Home Blog Page 269

Em Goiás, Bradesco é condenado a pagar 10 milhões por negar dados a promotoria

0

DECISÃO:  * TJ-GO –  O juiz substituto Lázaro Alves Martins Júnior, de Minaçu, condenou o Banco Bradesco S.A. a pagar R$ 10 milhões de indenização por danos morais causados à coletividade, por ter se recusado a fornecer ao Ministério Público (MP) dados cadastrais de cliente que estava sendo investigado por desvio de verbas públicas. O dinheiro será revertido para o Conselho da Comunidade de Minaçu. Acatando pleito da promotoria, de que é desnecessária ordem judicial para que a instituição forneça ao MP informações importantes quando envolverem diretamente recursos e entidades públicas, o juiz fixou multa de R$ 50 mil para cada vez que o Bradesco deixar de fornecer os dados nesses casos específicos.

Na ação civil pública proposta contra o banco, o MP sustentou que o Bradesco se recusou a fornecer os dados cadastrais por entender que eles estão protegidos pelo sigilo bancário. De acordo com a promotoria, contudo, ao omitir as informações, a instituição causa lesão à Constituição Federal e "beneficia os agentes públicos responsáveis pela chaga da corrupção, por dificultar o ajuizamento de ação civil pública para reparar os danos causados ao erário e punir os agentes públicos responsáveis pela improbidade".

Investigando atos do ex-vereador e presidente da Câmara Municipal de Minaçu, Lindomar Argeu de Carvalho, suspeito de diversas irregularidades, o MP buscou apurar, no banco, o depósito indevido de cheques nominais da Câmara em contas pessoais. Impedida de ter acesso aos dados, a promotoria explicou que se tratava de investigação de ato de improbidade e crime contra a administração pública e, mesmo assim, houve recusa no atendimento.

Segundo o MP, os dados cadastrais não estão acobertados pelo sigilo bancário, entendimento que, conforme juntou nos autos, é dominante nos tribunais superiores. Ao contestar, o Bradesco alegou que não praticou conduta lesiva à moral da coletividade, "agindo nos estritos limites da lei, inexistindo a configuração do dano moral a coletividade a luz dos elementos exigidos pela responsabilidade civil".

De acordo com o Bradesco, os dados bancários em poder de instituições financeiras não podem ser obtidos sem a participação da autoridade judiciária, sendo as instituições financeiras obrigadas a guardar o sigilo de todas as obrigações que lhes foram entregues em confiança pelos seus clientes, dentre os quais os dados cadastrais.

Na sentença, Lázaro Alves lembrou que os entendimentos dos tribunais são, de fato, pacíficos no sentido do poder pleno de requisição do MP quando envolvido o interesse público, ou seja, quando se investiga apenas o próprio patrimônio público eventualmente dilapidado ou desviado.

De acordo com o juiz, os dados, quando requisitados pelo MP devem ser fornecidos pelo banco porque a promotoria, "ao menos no plano do ideal, não tem interesse próprio, mas, tão somente defende os interesses da população dentro do que foi legitimado pelo ordenamento jurídico, ou seja, o público ou por permissivo constitucional, o coletivo ou individual indisponível. Ainda segundo o magistrado, "todas as benesses e prerrogativas concedidas àquela instituição, assim como ao Judiciário, à Polícia Federal, Executivo, entre outros, têm como finalidade no plano do ideal, o benefício público e não pessoal de alguns membros ou segmento, fortalecendo as instituições e seus componentes para que possam bem cumprir suas finalidades precípuas atinentes ao bem estar comum."

  TJ-GO, 24 de setembro de 2007.

 


FONTE:

Todos contra todos…

0

OPINIÃO:  * Elias Mattar Assad – Fomos brindados com uma correspondência da escritora mineira Rosane Aquino. Faz indagações sobre o instituto da legítima defesa nesta era de crise conceitual: "(…) referindo-me ao caso do Dr. Thales do Estado de São Paulo (…) por que tanto estardalhaço crucificando o promotor que tomou uma atitude em legítima defesa? Por ser uma autoridade? Eu acredito nele! Se ali não estivesse uma autoridade com porte de arma, talvez hoje ele e sua namorada seriam mais duas vítimas a sucumbir nas mãos de rapazes bonitos, musculosos, bem-nascidos e atrevidos. Outra pergunta: no caso da doméstica (Rio de Janeiro) que apanhou brutalmente, caso ela tivesse porte de arma e fizesse uso da mesma para se defender, o que aconteceria com ela? Creio que seria crucificada! Mais uma: no caso da família do Rio Grande do Sul, cujos bandidos invadiram a casa e o dono da residência atirou matando dois deles, a família responderá processo? Acredito que sim! Para finalizar: qual é a pena, se é que existe, para rapazes "carinhas de anjo" que peitam e afrontam as pessoas a seu bel-prazer, e na mairoia das vezes ficam impunes? Há uma grande diferença entre as leis e os sentimentos comuns dos cidadãos…".

Para sabermos o que é o instituto, ameacemos os espaços do mais frágil animal selvagem e ele mostrará o que é direito de defesa. Como diziam os romanos: "É lei não escrita, é lei natural." Na legítima defesa o ser humano não age e sim reage instintivamente para proteger suas vidas e dos seus. Pela lei, se for para morrer alguém que seja o agressor. Não se pode exigir que uma pessoa sacrifique sua vida para preservar a do causador do problema. A lei não estimula a valentia nem exige que o ser humano seja covarde. Se os bandidos estão entrando pelo jardim, não é razoável exigir que o dono da casa fuja pelos fundos. Ao contrário, tem ele o poder e o dever legal de proteger sua família e seus bens. Nesse caso, aqueles que agem com honestidade de propósitos não devem temer um processo. Embora desconfortável, será um momento de mostrar para a sociedade que uma pessoa de bem agiu dentro dos limites da lei.

Quanto ao uso de armas para a defesa pessoal, no referendo popular, embora com toda a pressão das religiões, meios de comunicação, políticos e do governo, a nação deu uma resposta negativa eloqüentíssima ao pretendido desarmamento. O risco dos "rapazes bem-nascidos e atrevidos" é a pessoa agredida reagir. A pena pode ser a morte por uma reação legítima ou os azares dos cáceres.

Definição do código penal: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". Aquele que assim reage não pratica crime e pode enfrentar com tranqüilidade as cerimônias de uma delegacia de polícia, juiz ou júri. Sairá absolvido e de cabeça erguida! Ressalvo, contudo, que cada caso é um caso e os vereditos vão depender sempre do que ficar tecnicamente provado nos processos. Legado de Hobbes: "Um homem não pode abandonar o direito de resisitr àqueles que o atacam com força para lhe retirar a vida. A primeira lei natural do homem é da autopreservação…"


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Elias Mattar Assad (eliasmattarassad@sulbbs.com.br) é presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

Revisão crítica da pena privativa de liberdade: uma aproximação democrática

0

  *Claudio Alberto Gabriel Guimarães[1]

Resumo: O presente artigo discute o alcance das funções declaradas da pena privativa de liberdade, enveredando, outrossim, pelas funções ocultas ou latentes desta forma de controle social,  com o escopo maior de analisar as possibilidades de harmonização entre um Estado Democrático de Direito e a utilização do cárcere como forma disciplina social.

Palavras-chave: Pena privativa de liberdade, funções declaradas da pena, funções ocultas da pena.

Sumário: 1. Introdução 2. Breve abordagem histórico-doutrinária sobre a pena privativa de liberdade 3. Perspectivas para a pena privativa de liberdade: por uma drástica redução 4. Conclusão


 

1.  INTRODUÇÃO 

No presente artigo, a limitação das formas de coerção punitiva estatal a uma de suas espécies, qual seja, a pena privativa de liberdade, é não só proposital como, também, necessária, haja vista que são grandes as dificuldades para a correta delimitação do horizonte do saber jurídico-penal[2], impondo-se – caso se queira realmente discutir a sério os limites do direito de punir – distinguir a pena privativa de liberdade, apesar das teorias não se referirem exclusivamente a ela, das outras formas de punição.

A razão de tal posição não é só de ordem metodológica, na qual a parcialização é pressuposto para o conhecimento, já que todo saber é particular, porque constitui um conjunto de conhecimentos parciais, não se coadunando a Ciência com totalidades ou generalidades, mas, principalmente, pelo fim almejado pelo presente trabalho, que tem por objeto privilegiado a democracia, ente este sempre atingido pela supressão da liberdade humana, forma estatal extrema de controle social. 

Portanto, partindo-se da concepção que afirma serem as relações entre a Constituição, a manutenção do poder político e a violência do poder punitivo exacerbadamente estreitas, e que a privação da liberdade humana (onde não se adota a pena de morte) é a expressão máxima de tal violência, privilegiaremos tal espécie de sanção por entendermos que, se analisarmos as teorias que embasam a aplicação das penas sob o foco da pena privativa de liberdade, efluirá com mais clareza o uso eminentemente político das sanções penais como um todo[3].

Desse modo, buscar-se-á, antes de mais nada, investigar qual o espaço que ainda pode ser viabilizado para o uso da privação da liberdade humana, dentro de uma concepção onde a democracia seja o ente que constitui a base fundamental no qual se legitima o Estado.   

2.  BREVE ABORDAGEM HISTÓRICO-DOUTRINÁRIA SOBRE A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

É certo que somente a partir da Idade Moderna, especialmente com os ideais pugnados pela ilustração – que francamente combatiam o Direito Penal do terror, pautado nas penas corporais e de morte, a serviço do poder absoluto –, é que surgem as primeiras preocupações com a diferenciação dos possíveis fins das penas e, numa abordagem lógica, das antinomias inerentes aos mesmos[4].

 Nesse momento histórico, portanto, houve um novo direcionamento no estudo das punições, o “que significa, elaborar com mais precisão as diferentes conseqüências que se produzirão na teoria e na prática […] com a  discussão mais precisa acerca das classes individuais de pena, que foram combatidas por inadmissíveis, cruéis, danosa ou inclusive inúteis”. (STRATENWERTH, 1996, p. 9, tradução nossa).

 No contexto acima traçado vem a lume a pena privativa de liberdade, acompanhando a ideologia burguesa de trabalho, fundamentada no princípio do less eligibility, segundo o qual as condições de vida no cárcere deveriam ser sempre menos favoráveis que as condições de vida das categorias mais baixas dos trabalhadores livres o que, já na origem, demonstra que “nenhuma das teorias da punição, nem a absolutista nem a teleológica, estão aptas a explicar a introdução de certos métodos de punição no interior da totalidade do processo social”[5]. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1999, p.16)

Não obstante tal assertiva, no âmbito da doutrina sobre as conseqüências jurídicas do crime, intensifica-se o debate em torno das mais variadas explicações sobre os fundamentos e os fins atribuídos à pena privativa de liberdade[6].

 Para tanto foram formuladas as teorias absolutas, que concebem a pena como um fim em si mesmo e prescindem de qualquer outro fim que ela possa objetivar[7]; as teorias relativas, que entendem que o sentido da pena e do Direito Penal se encontra exatamente nos fins que com este direito e com estas sanções podem ser buscados, e as teorias mistas, que englobam tanto os fins retributivos como também os preventivos, justapondo-os em construções ecléticas, não se constituindo em algo novo, senão, tão somente, em novas combinações e formulações das tradicionais teorias.

Importante ressaltar que grande parte dos penalogistas[8] distingue os fins almejados pela pena, inerentes às teorias utilitárias, dos fundamentos da mesma, encontrados somente nas teorias retributivas, conforme salienta Rodrigues (1995, p. 156), quando afirma que

Se quisermos continuar a usar a bipartição usual, devemos então fazê-lo – hoje, repete-se – com a consciência de que estamos a dar respostas a perguntas diferentes. Em suma: de que ela constitui uma arrumação não para um, mas para dois problemas distintos. Se com as teorias preventivas se encontra (também) solução para as questões da finalidade da pena, já com a teoria retributiva estamos a lidar com o problema da justificação da pena.

No âmbito político hodierno, está na pauta do dia a discussão sobre as funções manifestas e latentes (reais) do poder punitivo estatal[9], no qual aquilo que parece estar se concretizando é um absoluto predomínio da utilização – com fins políticos – da pena privativa de liberdade em suas funções não declaradas, portanto latentes, sobre aquelas funções cujos fins estão pretensamente legitimados pela doutrina penal e que estão inseridos no conceito do jus puniendi, as funções manifestas ou reais. (ZAFFARONI, 2003, P. 87-90)

Neste mesmo diapasão, Mir Puig (1994, p. 15-17) faz uma aproximação axiológica entre os fins da pena e os fins do Estado que, para ele, deve ser Social e Democrático de Direito o que, em última instância, fará com que os fins da pena estejam intimamente ligados aos fins pugnados pelo Estado.

Assim sendo[10], afasta-se a absolutização das penas fundadas em uma concepção metafísica de justiça desvinculada dos fins políticos garantidos pela Constituição do Estado Social e Democrático de Direito, garantindo-se desse modo – para o referido autor –, uma correta e fundamentada aplicação das sanções punitivas.

Outro ponto nodal da discussão contemporânea sobre o poder punitivo, diz respeito ao caráter eminentemente simbólico do Direito Penal, que corresponderia à completa impossibilidade de se dar efetividade as previsões legislativas, por absoluta carência material dos meios necessários, acarretando o descrédito do Sistema Penal.

 Alguns autores, em completa oposição a tal crítica, analisam esse distúrbio sistemático como uma conseqüência prevista e de menor importância, já que a função simbólica tem a importante missão de criar e reforçar representações ideológicas que, em última instância, servem de instrumento de controle social, fim último e real do Sistema Penal. (TERRADILOS BASOCO, 1991, p. 10-11)

Por outro lado, muitos são os ataques intentados contra essa forma de punição, existindo quem advirta ser a própria aplicação da pena um jogo de azar. (RODRIGUES, 1995, p. 12)

Em um âmbito mais ortodoxo, entende-se que as funções atribuídas pelas teorias positivas da pena foram enunciadas em quantidade e disparidades tais que as fizeram sempre parecer múltiplas, contraditórias e incompatíveis (ZAFFARONI, 2003, p.97), assim como os que afirmam a total falência da pena de prisão e, por via de conseqüência, a falência do Direito Penal como um todo, pugnando assim pela sua total abolição[11]. (HULSMAN; CELIS, 1997, p. 86; 119)

Foucault (2003, p. 4), já em 1971 comentando as condições em que se dava o cumprimento de pena de prisão nos cárceres franceses, advertia “que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito”.

Ferrajoli (2002b, p. 32), por sua vez, entende que o Direito Penal deve ser mínimo e que a aplicação de penas deve se constituir em uma técnica de minimização da violência na sociedade, a saber: da minimização da violência dos delitos, mas também da minimização da reação aos delitos e afirma[12]: 

É claro que tal paradigma se contrapõe não somente às tradicionais doutrinas retributivistas da pena – à la Kant ou à la Hegel – que resultam de uma concessão supersticiosa e punitiva da relação entre delito e pena, e também das tradicionais doutrinas que utilizam a prevenção ou defesa social, sejam estas de prevenção geral ou especial, que assumem, todas, como ponto de vista e parâmetro a utilidade para a maioria “não desviada”[13].

Roxin (1998, p.15-16), por sua vez, adverte para a inclinação da doutrina em permanecer adstrita às formulações feitas no passado, para explicar a legitimação e os limites do poder estatal de punir, transmitindo o saber por mera repetição, como se tais teorias constituíssem respostas acabadas.

Na verdade – para o autor em comento –, a legitimação da pena se trata de difícil trabalho, posto que incide sobre a problemática da sociedade e do Estado de direito adaptada às particularidades de hoje, sendo imprescindível então – para que se chegue a respostas que se coadunem com a complexidade e transformações contínuas que sofrem o complexo social –, uma atualização crítica das várias vertentes teóricas que fundamentam e legitimam o jus puniendi.  

