pacto social, pelo qual todos ficariam protegidos por um ente político responsável pelo bem de toda a coletividade.

Para Rousseau (apud FERNANDES, 2002, p.1) as conseqüências de tal acordo são que “o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que tenta e que pode alcançar; o que vem a ganhar é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui.”

O Estado, ao receber o poder e o dever de realizar o bem comum, apareceu como um poder de mando, como governo e dominação. Instituiu uma nova ordem, com normas rígidas a que todos estavam submetidos. O poder, então, é detido e centralizado pelo Estado. Isso, em virtude do medo. O medo do indivíduo diante de outro, mais forte e mais violento; o medo da massa social diante do guerreiro que quer impor a sua vontade aos demais. O medo do homem, não apenas como indivíduo, como família, mas como grupo social, e por isso, ele criou o poder e entregou-o à Sociedade Política. (FERNANDES, 2002)

Para a manutenção da harmonia na sociedade, o Estado impôs regras de conduta aos seus membros, prevendo sanções para aqueles que descumprissem as normas. O Direito normativo é o direito racional por determinar uma série de ações em relação aos determinados fins. Assim, as ações sociais determinadas pela legalidade são frutos de uma normatização social advinda de uma rede de poderes velados pelo Direito.

A origem das penas, contudo, é anterior à própria criação da sociedade organizada, remontando aos mais antigos grupamentos de homens, que lhe atribuíam um caráter divino, pois o descumprimento das obrigações devidas aos “seres sobrenaturais” merecia graves castigos, como a morte. Era a repressão do crime como forma de satisfação aos deuses pela ofensa praticada no grupo.

Já com o Estado forte, esse centralizou para si o direito de punir os infratores das suas normas. Durante muito tempo, o Estado tornou-se um severo repressor daqueles que desobedeciam ao ordenamento. A Lei de Talião impunha a reação à ofensa a um mal idêntico ao praticado: “sangue por sangue, olho por olho, dente por dente.” (FERNANDES, 2002, p. 2)

A norma passou a carregar um atributo de valorização com relação à determinada conduta socialmente aceita, de modo a ser o fiel da balança entre o normal e o anormal ou patológico.

Cria-se, dessa feita, um arcabouço legal, em forma e códigos e resoluções normativas, baseado em um tipo mediano de homem, escolhido dentre aqueles dos grupos dominantes de então, o tão criticado “homem médio”.

 Assim, em um primeiro momento, o soberano agia de forma discricionária e autocrática, desvinculada de um ordenamento jurídico legítimo, afeto à idéia de justiça. E posteriormente, a infração tomou uma noção de direito e a pena, uma sanção legal, embora ainda com um caráter retributivo mais aflorado.

O sistema da repressão criminal veio mesmo a desenvolver-se no período humanitário, no século XVIII, que embora ainda trouxesse a idéia da retribuição pelo delito cometido, foi influenciado por pensadores como Cesare Beccaria, e quando em vez de adotar-se a severidade das penas, em uma época em que a tortura era a forma a mais comum de se obter a confissão do réu e a sua conseqüente punição, buscou-se defender os direitos fundamentais do acusado.

Da simples consideração das verdades até aqui expostas, resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido (…) é pois necessário escolher penas e modos de infligi-las, que, guardadas as proporções , causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a menos penosa no corpo do réu. (BECCARIA. In: GUIDICINI; BERTI, 1995, p. 62)

As normas tomam domínios cada vez mais diferenciados da esfera jurídica. Elas abarcam a medicina, a psiquiatria e as Ciências Sociais. Tudo isso se mistura em um conhecimento do final do século XIX: a criminologia.

O próprio discurso da criminologia é o domínio da antropometria lombrosiana, absurda maneira de caracterizar e conhecer um tipo perfeito de criminoso mediante um padrão fornecido pelo domínio do conhecimento das ciências supracitadas. Dessa maneira, as penalidades e mesmo a sexualidade se tornam instituições de ordem normativa que caracterizam a modernidade das relações entre saberes e poderes.

Apenas neste século, com o movimento da Nova Defesa Social, encabeçado por Marc Ancel, foi que a política criminal, ciência na qual o Estado se deve basear para prevenir e reprimir a delinqüência, tomou um novo rumo, procurando-se cada vez mais a reinserção do criminoso à sociedade e a prevenção do crime.

Nesse sentido, Beccaria comentou:

Trata-se, de fato, segundo as novas concepções, de garantir uma proteção eficaz da comunidade graças à apreciação das condições em que o delito foi praticado, da situação pessoal do delinqüente, de suas possibilidades e probabilidades de recuperação e dos recursos morais e psicológicos com que se pode contar, com vistas a um verdadeiro tratamento de ressocialização. (Apud FERNANDES, 2002, p. 3)

4.2. A pena privativa de liberdade como principal meio de punição

A pena de prisão deveria ser utilizada como último recurso para a punição do condenado é o que preconiza o Direito Penal Mínimo.

Entretanto, pela falta de estrutura do Estado, ela tem servido para retirar o indivíduo infrator do âmbito social e garantir segurança aos demais. Contudo, a pena privativa de liberdade não é apenas um meio de afastar aquele que cometeu um crime do seio da sociedade e mantê-lo à margem do convívio social, em virtude da sua “culpabilidade” e “periculosidade”. Deve ser também uma forma de dar-lhe condições para que se recupere e volte à vida em comunidade.

São estas as propostas oficiais de finalidade da pena, quais sejam: antes de tudo, a punição retributiva do mal causado pelo criminoso; a prevenção da prática de novos delitos, de modo a intimidar o delinqüente para não mais cometê-los, bem como intimidar os demais integrantes da sociedade; e por fim, transformar o preso de criminoso em não-criminoso, ou seja, ressocializá-lo.

Kaufmann observa bem os males que o encarceramento provoca no preso e as dificuldades de um retorno à vida social, ao afirmar:

(…) o preso é incapaz de viver em sociedade com outros indivíduos, por se compenetrar tão profundamente na cultura carcerária, o que ocorre com o preso de longa duração.

A prisonização constitui grave problema que aprofunda as tendências criminais e anti-sociais. (Apud FERNANDES, 2002, p. 3)

O isolamento social é um fator irreversível para o homem, que é um animal, por sua própria natureza, social. Della Torre aponta as conseqüências trazidas para o homem nestes casos:

(…) depois que o indivíduo está socializado, integrado à sociedade, se sofrer isolamento durante longo período poderá ocorrer: diminuição das funções mentais (torna-se imbecil ou melancólico) ou mesmo loucura (está sujeito a delírios, alucinações e até desintegração mental). Há inúmeros casos de prisioneiros que enlouqueceram nas prisões ou que quando de lá saíram já não eram os mesmos. (Apud FERNANDES, 2002, p. 4)

Enquanto os estabelecimentos prisionais vão aumentando, os mecanismos de ressocialização (disciplinares) se institucionalizam, decompondo-se em processos flexíveis de controle que se podem transferir e adaptar. Isso significa, em termos concretos, a multiplicação de prisões ao lado da proliferação de medidas que visam cada vez mais a manter unificada a sociedade, como o caso das penas alternativas, e outras.

Foucault (1996) descreve três grandes instrumentos disciplinares, reguladores de uma rede de poderes: “a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.” A norma passaria, assim, a ser regida por fundamentos do vigiar e do punir, escolhidos mediante um exame prévio socialmente acatado.

Torna-se para o Estado moderno muito mais vantajoso economicamente vigiar do que punir. Se o vigiar não é suficiente, lança-se mão do punir por meio de sanções normalizadoras, mesmo que excludentes e sumárias. Em nome da norma institucionalizada, enchem-se os porões das prisões.

Nesse sentido, Fernandes comenta:

Mesmo com as tentativas de sua abolição, como se fez com a tortura e a pena de morte, é, ainda, a pena privativa de liberdade a espinha dorsal de todo o sistema penal. Apenas, procura-se aplicá-la com um caráter mais excepcional, em consonância com a Teoria da Intervenção Mínima, até porque ela não se enquadra no Estado Democrático de Direito, nem no objetivo ressocializador da pena, cujo elemento nuclear é o desenvolvimento da personalidade e dignidade da pessoa. Mas, é tida como a única sanção aplicável em casos de grave criminalidade e de multirreincidência. (FERNANDES, 2002, p. 4)

Para fazer da prisão uma possibilidade de egresso da vida delituosa, os presídios têm que oferecer certas condições. Daí, a necessidade de classificação dos detentos, aplicando-lhes penas substitutivas quando a situação assim o permitir, esvaziando as prisões e, em conseqüência, melhorando a condição do Estado em criar alternativas que efetivem o verdadeiro fim da pena.

A ausência de critérios acomete, por exemplo, o preso acidental, que, por uma circunstância desfavorável, ingressa na prática delituosa e, ao adentrar a estrutura prisional, enterra lá suas esperanças de liberdade. Tal fato se deve ao acúmulo irregular de encarcerados das mais diversas origens e apenados de acordo com os mais diferentes crimes.