Baratta (1985, p. 8, tradução nossa) reconhece em relação às teorias das penas, as gravíssimas aporias teóricas e contradições práticas nas quais a ciência penal tradicional e a política criminal, já há vários anos, parecem estar imbricadas, dando a impressão de que giram sobre si mesmas em uma “extenuante tarefa detalhista dedicada a revisar a teoria e em uma indecisa marcha sobre seus próprios passos, orientados a comprovar a política e a ideologia”.

Logo, fica claro, que a discussão sobre os fins que o Direito Penal persegue é tudo menos simples, razão pela qual no atual contexto sócio-político-cultural brasileiro, imperioso que nos questionemos: O que é pena? Por que se pune? Quais os fins da pena privativa de liberdade? Quais os efeitos por ela produzidos? É a prisão um meio apropriado para combater e sancionar as formas de conduta desviadas? Enfim, qual o seu custo-benefício? Pune-se para prevenir que futuros delitos venham a ser cometidos (prevenção geral) ou para evitar que sejam novamente cometidos por quem já os praticou (prevenção especial), ou simplesmente para retribuir, com sofrimento, o mal causado pelo delinqüente? Ou seja, a pena é fim em si mesma ou corresponde a uma finalidade?

Eis as questões vitais que devem direcionar um debate acerca da atual busca de legitimidade pela qual passa a pena de prisão[14]; impõe-se, pois, uma análise impostergável de suas perspectivas, objetivando, sobretudo, distinguir as múltiplas formas que cada uma das teorias utiliza para justificar o direito de punir, com a finalidade precípua de saber se qualquer uma delas – absolutas ou relativas – é idônea para fornecer uma teoria da pena da qual se possa derivar conseqüências jurídicas concretas.  

3.   PERSPECTIVAS PARA A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: POR UMA DRÁSTICA REDUÇÃO

O ponto de partida para configuração de um novo pensamento na esfera das punições não pode afastar-se da análise relativa à violência estrutural, entendida esta como repressão das necessidades reais das pessoas.

Tal violência não seria tão grave e espúria, não fosse o fato de que a repressão das necessidades de muitos satisfará a opulência de poucos[15].

Segundo Baratta (1993, p. 47), “A violência estrutural é uma das formas de violência; é a forma geral de violência em cujo contexto costumam originar-se, direta ou indiretamente, todas as outras formas de violência”.

 Neste contexto, de ampla violência estrutural, originada pelo egoísmo de consumo, as minorias privilegiadas escamoteiam a origem da mesma e apontam em direção à criminalidade como causa principal de todas as querelas sociais.

Assim, o grande problema social e político a ser enfrentado é a violência, reconhecem os detentores do poder, entretanto, como sinônimo de criminalidade. Não a criminalidade dos poderosos, de colarinho branco ou dourado, causa de erosão social, e sim a criminalidade visível, tosca, de sangue, estampada na mídia diariamente como fator garantidor de audiência.

Neste ponto, dá-se a convergência de ambas as formas de violência, a estrutural, gerada pela prática dos crimes imanentes aos poderosos, cujo fim precípuo é a manutenção do supérfluo e, por via de conseqüência, do status quo, e a violência criminal, decorrente, no mais das vezes da violência estrutural.

Tal convergência atinge seu paroxismo quando, em razão do pretenso combate à criminalidade comum, os privilegiados, reprimem com violência física, leia-se sistema penal, as reivindicações daqueles que são vítimas da violência estrutural.

Em suma, o Direito Penal é o mais eficaz e efetivo meio de controle social, não de resolução de conflitos sociais[16]; esta concepção, salvo melhor juízo, não pode se harmonizar com qualquer postura que tenha por base ideais democráticos.

Já há algum tempo a doutrina antecipava o problema, chegando Vervaele (1992, p. 69) a questionar: “A pena como resposta à criminalidade, ou a pena como resultado de processos sociais de criminalização? Estas duas visões do penal e da pena dominam, hoje, o debate, no momento em que a crise do Estado-Providência coloca em questão a relação entre poder político e societá civile”.

Do exposto dessume-se que o Direito Penal atua sobre as conseqüências e não sobre as causas da violência, sobre comportamentos que levam aos conflitos e não em razão da origem de tais comportamentos. Intervém sobre pessoas e não sobre situações, sempre reativamente, nunca preventivamente, ou seja, depois que as conseqüências do delito já se produziram e não podem mais ser eliminadas, quando muito, reparadas. (BARATTA, 1993, p. 50-51)

Logo, que função poderá cumprir a pena dentro das relações sociais sucintamente traçadas nas linhas acima? Karam (1994, p. 116) é categórica ao afirmar que “A pena só se explica – e só pode se explicar – em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder”, contribuindo desta forma, para manutenção das relações desiguais de propriedade e acesso aos bens, que na maioria das vezes se constituem em necessidades fundamentais[17].

Pela pertinência em relação ao assunto, transcrevemos na íntegra o posicionamento de Baratta (1993, p. 54): 

Em geral, a imagem da criminalidade promovida pela prisão e a percepção dela como uma ameaça à sociedade, devido à atitude de pessoas e não a existência de conflitos sociais, produz um desvio de atenção do público, dirigida principalmente ao ‘perigo da criminalidade’ ou às chamadas ‘classes perigosas’, ao invés de dirigir-se à violência estrutural. Neste sentido, a violência criminal adquire na atenção do público a dimensão que deveria corresponder à violência estrutural, e em parte contribui a ocultá-la e mantê-la.

 Já na sua gênese, a pena privativa de liberdade se mostrou como instrumento a serviço dos interesses das classes privilegiadas, funcionando o cárcere como instituição de domesticação e disciplina dos grupos marginalizados da sociedade[18].

Tomando-se em conta, tendo em vista a argumentação exposta, que o Direito Penal não cumpre a importante função de limitação do poder punitivo, razão de ser de sua moderna existência, e que as penas, na verdade, objetivam cumprir funções não declaradas, posto que nem internamente, dentro do sistema dogmático de análise, conseguem chegar a uma fundamentação e legitimação plausível e factível, resta-nos buscar alternativas.

Qualquer alternativa preocupada com a diminuição das desigualdades e, portanto, comprometida com a democracia, parte necessariamente da redução inexorável do poder punitivo e, por via direta, da drástica diminuição da pena privativa de liberdade.

Talvez a solução não seja tão nova, o moderno Direito Penal se baseava no discurso Iluminista de contenção do poder punitivo que chegou ao extremo no absolutismo despótico. O que há de novo, talvez, é a constatação do absoluto descontrole em face do direito de punir, que já se faz identificar sob os nomes de sistema penal paralelo e sistema penal subterrâneo[19].

Tal fenômeno se dá em razão da ínfima capacidade operacional das agências do sistema penal (Polícia, Ministério Público, Judiciário, Agências de execução da pena) no âmbito da legalidade. Em suma, o déficit operacional é compensado pelo amplo desrespeito ao que estatuído legalmente. Não mais se investiga, tortura-se; não mais se fiscaliza; silencia-se; a tão necessária verdade real objetivada pela persecução penal transforma-se em verdade política, alimentada por interesses particulares. Há uma conivência disfarçada entre as autoridades constituídas que absurdamente administra o desrespeito às leis.

Ademais, há uma troca na ordem das agências do sistema penal, haja vista que em relação à importância decisional, é dizer, à hierarquia do órgão que define o alcance do poder punitivo e que deveria seguir a ordem lógica de Poder Legislativo, Ministério Público e Magistratura, e por fim Polícia, não é isso que se observa na realidade; houve uma inversão total de papéis.

“[…] Isto demonstra ser a realidade do poder punitivo exatamente inversa à sustentada no discurso jurídico […] Na prática, a polícia exerce o poder seletivo e o juiz pode reduzi-lo, ao passo que o legislador abre um espaço para a seleção que nunca sabe contra quem será individualizadamente exercida”. (ZAFFARONI, 2003, p. 51)

Na realidade quem decide sobre a criminalização é a polícia, através de seus filtros e formas de punição paralela[20], sobrando para as agências judiciais os poucos casos a elas remetidos pelos órgãos policiais, sendo desnecessário tecer maiores comentários acerca do poder do legislador, que, obviamente, não tem qualquer influência no âmbito da seletividade e da cifra negra.

E neste ponto se configura um terreno fértil para o arbítrio, já que o efetivo poder de controle social, não passa pela criminalização secundária, onde pelo menos haveriam de ser respeitadas as garantias do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa, ficando, isto sim, no âmbito das agências repressoras – Polícia Militar, Civil e demais funcionários públicos com poder de polícia – a maior parte do controle da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências políticas ou judiciais.

 É o controle fora de controle, no qual as agências executivas exercem poder punitivo à margem de qualquer legalidade.

Não obstante os graves problemas apresentados em relação ao poder punitivo do Estado, resta outro mais grave que é o da própria legitimação interna da pena, do discurso jurídico que tenta legitimar e racionalizar a aplicação da sanção penal, cujas proposições principais poderiam ser assim resumidas: o Direito Penal é um direito exercido segundo as leis (princípio da legalidade), que atinge todas as pessoas de forma igual (princípio da igualdade) e é exercido pelos operadores das agências do sistema penal de forma imparcial, com o objetivo de conter a criminalidade, seja através da retribuição para reafirmação do ordenamento jurídico, seja através da intimidação, da neutralização ou reeducação do criminoso.

Como todas as premissas fundantes são explicitamente falsas, o Direito Penal acaba legitimando todo o poder punitivo, diminuindo paulatinamente o poder das agências judiciais e expandindo o das agências executivas, com a grave conseqüência de estimular a ilegalidade.

Todo o discurso penal hoje pode ser condensado em um discurso bélico, ou seja, na guerra contra o crime. É bom que se lembre, na guerra não há leis, ou melhor, há a lei da guerra, segundo a qual tudo é permitido para vencer o inimigo[21]. 

Destarte, mister que se erija um novo pensamento, fundado no reconhecimento dos efeitos degradantes da prisão, da seletividade do sistema penal como realidade incontestável, do fenômeno da prisionização, da existência da cifra negra da criminalidade oculta, do poder descontrolado das agências executivas do sistema penal, do pequeno poder que detém as agências judiciais frente aos sistemas penais paralelos e subterrâneos[22].

Enfim, uma nova teoria da pena passa necessariamente pela desconstrução do que está posto[23], pela oposição a todo um discurso que impõe o consenso como forma de manutenção do poder, já que 

 Pretender conservar um poder exercido mediante um discurso falso, quando se sabe que este legitima – e sustenta – um poder diverso exercido por outros, que custa vidas humanas, que degrada um grande número de pessoas (tanto aquelas que o sofrem quanto as que o exercem) e que se trata de uma constante ameaça aos âmbitos sociais de auto-realização, é, a todas as luzes, eticamente reprovável. (ZAFFARONI, 2003, p. 75)

  Uma das mais atualizadas teorias críticas sobre as funções da Pena[24] denomina-se “Teoria negativa ou agnóstica da pena”, que se resume em não acreditar que a pena possa cumprir – na grande maioria dos casos – nenhuma das funções manifestas a ela atribuídas.

Em razão de negar os possíveis efeitos positivos da pena[25], a teoria agnóstica se volta para a contenção do poder punitivo, da violência a ele imanente, dirigindo todos os seus esforços para as agências judiciais, como possíveis instâncias de contenção da criminalização desenfreada e de seus efeitos nefastos[26].

Bustos Ramirez (1992, p. 109-112) parte da necessária participação de todos os indivíduos que compõem o corpo social na definição e fruição dos bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal, o que acarretaria a inclusão do indivíduo nas relações sociais, pressuposto do Estado Democrático.

Dentro do jogo democrático – para o referido autor – os homens podem aumentar sua capacidade de liberação, de participação, de resolução, enfim, de seus conflitos sociais, devendo a pena oferecer alternativas em que todos devem deter a capacidade de participar.

Um direito penal de alternativas tem de reconhecer a capacidade das partes para solucionar seus conflitos e neste sentido deve propender a possibilitar um encontro entre autor e vítima, de modo que se produza uma reconciliação entre eles. […] Deste modo, a reparação não somente é algo que surge do fato delituoso, mas é um elemento substancial da questão criminal, que conduzindo à reconciliação pode paralisar a intervenção do Estado. (BUSTOS RAMIREZ, 1992, p. 112):

Baratta[27] (1991b, p. 253-255, tradução nossa) reconhecendo que a pena, quando muito, está apenas cumprindo o degenerador papel de neutralização, já que empiricamente comprovada a impossibilidade ressocializadora do cárcere, não desanima, advertindo que a “finalidade de uma reintegração do condenado na sociedade não deve ser abandonada, senão que deve ser reinterpretada e reconstruída sobre uma base diferente”.

Para tanto, adverte que a reintegração social daquele que delinqüiu não deve ser perseguida através da pena e sim apesar dela, vez que para efeitos de ressocialização o melhor cárcere é o que não existe e arremata: 

Qualquer passo que possa dar-se para fazer-se menos dolorosas e menos danosas as condições de vida no cárcere, ainda que seja só para um condenado, deve ser olhado com respeito quando esteja realmente inspirado no interesse pelos direitos e pelo destino das pessoas detidas, e provenha de uma vontade de mudança radical e humanista e não de um reformismo tecnocrático cuja finalidade e funções sejam as de legitimar através de qualquer melhoramento a instituição carcerária em seu conjunto. (BARATTA, 1991b, p. 254, tradução nossa)

 Carvalho (2001, p.287) , atento ao problema, adverte: 

A jurisdicionalização resgata a dignidade do apenado, conferindo-lhe acesso à justiça e à legalidade. Percebido, desde a reforma de 1984, como sujeito de direitos públicos subjetivos, o condenado resgata sua condição de sujeito em relação processual. É que exsurge inadmissível que a legalidade ampla e estrita instrumentalize garantias ao indivíduo no processo cognitivo, e não sirva de mecanismo tutelar no momento mais importante da intervenção estatal na liberdade individual: a execução penal.  

Elbert (1998, p. 117-118) propugna por um total redimensionamento do sistema penal, em que a diminuição deste aliado à diminuição do encarceramento são medidas imperativas e urgentes, apontando concretamente para obtenção de tal desiderato “a descriminalização, a execução penal aberta, a prisão de fim de semana, os sistemas de semi-liberdade, os tratamentos terapêuticos em institutos especializados, as penas pecuniárias e as medidas de controle comunitário”.

Vê-se, pois, que alternativas à sanha irrefreável de punir com prisão por parte do Estado – postura amplamente apoiada pela mídia e, via de conseqüência, pela opinião pública – existem, basta que sejam adotadas de maneira séria, quando da formulação das políticas criminais.

4.  CONCLUSÃO

                          Qualquer que seja a denominação utilizada, qualquer que seja a teoria, o importante são as bases de convergência de um novo pensamento sobre as penas em geral e, principalmente, sobre a pena privativa de liberdade em particular.

                          Opor-se, veementemente, à transformação do Estado de direito, de cunho social, em Estado de polícia, de cunho penal, é um compromisso daqueles que percebem a utilização do Direito Penal, em última instância, como um grande panótico, em que as garantias imanentes à pessoa humana são sacrificadas no altar de uma pretensa segurança.

Por todas as razões expostas no presente artigo, temos que não há mais como se discutir seriamente qualquer das funções manifestas atribuídas à pena de prisão, sendo sua limitação uma exigência impostergável de um Estado que possa ser denominado de democrático.

Historicamente está comprovado que o cárcere somente serve de instrumento de dominação, apoiado por interesses econômicos, de quem está a deter o poder e nele quer se manter, oprimindo àqueles a quem, no mais das vezes, são negados os direitos básicos imanentes e indispensáveis a um regime que queira se denominar de democrático.

A pena privativa de liberdade ainda se faz necessária, mas tal qual um instrumento a ser utilizado como último recurso de uma política criminal séria e comprometida com o Estado Social e Democrático de Direito.