Clemmer aponta a estrutura da sociedade prisional, uma sociedade dentro da sociedade:

O mundo prisional é um mundo atomizado. Seus membros são como átomos a agir reciprocamente em confusão (…). Não há definidos objetivos comunais. Não há um consenso comum para um fim comum. O conflito dos internos com a administração e a oposição à sociedade livre estão em degrau apenas ligeiramente superior ao conflito e oposição entre eles mesmos… É um mundo de ‘Eu’, ‘mim’, e ‘meu’ antes que de ‘nosso’, ‘seus’, ‘seu’. (Apud FERNANDES, 2002, p. 4)

Como podem, então, ser reintegrados ao meio social se são rejeitados por esta sociedade, se são confinados à força, privados de autonomia de vontade, de recursos, de bens de natureza pessoal, de relações heterossexuais, da família, da segurança, se são submetidos a um regime de controle quase total, tendo de se adequar às condições de vida que lhe são impostas?

A Constituição Federal procura velar pela integridade física e pela dignidade dos aprisionados, tendo sido expressa ao assegurar “o respeito à integridade física dos presos” (art. 5º, XLIX). As Cartas anteriores já o consignavam, com pouca eficácia, referindo-se habitualmente a várias formas de agressão física a presos, a fim de extrair deles confissões de crimes.

Ademais, a Carta Magna determinou que “ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III).

A realidade é bem distinta. Os apenados, com base empírica do trabalho, são lançados à prisão sem qualquer critério de classificação, sendo abandonados pelo Estado e mantidos na ociosidade e no ódio pela sociedade que ali os flagelou.

Fernandes, sobre essa questão, observa:

(…) note-se que a pena de prisão atinge o objetivo exatamente inverso: ao adentrar no presídio, o apenado assume o seu papel social de um ser marginalizado, adquirindo as atitudes de um preso habitual e desenvolvendo cada vez mais a tendência criminosa, ao invés de anulá-la. (FERNANDES, 2002, p. 5)

Deve-se ter em mente que a pena de prisão é incapaz de trazer o condenado de volta ao convívio social considerado normal, sob o manto da lei e da moral. Por isso, a finalidade ressocializadora de tal pena é utópica.

5. O PROCESSO DE APLICAÇÃO DE PENAS ALTERNATIVAS

5.1. O monitoramento das Penas Alternativas

Sabe-se que a efetiva execução das medidas não-privativas de liberdade apresenta uma série de desafios ao formulador e ao executor da política penal contemporânea, notadamente no que se refere à necessidade de aperfeiçoar a fiscalização do cumprimento das penas e de aprimorar a capacitação de pessoal especializado para que esteja à altura desse horizonte de complexidade. Assim é que a reintegração bem-sucedida do apenado à comunidade depende do treinamento eficiente dos responsáveis pela supervisão dessas medidas.

Em síntese, é o desafio que se procura enfrentar com a edição do Manual de Monitoramento de Penas e Medidas Alternativas, pelo Ministério da Justiça, por meio da Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas – CENAPA, subordinada à Secretaria Nacional de Justiça, e que tem por objetivo realizar as ações necessárias ao incremento da aplicação das penas alternativas em nível nacional.

No primeiro momento, celebraram-se convênios com os Estados, para o estabelecimento de Centrais de Apoio, junto às respectivas Secretarias de Estado e Tribunais de Justiça.

Os recursos fornecidos pelo Ministério da Justiça, por meio desses convênios, permitiram a constituição, nos vários Estados, de mínima estrutura física, bem como a contratação de pessoal técnico especializado, para acompanhamento e fiscalização do cumprimento da execução das penas e medidas alternativas. (BRASIL, 2002)

Existem hoje Centrais de Apoio no Distrito Federal e em quase todos os Estados, sendo atendidos cerca de 21.560 beneficiários de penas e medidas alternativas, o que corresponde a 8,7% da população carcerária brasileira, que é de 248.685 presos. (BRASIL, 2002). A partir de 2001, a CENAPA, com o objetivo de desenvolver o Programa de Penas e Medidas Alternativas, constituiu uma Comissão Nacional de Apoio, composta de juízes de direito, promotores de justiça e técnicos em execução de penas alternativas, tendo sido realizadas diversas reuniões, em que se apresentaram problemas, discutiram-se soluções e se aprofundaram análises (varas especializadas, informatização, banco de dados, etc.), em amplo exercício democrático, para construção de política pública eficaz na área das penas alternativas.

O Manual contém a Metodologia de Apoio Técnico das Varas de Execução de Penas Alternativas, das Centrais de Apoio às Penas e Medidas Alternativas vinculadas às Varas de Execução Penal e aos Juizados Especiais Criminais.

Nesse documento, encontra-se descrito o processo de trabalho da Equipe de Apoio Técnico para auxiliar o Juízo da Execução e o Ministério Público na efetiva fiscalização do cumprimento da pena ou medida alternativa.

As Equipes de Apoio Técnico das Varas Especializadas e das Centrais de Apoio às Penas e Medidas Alternativas vinculadas às Varas de Execução Penal integram o setor de apoio técnico do Juízo da Execução. Nos Juizados Especiais Criminais, a Equipe de Apoio Técnico auxilia a Promotoria de Justiça.

 A Metodologia de Apoio Técnico é composta da concepção do monitoramento e envolve três módulos consecutivos de procedimentos técnicos, conforme ensina o Manual:

a) avaliação: corresponde ao procedimento técnico que faz a análise do perfil do beneficiário e da entidade parceira;

b) encaminhamento: corresponde ao procedimento técnico que assegura a relação formal entre o juízo da execução, o beneficiário e a entidade parceira;

c) acompanhamento: corresponde ao procedimento técnico que garante a fiscalização do fiel cumprimento da pena ou medida alternativa. (BRASIL, 2002, p. 8)

O módulo complementar é voltado para captação, cadastramento e capacitação de entidades parceiras, uma vez que a execução das penas e medidas alternativas depende da formação de uma rede social de apoio credenciada junto ao Juízo competente.

Os instrumentos de trabalho contemplam as modalidades de execução de pena ou medida alternativa que necessitam de apoio técnico, quais sejam: prestação de serviço à comunidade, prestação pecuniária, limitação de fim de semana e medida de tratamento. O Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas está estruturado em três capítulos:

a) Capítulo I aborda a concepção metodológica do monitoramento das penas e medidas alternativas;

b) Capítulo II descreve os procedimentos técnicos e suas respectivas rotinas de trabalho;

c) Capítulo III apresenta os instrumentos de trabalho a serem utilizados pela equipe de apoio técnico. (BRASIL, 2002)

Ao unificar os procedimentos técnico-operacionais do processo de execução das penas e medidas alternativas no Brasil, o Manual serve como referencial de trabalho, sem desconsiderar a necessidade de adequação às peculiaridades de cada realidade.

5.2. Princípios Fundamentais do Monitoramento

Segundo o Manual, três princípios regem o processo de monitoramento do trabalho de execução das alternativas penais, sendo eles:

a) Interinstitucionalidade: refere-se ao modo como o sistema de justiça interage entre si;

b) Interatividade: refere-se ao modo como o sistema de justiça interage com o sistema social;

c) Interdisciplinaridade: refere-se ao modo como o discurso e a prática do mundo jurídico interagem com o discurso e a prática do mundo dos fatos. (BRASIL, 2002, p. 11)

A interinstitucionalidade pode ser compreendida como a ação integrada do Estado, onde o sistema de Justiça abrange o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, a Secretaria de Justiça, Segurança Pública e a Defensoria. O grau de articulação entre essas instituições revela o nível de sustentabilidade político-institucional das alternativas penais.

O princípio da interatividade também assegura a sustentabilidade político-institucional do processo de trabalho na vertente da relação do Estado com a Sociedade Civil, tendo, como insumo, o exercício do controle social.

O Estado executa a política criminal e a Sociedade Civil a consolida como política pública, por meio da constituição da rede social de apoio à execução dos substitutivos penais.

                    A interdisciplinaridade aborda o modo como os peritos em comportamento interagem com os operadores do Direito. O processo é psicossocial e ocorre na esfera microssocial. Neste nível técnico-operacional, os principais atores envolvidos são: o Juízo da Execução, o Ministério Público, a Equipe de Apoio Técnico e a Comunidade. Essa rede social de apoio é composta por entidades parceiras que disponibilizam as vagas e viabilizam a execução penal propriamente dita e por entidades representativas da comunidade que legitimam e influenciam essa prática, dentre elas: OAB, universidades e organizações não-governamentais voltadas para área de justiça, cidadania e direitos humanos. (BRASIL, 2002).

Segundo o Ministério da Justiça, esse processo se desenvolve da seguinte maneira:

Em um primeiro momento, dá-se a interinstitucionalidade, na vertente da execução, sendo processada no campo da legalidade. Posteriormente, a interatividade processa-se no campo da legitimidade, voltada para o controle exercido pela sociedade sobre a ação do Estado. Os princípios da interinstitucionalidade e da interatividade representam o processo de execução das alternativas penais em esfera macrossocial e, quando articulados, compõem o corpo político do sistema de alternativas penais. (BRASIL, 2002, p.13)

As Regras de Tóquio, ao recomendar que os profissionais envolvidos em práticas alternativas sejam bem capacitados e treinados para a função, demonstram que o trabalho é delicado e requer compreensão entre o fato jurídico e o fato social. Quando trata da interdisciplinaridade, o Manual ensina que: 

O tema das alternativas penais tem forte caráter ideológico e aproxima o Direito do mundo dos fatos. À realidade jurídica cabe o caráter objetivo e prescritivo e à realidade social, a subjetividade das relações humanas e sociais. A interdisciplinaridade está na complementaridade destes dois campos de linguagem, onde o saber técnico-jurídico constrói correspondência de conceitos fundamentais. (BRASIL, 2002) 

O monitoramento das penas e medidas alternativas refere-se ao modo como o corpo político interage com o corpo técnico do sistema de alternativas penais, podendo ser representado, graficamente, da seguinte forma:

No conceito de monitoramento das alternativas penais, o Manual editado pela CENAPA ensina que o processo requer uma análise permanente da relação dialógica entre a dimensão político-institucional e a dimensão técnico-operacional para garantir a eficácia desse instrumento penal.

A concepção da metodologia de trabalho exposta esclarece que a base de sustentação de qualquer prática jurídico-legal, que visa a assegurar a reinserção do sujeito na sociedade, depende do tipo da relação estabelecida entre o órgão da execução e a comunidade.

O monitoramento da execução das penas e medidas alternativas está assentado em uma visão ampliada da temática da defesa de políticas públicas relacionadas com a questão do controle social. (BRASIL, 2002, p. 15)

Na perspectiva político-institucional, o monitoramento está diretamente relacionado ao tema da responsabilização da esfera pública, compreendida como atuação do Estado e da Sociedade Civil em favor do interesse público, pelas suas obrigações de respeito e proteção aos direitos sociais e humanos.

Na perspectiva técnico-operacional, o monitoramento das penas e medidas alternativas é o monitoramento da execução propriamente dita, como resultado do diálogo estabelecido entre a dimensão jurídica e a dimensão técnica durante o processo de cumprimento de uma pena ou medida.

O monitoramento técnico-operacional, que é o objeto do Manual editado pelo Ministério da Justiça – CENAPA, refere-se ao conjunto de procedimentos técnicos e administrativos necessários como apoio à execução e à fiscalização de uma pena ou medida alternativa. Efetivamente é o que faz funcionar a Lei n. 9.714/98, levando o beneficiado a um processo de ressocialização, por meio da punição aplicada e o monitoramento sistemático da pena e do comportamento do indivíduo.

A nomenclatura técnica para um indivíduo condenado que está cumprindo uma alternativa penal é “beneficiário”. No entanto, trata-se de um indivíduo infrator ou transgressor, sujeito de uma sanção penal, por conseguinte, um apenado, ou seja, pessoa que recebeu uma pena a cumprir. Não se refere, portanto, a benefício.

               No entanto, o Manual de monitoramento da penas e medidas alternativas esclarece:

As medidas penais substitutivas ou alternativas são penas, qualquer que seja o nome que recebem a forma de sua aplicação, já que são intervenções coativas do Estado.

Este Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas, nesta edição, mantém tecnicamente a nomenclatura beneficiário, por entender que: 

Essa nomenclatura faz parte da prática de profissionais da área psicossocial e não há, até o momento, uma terminologia ideal correspondente a ‘apenado’ no discurso técnico-científico, diante da recente prática da execução das alternativas penais; o termo ‘beneficiário’, lato sensu, refere-se ao sujeito que é beneficiado pelas alternativas penais à prisão; e a própria vagueza com que a legislação brasileira atual trata da nomenclatura e da amplitude de interpretações sobre os ilícitos diversos da pena de prisão, gera controvérsias no processo de normatização deste instituto penal. (BRASIL, 2002, p. 15)

Para efeito de esclarecimento, sem fazer qualquer diferença para a efetivação da alternativa penal aplicada, a nomenclatura correta, nos termos definidos pelo Ministério da Justiça, a respeito do indivíduo que está cumprindo uma pena alternativa é “beneficiário”, não cabendo o termo apenado.

5.3. Penas Alternativas nos dias de hoje

Apesar de caminharmos a passos tímidos, alguns progressos já são percebidos, como demonstrou a matéria do Jornal Folha de S.Paulo, de 14 de setembro de 2006, senão vejamos:

 Pesquisa mostra que o total de internos no sistema socioeducativo

cresceu 28% entre 2002 e este ano.

Enquanto o Brasil assistiu nos últimos anos a uma expansão em ritmo lento das matrículas no ensino médio, um outro número avançava bem mais rápido: o de adolescentes infratores internados para cumprir medidas socioeducativas.

Pesquisa divulgada ontem pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos mostra que o total de internos no sistema socioeducativo cresceu 28% entre 2002 e este ano.

Isso significa que há 15.426 jovens cumprindo penas com algum tipo

de restrição, sendo que, 68% deles, em regime de internação.

Ao passo que as matrículas no ensino médio, etapa que atende aos jovens, avançaram apenas 4% entre 2002 e 2005, último dado disponível no Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – Inep.

Somente o Estado de São Paulo concentra 39% dos internos, ocupando o topo da lista em números absolutos. O Acre responde pela maior proporção se comparado à população de 12 a 18 anos residente no Estado – são 20,7 internos para cada 10 mil moradores da faixa etária.

O Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei usou o Censo de 2000 para fazer a comparação.

Com isso, segundo o estudo, são 6,2 jovens internados ou em semiliberdade para cada 10 mil brasileiros de 12 a 18 anos.

Lotação

Assim como o sistema prisional, as unidades de atendimento socioeducativo enfrentam um problema preocupante.

Faltam pelo menos 3.396 vagas para atender a demanda. Em São Paulo, de acordo com o estudo, faltam 253 vagas.

‘Do déficit, destaca-se os 685 jovens e adolescentes em cadeias, sobretudo em Minas Gerais e Paraná’, diz a pesquisa.

‘Isso traz a obrigação de reforçar a primazia das medidas de meio aberto’, complementa Carmen Oliveira, subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Mesmo com o déficit de vagas, a pesquisa aponta aumento de 21% na capacidade de atendimento das unidades de internação. Passaram de 8.153 vagas em 2004 para 9.856 neste ano de 2006. (Grifos nossos)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema prisional toma proporções alarmantes e mobiliza a sociedade, por intermédio dos seus segmentos representativos, buscando soluções definitivas ou que, na pior das hipóteses, minimizem o problema.

É oportuno lembrar que a preocupação generalizada da população com respeito ao aumento da criminalidade está calcada em casos reais que recheiam o cotidiano de todos, e que a responsabilidade para o restabelecimento da tranqüilidade é de todos os segmentos, passando por medidas justas de aplicação das penalidades e mais eficientes na reintegração do infrator à sociedade.

Sob esse prisma, o presente estudo exploratório enveredou pela seara da execução penal, estudando a eficiência da Lei n. 9714/98, das Penas Alternativas, como instrumento de desafogo da grave e caótica situação carcerária brasileira.

Assim, depreendemos algumas conclusões, que evidenciam e justificam as hipóteses consideradas para o trabalho em tela:

a)        nos casos em que se aplicam alternativas penais, o índice de ressocialização tende a resultados mais satisfatórios em prol da comunidade, do Estado e do indivíduo beneficiado, o que implica, em uma perspectiva futura, melhoria nos índices de criminalidade;

b)        a reincidência, nos casos em que se aplicaram penas alternativas, tem-se mostrado imensamente reduzida (12,5%) em relação às penas privativas de liberdade (80%), ensejando eficácia do instrumento legal vigente;

c)        à medida que se aplicam penas alternativas em substituição às privativas de liberdade, reduz-se a população carcerária, favorecendo o controle do déficit de vagas nos presídios;

d)        o controle e o monitoramento das Penas Alternativas impõem uma participação social mais expressiva na execução criminal, envolvendo a comunidade no processo de reeducação, recuperação e ressocialização do indivíduo que comete delitos de menor gravidade, ao mesmo tempo em que requer o cumprimento fiel das normas estabelecidas para atingir os objetivos desejados;

e)        na aplicação de penas substitutivas como alternativas à prisão torna-se preciosa a centralização de instâncias de informações, execução e fiscalização das alternativas penais;

f)          para que as Penas Alternativas atinjam plenamente seu potencial educativo, socialmente útil, ressocializador e preventivo, faz-se necessária a capacitação, além dos agentes encarregados da execução, das entidades parceiras, públicas ou privadas;

g)        pela forma como o Manual de Monitoramento de Penas e Medidas Alternativas conduz o processo, faz-se necessário e muito importante que as equipes técnicas procedam a uma fiscalização rigorosa da execução das penas alternativas, para que estas atinjam plenamente seu potencial educativo, reintegrador e preventivo.