A equação hodierna é bastante fácil: a violência estrutural atinge diretamente os direitos humanos, ferindo de morte a democracia. Ao invés de resolver os problemas estruturais e resgatar os direitos humanos estimulando a cidadania, a resposta do poder é penalmente repressiva, o que acaba por inviabilizar de vez os ideais democráticos. Logo, um novo cálculo deve ser feito, que tenha por resultado um sistema penal mais justo, que respeite os direitos humanos e, acima de tudo, seja igualitário e mínimo – drástica redução do uso da pena privativa de liberdade. Esta – temos a firme convicção – é a via para a superação da violência estrutural e, conseqüentemente, de resgate da democracia[28].

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, 161 p.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 4, n. 14, p. 276-287, jul./set. 1996.

_______________ . A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, 335 p.

BARATTA, Alessandro. Integración-prevención: uma “nueva” fundamentación de la pena dentro de la categoria sistêmica. Doctrina Penal. Buenos Aires, ano 8, p. 3-26, 1985.

_______________ . Principios del derecho penal mínimo (Para una teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal). Doctrina Penal. Buenos Aires, ano 10, p. 623-650, 1987.

______________ . Funciones instrumentales e simbólicas Del Derecho Penal: una discusión en la perspectiva de la criminologia crítica. Pena y Estado, Barcelona, ano 1, n. 1, p. 37-55, sep./dic. 1991a.

_______________ . Resocialización o control social – por un concepto crítico de reintegración social Del condenado. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio: atos do colóquio Marc Ancel. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991b, p. 251-265.

______________ . Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais. Tutela penal dos direitos humanos. Porta Alegre, ano 6, n. 2, p. 44-61, abr./maio/jun.1993.

______________ . Defesa dos direitos humanos e política criminal. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 3, p. 57-69, 1º. Semestre de 1997.

______________ . Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, 254 p.

BARCELOS, Caco. Rota 66. 37. ed. São Paulo: Globo, 2002, 274 p.

BATISTA, Nilo. Fragmentos de um discurso sedicioso. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 69-77, 1º. Semestre de 1996.

_______________ . A violência do Estado e os aparelhos policiais. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 145-154, 2º. Semestre de 1997.

BUSTOS RAMIREZ, Juan. A pena e suas teorias. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 5, v. 5, n. 3, p. 90-113, jul./ago./set. 1992.

BURILLO ALBACETE, J. Fernando. El nacimiento de la pena privativa de liberdad. Madrid: Edersa, 1999, 317 p.

CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, 78 p.

CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, 314 p.

CERVINI, Raúl. Macrovitimização econômica. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 4, n. 7 e 8, p. 111-120, 2º. Semestre de 1999.

DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Violência urbana, direitos da cidadania e políticas públicas de segurança no contexto de consolidação das instituições democráticas e das reformas econômicas neoliberais. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 103-120, 2º. Semestre de 1997.

_______________ . Ofensiva neoliberal, globalização da violência e controle social. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 119-138, 2º. Semestre de 2002.

ELBERT, Carlos Alberto. Alternativas à pena ou ao sistema penal. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 3, n. 5 e 6, p. 113-119, 1º. e 2º. Semestres de 1998.

_______________ . El nuevo rol del estado en América Latina y el control de la sociedad. In: FAYET

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002a, 766 p.

_______________ . A pena em uma sociedade democrática. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 31-40, 2º. Semestre de 2002b.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Ligia M. Ponde Vassallo. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, 277 p.

_______________ . Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lúcia de Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, 390 p.

GARAPON, Antoine; GROS, Frédéric; Pech, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, 344 p. 

GARCÍA VALDÉZ, Carlos. Historia de la prisión. Teorias economicistas. Crítica. Madrid: Edisofer, 1997, 415 p.

HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. 2. ed. Niterói-RJ: Luam, 1997, 180 p.

KARAM, Maria Lúcia. Aplicação da pena: por uma nova atuação da justiça criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 2, n. 6, p. 117-132, abril/jun. 1994.

_______________ . A esquerda punitiva. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 79-92, 1º. Semestre de 1996.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Carcel y fabrica. Los orígenes del sistema penitenciario (Siglos XVI-XIX). Tradución de Xavier Massimi. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 1987, 237 p.

MIR PUIG, Santiago. Funcion de la pena y teoria del delito en el estado social y democratico de derecho. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1982, 108 p.

_______________ . El Derecho penal en el Estado social y democrático de derecho. Barcelona: Ariel, 1994, 253 p.

MORRIS, Norval. El futuro de las prisiones. 6. ed. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 1991, 183 p.

RIGHI, Esteban. Teoria de la pena. Buenos Aires: Hamurabi, 1991, 262 p.

RIVERA BEIRAS, Iñaki. (Coord.). Cárcel e Derechos Humanos. Un enfoque relativo a la defensa de los derechos fundamentales de los reclusos. Barcelona: Bosch, 1992, 262 p.

_______________ . Sociología de la carcel. In: BERGALLI, Roberto. Control social punitivo. Sistema Penal e instancias de aplicación (Policía, Jurisdicción y Carcél). Barcelona: Bosch, 1996, p. 97-120.

_______________ . La devaluación de los derechos fundamentales de los reclusos. La construcción jurídica de un ciudadano de segunda categoría. Barcelona: Bosch, 1997, 436 p.

_______________ . Historia e legitimación del castigo. Hacia dónde vamos? In: BERGALLI, Roberto. Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 86-137.

RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade: os critérios da culpa e da prevenção. Coimbra: Coimbra, 1995, 735 p.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, 274 p.

SANGUINÉ, Odone. Função simbólica da pena. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 5, v. 5, n. 3, p. 114-126, jul./ago./set. 1992.

STRATENWERTH, Günter. Qué aporta la teoria de los fines de la pena? Traducción de Marcelo A. Sancinetti. Bogotá: CIDPFD, 1996, 38 p.

TERRADILLOS BASOCO, Función simbólica y objeto de protección del Derecho penal. Pena y Estado, Barcelona, ano 1, n. 1, p. 9-22, sep./dic. 1991.

VERVAELE, John. As grandes teorias da pena dos séculos XVIII e XIX. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 5, v. 5, n. 3, p. 54-69, jul./ago./set. 1992.

ZABALA, Ana Messuti de. O tempo como pena. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 5, v. 5, n. 3, p. 135-160, jul./ago./set. 1992.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. El sistema penal em los países de América latina. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio: atos do colóquio Marc Ancel. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 221-236.

_______________ . Sentido y justificación de la pena. Jornadas sobre sistema penitenciário y derechos humanos. Buenos AIRES: Editores del Puerto, 1997, p. 35-46.

_______________ . Desafios do Direito Penal na era da globalização. Cidadania e Justiça. Ano 2, n. 5, p. 200-204, 2º semestre de 1998a.

_______________ . La creciente legislación penal y los discursos de emergência. In: Teorias actuales em Derecho Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1998b, p. 613-620.

_______________ ; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2 ed. São Paulo: RT, 1999, 888 p.

_________________ . et al. Direito Penal brasileiro. Teoria geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 658 p.


NOTAS

[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Sócio fundador do IPAN – Instituto Pan-americano de Política Criminal, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br

[2] Segundo Stratenwerth (1996, p. 37-38, tradução nossa) “ameaçar com a pena pública e impô-la é – como uma forma precária de interação social – um processo altamente complexo, com muitas facetas, com conseqüências desejadas e indesejadas, diretas e indiretas, previsíveis e desconhecidas, que não podem ser reduzidas a uma simples relação de causa e efeito. A teoria da pena tem que configurar o marco dentro do qual cheguem a seu propósito todos estes aspectos, com a liberdade de complementá-los e revisá-los segundo o estado dos nossos conhecimentos empíricos e critérios teóricos, exigindo, antes de mais nada, o controle das decisões normativas em que subjazem o reconhecimento e a classificação dos possíveis fins da pena. Em outras palavras, o discurso sobre o sentido e o fim da pena não é algo que esteja concluído, como se houvéssemos encontrado de uma vez por todas a resposta ‘correta’, senão uma daquelas tarefas para qual nunca haverá uma solução definitiva”.

[3] Ferrajoli (2002b, p. 35) pontua: “Creio que já é hora de pôr em questão a centralidade do cárcere como pena primária do nosso sistema penal”. Zabala (1992, p. 156) adverte: “Justamente porque a prisão permaneceu como a única modalidade da pena é que se pretende justificar a pena justificando a prisão”. Andrade (1997, p. 175) ratifica: “O poder legislativo é, de qualquer modo, a fonte básica da programação do sistema, enquanto as principais agências de sua operacionalização são a Polícia, a Justiça e o sistema de execução de penas e medidas de segurança, no qual a prisão ocupa o lugar central”.

[4] Uma abordagem eminentemente filosófica da pena pode ser encontrada em Garapon; Gros; Pech (2001).

[5] Rusche e Kirchheimer (1999, p. 18) são categóricos em afirmar que “Para efeito de adotar uma abordagem mais frutífera para a sociologia dos sistemas penais, é necessário despir a instituição social da punição de seu viés ideológico e de seu escopo jurídico e, por fim,  trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações. […] A punição não é nem uma simples conseqüência do crime, nem o reverso do crime, nem tampouco um mero meio determinado pelo fim a ser atingido. A punição precisa ser entendida como um fenômeno independente seja de sua concepção jurídica, seja de seus fins sociais. […] Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições, e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e conseqüentemente fiscais”. Sobre o tema, Mellosi e Pavarini (1987, p.33, tradução nossa) informam que “Uma série de leis publicadas entre o século XIV e o XVI estabeleciam uma taxa máxima de salário acima da qual estava proibido contratar (e penalmente sancionado); não havia nenhuma possibilidade de contratação coletiva de trabalho; e até se chegou a determinar a obrigação do trabalhador de aceitar o oferecimento da primeira oferta de emprego. É dizer, o trabalhador estava obrigado a aceitar qualquer trabalho, e com as condições que estabelecia o empregador. O trabalho forçado nas casas de correção ou workhouses estava pois dirigido a dobrar a resistência da força de trabalho, ao fazer aceitar as condições que permitiam em grau máximo a extração do mais valia”.

[6] Sobre a historiografia da pena privativa de liberdade imprescindível a leitura de Foucault (1993, p. 11-124; 2002, p. 129-143). Para aprofundamento no tema García Valdés (1997), Burillo Albacete (1999).

[7] Parece haver uma contradição na essência mesmo da teoria retributiva, haja vista que uma das vertentes desta teoria entende que o delinqüente deve ser punido para que a vítima reencontre a paz, o que não deixa de ser uma finalidade que se encontra fora do âmbito do ‘fim em si mesmo’ da teoria retributiva.

[8] Ferrajoli (2002a, p. 208-209) entende que “a legitimação externa da pena seja separada da sua legitimação interna, isto é, seja assegurada a separação entre direito e moral que impede a autolegitimação do primeiro prescindindo dos seus conteúdos; Seja possível responder, além da pergunta ‘por que punir?’ à pergunta que lhe é prejudicial ‘por que proibir?’, a qual, evidentemente, desloca tanto a pena como as proibições em si consideradas para finalidades externas”.

[9] Sobre tal tema Zaffaroni (2003, p. 88) é enfático ao afirmar que “O poder estatal concede às suas instituições funções manifestas que são expressas, declaradas e públicas. Trata-se de uma necessidade republicana; um poder orientador que não expresse para que é exercido não pode submeter-se ao juízo de racionalidade. Porém, em  geral, essa função manifesta não coincide por completo com o que a instituição realiza na sociedade, ou seja, com suas funções latentes ou reais”. Na apresentação da obra de Melossi; Pavarini (1987, p. 7, tradução nossa), Modona afirma que “o cárcere, e as demais instituições de confinamento, são lugares fechados, e portanto estão isolados e separados da sociedade livre, mas essa separação resulta mais aparente do que real, já que o cárcere não faz mais do que manifestar ou levar ao paroxismo modelos sociais ou econômicos de organização que se intentam impor ou que já existem na sociedade”.

[10] É imperioso frisar, por se achar intimamente ligada aos objetivos do presente artigo, que a posição de Mir Puig (1994, p. 22) é fundamentada em um conceito real de democracia, já que o mesmo adota como referencial o artigo 9º da Constituição da Espanha, verbis: “Corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos em que se integran sean reales y efectivas, remover los obstáculos que impidam o dificulten su plenitud, y facilitar la participación de todos los ciudadanos em la vida política, econômica, cultural y social”. Sobre o tema cfr. Rodrigues (1995, p. 241-245).

[11] Importante citar na íntegra as palavras de Hulsman; Celis (1997, p. 86-87), haja vista que tal tema sempre desperta grandes controvérsias: “Falei algumas vezes em abolir a pena. Quero me referir à pena tal qual é concebida e aplicada pelo sistema penal, ou seja, por uma organização estatal investida do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas as pessoas interessadas. Questionar o direito de punir dado ao Estado não significa necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir totalmente a noção de responsabilidade pessoal. É preciso pesquisar em que condições determinados constrangimentos – como a internação, a residência obrigatória, a obrigação de reparar e restituir, etc… – têm alguma possibilidade de desempenhar um papel de reativação pacífica do tecido social, fora do que constituem uma intolerável violência na vida das pessoas”.

[12] Um amplo estudo da aplicação da pena baseado no garantismo de Ferrajoli foi realizado por Carvalho e Carvalho (2001).

[13] Em profundidade, Ferrajoli (2002a).

[14] Stratenwerth (1996, p. 14, tradução nossa) chama a atenção para a existência de “uma difundida sensação de que as respostas tradicionais já não bastam, que os possíveis fins da pena têm que estar determinados de modo distinto ou com mais precisão que até agora, ainda quando a discussão, de um modo geral, siga sendo sempre conduzida com as categorias conceituais tradicionais de teorias absolutas e relativas, de retribuição, prevenção geral e prevenção especial”. 

[15] Há muito tempo Foucault (2002, p. 132) chamava a atenção para o fato de que “A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinqüentes servem para alguma coisa”.

[16] Sobre o tema cfr. excelente artigo de Dornelles (1998, p.103-120), em que a tônica se dá em torno da afirmação de que “No Brasil, a polícia, como a prisão, tem o papel de intimidação absoluta, através do terror, daqueles segmentos sociais que ameaçam os privilégios das elites”. Neste ponto continuam válidas as observações feitas por Rusche e Kirchheimer (1999, p. 18; 32) de que “[…] todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às suas relações de produção. […] Quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais duros eram os castigos, para fim de dissuadi-las do crime”. Especificamente sobre a macrocriminalidade financeira cfr. Cervini (1999, p. 111-120).

[17] Sanguiné (1992, p. 124) chama a atenção para o fato de que “A lei simbólica, portanto, é expressiva, representa um gesto feito para exaltar os valores de um grupo social e desacreditar os valores de um outro grupo, uma vez que sempre os símbolos têm a função de fazer reconhecer os amigos dos inimigos”.

[18]  Detalhadamente, Rusche e Kirchheimer (1999), Melossi e Pavarini (1987) e Foucault (1993). Atualmente, Rivera Beiras (1996, p. 106, tradução nossa) entende que “O cárcere (e as normas que o sustentam), não poderá ser compreendido em sua verdadeira dimensão, se não se admite que o mesmo não é mais, nem menos, que a representação de uma das diversas estratégias de controle social/penal de um determinado Estado”.

[19] Segundo Zaffaroni (2003, p. 52-53; 69-70), o sistema penal subterrâneo é exercido pelas agências executivas de controle – portanto, pertencentes ao Estado – à margem da lei e de maneira violente e arbitrária, contando com a participação ativa ou passiva, em maior ou menor grau, dos demais operadores que compõem o sistema penal. O sistema penal paralelo, por sua vez, é exercido por agências que não fazem parte do discurso manifesto do sistema penal,  mas que, como aquelas, exercem poder punitivo. O sistema penal subterrâneo, institucionaliza a pena de morte, desaparecimentos, torturas, seqüestros, exploração do jogo, da prostituição, entre outros delitos.  Os sistemas penais paralelos punem com a mesma impetuosidade: banimento de atletas pelas federações esportivas em caso de doping, sanções administrativas que inviabilizam empreendimentos comerciais, multas de trânsito de elevado valor, entre outras.

[20] Sobre o funcionamento do sistema penal subterrâneo, amplo estudo sobre o modo de atuar na solução de conflitos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo foi realizado por Barcellos (2002).

[21] Esse discurso é imanente à própria civilização industrial que nutre uma cultura bélica e violenta. No âmbito do exercício do poder punitivo, a mídia e grande parte dos operadores jurídicos o projetam como guerra ao crime e aos criminosos. Como, segundo o discurso dominante, a guerra do crime é uma guerra suja, onde o inimigo – os criminosos vulneráveis – não jogam limpo, o Estado estaria autorizado a utilizar as mesmas armas, jogar sujo também, o que em termos jurídicos significa desrespeitar a própria lei por Ele criada. Para aprofundamento no tema, Zaffaroni (2003, p. 57-59), Karam (1996, p. 79-92).

[22] Sobre alternativas à prisão no Brasil, cfr. Batista (1990, p. 123-129). Sobre o futuro das prisões, cfr. Morris (2001).

[23] Elbert (1998, p. 115) assim define a atual situação do sistema penal: “Voltando a lógica do sistema vigente, apesar do melhor otimismo, temos que nos confrontar com inúmeros dados que anunciam seu colapso: a frondosa legislação permanece inaplicada em mais de dois terços, não diminui a tendência ao aumento da criminalização e das penas, perduram a desigualdade operativa e a sua função criminalizadora, as vítimas continuam relegadas, bem como as garantias do cidadão, persiste a deformação dos grupos policiais e a sua operatividade para-policial, enquanto cresce a impunidade dos que estão próximos a algum tipo de poder”.

[24] Detalhadamente, Zaffaroni (2003, p. 60-78).

[25] “Sempre que as agências jurídicas decidirem limitando ou contendo as manifestações de poder próprias do estado de polícia, e para isto fizerem excelente uso de seu próprio poder, estarão legitimadas, como função necessária à sobrevivência do estado de direito e como condição para sua afirmação refreadora do estado de polícia que em seu próprio seio o estado de direito invariavelmente encerra”. (ZAFFARONI, 2003, p. 108)

[26] Dentro da linha de raciocínio proposta pela teoria agnóstica da pena, parte da doutrina aponta uma terceira via, que se consubstancia na reparação completa do dano como forma do autor eximir-se da pena. (RIGHI, 1991, p. 70-75)

[27] No referido artigo, Baratta elabora detalhadamente um programa com dez pontos, onde apresenta alternativas ao tratamento ressocializador.

[28] Um atualizado estudo sobre a expansão da pena de prisão pode ser visto em Mathiesen (2003).


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Claudio Alberto Gabriel Guimarães:  Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Sócio fundador do IPAN – Instituto Pan-americano de Política Criminal, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br

O 1º aniversário da Maria da Penha

0

* Maria Berenice Dias 

A Lei Maria da Penha está completando um ano. Até o seu advento a violência doméstica não era considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo aumento de pena (CP, art. 61, II, letra “f”).

A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro é identificado o agir que configura violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas em lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso configuram crimes que desencadeiam uma ação penal.

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deverá tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deverá a polícia proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e remeter a juízo expediente quando a vítima solicitar alguma medida protetiva (art. 12).

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da delegacia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.

Apesar destas profundas mudanças, passado um ano de vigência da lei, infelizmente é forçoso reconhecer que os avanços foram pequenos, até porque a aplicação da lei, em face de sua natureza, exige a criação dos Juizados da Violência e Especial contra a Mulher. Só um juiz especializado pode atentar à dúplice natureza da violência doméstica, que exige providências muito mais no âmbito do direito das famílias do que na esfera criminal.

Assim, se a atribuição da competência às Varas Criminais buscou marcar o repúdio à forma de como a violência doméstica vinha sendo tratada no âmbito dos Juizados Especiais, a delegação das demandas às varas criminais não lhes concedeu melhor tratamento.

Como aniversários servem para se fazer balanço do que foi feito e planejar o que fazer, este é o melhor momento para se atentar que de nada vai adiantar a criação da lei enquanto , que só conseguirá ser implantada quando não forem criados os juizados especializados.

Que esta seja a grande meta até a próximo aniversário.

Só assim teremos o que comemorar!

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MARIA BERENICE DIAS:   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, Vice-Presidente Nacional do IBDFAM  – www.mariaberenice.com.br


Tributação Ecológica (o uso ambiental da extrafiscalidade e da seletividade tributárias)

0

* Renato Bernardi

INTRODUÇÃO        

                     A Constituição Federal indica, a partir de seu art. 225, a existência de um dever de o Poder Público de adotar medidas administrativas para a proteção ambiental, o qual, se descumprido, poderia induzir responsabilização civil.

 É sabido que um dos principais problemas mundiais da atualidade, diz respeito á preservação do meio ambiente. Os danos causados pelo homem ao meio ambiente tornam-se cada dia mais freqüentes, mais danosos e impactantes ao meio ambiente como um todo, e, conseqüentemente, a toda coletividade, que é a titular do bem ambiental.

 As atividades econômicas geram, com diferente intensidade, impactos sobre o meio ambiente. Para minimizar os efeitos desses impactos sobre o bem-estar humano, sociedades lançam mão da ação governamental, ciente das limitações do mercado. Através de políticas públicas o governo dispõe de diversos instrumentos. Dentre esses instrumentos, há que se levar em consideração a incidência da tributação nas políticas direcionadas à gestão do meio ambiente.

 Normalmente, o tributo serve como fonte de recursos para custeio de atividades governamentais (tributação fiscal). Contudo, não se pode perder de vista que os tributos também são utilizados para orientar a atuação dos contribuintes para setores mais produtivos e/ou mais adequados ao interesse público, (tributação extrafiscal).

 Nessa segunda faceta da tributação reside a possibilidade do exercício da tributação extrafiscal, com o objetivo de mudar o comportamento humano face ao meio ambiente, incentivando a preservação e o cuidado com as questões ambientais.

 O Poder Público tem na extrafiscalidade tributária uma maneira de conciliar desenvolvimento econômico e defesa do meio ambiente. Frisa-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no art. 170, incisos III e VI c/c art. 225, a busca pelo já referido “desenvolvimento sustentável”.

 A tributação ambiental adequada, considerando o valor constitucional a que foi prestigiado o meio ambiente, pode ser um dos instrumentos para se alcançar um desenvolvimento preocupado com as gerações, tanto presentes, quando futuras.

1. O CONCEITO DE TRIBUTO  

O vocábulo “tributo” é equívoco, podendo ser empregado em diferentes acepções.   

A mais vulgar delas é aquela que alude a uma importância pecuniária, utilizada até mesmo pelo legislador pátrio no art. 166 do Código Tributário Nacional. Destaca-se aqui o objeto da prestação imposta por lei ao sujeito passivo da obrigação tributária.

 Noutro aspecto, “tributo” pode significar o comportamento de determinada pessoa consubstanciado no pagamento de determinado valor. Ressalta aqui a idéia do fecere, da entrega do dinheiro ao poder público.   

Em oposição a essa, “tributo” pode querer significar o direito subjetivo em que está investido o sujeito ativo para exigir o objeto da prestação. 

Numa quarta acepção, “tributo” pode querer expressar a relação jurídica tributária, abrangendo o complexo formado pelo direito subjetivo, pelo dever jurídico e pelo objeto da prestação. 

Em uma quinta significação, “tributo” ainda pode ser utilizado ao fazer-se referência a preceito normativo, como fartamente utilizado pela Constituição Federal vigente.        

Finalmente, encontra-se o vocábulo “tributo” utilizado por aqueles que pretendem expressar toda a fenomenologia da incidência, desde a norma instituidora, passando pelo evento concreto nela descrito, até o liame obrigacional que aparece com a ocorrência, no mundo dos fatos, daquela hipótese. [1] 

Estabelece o art. 3o do Código Tributário Nacional: "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada."           

Decompondo-se a previsão legal, temos as seguintes significações às pertinentes estipulações: 

– Prestação pecuniária compulsória: o tributo deve ser pago em unidades de moeda de curso forçado (atualmente, em reais), independente da vontade do contribuinte, devendo ser satisfeita a obrigação mesmo contra a vontade do sujeito passivo. Não há, em regra, tributo in natura (pago em bens) ou in labore (pago em trabalho). 

– Em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir: demonstrando falta de rigor e redundância, o legislador destacou que o tributo pode ser expresso em moeda corrente, abrindo a possibilidade de expressão do quantum por meio de indexadores (exemplos: ORTN, OTN, BTN, UFIR). Com tal procedimento, o legislador pátrio incorreu em duas imprecisões: a primeira ao referir “em moeda”, expressão que somente tem o condão de repetir o caráter pecuniário já dito antes, e a segunda ao explicitar “ou cujo valor nela se possa exprimir” deu ensejo a interpretações ambíguas, permitindo o entendimento de que até mesmo o serviço militar e o trabalho desempenhado pelos mesários eleitorais realizariam o conceito de tributo. 

– Que não constitua sanção de ato ilícito: as penalidades pecuniárias ou multas não se incluem no conceito de tributo. Significa dizer que o pagamento do tributo não decorre da infração de determinada lei. Pelo contrário, se algo é pago por descumprimento da lei não se trata de tributo. Aqui determina-se a feição da licitude para o fato que desencadeia o nascimento da obrigação tributária. 

– Instituída em lei: esse o ponto central do presente estudo. Nos termos do disposto no art. 5o, inciso II, da Constituição Federal, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Especializando a disposição genérica, o art. 150, inciso I, da mesma Constituição Federal, prevê que sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Disso decorre que só existe a obrigação de pagar o tributo se uma norma jurídica fruto do trabalho do Poder Legislativo estabelecer a exigência. 

– Cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada: a intenção do legislador foi aclarar que, nesse tipo de atividade, a autoridade não goza de liberdade para apreciar a conveniência ou oportunidade de agir. A lei já estabelece minudentemente os caminhos a serem seguidos. Portanto, a autoridade fiscal age segundo previsão legal expressa. Trata-se de verdadeiro exagero, uma vez que existem atos praticados validamente pela administração tributária em que o administrador está autorizado, por lei, a integrar a norma jurídica com a sua vontade.  

2. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO CRITÉRIO DE VALORAÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS 

Os princípios, ao lado das regras, são normas jurídicas, mas uns e outros exercem papéis distintos dentro do sistema normativo.  

As regras, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a nítida função de regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que se enquadrem nas molduras típicas por elas descritas.  

Quanto aos princípios, trata-se de normas generalíssimas dentro do sistema. 

Diz-se que os princípios têm eficácia positiva e negativa:  

por eficácia positiva dos princípios, entende-se a inspiração, a luz hermenêutica e normativa lançadas no ato de aplicar o Direito, que conduz a determinadas soluções em cada caso, segundo a finalidade perseguida pelos princípios incidíveis no mesmo; por eficácia negativa dos princípios, entende-se que decisões, regras, ou mesmo, subprincípios que se contraponham a princípios serão inválidos, por contraste normativo.[2] 

Ainda, funcionam os princípios como limites de atuação do jurista, visto que, ao mesmo tempo que funcionam como vetor de interpretação, têm como função limitar a vontade subjetiva do aplicador do direito, vale dizer, os princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto.[3] 

Para garantir a eficácia e a aplicabilidade dos direitos fundamentais, mostra-se imprescindível que se conceba o Direito Constitucional como um sistema normativo, composto por princípios e regras jurídicas.  

A partir de uma concepção "principialista" da Constituição, é possível superar conflitos jurídicos e conceber uma adequada aplicação dos preceitos constitucionais, fazendo com que as disposições de Constituição possam interagir com a realidade fática. 

No caso de conflito entre regras, a solução resulta no afastamento de uma delas, uma vez que não pode haver duas regras válidas regulando a mesma situação fática. 

Diferente é a solução a que se chega num conflito entre princípios. Quando dois princípios jurídicos entram em colisão irreversível, um deles obrigatoriamente tem que ceder diante do outro, o que, porém, não significa que haja a necessidade de ser declarada a invalidade de um dos princípios, senão que sob determinadas condições um princípio tem mais peso ou importância do que outro e em outras circunstâncias poderá suceder o inverso.[4] 

Relativamente aos princípios, em virtude da dimensão de peso que Ihes é inerente, a decisão que afasta determinado princípio em uma determinada situação não implica na sua definição como "inválido", mas, simplesmente, no reconhecimento da maior importância de um determinado princípio naquele caso concreto, situação que poderá não se repetir em hipóteses futuras.[5] 

Assim, conceitualmente, temos: 

a) Normas: o vocábulo "norma" engloba a totalidade dos elementos que regulam juridicamente a conduta dos membros de um grupo, seja coletivamente, seja individualmente [6]; são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar prestação, ação ou abstenção em favor de outrem.[7]

b) Princípios: espécie de norma que constitui exigência de otimização, para que algo se realize, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, ou seja, normas que não proíbem, não permitem nem exigem algo em termos de "tudo ou nada", porém impõem a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a "reserva do possível", fática e juridicamente.[8]  

c) Regras: espécie de norma que prescreve imperativamente uma exigência (impõe, permite ou proíbe) que é ou não é cumprida.[9] 

À teoria "principialista" do Direito Constitucional foram feitas diversas críticas teóricas, dentre as quais se destacaram a condução à perda da racionalidade e do nível científico do Direito Constitucional, determinando a eliminação do próprio conteúdo de liberdade dos direitos fundamentais; e a aniquilação da característica garantidora dos direitos fundamentais, haja vista embasar-se no arbítrio judicial com alta carga de subjetivismo.  

A primeira crítica é enfrentada por Robert Alexy, para quem a concepção de um sistema de princípios e regras, muito ao contrário, cria uma maior sujeição à Constituição do que o modelo puro de regras. A primeira objeção dogmática embasa-se no fato de que uma teoria dos valores envolvendo os direitos fundamentais conduziria a uma destruição da liberdade em seu sentido liberal, uma vez que a liberdade vinculada à Constituição seria substituída pela objetividade do valor. Em verdade, essa concepção seria adequada se a liberdade e o valor fossem duas coisas opostas, o que não corresponde à verdade, no momento em que a liberdade jurídica é ela própria um valor dentre vários outros.[10]

O princípio da liberdade jurídica exige uma situação de regulação jurídica na qual se ordene ou se proíba o menos possível. A polêmica surge no momento em que se decide o que deve ser ordenado ou o que deve ser proibido, referindo-se diretamente à questão do grau ótimo de realização do referido princípio.  

Uma teoria principiológica dos direitos fundamentais permite a adoção de diferentes opções quando diante de direitos em oposição, o que permite a busca da melhor solução para cada determinada situação.  Assim, uma teoria de princípios/regras acaba por maximizar a liberdade jurídica, fornecendo um instrumental racional superior à teoria pura de regras.  

A segunda objeção – arbítrio judicial – da mesma forma, não se mostra suficiente a negar a validade de uma teoria constitucional de princípios e regras. A questão já é conhecida profundamente pelo direito brasileiro, uma vez que o princípio do convencimento racional do magistrado é amplamente aceito em nosso sistema jurídico, sendo, inclusive, imposição constitucional a fundamentação dos atos judiciais (artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal).  

A escolha, no caso concreto, entre uma das opções possíveis, com implementação de um mandado de otimização, é fruto de um processo racional, devendo o intérprete justificar logicamente a alternativa escolhida, fato que afasta o arbítrio ensejador do aniquilamento dos direitos de liberdade.[11]

É imprescindível que o operador judiciário conheça o âmbito de proteção das normas constitucionais consagradoras dos direitos fundamentais.  

A admissibilidade teórica das restrições a direitos em um regime democrático é impositivo de caráter lógico, uma vez que a necessária convivência prática dos diversos direitos determina limitações recíprocas, evitando, com isso, que o exercício absoluto de pretensões possa gerar o próprio aniquilamento das esferas constitucionalmente protegidas.  