Sem rigor na fiscalização, corre-se o risco de associar as alternativas penais à ineficiência e à impunidade, recrudescendo a utilização do encarceramento como única resposta penal a todo tipo de ilícito, afrontando o Direito Penal Democrático que se inicia no Brasil;

h)        a questão criminal deve ser objeto de amplo debate na sociedade, conscientizando todos os segmentos da população de que se trata de um problema que exige a participação de todos na busca de formas de controle e prevenção.

Este conceito está expresso nas Regras de Tóquio (1988) da seguinte forma:

a participação da comunidade pode aumentar a confiança desta nas medidas não-privativas de liberdade e assegurar seu comprometimento com elas. Para o sucesso das medidas não-privativas de liberdade são indispensáveis o apoio e a participação ativa dos grupos e indivíduos interessados dentro da comunidade.

O delito é um fato social, que nasce no seio da comunidade e só pode ser controlado pela ação conjunta do governo e da sociedade, sob a forma do Estado Democrático de Direito.

Evandro Lins e Silva alerta que a prisão “perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece. É uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime”.

De fato, o índice de reincidência supera os 80%, as condições do encarceramento são subumanas, cerceando assim o desenvolvimento do caráter e a recuperação do preso.

As penas restritivas de direito, conhecidas como penas alternativas, destina-se àquele que pouco perigo traduz para a sociedade, seja pelo seu grau de culpabilidade, pelos seus antecedentes, pela sua conduta social e personalidade.

 

A intervenção da Justiça Criminal tem por objetivo prevenir o delito, promover a segregação punitiva do infrator, constituindo a última reação do Estado em face da criminalidade. Por isso, é forçoso reconhecer a importância da aplicação de penas alternativas e da reinserção do infrator na sociedade, sem se esquecer da reparação do dano causado à vítima.

As alternativas penais representam, um dos meios mais eficazes de prevenir a reincidência criminal, devido ao seu caráter educativo e socialmente útil, pois enseja que o infrator, cumprindo sua pena em “liberdade”, seja monitorado pelo Estado e pela comunidade, facilitando grandiosamente a sua reintegração à sociedade.

O estudo que ora se encerra não esgota, de maneira alguma, o debate nem tampouco a pesquisa acerca do assunto exposto.

As Penas Alternativas, sem dúvida, se apresentam como valioso instrumento que pode colaborar, de forma expressiva, na solução dos problemas relacionados à criminalidade no Brasil.

Para tanto, precisam ser alvo da mais profunda, constante e consciente discussão científica para que seus resultados se revelem, de fato, ‘pro reo’, e ‘pro societate’.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] MARCO ANTÔNIO GARCIA DE PINHO é Bel. em Direito pela Universidade FUMEC, MG. Pós-Graduado em Direito Público pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, MG/DF. Pós-Graduado em Direito Social pelo Centro Universitário Newton Paiva, MG. Pós-Graduado em Direito Processual pelo LFG – Instituto Luiz Flávio Gomes & Ada Pellegrini Grinover, SP. Pós-Graduado em Direito Privado pelo Instituto Metodista Izabela Hendrix, MG. Aprovado no processo de seleção para Doutorado em Ciências Jurídicas & Sociais pela ANAMAGES & UMSA Universidad del Museo Social Agentino, em Buenos Aires, ARGENTINA. Autor de artigos e ensaios jurídicos, é também Consultor Jurídico Bilíngüe e servidor no TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais.   Janeiro de 2007.

 [2] BRASIL, 2001. Disponível em: <http//:www.mj.gov.br>. Acessado em: 12 dez. 2006.

TRF assegura divisão de pensão por morte entre esposa e concubina adulterina

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DECISÃO:  TRT-RJ –  2ª Turma determina rateio no percentual de 70% para a esposa e 30% para a concubina.

Uma mulher que viveu durante 25 anos com ex-militar mesmo sabendo que ele era casado ganhou na Justiça Federal o direito de receber 30% de pensão do INSS, concedida  após a morte do companheiro. Comprovação de convivência e prova de dependência econômica garantiram o direito. Ainda de acordo com a decisão da 2a Turma do TRF, a esposa legítima do ex-militar, com quem conviveu por 60 anos e teve quatro filhos e que supostamente só teria tomado conhecimento do adultério após a morte do marido, deverá receber 70% da pensão. De acordo com os comprovantes do INSS anexados aos autos e parecer do Ministério Público Federal – MPF, a totalidade da pensão corresponde a cerca de 32 mil reais. O julgamento ocorrido na 2ª Turma do TRF-2ª Região, assegurando o direito da pensão por morte desde 2002, ano do falecimento do ex-militar, e determinando o rateio entre a viúva e a companheira, ocorreu em resposta a um agravo interno interposto pela esposa do ex-militar e retificou a sentença da 35ª Vara Federal do Rio, que havia determinado ao INSS a divisão da pensão em partes iguais.

No entendimento do relator do caso no TRF, desembargador federal Messod Azulay Neto, a ação trata de uma questão controvertida: o concubinato adulterino: “Este tema deve ser abordado com cautela pois, por um lado, há o risco de adotar-se uma postura rígida, cega às transformações da realidade social; por outro lado, o perigo de se desprezar as normas legais e os princípios constitucionais, no afã de afastar um julgamento supostamente preconceituoso ou retrógrado”, afirmou.         

A discussão ainda não está pacificada na Justiça brasileira. O Supremo Tribunal Federal – STF vem discutindo, em um recurso extraordinário, um caso semelhante ao apreciado pelo TRF da 2ª Região, mas o julgamento se encontra suspenso, em razão de um pedido de vista dos autos feito pelo ministro Carlos Brito. A ação teve origem na Bahia, onde o Tribunal de Justiça acolhera pedido formulado em apelação, reconhecendo o direito ao rateio, com a esposa legítima, da pensão por morte de um homem, considerada a estabilidade, publicidade e continuidade da união entre a concubina e o falecido, da qual nasceram nove filhos. O Min. Marco Aurélio, relator, deu provimento ao recurso por entender que, embora não haja imposição da monogamia para ter-se configurada a união estável, no caso, esta não tem a proteção da ordem jurídica constitucional, haja vista que o art. 226 da CF tem como objetivo maior a proteção do casamento.

No processo julgado pelo TRF que tem sede no Rio de Janeiro, A.D.A.P., a concubina, havia ajuizado ação ordinária na 1a Instância quando o INSS suspendeu o pagamento de 50% da referida pensão, concedida em sede administrativa pela autarquia desde fevereiro de 2003, atendendo determinação da Justiça Estadual que, em sentença transitada em julgado, declarou a inexistência de união estável entre A.R. – o ex-militar – e a companheira.       

A concubina, então, trouxe aos autos, na Justiça Federal, declarações de vizinhos, da síndica e de amigos do ginásio que o falecido freqüentava, que, em síntese, relataram que o casal participava de almoços juntos, que ele guardava o carro na garagem do prédio, que não viam os filhos e netos do ex-militar visitarem o casal, que a concubina não trabalhava e que comemoraram os 40 anos de convivência em um restaurante, em outubro de 1996, onde o ex-integrante das forças armadas confessou a uma das testemunhas que não eram casados, mas era como se fossem. Ainda para comprovar a relação estável e a dependência econômica, foram anexados ao processo dois bilhetes redigidos pelo ex-militar, onde consta um pedido para que os filhos não abandonem sua companheira, se necessitar de apoio. Foram também juntados extratos bancários do ex-militar com o endereço da concubina, extratos e folhas de cheques de contas-conjuntas em cinco bancos e declaração de imposto de renda onde consta informação sobre ajuda financeira em favor da concubina. Há também nos autos recibos de compra de eletrodomésticos, apólice de seguro de acidentes pessoais, recibos de despesas médicas, comprovante de pagamento de telefone e contrato de locação de bem imóvel, tudo em nome do militar falecido, com o endereço da concubina.

Por outro lado, a esposa legítima, R.C.R., apresentou também vários documentos que comprovam sua plena convivência marital com o ex-militar, até o dia de seu óbito. Foram anexados, para isso, entre outros documentos, certidões de casamento, de óbito, de registro dos filhos, contas de luz, recibo de remoção em ambulância, de despesas do hospital e correspondências do Ministério da Marinha, todos com o endereço da esposa. Além disso, foram anexados ao processo contra-cheque e conta conjunta do casal em um banco, convite de bodas de prata de 1971, convite de bodas de ouro de 1996, além de fotos e depoimentos de testemunhas que relataram que freqüentavam a casa do casal, que estaria sempre junto nas festas, batizados, churrascos e no natal. Os relatos também dão conta de que no fim de semana os amigos  se encontravam para jogar baralho na casa do ex-militar e de sua mulher, até de madrugada; e que o falecido era muito atencioso com a esposa, além de ter sido excelente marido, pai, avô e bisavô.