Na geografia constitucional, a necessidade de proteção ao meio ambiente está colocada na no título de Ordem Social, local onde estão previstos direitos sociais tidos como fundamentais à existência humana, consagrados como verdadeiros princípios que devem orientar as condutas públicas, norteadores dos caminhos a ser seguidos pela República Federativa do Brasil. 

3. A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL 

   Em seu art. 225, a Constituição Federal dispõe, de forma cogente: 

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 

   A relação entre Direitos Fundamentais e Meio Ambiente, remete ao  direito à vida, o mais fundamental de todos os direitos fundamentais. (Constituição Federal, art. 5º "caput"). 

   Sabe-se, contudo, que não basta que a Constituição Federal garanta a existência, mas sim uma existência digna (art. 1º, inciso III da Constituição Federal) e com bem estar (art. 3º, inciso IV), somente é possível com um meio ambiente saudável, direito reconhecido como fundamental de terceira geração. Tal direito  deve ser objeto de políticas públicas, nas mais variadas searas, a fim de atender ao anseio fundamental por um meio ambiente digno que tenha o condão de proporcionar bem estar a todos. 

Trata-se dos aspectos reconhecidos como materiais e for mais, ambos, devidamente estabelecidos como garantias fundamentais, que apontam para a especial dignidade de proteção dos direitos dos cidadãos, considerando tanto a liberdade e igualdade, quanto à solidariedade – direitos fundamentais de 1ª, 2ª e 3ª geração, respectivamente.

O primeiro deles, que diz respeito à questão material, figura no campo que estabelece o conteúdo dos direitos fundamentais; se se trata o meio ambiente um direito de todos, e que deve ser ecologicamente equilibrado para o uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (artigo 225), evidentemente temos que aceitar a idéia de que estamos diante de um aspecto fundamental, garantidor da vida em sua total plenitude, onde as reclamações e as formas de tutela se desenvolverão por ordem do sistema.

Por outro lado, a questão formal direciona-se quanto às normas que muito bem se prestam para a defesa e preservação; são normas que efetivamente servem para consagrar os direitos fundamentais, as quais devem ser atendidas por todos no que diz respeito inclusive ao direcionamento, as escolhas e controles, e especialmente à questão relacionada à prevenção, que como todos nós já sabemos, é a melhor forma de se garantir o Direito de cada um, ainda que num conjunto.[12] 

José Afonso da Silva observa que o capítulo do meio ambiente é um dos mais importantes e avançados da Constituição de 1988. Em sua obra, afirma que a Constituição Federal de 1988  

(…) toma consciência de que a qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornara imperativo do poder público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições do seu desenvolvimento. Em verdade, para assegurar o direito fundamental à vida. As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreender que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana.[13] 

           Diante de tais considerações, há que se identificar na Constituição Federal que a preservação ao meio ambiente é princípio informador da Ordem Social na República Federativa do Brasil, consistindo, sem sombra de dúvidas, em preceito fundamental intransponível a ser seguido pelos componentes dos setores públicos e privados da sociedade brasileira.  

A atuação preservacionsita deve ser seguida por todos aqueles que, direta ou indiretamente possam gerar danos ambientais.

Como política de atuação ambiental, a Constituição Federal pede, aos agentes pertinentes, uma atuação preventiva, não descuidando, por óbvio, de ações repressivas. 

A propósito, ensina Eros Roberto Grau [14]: 

A Constituição, destarte, dá vigorosa resposta às correntes que propõem a exploração predatória dos recursos naturais, abroqueladas sobre o argumento, obscurantista, segundo o qual as preocupações com a defesa do meio ambiente envolvem proposta de "retorno à barbárie". O Capítulo VI do seu Título VIII, embora integrado por um só artigo e seus parágrafos – justamente o art. 225 – é bastante avançado.

O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o art. 225, caput. 

Considerando-se que o Estado é o responsável pela garantia dos princípios do artigo 170 da Constituição, é seu o papel de intervir na economia para induzi-la à proteção ambiental. Dessa forma, garante que o desenvolvimento econômico se dê dentro de níveis aceitáveis de danos ao meio ambiente, em ação de respeito aos deveres impostos pelo art. 225 da Constituição Federal. 

4. A EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA 

           Extrafiscalidade é o emprego dos meios tributários para fins não fiscais, mas ordinatórios, isto é, para disciplinar comportamentos de virtuais contribuintes; quando a estrutura do tributo visa a situações sociais, políticas ou econômicas, objetivos alheios aos meramente arrecadatórios. 

           Um conceito um pouco mais amplo é apresentado por Marcus de Freitas Gouveia, para quem a extrafiscalidade é o princípio ontológico da tributação e epistemológico do Direito Tributário, que justifica juridicamente a atividade tributante do Estado e a impele, com vistas na realização dos fins estatais e dos valores constitucionais, conforme as políticas públicas constitucionalmente estabelecidas, delimitada (a atividade estatal) pelos princípios que revelam as garantias fundamentais do contribuinte.[15] 

O Prof. Dr. Roque Antonio Carraza, ensina: 

Há extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Por aí se vê que a extrafiscalidade nem sempre causa perda de numerário; antes, pode aumentá-lo, como, por exemplo, quando se exacerba a tributação sobre o consumo de cigarros.[16]

Os constitucionalistas e financistas norteamericanos, acompanhando a jurisprudência de seu país, distinguem os tributos cobrados com fundamento no “poder de tributar” daqueles com fundamento no “poder de polícia”. Os primeiros atendem a uma função eminentemente fiscal e os segundos têm características extrafiscais. 

Tributar consiste em exigir dinheiro sob coação, sendo; portanto, um exercício do poder soberano do Estado. O “poder de polícia” é exercido pelo Executivo. O Estado tem como finalidade viabilizar a coexistência dos indivíduos em sociedade, valendo-se, para tanto, do Direito. 

O poder de polícia é exercido nos limites previamente estipulados em lei, prevalecendo sempre o interesse coletivo sobre o particular. Assim, a tributação com base no poder de polícia tem a finalidade de impedir e, até mesmo, punir determinados comportamentos.  

A política fiscal é uma opção política de quem exerce o poder soberano. De acordo com esta, determinados comportamentos são incentivados pela concessão de isenções, pela previsão constitucional de imunidades, ou coibidos por uma grande carga tributária. Uma política fiscal, por exemplo, que tem como objetivo incentivar o desenvolvimento nacional faz incidir uma carga tributária menor sobre os bens de capital e maior sobre propriedades ociosas e importações, com a finalidade de viabilizar o aumento da produção industrial. Nesse caso, todos esses tributos têm uma função extrafiscal, ou seja, o objetivo dessa tributação é viabilizar a industrialização e não apenas arrecadar receitas para o financiamento do Estado.[17] 

Resta claro que a política fiscal é uma opção política de quem detém e exerce o poder soberano do Estado. De acordo com esta, arrecadam-se receitas para a manutenção da máquina estatal. Todavia, ela pode, também, ter como objetivo uma reforma social, incentivando o desenvolvimento nacional e conduzindo a uma melhor distribuição da renda nacional. 

O Estado, no exercício do poder de polícia, verá a restrição ou proibição em caráter absoluto; o poder de tributar, quando atua no campo da extrafiscalidade, simplesmente objetiva recomendar ao cidadão uma ação ou omissão, acenando com a vantagem econômica, sendo, assim, restrição ou proibição relativa.  

Por meio da extrafiscalidade tributária, tendo como instrumento os benefícios fiscais, pretende-se alterar comportamentos humanos por intermédio da exação tributária. Porquanto, valendo-se dos incentivos fiscais, pode-se desestimular comportamentos nocivos ao meio ambiente, os quais podem ser mudados não através da utilização de novos tributos a serem aplicados aos comportamentos causadores da degradação, mas sim utilizando-se da “sanção premial”, para aqueles setores que mudarem suas atitudes, implementando novas tecnologias, com o objetivo de ir ao encontro do desenvolvimento sustentável, que somente poderá ser alcançado com uma política pública que fomente e incentive os setores produtivos, premiando aqueles que contribuem na trilha deste caminho e punindo os que teimam em praticar atividades que venham a degradar o meio ambiente em níveis insuportáveis. 

Na Constituição brasileira de 1988, encontram-se duas espécies de normas constitucionais extrafiscais: as que visam à realização do desenvolvimento nacional e as que visam à realização da justiça social. 

No primeiro grupo estão os impostos de importação e sobre a propriedade rural, assim como o imposto sobre a propriedade territorial urbana, que também possui funções extrafiscais na medida em que é utilizado como instrumento regulador do desenvolvimento urbano dos municípios. 

No segundo grupo encontramos o princípio da seletividade. 

5. A SELETIVIDADE TRIBUTÁRIA 

Aliomar Baleeiro define “seletividade” como “discriminação ou sistema de alíquotas diferenciais por espécies de mercadorias.” [18] 

Pelo princípio da seletividade, tributo deve possuir uma alíquota maior ou menor, conforme a essencialidade do produto. O produto de primeira necessidade deve ter baixa tributação e o produto menos essencial deve receber tributação mais elevada. 

Do magistério do Prof. Dr. Roque Antonio Carrazza: 

(,,,) o princípio da seletividade é atendido adotando-se um processo de comparação de produtos industrializados (no caso do IPI) e de mercadorias ou serviços (no caso do ICMS). Nunca, evidentemente, discriminando-se contribuintes, em função de raça, sexo, ocupação profissional, local em que exercem suas atividades etc., que a isto obstam os arts. 5º., I, e 150, 11, ambos da CF. Evidentemente, o princípio da seletividade tem por escopo favorecer os consumidores finais, que são os que, de fato, suportam a carga econômica do IPl e do ICMS. Daí ser imperioso que sobre produtos, mercadorias e serviços essenciais haja tratamento fiscal mais brando, quando não total exoneração tributária, já que em relação a eles o adquirente, em rigor, não tem liberdade de escolha. [19]

   Referido princípio tem assento constitucional; em relação ao IPI, no art. 153. § 3º, inciso IV e, em relação ao ICMS no art. 155, § 2º, inciso III. 

A seletividade, portanto, é aplicada conforme a essencialidade do produto, que deve abranger não somente as necessidades biológicas (moradia, alimentação, tratamento médico), mas também as necessidades que sejam pressupostos de um padrão de vida mínimo decente. Produtos essenciais devem ter alíquotas mais baixas ou zero e, os chamados produtos supérfluos, devem ter alíquotas mais altas, em obediência ao princípio da capacidade contributiva ou para desestimular o consumo. É, portanto, princípio que pode ter razões extrafiscais, ou seja, objetivos almejados pelos Poderes Públicos, que necessitam de uma alíquota mais alta, desestimuladora do consumo de produtos sofisticados, de luxo ou importados. 

A essencialidade, como ensina Aliomar Baleeiro, “refere-se à adequação do produto à vida do maior número dos habitantes do país. As mercadorias essenciais à existência civilizada deles devem ser tratadas mais suavemente ao passo que as maiores alíquotas devem ser reservadas aos produtos de consumo restrito, isto é, o supérfluo das classes de maior poder aquisitivo. Geralmente são os artigos mais raros e, por isso, mais caros.”[20]       

Tendo em vista a redação de referidas normas constitucionais, discute-se se a aplicação do princípio da seletividade é facultativa ou obrigatória. 

Há entendimento no sentido de que a seletividade é obrigatória para os produtos sobre os quais incide o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e facultativa para as mercadorias sujeitas ao ICMS.

Todavia, o Prof. Dr. Roque Antonio Carrazza entende que a seletividade também é de observância obrigatória em relação ao ICMS.  Tal entendimento tem a seguinte fundamentação: 

“O antigo ICMS era um tributo uniforme, vale dizer, tinha as mesmas alíquotas, para todas as mercadorias. Só podia, pois, ser utilizado como instrumento de fiscalização, carreando dinheiro aos cofres públicos, para que o estado pudesse fazer frente a suas necessidades básicas.

 O atual ICMS, pelo contrário, deve ser um instrumento de extrafiscalidade, porquanto, a teor do art. 155, §2º, III, da CF, “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços.” Convém salientarmos, desde logo, que, a nosso ver, este singelo “poderá” equivale, na verdade, a um peremptório “deverá”. Não se está, aí, diante de uma mera faculdade do legislador, mas de uma norma cogente, de observância obrigatória.

Ademais, quando a Constituição confere a uma pessoa política um “poder” ela, “ipso facto” lhe impõe um “dever”. É por isso que se costuma falar que as pessoas políticas têm poderes deveres. (Celso Antonio Bandeira de Mello)[21] 

6. A EXTRAFISCALIDADE E A SELETIVIDADE NA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE

Levando-se em conta a sistemática imposta pelo Sistema Constitucional Tributário vigente, configura-se como impossível a criação de um novo tributo incidente somente sobre as ações responsáveis pela degradação ao meio ambiente [22]; isso decorre, aliás, da própria definição de tributo constante no Código Tributário Nacional, que difere referida exação de sanção [23]. No entanto, os tributos existentes poder ser utilizados com caráter extrafiscal, sendo constitucionalmente admissível a aplicação do princípio da seletividade

Não há óbice a criação de um chamado ICMS ecológico (art. 170, inciso VI da Constituição Federal)[24], por exemplo, que tribute de modo menos oneroso, operações mercantis com produtos ecologicamente corretos, que não agridem o meio ambiente. A tributação menos onerosa de um produto feito com material biodegradável, considerado em relação ao mesmo produto feito com amianto, atende à imposição do art. 225 da Constituição Federal [25]. No mesmo sentido, a desoneração do ICMS o fabrico de papel reciclável ou os materiais que utilizem pilhas alcalinas.

A criação de uma tributação proibitiva (no sentido de onerar certas matérias-primas) relativa ao uso de determinados recursos naturais é coerente com regras constitucionais vigentes. 

Além da taxas que são comumente utilizadas com vistas à preservação ambiental, é de se ponderar a utilidade de desestimular certas atividades, o que pode ser facilmente alcançado com o uso da extrafiscalidade e da seletividade tributárias. O manejo dos impostos de renda, de importação, de exportação, sobre produtos industrializados, sobre circulação de mercadorias e serviços, sobre a propriedade imóvel e de veículo automotor, pode se caracterizar tais exações como ambientais, tendentes à proteção e à conservação ambientais.

 Tais mecanismos tributários que visam à preservação do meio ambiente, recebem a designação, traduzida para o vernáculo, de “tributos verdes”, imposições tributárias que orientam as decisões política e econômica, de modo a tornar a opção ecologicamente mais correta e adequada.

 Os ditos green taxes são aqueles que influenciam na decisão econômica de modo a tornar mais interessante a opção ecologicamente mais adequada. Na verdade, nada mais devem fazer que refletir a realidade dos custos da atividade ecologicamente desorientada. Na atividade econômica, as decisões são orientadas pelo binômio custo/benefício e assim, ainda que não seja critério exclusivo, o custo é critério de extrema relevância nas decisões diárias, não apenas do empresário, mas de todos. 

Ora, se os custos da degradação ambiental não forem refletidos nos preços, as decisões econômicas nunca serão ecologicamente corretas. A função das green taxes é precisamente a de ‘ïnternalizar’ (neologismo de origem norte-americana) os custos ambientais, isto é, trazer para o custo de cada bem ou mercadoria o custo que seu consumo representa em termos ambientais. Assim, por exemplo, se uma fábrica de fertilizantes polui um rio, o imposto verde deverá acrescentar um custo ao produto, correspondente ao que o Estado terá para promover a ‘despoluição’ do rio, tornando interno à atividade um custo que antes lhe era externo. Nessa hipótese, a tendência é de substituição da atividade poluente por outra economicamente mais interessante, isto é, por outra que não traga ônus embutido. [26] 

Em se tratando de repartição de receitas tributárias, de acordo com as respectivas legislações estaduais, alguns Estados brasileiros vêm destinando essa parcela aos Municípios que tenham manifestado preocupações com as questões ambientais.

O surgimento dessa figura se deu no Paraná no ano de 1990, em sua Constituição Estadual, artigo 132, sendo, posteriormente, regulado pela Lei Complementar 59/91, conhecida como “Lei do ICMS Ecológico”. Nessa lei complementar, era dito que 5% do total destinado aos municípios seriam repassados àqueles com unidades de conservação e com mananciais de abastecimento.

O Estado de Minas Gerais também o fez, por meio da Lei Estadual 12.040/95, bem como o estado do Mato Grosso do Sul, que já dispunha de previsão em sua Constituição Estadual (artigo 153, parágrafo único, II) e a regulamentou com a Lei Complementar 57/91. [27]

 Os mecanismos de ordem econômica, direcionam a opção dos agentes que atuam na seara econômica, especificamente no que se relaciona aos preços de bens e serviços, tornando mais atraente a opção ecologicamente mais desejável[28], estimulando condutas não-poluidoras e ambientalmente corretas.

 A idéia da utilização de mecanismos tributários voltados à preservação ambiental surgiu na Europa, em meados da década de 80, e ganhou novos contornos entre 1989 e 1994, quando incorporada à legislação de diversos países, como França, Itália, Estados Unidos, entre tantos outros.

 No Brasil, ganha força a tese da tributação ambiental, principalmente quando vista pela lente dos incentivos, pois quase todos os tributos podem ser utilizados com essa conotação de sanção positiva, premial. [29]

Entretanto, a maioria desses instrumentos ambientais tributários depende de iniciativas legislativas municipais e estaduais, notadamente na mobilização de parlamentares e autoridades executivas, além da sociedade civil, de forma a tornar a discussão participativa e democrática, sob pena de esvaziar o conteúdo deste novo filão tributário.[30]

Os três principais princípios do direito ambiental, que justificam, plenamente, os tributos verdes, são:

I – Princípio da precaução;

II – Princípio de cooperação;

III – Princípio do poluidor-pagador. 

O primeiro pode ser inserido na ordem temporal da manifestação dos princípios, antes dos primados da cooperação e do poluidor-pagador. Estes últimos servem à solução do conflito posto, ou seja, destinam-se à correção de práticas agressivas ao meio ambiente. O princípio da precaução visa a impedir que o estado de tensão social, decorrente do dano ecológico, estabeleça-se, por isso orienta a adoção de critérios preventivos ao dano.[31] 

O segundo consiste na idéia de que toda a sociedade deve participar do processo de proteção do meio ambiente. 

Pela aplicação do terceiro, impõe-se ao “sujeito econômico” (produtor, consumidor, transportador), que nesta relação pode causar um problema ambiental, arcar com os custos da diminuição ou afastamento do dano.[32] 

Como exemplos de utilização ambiental dos institutos tributários, podemos citar, no exercício da competência tributária federal, a Lei 9.393/96 que isentou, da tributação por ITR, as áreas de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, com a redação dada pela Lei nº 7.803, de 18 de julho de 1989, bem como aquelas de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na alínea anterior. (art. 10, § 1º, inciso II, letras “a” e “b”).

 Além do ITR, os impostos de exportação e exportação também podem servir como eficazes instrumentos de política ambiental, se observada a preferência por produtos ambientalmente recomendados nas transações comerciais no estabelecimento de alíquotas diferenciadas. [33]

No exercício da competência estadual, pode-se citar o exemplo da Lei nº. 6.606, de 20 de dezembro de 1989, que dispõe a respeito do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores.  Referida norma, com as alterações que lhe foram feitas posteriormente, diferencia a alíquota do imposto levando em consideração o combustível utilizado pelo veículo, minorando a porcentagem para os combustíveis menos poluidores como o álcool, gás natural ou eletricidade. [34]

 Além disso, ainda na competência estadual, o Imposto sobre Transmissão causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos pode ter serventia relacionada àqueles imóveis considerados como produtivos ou de interesse ambiental, incluindo os patrimônios tidos como históricos ou culturais, e ter suas alíquotas e/ou base de cálculos variáveis conforme sua importância. [35] 

 No âmbito da competência tributária municipal, pode-se lançar mão do uso ambiental do IPTU — Imposto Predial Territorial Urbano, dada sua progressividade no tempo e seu uso de acordo com a função social da propriedade. A propósito disso, o próprio Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, em seu artigo 7º, fixou a progressividade como instrumento de política urbana.[36]

Há previsão constitucional para a instituição de um tributo ambiental, ou melhor, de uma CIDE incidente sobre setor da economia que causa graves danos ao meio ambiente, qual seja, o dos combustíveis. É importante ressaltar que essa CIDE objetiva desestimular o consumo dos combustíveis mais nocivos ao meio ambiente, na medida em que a Lei 10.336/01 (que criou o tributo) implementou, no seu artigo 5º,[37] um sistema de tributação graduada de acordo com os danos ambientais de cada combustível. Além disso, a receita da CIDE tem destinação específica para a proteção do meio ambiente, nos termos das letras a e b do inciso II do § 4º, do artigo 177 da Constituição Federal, representando um segundo incentivo à proteção ambiental, em perfeita consonância com as mais modernas teorias de direito ambiental.[38] 

6.1 – Benefícios fiscais direcionados à proteção do meio ambiente e a Lei de Responsabilidade Fiscal 

Os benefícios fiscais servem de ferramenta para o Poder Público fomentar aqueles setores produtivos de maneira a estimular o emprego de tecnologias, as quais, ao mesmo tempo em que impulsionam a produção, ajudam a melhorar a qualidade de vida da população. Cada vez mais se fala em desenvolvimento sustentável, os países estão procurando estimular o desenvolvimento econômico, mas aliando este à defesa do meio ambiente, pois são pólos que podem e devem caminhar juntos o binômio “desenvolvimento econômico/meio ambiente”, que é conceituado como “desenvolvimento sustentável”. 

Os benefícios fiscais nada mais são do que “prêmios fiscais” concedidos pelo Poder Público, como redução de alíquotas de impostos de maneira a incentivar que os setores favorecidos desenvolvam projetos, tecnologias, atividades que venham a contribuir para o desenvolvimento econômico e ao mesmo tempo venham a ajudar na defesa do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Vê-se que a tributação é um instrumento para se alcançar um objetivo de cunho econômico-social relevante que pode gerar frutos não somente agora, mas principalmente para o futuro.

Contudo, ns instituição de benefícios fiscais tendentes à preservação do meio ambiente, o Poder Público não pode descuidar-se do disposto na Lei nº 101, de 04 de maio de 2000, chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que, em seu art. 14, determina que eventual renúncia de receita deve ser compensada por meio de aumento de receita.[39]          

Em primeiro lugar, há que se ponderar que a instituição de benefícios fiscais tendentes à preservação do meio ambiente tem fundamento constitucional no art. 225 da Constituição Federal, ao passo que a vedada renúncia de receita tem assento legal. Hierarquicamente, a norma constitucional deve prevalecer sobre a legal. Diante disso, não haveria qualquer empecilho de ordem legislativa na instituição dos “tributos verdes”, já que tais encontram autorização na Carta Magna, que não pode ser condicionada ou limitada por regras infra-constitucionais.

Ademais disso, em casos de incentivos fiscais ambientais, a técnica financeira mais adequada a ser praticada cinge-se em face de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e de que não afetará as metas de resultados fiscais. Assim agindo o Poder Público, com maior segurança e livre de desgastantes discussões judiciais, encontrará a melhor forma de agir adequadamente em face do meio ambiente, com a instituição de incentivos fiscais considerando as prescrições da Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina seja demonstrado pelo Poder Público que os incentivos fiscais ligados ao meio ambiente não afetarão as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias.

Além desses dois pontos, há que se considerar os ensinamentos de Ricardo Berzosa Saliba: 

a diminuição ou eliminação total da carga tributária neste tocante na verdade está garantindo a não ocorrência de futuros gastos pelo Poder Público, pois com isso vão os entes deixar de praticar despesas para manter ou recuperar danos de várias ordens ocorridos no meio ambiente por falta de um devido tratamento que nosso ordenamento acaba nos oferecendo. [40] 

É necessário que o Poder Público incentive uma mudança comportamental, que venha implementada por meio de uma política econômico-social que tenha como instrumento a extrafiscalidade tributária através dos benefícios fiscais, os quais atuarão em conjunto com os princípios de direito ambiental, principalmente com o princípio da precaução, tendo em mente que, no caso dos tributos ambientais, não está em voga a receita financeira que pode gerar, mas sim o fato sobre o qual venham a incidir. Oferecendo “prêmios” (benefícios fiscais) para aqueles que não pensarem somente agora, mas nas próximas gerações e punindo aqueles que vão de encontro à nova realidade – a busca pelo “desenvolvimento sustentável”, não pode o Poder Público ser acusado de renúncia de receita. 

7. CONCLUSÕES 

Atualmente, cabe às normas jurídicas papel de relevante importância na adoção de condutas consoantes o meio ambiente equilibrado e sadio, seja repressivamente, seja preventivamente. Ou penas, ou prêmios. 

O Direito, inclusive o Ambiental, tem como tarefa fazer o bem comum dentro da comunidade que vige e, neste trabalho, a sociedade moderna é mostrada sendo questionada e colocada em xeque, em razão de seus riscos ambientais.

 O Estado, na iminência de problemas, age como regulador da atividade econômica, seja via fiscalização, repressiva e punitiva, seja no caminho preventivo, fazendo uso dos incentivos. Assim o é com finalidade determinada e com base jurídica para implementação de políticas públicas governamentais, positivamente (repressões tributárias) ou negativamente (subsídios fiscais).

 Por meio da extrafiscalidade e da seletividade tributárias, é possível orientar as opções públicas e privadas para que, por meio da tributação, atividades degradadoras do meio-ambiente que dêem origem a produtos e serviços colocados à disposição do consumidor final, tornem-se pouco atrativas.

 O Sistema Tributário Constitucional é perfeitamente adequável à gestão ambiental, desde que suas previsões sejam aplicadaa com a finalidade extrafiscal, ou seja, visando à mudança de comportamento do agente poluidor. Em assim sendo consiste num importante instrumento de gestão econômica do meio ambiente com capacidade de coibir atitudes poluidoras, bem como incentivar atividades de produção ecologicamente corretas com investimentos em novas tecnologias de produção não poluente.

 A tributação ambiental adequada, considerando o valor constitucional a que foi prestigiado o meio ambiente, pode ser um dos instrumentos para se alcançar um desenvolvimento preocupado com as gerações, tanto presentes, quando futuras.

 Partindo-se do pressuposto de que a visão ambiental do manejo da extrafiscalidade tributária tem fundamento constitucional, a concessão de benefícios fiscais tendentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal) não configura renúncia de receitas, liberalidade vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000).

 Os “tributos verdes” têm papel reorientador da atividade empresarial e popular, sem que se possa criticá-lo por artificial. De fato, tais impostos não criam uma variante que distorce a melhor decisão econômica, mas, pelo contrário, a fazem brotar com dados reais, pois o custo ambiental é real. Esse modelo de reforma tributária traz a novidade: tributos impostos não pelo Estado, mas pela natureza. O custo é relevante nas decisões diárias.

 8. REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 ALEXY, Robert.  Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. p.89

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

ARAÚJO, Cláudia de Rezende Machado de. Extrafiscalidade.  Revista de Informação Legislativa nº, 132, Out/Dez de 1996, pp. 329/334.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 9ª Edição, Rio de Janeiro, Forense, 1977

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 256.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22ª ed., Malheiros: São Paulo, 2006.

_______. ICMS, 11ª Edição, Malheiros Editores, 2005.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997

DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001.

DINIZ, Paulo de Matos Ferreira. Lei de responsabilidade fiscal: instrumento de gestão fiscal. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. [Coletânea Administração Pública]

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 80

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 112

NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005.

ROCCO, Rogério. Dos instrumentos tributários para a sustentabilidade das cidades. In: O Direito Ambiental das Cidades. ROCCO, Rogério e COUTINHO, Ronaldo (Orgs.). Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

ROSENBLATT, Paulo. Limitações constitucionais à instituição de contribuição de intervenção ambiental. Revista de Direito Ambiental, ano 9, n.º 36, out-dez de 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 169.

SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos de Direito Tributário Ambiental. Quartier Latin: São Paulo, 2005.

SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrição. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2001.

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

TORRES, Heleno Taveira [organizador]. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005.

ZEOLA, Senize Freire Chacha. ICMS – Instrumento de proteção e conservação do meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, ano 8, n.° 30, abr-jun de 2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 179-197.


NOTAS

[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 39

[2] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 55.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 256.

[4] ALEXY, Robert.  Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. p.89

[5] A propósito, o Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental n.º 152676-0/PR, tendo como Relator Ministro Maurício Corrêa, enfrentou a questão envolvendo a convivência de diversos princípios no sistema constitucional, decidindo que "os princípios constitucionais que garantem o livre acesso ao Poder Judiciário, o contraditório e a ampla defesa, não são absolutos e hão de ser exercidos, pelos jurisdicionados, por meio das normas processuais que regem a matéria, não se constituindo negativa de prestação jurisdicional e cerceamento de defesa a inadmissão de recursos quando não observados os procedimentos estatuídos nas normas instrumentais. (Supremo Tribunal Federal, Rei. Min. Maurício Corrêa, Agravo Regimental n" 152676-0, PR, DJ 03.11.95, ementário n" 1807-02.)

[6] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 112

[7] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. São Paulo:  Malheiros, 2001. pp. 84/85

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 1035.

[9] Ibidem.

[10] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. p. 170.

[11] SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrição. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2001. p. 43

[12] SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos de Direito Tributário Ambiental. Quartier Latin: São Paulo, 2005. p.104.

[13] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed., Malheiros: São Paulo, 2001, p. 820

[14] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. pp. 219/220.

[15] GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 80

[16] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22ª ed., Malheiros: São Paulo, 2006, pp. 107/108.

[17] ARAÚJO, Cláudia de Rezende Machado de. Extrafiscalidade.  Revista de Informação Legislativa nº, 132, Out/Dez de 1996, pp. 329/334.

   Capturado de http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_133/r133-29.PDF em 21/02/2007, às 10h15min.

[18] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 9ª Edição, Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 190

[19] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22ª ed., Malheiros: São Paulo, 2006, p. 96.

[20] BALEEIRO, Aliomar. Op. cit., p. 19

[21] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS, 11ª Edição, Malheiros Editores, 2005. pp. 374/375.

[22] “Art. 167. São vedados:

 

    IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo; (NR) (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, DOU 31.12.2003, com efeitos a partir de 45 dias da publicação).”

[23] “Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

[24] “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

   

    VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.”

[25] “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

[26] FERRAZ, Roberto. Tributação e meio ambiente. http://www.rio.rj.gov.br/cgm/clipping/especial/gazeta0017.htm capturado em 03/02/2007, às 20h25min.

[27] ZEOLA, Senize Freire Chacha. ICMS – Instrumento de proteção e conservação do meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, ano 8, n.° 30, abr-jun de 2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 179-197.

[28] ROSENBLATT, Paulo. Limitações constitucionais à instituição de contribuição de intervenção ambiental. Revista de Direito Ambiental, ano 9, n.º 36, out-dez de 2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 169.

[29] TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Tributo é eficaz quando usado para preservação ambiental. http://conjur.estadao.com.br/static/text/42937,1 capturado em 07/02/2007, às 21h35min.

[30] ROCCO, Rogério. Dos instrumentos tributários para a sustentabilidade das cidades. In: O Direito Ambiental das Cidades. ROCCO, Rogério e COUTINHO, Ronaldo (Orgs.). Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 296.

[31] NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005. p. 47

[32] DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 57

[33] NUNES, Cleucio Santos. Op. cit. p. 164.

[34] Lei Nº 9.459, de 16 de dezembro de 1996, que altera a Lei nº 6.606, de 20 de dezembro de 1989, que dispõe a respeito do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores IPVA

[35] NUNES, Cleucio Santos. Op. cit.

[36] “Art. 7º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5º desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5º do art. 5º desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos.”