Em seu detalhado voto, o desembargador federal Messod Azulay, relator do caso, explicou que a finalidade do Direito Previdenciário é assistencialista, na medida em que “o objetivo se concentra em garantir uma subsistência ao sujeito, evitando a miserabilidade e a afronta à dignidade humana. A Seguridade Social, que abrange os direitos à saúde, à assistência social e à previdência, sob o enfoque de um sistema de benefícios, em prol dos incapazes e carentes, é um direito social que se sobrepõe ao interesse privado; já a face previdenciária da seguridade depende de uma contraprestação e os beneficiários estão elencados nos dispositivos legais”, ressaltou. Além disso, “a jurisprudência, com a justificativa do caráter social dos fins previdenciários, se inclina pela divisão eqüitativa da pensão de morte entre a esposa legítima e a concubina, ainda que sejam simultâneas as relações. No entanto, – continuou – “ousarei divergir deste entendimento, com fundamento na doutrina, nos valores constitucionais, na legislação pertinente e com o foco nas circunstâncias deste caso concreto”.

No entendimento do desembargador, “em face das robustas e convincentes provas apresentadas, não se pode deixar de constatar que a concubina tinha uma relação contínua e duradoura com A.R. e que este era casado, convivendo com a esposa; fica, então, patente a vida dupla do ex-militar, um forte vínculo com A.D.A.P. e a manutenção do matrimônio com R.C.R.”. No entanto, “a jurisprudência está pacificada no não reconhecimento do concubinato adulterino como união estável. De modo geral, reconhece-se, uma relação simplesmente obrigacional, como sociedade de fato, para evitar o enriquecimento ilícito. Observa-se que, como conseqüência desse posicionamento, há unanimidade, também, em relação à inexistência de direitos relativos ao nome, herança e partilha de bens. Já em relação aos direitos previdenciários, há jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de conceder pensão à concubina, desde que reconhecidas, em juízo, circunstâncias especiais.”

O relator fez questão de ressaltar em seu voto que, “em um concubinato adulterino, não se configura uma união estável, tampouco se pode considerá-lo uma entidade familiar pois, tanto o artigo 1o da Lei 9.728/96 quanto o artigo 1.723 do Código Civil, conceituam este instituto dentro de uma ótica de ‘objetivar a constituição de uma família’; além disso, não vislumbro, no caso em questão, os requisitos de ostensividade (talvez uma certa publicidade restrita para um pequeno grupo de amigos), nem o objetivo de constituir família, portanto, não há uma entidade familiar, no sentido de inserção social”, explicou. Além disso, – continuou – “não faz sentido o ordenamento jurídico estabelecer a monogamia, a fidelidade, o respeito e a lealdade como deveres dos conviventes e, ao mesmo tempo, prestigiar uma relação onde se descumprem estes mesmos deveres impostos pelo próprio ordenamento, o que implicaria em contradição e inconsistência jurídica. Não se trata de condenar ou punir a concubina adulterina, mas de reconhecer de que esta situação não possui eficácia jurídica”, destacou.

Em suma, o desembargador entendeu que “concedendo às duas partes o direito à pensão e diferenciando a proporção do rateio, com um maior percentual para a esposa, busco a conciliação da forma que considero mais justa, dentro do livre convencimento que se faculta ao magistrado, regulando a liberdade em prol da solidariedade, ou seja, da tutela de toda a sociedade. Portanto, face ao exposto acima, considero que o presente feito é hipótese de reconhecimento de circunstâncias especiais para que se divida, em definitivo, a pensão de morte entre a viúva e a concubina. Além disso, pesando as circunstâncias fáticas e as de direito, concluo, com base na eqüidade, no livre convencimento e no princípio da igualdade material, pelo rateio da pensão no percentual de 70% para R.C.R. e 30% para A.D.A.P”.

Por fim, no que se refere aos valores atrasados, a partir da suspensão do benefício até o seu restabelecimento, o Juízo de 2o Grau determinou o pagamento desses valores à concubina: “No caso, de acautelados, deverão ser pagos pelo próprio INSS, na proporção de 70% para a esposa e 30% para A.D.A.P. e se, já tiverem sido pagos à R.C.R., determino que sejam compensados, devidamente”. Para o relator, “considerando que a pensão de A.R. não é de pequeno valor (cerca de 32 mil reais), e que a justificativa para a construção jurisprudencial no sentido da concessão de benefícios previdenciários, em uma relação adulterina, vedada por nosso ordenamento, é o seu caráter de assistencialismo, que 30% do valor desta pensão seja suficiente para afastar a condição de miserabilidade e para garantir a subsistência da concubina”. Proc.: 2005.51.01.516495-7


FONTE:  TRF2, 05 de setembro de 2007.

A pornografia infantil virtual e as dificuldades jurídicas para combatê-la.

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* Demócrito Reinaldo Filho

O caso do Second Life

           Há pouco mais de uns três meses, uma reportagem noticiou que usuários do site Second Life(1) estariam sendo investigados pela polícia alemã sob acusação de práticas pedófilas. Segundo a notícia(2), os pedófilos estariam atuando nesse "mundo virtual" através de seus personagens (avatares)(3), para representar atos que envolvem sexo com crianças. Em uma das cenas registradas, a imagem computadorizada de uma criança é abordada por um adulto, que lhe entrega quantia equivalente a dois euros e, então, a leva a um quarto, onde abusa dela sexualmente. Em outra cena denunciada pela reportagem, um grupo de usuários do Second Life assiste a seguidos estupros de uma menina virtual de 13 anos.

            A empresa Linden Lab, baseada em São Francisco (EUA), criadora do jogo Second Life(4), afirmou que vai colaborar com a Agência Central de Prevenção à Pornografia Infantil, baseada na cidade de Halle, na Alemanha, na identificação dos usuários envolvidos nos atos virtuais. O promotor alemão Peter Vogt, responsável pelas investigações, assegurou que sua intenção é identificar os usuários e levá-los à Justiça(5).

            As declarações do promotor alemão soam mais como ameaça do que como medida efetiva de persecução e punição criminais. De fato, quais crimes teriam sido cometidos no ambiente virtual do Second Life? A imagem representativa da criança não é uma criança real, nem sequer relacionada a uma pessoa (através de nome ou outros caracteres) real. Nem os pedófilos nem suas vítimas existem realmente, mas somente as pessoas que participam desse jogo e desempenham esses papéis nesse "mundo virtual". Os avatares que representam graficamente as crianças podem ter sido criados e estar sendo utilizados por pessoas adultas(6). Ou seja, provavelmente os usuários que estavam por trás dos "avatares" abusados virtualmente (e seus agressores virtuais) são maiores de idade e, portanto, mesmo que se consiga identificá-los (através dos números de IP ou qualquer outra técnica de rastreamento), será possível responsabilizá-los? Os usuários que cometeram esses atos virtuais podem ser enquadrados em qual tipo penal?

            Ainda na mesma reportagem, foi atribuída a seguinte afirmação ao promotor alemão: "Podemos contar com um processo criminal por oferta de pornografia de terceiros, que pode levar a penas de três meses a cinco anos de prisão"(7). Mas será mesmo que o promotor Peter Vogt tem base legal para punir os usuários que participaram da difusão das imagens de vídeo de sexo on line em três dimensões? É bom lembrar que as cenas difundidas no Second Life não se equiparam a fotografias ou imagens de crianças reais, nem mesmo são fotografias de pessoas com aparência de crianças. As imagens virtuais que lá foram exibidas, dos avatares de um homem adulto e de uma menina menor de idade simulando sexo, mais se assemelham às características do "desenho animado" (cartoon) do que qualquer outra coisa. A distribuição desse tipo de material ou conteúdo visual, portanto, pode ser enquadrado como crime de pornografia infantil virtual?

            A resposta é: imagens dessa natureza podem ser enquadradas como pornografia infantil virtual, dependendo do estágio atual da evolução da legislação do país específico onde os atos forem considerados realizados. Explico:

            A legislação dos países modernos é bem rígida quando se trata de punir a produção e distribuição de fotografias indecentes, que envolvam cenas de sexo com crianças. Então, essa "legislação de primeira geração", digamos assim, está apta a oferecer resposta punitiva a uma primeira categoria de pornografia infantil: a que se realiza com a produção ou distribuição de material proveniente de abuso sexual a crianças reais.

            É o caso da legislação brasileira, pois o art. 241 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), na redação que lhe foi dada pela Lei 10.764/03, pune quem "apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive Internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente", com pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Assim, quem fotografar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente, está sujeito às penalidades da legislação criminal brasileira.

            A nova redação do art. 241 do ECA (Lei 8.069/90) não alcança, no entanto, as "simulações" de pornografia infantil, pois como visto ela só tipifica a disseminação de imagens que sejam efetivamente a reprodução de cenas que envolvam a participação real de menores. A legislação brasileira é suficiente para reprimir apenas esse tipo de pornografia infantil, mas deixa espaço para a prática de um outro tipo de conduta também nociva à sociedade, que consiste na produção e distribuição de imagens fotográficas contendo sexo explícito que não utilizem crianças reais. Essa segunda categoria de pornografia infantil é fruto de técnicas de computação gráfica (ou mesmo através do emprego de adultos com a aparência infantil), que simulam cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas. Esse tipo de material visual aparenta descrever essas cenas, mas na verdade é produzido sem a participação efetiva de uma criança. O desenvolvimento da tecnologia, sobretudo de softwares de computação gráfica, permitiu produzir e disponibilizar imagens dificilmente distinguíveis de uma fotografia (ou vídeo) de uma criança real abusada sexualmente.

            Essas "simulações fotográficas" caracterizadas pela utilização de imagens de pessoas com aspecto infantil, que não podem ser distinguidas (pelo menos sem o uso de recursos técnicos) de fotografias de cenas reais de crianças exploradas sexualmente, também são chamadas de "pseudo-pornografia", termo que é utilizado para definir todo tipo de montagem de imagem indecente criada por recursos computacionais (softwares de computação gráfica). Com efeito, uma "pseudo-fotografia" pode ser definida como uma imagem, quer feita com a utilização de computação gráfica ou outro recurso, que aparente ser uma fotografia. Por sua vez, a "pseudo-pornografia infantil" pode ser conceituada como o ato de produzir ou distribuir imagens criadas artificialmente (mediante a utilização de recursos computacionais gráficos ou qualquer outro método), que aparentem ser a reprodução fotográfica de uma criança real em situação de exploração sexual.

            Durante a tramitação do projeto (da Lei n. 10.764/03) pela Câmara, o relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJR), Deputado Carlos Biscaia (PT-RJ), ofereceu subemenda em forma de substitutivo que propunha uma redação diferente a esse artigo, de maneira alcançar também a utilização de imagens simuladas. O substitutivo acrescentava um parágrafo (3o.) ao art. 241, definindo pornografia infantil como "qualquer representação, por qualquer meio, de criança ou adolescente no desempenho de atividades sexuais explícitas ou simuladas.. .". Pretendia assim, como se disse, criminalizar a chamada "pornografia infantil virtual", entendida esta como o material visual que aparenta descrever cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas, mas que na verdade é produzido sem a participação efetiva de uma criança (menor de 18 anos). Esse adendo, no entanto, foi suprimido quando o projeto retornou ao Senado para reapreciação(8).

            Embora a legislação brasileira não se mostre adequada para combater esse segundo tipo de pornografia infantil, outros países já resolveram o problema, reformulando suas legislações para reprimir também a pornografia infantil que não represente um registro permanente de um efetivo abuso sexual contra uma criança real. É o caso, por exemplo, dos EUA, onde uma nova ação legislativa foi tomada, através da edição do "PROTECT ACT"(9), que criou uma sub-categoria estreitamente definida de imagens proibidas. A Lei estabelece hipótese de pornografia infantil "quando a descrição visual é uma imagem, imagem de computador ou gerada por computador que seja, ou que seja impossível de distinguir, de um menor engajado em conduta sexual explícita"(10). Na Inglaterra, da mesma maneira, a lei já pune a prática da produção e disseminação de imagens e cenas indecentes que não sejam distinguíveis de fotografias de crianças reais. O "Protection of Children Act", de 1978(11), foi emendado(12) para cobrir a produção, distribuição ou apresentação de fotografias (o que inclui imagens de vídeo) ou pseudo-fotografias de crianças em cenas indecentes(13).

            Além da pornografia infantil veiculada por meio da fotografia de uma criança real ou pseudofotografia de criança (a imagem feita por meio de computação gráfica ou de outra maneira que aparente ser uma fotografia), ainda temos uma terceira geração de pornografia infantil, mais difícil de ser combatida.Trata-se de todo o conjunto de imagens que constituem o espectro de pornografia infantil não fotográfica (non photographic child pornograph). Nessa categoria se enquadram todas as imagens no estilo fantasia (fantasy stile), a exemplo dos cartoons, desenhos animados (mesmo aqueles em 3D), pinturas e toda forma de material visual que descreva cenas de sexo com crianças, mas não se confundem com uma fotografia ou não causam a impressão de que derivam de uma criança real. Cartoons, imagens animadas, desenhos e toda série de trabalhos gráficos dotados de animações com intenções voltadas à pornografia infantil, mas que são facilmente distinguíveis de cenas reais, constituem essa terceira categoria de pornografia infantil.

            A diferença entre esta última e a segunda categoria de material ou conteúdo pornográfico infantil está em que as descrições gráficas são facilmente distinguíveis da realidade. Ao contrário da precedente, imagens de desenhos, cartoons ou pinturas caracterizando sexo com crianças são facilmente distinguíveis da realidade, isto é, a pessoa que as vê percebe com facilidade que não retratam pessoas reais. Já as pseudofotografias, aquelas "simulações fotográficas" feitas por meio do uso da computação gráfica, caracterizam-se pela dificuldade de distinguir se são ou não reais, isto é, se são a representação de pessoas reais fotografadas em cenas obscenas ou se são apenas montagens geradas para dar essa impressão. Se uma pessoa ordinária vê uma dessas pseudofotografias, por serem indistinguíveis de uma cena real capturada por máquina fotográfica ou filmadora, conclui que a cena envolve uma criança real engajada em conduta sexual explícita. Tal sensação não ocorre quando se trata de cartoons, desenhos ou pinturas que representem menores em cenas obscenas, pois aí não há essa dificuldade em distinguir o que é real ou apenas fruto da computação gráfica.

            As imagens que aparecem no Second Life contendo cenas de sexo entre adultos e menores se enquadram nessa última categoria, da terceira geração de pornografia infantil. O cenário e as pessoas (avatares) que transitam nesse ambiente virtual são facilmente distinguíveis da realidade, no sentido de que quem o acessa não tem a impressão de que pessoas reais circulam nesse ambiente. O ambiente gráfico do "jogo" mais se assemelha à conotação visual de um desenho animado e os "avatar" – a representação de cada usuário nesse ambiente – não é formado por uma foto e com características idênticas da pessoa do participante.

            Por serem, portanto, "imagens de fantasia", mesmo aquelas em que crianças aparecem sofrendo abusos sexuais, a sua divulgação não é suficiente para caracterizar o crime de pornografia infantil, a não ser que a lei tenha previsão para criminalizar também esse tipo de conteúdo obsceno. As imagens gráficas (em computação, dos avatares) de um homem adulto e da menina menor de idade simulando sexo compõem o espectro de animações gráficas que se assemelham às características do "desenho animado" ou cartoon.

            Pelo menos pela incipiente lei brasileira (art. 241 do ECA, com a redação da Lei n. 10.764/03), não se teria como caracterizar essa situação como crime de pornografia infantil. A esmagadora maioria das legislações de outros países também não está aparelhada o suficiente para combater essa nova modalidade de pornografia infantil que começa a infestar a Internet.

            Com o desenvolvimento da tecnologia, as legislações penais dos países passaram a sofrer de um gap em relação às imagens de "fantasia" de abuso sexual de menores. Somente uma nova ação legislativa seria capaz de afastar essa ameaça aos esforços estatais de combate à pornografia infantil, através da criação de uma subcategoria estreitamente definida de imagens ilícitas (cartoons, desenhos e imagens animadas envolvendo menores em cenas obscenas). Uma atuação legislativa é necessária para impedir a disseminação dessa nova categoria de pornografia infantil na Internet. Sem isso, fica impossível para a polícia prender ou mesmo para o Ministério Público denunciar as pessoas que possuem, produzem e divulgam esse tipo de imagens ("fantasy style").

            Há uma compreensão generalizada entre os estudiosos de que existe uma relação direta entre o número de crimes de pedofilia e a difusão de material pornográfico infantil na Internet. As imagens divulgadas no Second Life, envolvendo reproduções animadas de sexo com crianças, servem como combustível para o abuso de crianças reais, por funcionar revigorando os sentimentos pedófilos de potenciais predadores sexuais. No mínimo, a circulação desse tipo de material serve para inculcar e desenvolver uma cultura ou sentimentos pedófilos.

            A legislação, portanto, precisa evoluir para oferecer uma resposta a essa nova realidade trazida com o desenvolvimento tecnológico, com a criação de um novo tipo penal de possessão e divulgação de arquivos contendo imagens não fotográficas de abuso sexual de crianças.

            Canadá, Estados Unidos e Austrália já possuem legislação criminalizando a posse, distribuição e divulgação de imagens não fotográficas (non photographic images) de cenas de sexo ou abuso a crianças, o que cobre qualquer material obsceno produzido através de desenho animado (cartoon), pinturas, esculturas e outras formas de representação gráfica. O Home Office da Inglaterra, Departamento do Governo encarregado de proteger o público contra o terrorismo e o crime, lançou recentemente uma consulta(14) sobre a proposta de criar um novo tipo de crime relativo à possessão de imagens não fotográficas que retratem abuso sexual de crianças. A atual lei inglesa somente proíbe a posse de fotografias ou pseudofotografias que contenha esse tipo de conteúdo, mas a proibição não alcança cartoons, desenhos animados, pinturas e todo tipo de imagens que compõem o gênero "estilo fantasia".