[37] “Art. 5º A Cide terá, na importação e na comercialização no mercado interno, as seguintes alíquotas específicas:

I – gasolina, R$ 860,00 por m³;

II – diesel, R$ 390,00 por m³;

III – querosene de aviação, R$ 92,10 por m³;

IV – outros querosenes, R$ 92,10 por m³;

V – óleos combustíveis com alto teor de enxofre, R$ 40,90 por t;

VI – óleos combustíveis com baixo teor de enxofre, R$ 40,90 por t;

VII – gás liqüefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e da nafta, R$ 250,00 por t;

VIII – álcool etílico combustível, R$ 37,20 por m³. (NR) (Redação dada ao caput pela Lei nº 10.636, de 30.12.2002, DOU 31.12.2002 – Ed. Extra).”

[38] CASTELLO, Melissa Guimarães. A possibilidade de instituir tributos ambientais em face da Constituição de 1988. http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6796 capturado em 1º/02/2007, às 23h45min.

[39] “Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do artigo 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:

I – às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do artigo 153 da Constituição, na forma do seu § 1º;

II – ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.”

[40] SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 324.

 

RENATO BERNARDI: Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Constitucional. Doutorando em Direito Tributário. Autor do livro A inviolabilidade do Sigilo de Dados 

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Sobre juros e contratos de empréstimo

0

* Gisele Leite



Os juros constituem o preço pelo uso de capital. São frutos civis do capital que possui duplo escopo: promover a remuneração do credor pela privação de seu capital e, por outro lado, compensar-lhe o risco de sua não-restituição.

Quanto maior a procura pelo capital, mais intenso será o risco do inadimplemento, mais elevados serão os juros no mercado.

Os juros a priori se subdividem em: compensatórios que constituem na remuneração ou preço do capital empregado; e moratórios que representam a indenização pelo retardamento no pagamento da dívida.

Distinguem-se ainda os juros convencionais dos legais, sendo que os primeiros decorrem da vontade das partes e os segundos de imposição legislativa. Tanto os juros compensatórios como os moratórios podem ser legais ou convencionais.

A ética religiosa historicamente consagrou princípio oriundo do direito canônico medieval, segundo o qual o dinheiro não produz frutos e que se traduziu no combate à usura. Tal pensamento persistiu longamente no tempo, quando passamos a discernir o empréstimo para propiciar consumo material, daquele que serve de fomento dos meios produtivos.

O conceito de onerosidade muito é relevante para a concepção dos juros, vocábulo derivado do latim fenus é conceito calcado na seara do direito das obrigações e revela interesse sobre dinheiro emprestado ou capital investido, e calculado em razão de determinada taxa.

Se o empréstimo pessoal destinado à subsistência era exploratório, diferente porém do empréstimo destinado à produção. Os legisladores da maioria dos sistemas jurídicos tendem a restringir a abusividade na fixação de juros, impondo limites à fixação dos juros convencionais.

Daí entender a Lei de Usura, o decreto 22.626/33 que o fixou em 12% a taxa anual máxima para os juros contratuais, além da expressa vedação ao anatocismo (art. 4º) ou chamados juros compostos.

Em 1976, o STF em verbete unificado produziu a Súmula 596 que subtraiu as instituições financeiras do limite consignado pela Lei de Usura (STF, RE 78953, 2ª T., Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, julg. 19.12.1974, publ. DJ 11/04/1975).

Foram tais instituições submetidas à Lei 4.595/64. Voltou a tendência a limitação dos juros ganhou fôlego com a Constituição federal de 1988 em seu (já atualmente revogado do art. 192, § 3º) a taxa máxima de juros reais no percentual de 12 % ao ano.

No entanto, forte corrente doutrinária sustentou que o referido preceito constitucional não era auto-executável, sendo tal tema carente de lei complementar, foi regulamentada na Circular do Bacen 1.365 e por sua Resolução 1.064/85 que consagrou que as entidades financeiras sujeitas ao funcionamento e a fiscalização por parte da autoridade monetária pátria podem praticar a taxação de juros livremente pactuados.

O STF firmou o entendimento de que o § 3º do art. 192 das CF não era auto-aplicável, razão porque necessitava de regulamentação. A norma aí contida é de eficácia limitada, o debate chegou finalmente ao fim com a edição da emenda constitucional 40 de 29/05/2003 que revogo expressamente o referido parágrafo do art. 192 da CF.

A Lei da Reforma Bancária e a Circular 1.365 do BaCen passaram a disciplinar o sistema financeiro pátrio possibilitando que as instituições financeiras praticam taxas específicas. O que, todavia, não excluía a proteção contra as práticas abusivas no mercado de consumo, do qual são partícipes consumidores, fornecedores, prestadores de serviços de natureza financeira, bancária e de crédito (CDC art. 3º, 2º).

Sendo tipificada como abusivas (e, portanto nulas pleno iure) todas as cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva,ou seja, incompatíveis com a boa-fé objetiva, a eqüidade e a função social do contrato (art. 51, IV, CDC).

Opta o legislador pátrio adotar juros flutuantes, procurando determinar a taxa de juros a ser praticada no meio privado no mesmo patamar do exigido no caso de mora no pagamento de impostos à Fazenda Nacional.

Não há consenso ainda se a taxa aplicável é a SELIC ou a prevista no art. 161, § 1º do CTN.

Bem comenta Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que tratar sobre juros é levantar uma das mais remotas discussões jurídicas e socais. Os juros importam em rendimentos, no lucro do capital emprestado, compensando ao credor ao credor o custo do crédito mutuado, funcionando também como prêmio pelo risco que assume ante a eventual inadimplência do de devedor.

É incluído na classe dos frutos civis, portanto sendo coisas acessórias (art. 92 do CC). E suas classificações derivativas relevantes levam em consideração sua destinação (compensatório e moratórios) e de acordo com a origem, temos os juros legais e os convencionais.

Não incidem apenas em valores pecuniários, mas na privação de qualquer capital a ser utilizado por terceiros, que represente por bens fungíveis.

Em geral, os juros compensatórios são convencionais, porque estipulados no título constitutivo seja por negócio jurídico bilateral ou unilateral – tais como os juros praticados pelas instituições financeiras.

Por outro lado, os juros legais serão aqueles determinados na norma, nas hipóteses previstas nos arts. 406, 591, 677 e 706 do C.C. Já os juros moratórios representam a indenização para o inadimplemento no cumprimento obrigacional de restituir pelo devedor. É uma sanção pelo retardo culposo, no reembolso da soma mutuada.

Diferem-se dos juros compensatórios posto que se assentam na culpa do devedor, e se localizam na sistemática civil em vigor ao lado das demais conseqüências do inadimplemento das obrigações, como as perdas e danos e cláusula penal e arras.

Convém também cogitar que não constitui anatocismo a cumulação de juros compensatórios com juros moratórios, e nesse sentido há a súmula 102 do STJ.

Quanto à taxa de juros cogitada pelo art. 406 do CC, Cristiano Chaves de Farias e Rosenvald e boa parte da doutrina entende que não se aplica a SELIC, fixada mensalmente conforme variações mercadológicas. A SELIC é índice de remuneração dos títulos da dívida federal.

Aponta o Enunciado 20 do CJF nesse sentido aponta que a SELIC não é juridicamente segura posto que impede o prévio conhecimento dos juros, não é operacional, porque seu uso é inviável sempre que calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do CC que permite apenas a capitalização anual dos juros.

Esclarecem os doutos doutrinadores que os juros reais são aqueles encontrados após a exclusão da correção monetária, revelando tão-somente a remuneração do capital. Não se confunde como juro calculado de acordo com o valor nominal da obrigação pecuniária, que é apenas uma aparência de juros, pois inflado com parcela que não seria juro.

José Carlos Barbosa Moreira com seu trivial fulgor leciona: “(…) se sabemos o que é mulher honesta, (…), por que é que não sabemos o que são taxas de juros reais? Isso faz parte da tarefa cotidiana do juiz: interpretar textos legais e definir conceitos jurídicos indeterminados”.

A taxa SELIC é ofensiva à segurança jurídica e o princípio da legalidade tributária, posto que é fixada por ato unilateral do Comitê de Política Monetária do Banco Central (COPOM), órgão do Poder Executivo. Os particulares acabam se sujeitando aos humores dos administradores público em matéria que é de competência reservada à lei.

Não mais estipula o art. 406 do CC a taxa de juros máxima, no silêncio da norma, há de se remeter a solução do imbróglio à taxa prevista no CTN, no art. 161, § 1º, calculada no 1% ao mês.

Prevalecerá o referido teto mesmo para os juros moratórios convencionais. Assim a autonomia privada dos signatários não terá força suficiente para ajustar uma taxa convencional moratória que supere ao patamar de 12% ao ano, pois ao art. 5º do Decreto 22.626/33 apenas admite que a mora eleve os juros a taxa 1% ao ano e nada mais.

Leonardo Mattietto explana lucidamente explana que a SELIC (Sistema Especial de Liquidação e Custódia) surgida como índice de remuneração dos títulos da dívida federal corresponde à média ajustada dos financiamentos diários com lastro em títulos federais fixado pelo COPOM.

A adoção da SELIC para o cálculo de juros moratórios devidos à Fazenda Nacional disposta pela Lei 8.981/95 (art. 84) complementada pela Lei 9.065/1995 (art.13) determinando serem os juros “equivalentes à taxa referencial – SELIC para títulos federais, acumuladas mensalmente”. Não há consenso nem mesmo internamente no STJ.

Mattietto aponta a divergência do STJ, sendo a primeira Turma favorável à aplicação dessa taxa, enquanto que a 2ª. Turma mostra-se contrária, in verbis “A taxa SELIC para fins tributários é, a um só tempo, inconstitucional e ilegal. Como não há pronunciamento de mérito da Corte especial desse Egrégio Tribunal que, em decisão relativamente recente de inconstitucionalidade correspectiva (cf. incidente de Inconstitucionalidade no Resp 215.881)”.

A SELIC cria a figura anômala e paradoxal do tributo rentável. Os títulos podem geram renda, os tributos per se, não (STJ Resp 291 257, 2ª. T., Rel. Min. Eliana Calmon, Rel. para o acórdão Min. Franciulli Netto, julg. 23.04.2002, publ. DJ 17.06.2002).

E, conclui recomendando a aplicação do art. 406 do CC com o art. 161 §1º do CTN, de modo, a fixar os juros legais de 12% ao ano aliás, na mesma direção da Judith Martins- Costa.

Essa opinião é consolidada no Enunciado 20 aprovado na Jornada sobre o Código Civil do CJF. Coibindo-se a dupla incidência da atualização monetária evita-se ipso facto o enriquecimento sem causa do credor.

Ademais se garante ao credor face às incertezas da cotação da SELIC e, com fundamento no parágrafo único do art. 404 do CC a conceder, ao credor indenização suplementar sempre o que o índice for insuficiente para cumprir a dupla função de recomposição do capital e de compensação pelas perdas decorrentes da mora do devedor.

Outro argumento plausível é que o Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como lei materialmente complementar (art. 34 ADCT), que jamais pode ser violentada por leis ordinárias como as que instituíram a taxa SELIC – a Lei 8.981/95 e 9.779/99. Portanto, é patente que a aplicação da SELIC ofende aos princípios da legalidade estrita e da indelegabilidade da competência tributária.

O prestigiado Leonardo Mattietto “não seria nem minimamente razoável transferir para os sujeitos da relação obrigacional regida pelo Código Civil, as agruras da delicada e instável política econômica do governo federal, sujeita a pressões de variadas ordens, como o controle da inflação, a vida política do país e as sucessivas crises internacionais. A taxa Selic, que deveria não mais refletir os juros básicos da economia, tornou-se” loteria vestida de derivativo financeiro”. Caso se admitisse sua adoção, seria duramente abalado o valor de segurança das relações jurídicas, sem que, por outro lado, fosse prestigiado o valor de justiça.”

Se o contrato de mútuo tenha sido firmado em data anterior à vigência do Código Civil de 2002, se a partir de 11 de fevereiro de 2003, trinta dias depois à vigência de CC de 2002, as parcelas que se vençam seguirão o art. 406 do CC, pois a mora se renova mês a mês. As parcelas vencidas anteriormente serão cobradas em 6% ano e as vencidas após a vigência do CC de 2002 no patamar de 12% ao ano.

Com efeito, aqui não se discute a validade, mas a eficácia do negócio jurídico. Segundo o art. 2.035 do CC, a validade dos negócios elaborados antes da vigência do CC de 2002 é regida pelo CC de 1916. Enquanto que os efeitos produzidos após a vigência do novo codex civil, serão a este subordinados.

No que tange aos juros sem retroação consiste a aplicação do princípio tempus regis actum, o efeito imediato e geral da lei em vigor que não fere o ato jurídico perfeito, porque o ato negociativo representado pela omissão no pagamento, repete-se a cada mês, então perante a obrigação que se protai ao longo do tempo indeterminado não se cogita de aquisição de direito adquirido de pagar segundo as regras anteriores à renovação da mora.

O início da contagem dos juros moratórios resultantes de responsabilidade contratual corresponderá à data de citação (art. 405 do CC), aliás, o art. 219 do CPC produz um dos efeitos materiais da citação é exatamente constituir o devedor em mora. Mas é necessário ponderar que o dispositivo só se aplica à mora ex persona, proveniente de interpelação judicial ou extrajudicial do devedor, incluindo-se aí a citação (art. 397, parágrafo único do CC).

No caso de mora ex re, o devedor incorpora os acréscimos de juros a contar do próprio vencimento da obrigação. Partimos do brocardo dies interpelat pro homine (art. 397 do CC).

Somente nas obrigações em dinheiro será possível aplicar juros de mora imediatamente após o vencimento de seu termo. Não havendo a liquidez, sendo desconhecido o montante devido, os juros incidirão a partir da citação.

No caso do ato ilícito extracontratual (art. 398 CC e Súmula 54 do STJ) os juros moratórios serão contados da data em que praticou o ilícito. Embora seja questionável a aplicação da Súmula 186 do STJ.

O art. 591 do CC traz uma das mais relevantes inovações do CC de 2002 no tocante ao contrato de mútuo, onde a modalidade de mútuo feneratício é disciplinada de forma profundamente nova. Desta forma, ainda que as partes nada tenham convencionado, presume-se a sua onerosidade.

Na vigência do CC de 1916 o contrato de empréstimo era em regra gratuito, sendo sua onerosidade excepcional pois dependia de cláusula expressa no contrato.

Evidentemente no atual tráfego jurídico, somente podemos afastar a onerosidade por cláusula expressa em sentido contrário, na qual o mutuante afirme categoricamente o desinteresse econômico no empréstimo.

Então o CC de 2002 além de converter o mútuo com fins econômicos de exceção em regra, o legislador civilista não mais o restringiu ao empréstimo de dinheiro ou de coisas fungíveis.

Os juros a que se refere o dispositivo do art. 591 do CC são os juros compensatórios ou remuneratórios, que são aqueles recebidos pelo mutuante como compensação pela privação do capital emprestado por certo período. A remuneração do credor corresponde aos frutos civis por ser privado temporariamente da posse do bem (sejam estes aluguéis, rendas, dividendos).

E, o novo codex civil não apenas se preocupou em fixar os juros legais moratórios em seu art. 406 CC, mas nada disciplinou sobre juros legais compensatórios.

Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald ressaltam que é mantida vigência e eficácia do Decreto 22.262/33 – a Lei de Usura – no tocante aos juros convencionais compensatórios em financiamentos, há de se aplicar o seu art. 1º, nos seguintes termos: “é vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas juros superiores ao dobro da taxa legal”.

A taxa legal para juros compensatórios é a de 1% ao mês, a norma referida na Lei de Usura permite que os contratantes pactuem uma taxa máxima de 2% ao mês, correspondendo ao total de 24% ao ano.

O art. 1º da referida Lei de Usura foi revogado pelo art. 591 do CC, ou seja, prevalece o patamar máximo de 12% ao ano. O permissivo da taxa em dobro será neutralizado quando houver lei especial que determine tetos máximos de juros compensatórios em patamares inferiores, como no caso dos financiamentos estipulados dentro do Sistema Financeiro de Habitação, que não pode ultrapassar o limite de 12% ao ano (art. 25, da Lei 8.692/83).