            O citado "Protec Act", a lei americana de proteção às crianças na Internet, contém uma seção específica sob o título Obscene Visual Representations of The Sexual Abuse of Children, onde prevê expressamente a punição de qualquer pessoa que "deliberadamente produz, distribui, recebe ou tem a posse com intenção de distribuir(15), uma representação visual de qualquer tipo, incluindo um desenho, cartoon, escultura ou pintura que descreva um menor engajado em conduta sexualmente explícita, seja obscena ou descreva uma imagem gráfica que é, ou aparente ser, de um menor engajado em bestialidade, sádico ou masoquista abuso, sexual intercurso, incluindo genital-genital, oral-genital, anal-genital ou oral-anal, quer seja entre pessoas do mesmo ou de diferente sexo"(16) (grifo nosso). Para configurar o crime e permitir a punição do agente, a lei ressalva que o material tem que ser despido de "sério valor literário, artístico, político ou científico".

            Como se observa, alguns países já resolveram o problema, criminalizando a posse e distribuição de material visual não fotográfico que descreva abuso sexual de criança, ou estão no caminho de fazer isso (como é o caso da Inglaterra). Falta ao Brasil tomar a mesma iniciativa, sob pena de o ato de publicar cenas como as que foram transmitidas no Second Life ficar sem qualquer tipo de repressão, em ocorrendo de os responsáveis residirem em território brasileiro.

            O ideal seria a criação de um novo tipo penal, uma subespécie do crime de pornografia infantil, para cobrir os casos de posse, produção e distribuição de pseudofotografias e cartoons, desenhos e qualquer outro material visual que descreva cenas obscenas envolvendo crianças e adolescentes. Isso poderia ser feito facilmente, simplesmente acrescentando-se um parágrafo ao art. 241 do ECA, com a previsão de que também incorreriam no crime de pornografia infantil todo aquele que produz, vende, fornece, divulga ou publica por qualquer meio, pseudofotografias ou "qualquer representação visual" de uma cena de sexo explícito com criança ou adolescente. Um descritor normativo desse tipo seria suficiente para abranger não somente as pseudofotografias (aquelas indistinguíveis de uma foto real), como também qualquer cartoon, desenho, imagem gerada por computação gráfica ou pintura de conteúdo pornográfico infantil.

            O legislador, no entanto, teria que tomar algumas precauções. As penas não poderiam ser as mesmas para quem distribui material proveniente de um efetivo abuso a uma criança real e para aquele que apenas gera cenas de pornografia infantil utilizando-se de técnicas de computação gráfica. Em parágrafo subseqüente, deveria criar um tipo penal para criminalizar a simples posse de material pornográfico infantil, também com penas menos severas. A criminalização da posse permitiria à polícia apreender imagens com pornografia infantil, retirando de circulação esse tipo de material.

            Outra precaução seria ressalvar o material de valor artístico e histórico. Itens de genuíno valor histórico, artístico ou científico devem ficar livres do alcance da lei, em razão de ter que se garantir a liberdade de expressão das pessoas, na manifestação de seus sentimentos artísticos e culturais(17).

            Urge que essas medidas legislativas sejam adotadas. O Estado tem um interesse direto na repressão da pornografia infantil, quer seja ela a representação gráfica de um ato de abuso sexual contra menores, seja quando representa um incentivo a esse tipo de crime – o que ocorre quando imagens de crianças molestadas sexualmente são divulgadas. Os pedófilos distribuem esse tipo de material não somente para simplesmente extravasar suas (doentias) fantasias sexuais, mas sobretudo para difundir uma espécie de filosofia pedófila. Muitas pesquisas sugerem que a divulgação de pornografia infantil, em qualquer de suas formas, contribui para o aumento de crimes sexuais contra menores.

            O caso do Second Life revela que o mercado da pornografia infantil se diversifica e tende a crescer. Novas formas de apresentação de pornografia infantil espoucam na Internet, benefíciando uma cultura pedófila. Uma omissão das autoridades em agir agora certamente levará ao crescimento desse mercado negro no futuro. O meio mais expedito e eficiente de eliminar esse mercado é através da criação de leis e imposição de penas severas, a quem quer que mantenha em sua guarda, venda, faça propaganda ou divulgue pornografia infantil, em qualquer de suas formas.

 


Notas:

 

            (1) O Second Life (Segunda Vida, em inglês) é um mundo virtual em que os usuários criam figuras (ou avatares) para viver uma vida virtual. Atualmente, o site conta com mais de 6 milhões de habitantes, um número que cresce diariamente.

            (2) Publicada no site da Folha On Line, do dia 09.05.07, em http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u62141.shtml

            (3) No programa Second Life, os usuários interagem no ambiente virtual através de figuras – os avatares -, que são a representação virtual de suas pessoas.

            (4) http://secondlife.com/

            (5) Ver também notícia sobre o assunto publicada no site Consultor Jurídico – http://conjur.estadao.com.br/static/text/55579,1

            (6) O Second Life tem uma política para evitar a participação de menores no "jogo", tanto que um dos requisitos para acessar o ambiente é fornecer os dados de um cartão de crédito.

            (7) A pena prevista na legislação alemã por pornografia infantil na internet, com uso de imagens, é de 5 anos de prisão, segundo a reportagem.

            (8) Por essa razão, nossa legislação sofre de um gap em face do avanço das tecnologias da informação, que facilitam a distribuição de pseudopornografia infantil pela Internet. A legislação parece tão atrasada que nem sequer pune a simples posse de pornografia infantil (em qualquer de suas modalidades), a não ser que se considere que o verbo "apresentar", incluído no descritor normativo do art. 241 do ECA (na redação dada pela Lei 10.764/03), corresponde à atitude de alguém possuir ou manter, em casa ou em disco do computador, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente. Parece-nos, no entanto, que esse vocábulo procura expressar a conduta de quem expõe, exibe, mostra ou coloca o material ilícito (a imagem ou filme) ao conhecimento de outras pessoas. Legislações de outros países pune a simples posse de material pornográfico infantil, mesmo sem fins de revenda ou difusão.

            (9) O texto pode ser encontrado em: http://judiciary.senate.gov/special/S151CONF.pdf

            (10) Além disso, passou a prever que a prova de não uso de crianças em material de pornografia seria considerada uma affirmative defense, isto é, um ônus processual do réu ou incriminado. A lei, portanto, simplesmente transferiu o ônus da prova da (i)licitude da acusação para a defesa. Sugerimos, para quem quiser maiores informações sobre a matéria, a leitura de nosso artigo "O ‘PROTECT Act’ – a lei americana de proteção às crianças na Internet (parte II), publicado em 13.10.2003, em http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1891&.

            (11) O texto pode ser encontrado em: http://www.geocities.com/pca_1978/reference/pca_1978am2003c42.html#1

            (12) Na Inglaterra, o Protecion of Children Act 1978 (citado pela abreviatura de "POCA 1978"), foi emendado para cobrir a produção, distribuição ou apresentação de fotografias indecentes (o que inclui imagens de vídeos) ou pseudofotografias de crianças. A Lei foi estendida pela Section 160 do Criminal Justice Act 1988 ("1988 Act"), para cobrir a simples posse de uma fotografia indecente ou pseudofotografia de uma criança. Pouco depois, o Criminal Justice and Public Order Act 1994 emendou o "POCA 1978" e o "1988 Act" para incluir pseudofotografias dentro da definição de material ilegal. Por fim, o

            Sexual Offences Act 2003 elevou a idade da criança de 16 para 18 anos.

            (13) O conceito de indecência é deixado para exame das cortes judiciárias.

            (14) http://www.homeoffice.gov.uk/documents/cons-2007-depiction-sex-abuse?view=Binary

            (15) A simples posse de material obsceno não fotográfico, mesmo sem intenção de distribuição, também é punida em outro dispositivo da mesma seção – ‘‘(b) ADDITIONAL OFFENSES"—, mas com penas diferenciadas.

            (16) § 1466A. Obscene visual representations of the sex ual abuse of children

            ‘‘(a) IN GENERAL.—Any person who, in a cir cumstance described in subsection (d), knowingly pro duces, distributes, receives, or possesses with intent to distribute, a visual depiction of any kind, including a drawing, cartoon, sculpture, or painting, that—

            ‘‘(1)(A) depicts a minor engaging in sexually explicit conduct; and

            ‘‘(B) is obscene; or

            ‘‘(2)(A) depicts an image that is, or appears to be, of a minor engaging in graphic bestiality, sadistic or masochistic abuse, or sexual intercourse, including genital-genital, oral-genital, anal-genital, or oral-anal, whether between persons of the same or opposite sex; and

            ‘‘(B) lacks serious literary, artistic, political, or scientific value; or attempts or conspires to do so, shall be subject to the penalties provided in section 2252A(b)(1), including the penalties provided for cases involving a prior conviction."

            (17) Por exemplo, existe uma categoria de cartoons de conteúdo pornográfico muito difundida no Japão, conhecido por "hentai". Geralmente, retratam atos sexuais inaceitáveis na sociedade e formas sexuais extremas. A audiência ocidental tem ganho contato com as formas de pornografia "hentai" sobretudo através da Internet. Em algumas localidades do Japão e regiões orientais, no entanto, o "hentai" é considerado verdadeira arte, e seus produtores são vistos como artistas. Isso ilustra a dificuldade, em alguns casos, de distinguir o que seja mera pornografia da arte gráfica. Para quem deseja saber mais sobre "hentai", sugerimos uma visita ao site da Wikipedia – http://en.wikipedia.org/wiki/Hentai

 

Demócrito Reinaldo Filho: juiz de Direito em Pernambuco, diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Política da Informática (IBDI)

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

A videoconferência, o boi e a borboleta

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*Josemar Dias Cerqueira

O uso da videoconferência, doravante denominada VC, particularmente como meio para interrogatórios criminais, enseja debates calorosos. De regra, os magistrados que manifestam desconforto com a possibilidade são considerados exemplos do caráter conservador do Poder Judiciário. Entendo, porém, como membro da magistratura nacional, que o que alguns chamam de conservadorismo retrógrado nada mais é do que preocupação com direitos que só são realidade pelo sofrimento de várias pessoas ao longo dos séculos.

 

Josemar Dias Cerqueira:  juiz de Direito em Rio Real (BA)

 

Apaixonado por informática, fruto de formação anterior em Engenheira Elétrica, e com quase quinze anos de experiência desenvolvendo softwares e implantando tecnologias, evitarei as conhecidas ressalvas quanto à VC por violações aos Princípios Constitucionais, dentre eles o da publicidade e do devido processo legal, sem falar das normas contidas em tratados internacionais, ponderações que endosso totalmente.

O interrogatório por videoconferência, não colocando ao mesmo tempo, e frente a frente, magistrado, acusador, réu e defensor, é uma redução dos direitos do réu, cuja implementação interessa precipuamente ao Estado: "tem cunho predominante de economia de recursos materiais para superar deficiências outras: falta de magistrados, excesso de presos, acúmulo de processos." (CERQUEIRA, Josemar Dias e outros. Princípios Penais Constitucionais. Org. Ricardo A. Schmitt. Pág. 436). A questão é saber se a redução destes direitos é admissível no ordenamento vigente.

Existem três premissas básicas nesta discussão. A primeira é que não se pode confundir a comunicação de atos processuais por meio eletrônico – já autorizadas pela lei 11.419/2006 – com a VC, forma de se realizar atos a distância. A segunda é que no Processo Penal o interrogatório interessa predominantemente ao réu, que pode optar em ficar em silêncio ou não, sendo diretamente afetado pela forma com que este ato é realizado. A terceira é que não se pode, também, justificar a VC pela possibilidade de oitiva do réu por carta precatória, já que esta acontece com réu, acusador, defensor e magistrado – ainda que seja outro – no mesmo recinto.

Estabelecidas estas considerações, imaginado o juiz em um local e o réu em outro, passemos a algumas questões – dentre muitas outras, reconheço.

Qual será a localização física dos autos, enquanto a sonhada digitalização não chega? O réu, para consultas sobre o interrogatório, pode querer conversar com seu patrono, discutir uma determinada foto, documento ou parte do processo, sanar uma dúvida surgida naquele dia. Se os autos não estão a seu alcance, conseguirá exercer sua defesa plenamente? Como buscar orientações de seu defensor, se os autos não estão acessíveis a pelo menos um deles?

Como o magistrado controlará o ato em sua plenitude? No ambiente onde ficar, o magistrado percebe perifericamente tudo à sua volta, de forma simultânea: se alguém acena, se alguém se mexe, se a pessoa olha para um determinado lado ou se alguém faz sinais. No local onde estará o réu, o magistrado fica limitado ao que a câmara mostra. Ainda que possa operar a imagem remotamente – tecnologia mais dispendiosa – verá uma imagem de cada vez.

A despesa pelo deslocamento do réu deve a ele ser atribuída? O réu, no momento em que tem sua liberdade restringida fica ao sabor do Estado. O processo demora? Culpa do Estado. O réu está longe? Culpa do Estado que o coloca longe. O réu precisa se deslocar toda hora? Culpa do Estado que não o julga de forma célere. Neste aspecto, aliás, o interrogatório não pode ser considerado como um simples obstáculo a ser rapidamente superado até a pena já decidida. Eventualmente, quando se menciona a situação de um famoso preso do Rio de Janeiro, indo de um Estado a outro, tenho lido a opinião de políticos criticando tais deslocamentos e que parecem que estão simplesmente querendo acabar logo com o processo e apresentar uma condenação, sendo que o deslocamento do réu dificulta tal objetivo.

Porque se associa o uso da VC com a questão da economia? Tratar limitações de direitos em termos monetários traz arrepios de toda ordem. A abordagem faz os mais temerosos imaginarem que no futuro alguns defenderão a eliminação de atos processuais apenas porque implicam em gastos ao erário. Em um cenário em que o simples acesso de patrono a inquéritos policiais em delegacias necessita, eventualmente, de manifestação judicial, inclino-me a resistir a qualquer redução de direitos, por mais insignificante que pareça.

Qual o custo real da implementação da VC em larga escala? Em um País que não consegue sustentar velocidade de comunicação de dados em um patamar mínimo de segurança e custo, a VC exige conexões caras e equipamentos dispendiosos, sujeitos a interrupções freqüentes, sem falar na utilização concorrente, pois em uma Penitenciária com óbvios inúmeros presos, é altamente provável que alguns precisem participar de uma VC ao mesmo tempo, já que respondem a processos em locais diversos. Teremos salas de VC suficientes?

A questão já divide nossa corte constitucional, com decisões contra e a favor (HC 88914 e HC 91758).

Modernizar, informatizar, digitalizar os documentos e substituir o processo físico pelo meio eletrônico são medidas viáveis e que não restringem direitos e garantias dos envolvidos no processo. A realização de atos por VC introduz elementos negativos em uma ferramenta de otimização administrativa. Se lembrarmos que o réu é inocente até prova em contrário, concluiremos que estamos restringindo a defesa de um inocente e só porque o Estado não fez sua parte. A questão-fim não é só viabilizar a conversa entre o réu e o juiz. A dúvida maior não é só se há ou não presença física e se o juiz precisa estar no mesmo ambiente do réu por ser importante para a sentença que dará. O significativo aqui é que o interrogatório é um ato marcante para o réu e que o uso da VC não o beneficia, muito pelo contrário. Defender que a VC é mais célere e econômica não lhe tira as outras conseqüências. Ou, como diz o sábio homem do interior, não adianta chamar boi de borboleta e pedir para voar.

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Terceiro que adquire veículo de boa-fé não é fraudador

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DECISÃO:  TJ-SC –  A 2ª Câmara de Direito Civil do TJ manteve decisão da Comarca de Blumenau que determinou a penhora do automóvel Fiat Uno de Maria da Silva Souza em favor de Charles Balsanelli. Todavia, Cláudio Zuchi, um terceiro adquirente do bem, opôs embargos contra Charles, porque adquiriu o veículo numa revendedora da cidade e alega tê-lo feito de boa-fé.  

Em 1º Grau, a liminar foi deferida sob pagamento de caução no valor do carro, e o Fiat voltou às mãos de Cláudio. 

A defesa insistiu na ocorrência de fraude à execução (CPC, art. 593, II), por estar em curso, ao tempo da transferência do veículo, ação judicial capaz de levar os vendedores à falência. E tal fato é suficiente para a declaração da ineficácia da venda e manutenção da penhora. 

A Câmara entendeu que não assiste razão ao apelante, pois, embora a lei estabeleça como pressupostos da fraude à execução a existência de ação judicial contemporânea (tramitando simultaneamente) à transferência do bem do devedor, capaz de levá-lo à insolvência, predomina, no Superior Tribunal de Justiça, posição no sentido da necessidade de prova da má-fé do adquirente, dando conta da vontade das partes de frustrar posterior execução judicial. 

“Conforme entendimento majoritário no Superior Tribunal Justiça, a declaração de fraude à execução exige prova da má-fé do terceiro adquirente, ou seja, de que ao tempo da compra e venda do bem tinha ele conhecimento da existência de ação judicial e da situação de insolvência do devedor alienante. 

À míngua dessa prova, presume-se a boa-fé do terceiro e garante-se-lhe o domínio do bem. A votação foi unânime. (Apelação Cível nº 2005.023858-7).


 

FONTE:  TJ-SC, 03 de setembro de 2007.