A Lei de Reforma Bancária (Lei 4.595/64) prevê a fixação de juros cobrada por instituições financeiras passou a ser deliberada pelo Conselho Monetário Nacional, excluindo-as dos limites rígidos da Lei de Usura.

Posteriormente o verbete registrado na Súmula 596 do Superior Tribunal Federal ratificou a não-aplicabilidade da Lei de Usura às instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional.

Toda a discussão em torno da taxa de juros fora definitivamente esvaziada com a edição da Emenda constitucional 40/2003 que expressamente revogou o § 3º do art. 192 da CF que limitava a 12% a taxa dos juros reais, extirpando os juros bancários dos parâmetros de outrora, possibilitando a regulamentação do Sistema Financeiro pelas partes através de lei complementar.

Baseadas no pacta sunt servanda, as instituições financeiras poderiam agir quanto a taxação de juros de acordo com o mercado, sem que isso se caracterizasse como usura. A Súmula 283 do STJ esclarece exatamente nesse sentido.

Mas tais parâmetros praticados no mercado financeiro revelam-se astronômicos, o que afronta totalmente os princípios da boa-fé objetiva, a função social do contrato (arts. 113 e 421 do CC), constituindo mesmo um abuso de direito (art. 187 do CC) que autorizam o magistrado atuar limitando o excessivo exercício do direito subjetivo ao crédito pelas instituições financeiras.

Relembrando-se que tais cláusulas gerais são normas abertas e móveis que circulam por todo o sistema jurídico brasileiro e que devem ser aplicadas para atenuar os rigores de certas regras esparsas do Código Civil. Ademais, tais cláusulas gerais retro-mencionadas são normas de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único do CC) que colocam parâmetros de eticidade e que impedem o aniquilamento dos direitos fundamentais do contratante.

Enfaticamente doutrinadores de peso como Nery Junior admitem que o juiz poderá reduzir os juros a bem da cláusula geral da função social do contrato, e quanto a polêmica da incidência ou não do CDC aos contratos bancários, esta resta superada pelo posicionamento recente do STJ.

Aliás, a mesma Suprema Corte já entendera que as instituições financeiras podem praticar livremente as taxas de juros, desde que esta não supere a taxa média do mercado para a operação.(STJ, 3ª T. Resp 404.097, relator Min, Ari Pargendler, j. 17/03/2003).

Os contratos de mútuo efetuados entre pessoas físicas e bancos ou financeiras são nitidamente relações de consumo, onde o mutuário tem a condição de consumidor (art. 2º do CDC), e é contrato de adesão onde sempre se aplica a interpretação em benefício do aderente.

É óbvio que por sua anterioridade ao CDC, a Lei 4.595/65 ainda em vigor não dispõe quanto à limitação de juros compensatórios nas relações de consumo. Ademais, é norma de ordem pública garantir a tutela ao direito do consumidor emanada dos arts. 5º, XXXII e art. 170, V da Constituição Federal Brasileira.

Dispiciendo discutir se o CDC é aplicável aos contratos bancários tendo em vista o julgamento da ADIn 2.591-1/DF, suscitando a inconstitucionalidade do art. 3º. § 2º do CDC, pois todos os contratos sejam empresariais ou civis se submetem às cláusulas gerais de boa-fé objetiva e de função social do contrato que impedem o desequilíbrio das partes nas relações negociais, sendo facultado ao juiz minorar os juros através do uso de seu poder integrativo.

Mais recentemente, o Superior tribunal de Justiça editou Súmula 297 onde patenteou nos seguintes termos: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. Nos contratos de financiamento realizados através de emissão de cédulas de crédito, os juros legais são limitados ao 12% ao ano pois o art. 5º do Decreto-Lei 413/69 não alcança a Súmula 596 do STF, já que se trata de lei especial e posterior à Lei 4.595/64.

Desta forma, é ilegal a previsão de qualquer outra taxa, comissão de permanência ou encargo tendente a exceder ao permitido legalmente.

A retenção indevida pelo inadimplente do capital pertencente ao credor importa na privação temporária na disponibilidade de sua riqueza, impondo-se a incidência dos juros moratórios. Sem que se necessite demonstrar o prejuízo efetivamente causado.

Precisamos identificar e distinguir de forma adequada a mora ex re da mora ex persona. Na primeira, o mero advento do termo constitui de pleno direito o devedor em mora. É a adoção da regra que diz que “o tempo interpela em lugar do credor para obrigações a termo, positivas e líquidas”.

Este regra tem como base o fato do devedor ter ajustado previamente o prazo para o cumprimento da obrigação e, portanto, saber previamente que no dia do termo terá de cumpri-la.

A seu turno, a mora ex persona é caracterizada pela inexistência de termo certo para o adimplemento da obrigação, razão pela qual se torna obrigatória a interpelação do devedor para sua constituição (art. 397 do CC).

A mora do devedor recebe importante subclassificação: a mora ex re ou automática (quando a obrigação for positiva de dar ou de fazer), líquida e com data fixada para adimplemento.

Aqui nesse caso não vige necessidade de se tomar qualquer providência por parte do credor, como, por exemplo, a notificação, interpelação do devedor (art. 397 do CC). É a máxima o dia do vencimento interpela a pessoa ou dies interpellat pro homine.

Na mora ex persona ou pendente estará caracterizada se não houver estipulação de termo certo para execução da obrigação assumida. Requer então para plena caracterização da mora de providência do credor ou de seu representante no sentido de interpelar, notificar ou protestar cientificando o devedor em mora (art. 397, parágrafo único do CC).

Caso típico de mora pendente pode ser percebido no comodato de prazo indeterminado, assim só se configurará a mora do comodatário depois de notificado quer judicial ou extrajudicialmente pelo comodante para que restitua o bem emprestado no prazo a constar da própria notificação.

Vencido o prazo, incorrerá o mora o comodatário e, será considerado esbulhador, sendo portanto, cabível e competente a ação reintegratória de posse A notificação reside dentro das condições da ação. Se não for notificar previamente o comodatário, ingressando imediatamente com a reintegratória de posse, o autor será julgado como carecedor de ação.

Isso porque não há interesse de agir (que é formado pelo binômio necessidade e adequação). Orlando Gomes ainda aponta a mora presumida ou irregular prevista atualmente no art. 398 do CC nas obrigações decorrentes de atos ilícitos configura-se a mora do devedor desde que a praticou.

Se a obrigação em dinheiro é líquida e prende-se a termo final, os juros de mora são devidos a partir do vencimento. No entanto, se inexistente a data pré-fixada, o credor deverá interpelar de forma expressa e inequívoca o devedor para o constituir em mora, e só a partir daí, se inicia a contagem dos juros (parágrafo único do art. 397 do CC).

Sendo líquida a obrigação os juros moratórios contam-se desde citação inicial, segundo o art. 405 do CC c/c com art. 219 do CPC. Nas obrigações oriundas de atos ilícitos, considera-se o devedor em mora a partir da prática do ato (art. 398 do CC).

Nas demais obrigações oriundas de outra natureza que não as de dinheiro, os juros começam a fluir desde quês sejam fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitral ou acordo entre as partes.

A doutrina normalmente apresente a classificação dos juros em quatro espécies, a saber: a) compensatórios; b) moratórios; c) convencionais; e d) juros legais.

Compensatórios são aqueles que visam remunerar o capital emprestado, mediante mútuo conforme a previsão do art; 586 do CC. E, complementa o art. 591 do CC que se destina ao mutuo com fins econômicos, presumem-se devidos os juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406 do CC.

Moratórios são juros devidos quando ocorre a mora, e constituem uma penalidade, sanção aplicada ao devedor em razão de sua demora no cumprimento da prestação devida.

Os juros convencionais são estipulados pelas partes no bojo contratual e, nesse caso, em geral, os juros se configuram como obrigação acessória. È, o caso, por exemplo, dos juros bancários.

Os juros legais são previstos em lei e podem ser tanto compensatórios como também moratórios. São exemplos previstos na vigente legislação civil:

a) no art. 406 CC; b) art. 404 do CC; c) art. 706 e 772 do CC; d) art. 670 do CC; e) no art. 833 do CC; f) no art. 869 do CC; g) § 1º do art. 1.336 do CC; h) art. 1.345 do CC; i) art. 1.404 do CC; j) art. 1.405 do CC; l) §3 do art. 1.753 do CC; m) art. 1.762 do CC; n) art. 1.925 do CC;o) art. 591 do CC.

A regra geral informa que o anatocismo é vedado pelo sistema jurídico, porém há algumas hipóteses admitidas expressamente pelo Código Civil vigente. Resta saber se continuará em vigor a Súmula 186 do STJ com relação aos atos ilícitos onde são devidos juros compostos por aquele que praticou o crime.

O próprio art. 406 do CC prevê três hipóteses em que se excepciona a taxa de juros recomendada, que será a que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional; quando os juros moratórios não forem convencionados; quando os juros forem convencionados, porém sem taxa estipulada; c) quando o juros provierem de determinação da lei.

Em todas essas três hipóteses a taxa é de um porcento ao mês. J. M. Leoni Lopes de Oliveira aponta que o texto do art. 406 do CC corresponde à fusão das normas outrora contidas nos arts. 1.062 e 1.063 do CC de 1916.

O art. 407 do CC contém exigibilidade dos juros moratórios e estabelece a desnecessidade de prova efetiva do prejuízo pelo credor para a sua incidência e fixação pelo juiz dos juros moratórios; b) nas dívidas em dinheiro (obrigações pecuniárias) e os juros correm a partir da configuração da mora.

E, a última hipótese, nas prestações que não sejam em dinheiro, isto é, obrigação de dar coisa certa, ou de fazer ou não-fazer. Mas que se convertam em perdas e danos, a contagem dos juros necessita de sentença judicial, arbitramento ou acordo entre as partes, ou seja, dependem de ter sua liquidez determinada.

Os juros sob aspecto processual bem como a atualização monetária integram o pedido de forma implícita, sendo desnecessário sua expressa menção conforme estatui o art. 263 do CPC.

A taxa de juros como custo do dinheiro no mercado e possui o Bacen como órgão regulador da política de juros. É curial observar que quando a taxa de juros está alta significa que há falta de dinheiro no mercado.

A taxa de juros é um dos mais importantes indicadores de política monetária. E convém elencar as súmulas mais recentes sobre juros editadas pelo STJ:

Súmula 296 de 2004: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado”.

Súmula 295: A Taxa Referencial (TR) é indexador válido para contratos posteriores à Lei n. 8.177/91, desde que pactuada.

Súmula 288 de 2004 : “A taxa de juros de longo prazo (TJLP) pode ser utilizada como indexador de correção monetária nos contratos bancários.”

Súmula 283 de 2004: “As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras, e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei da Usura”.

Há ainda outras súmulas também do STJ correlatas ao tema, a saber:

Súmula 323 de 2005: A inscrição do inadimplente pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito por, no máximo, cinco anos.

Súmula 321 de 2005: O CDC é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes.

Súmula 294 de 2004: Não é potestativa a cláusula contratual que prevê a comissão de permanência, calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco

Central do Brasil, limitada à taxa do contrato.

Súmula 293 de 2004: A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil.

Vários fatores influenciam o COPOM ao fixar a taxa SELIC, tanto fatores internos como externos. No âmbito internacional, considera-se o nível de instabilidade das chamadas economias emergentes (países do terceiro mundo ou subdesenvolvidos, ou ainda em desenvolvimento) e da economia dos Estados Unidos.

Recentemente como reflexo de uma globalização da política econômica mundial, as bolsas de valores brasileiras sofreram com a crise do mercado imobiliário norte-americano.

No fórum interno são avaliados essencialmente os indicadores de preço que mostram o comportamento da inflação no passado brasileiro. Por isso, os integrantes do COPOM avaliam também o comportamento dos itens que podem impactar a trajetória da inflação no futuro.

Em resumo, se o consumo estiver em alta, o BaCen pode elevar a taxa básica de juros para conter o consumo crescente e estimular a poupança. Com taxas altas, os crediários ficam difíceis de serem pagos. Ao mesmo tempo, a remuneração das aplicações financeiras, ficam mais atraentes.O perigo das taxas altas de juros é que estas desestimulam a produção e valorizam as aplicações e especulações financeiras.

Depois dessas explicações de cunho econômico, é basta razoável acreditarmos que para incrementar a produção é indispensável uma política monetária de juros baixos e controlados.

Judith Martins-Costa identifica bem a polêmica suscitada por conta do art. 406 do CC. Além do conceito jurídico de juros reconhecidos como frutos civis do capital, jaz a idéia econômica de “juros reais” assim denominados em norma constitucional.

É certo que o conceito de juros não é meramente formal, mas substancial ou material derivando do tratamento dado pela ordem jurídica-econômica globalmente considerada.

O CC de 2002 não acolhe tratamento micro-jurídico de juros, que sempre fora a forma tradicional de disciplinar os juros, ora por meio de leis restritivas, ora por leis permissivas.

Os juros que eram disciplinados na relação intersubjetiva e a vedação de juros usurários era questão de justiça comutativa advinda da herança aristotélica. Com o avanço do planejamento econômico e a inserção constitucional interno do título “Da Ordem Econômica” e, ainda, uma nova forma codificada veio os considerar como importância macro-jurídica.

Assim, representa a fixação de juros um elo da cadeia de operações capaz de irradiar multiplamente por todo o processo econômico do país, compreendendo a produção, a comercialização, industrialização e consumo.

A relação óbvia entre os juros e o desenvolvimento do país faz com que surja o entendimento que estes não se encontrem apenas nos lindes de interesses interindividuais, e, sim, além, nos interesses transindividuais e metaindividuais.

Inicialmente o art. 192, parágrafo terceiro da CF se tornou centro de polêmica da decisão do STF sobre a ADIn 4-7/DF que versou sobre a interpretação do real alcance do referido dispositivo constitucional restringente da taxa de juros.

Sublinha com acerto Judith Martins-Costa que a expressão juro real significa a parcela da taxa de juros que excede a taxa de inflação de um determinado período e que tem com fim remunerar o dinheiro, abrangendo o elemento risco e os custos da transação ou remuneração do intermediário.

Juro real é aquele propriamente dito, e, não juro aparente. São juros deflacionados, onde se calcula desprezando-se a parcela referente à correção monetária. Acrescente-se que os juros moratórios são também ou devem ser juros reais.

Portanto, a norma do art. 406 do CC não incide nas relações particulares e instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, mas tão-somente nas relações interprivadas em que não esteja nos pólos ativo e passivo, ente integrante do Sistema Financeiro Nacional.

Não há consenso sobre o conteúdo material do art. 406 do CC e, atualmente para a mora se utiliza para cobrança de tributos a aplicação de taxa flutuante a chamada taxa SELIC.

Deve-se interpretar o art. 406 do CC harmoniosamente com todo sistema jurídico integralmente considerado. A taxa SELIC é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável, em operação financeira com cláusula de recompra. Por isso, é mais apropriada a aplicação a TJPL(prevista no CTN).

É taxa selic que reflete remuneração dos investidores de compra e venda de títulos públicos, é fixada pelo COPOM, e sob alvedrio da Administração Pública. O que revela grave distorção em função da matéria pertence a competência do Legislativo e, não do Executivo.

Logo, pleitear pela incidência da SELIC na tarifação de juros fere brutalmente o princípio da legalidade quanto o princípio da segurança jurídica. Defende, por derradeiro a Professora Judith Martins-Costa a interpretação do art. 406 do CC com a remissão do art. 161, § 1º do CTN que é o melhor se adapta do sistema, ao diálogo das fontes mantido entre a CF e o vigente CC.

Para melhor entendermos a temática dos juros precisamos também apreciar os contratos de empréstimos.

O contrato de empréstimo é negócio jurídico pelo qual a parte entrega a outra, de forma gratuita (originalmente), obrigando-se a devolver a coisa emprestada (comodato) ou coisa da mesma espécie e quantidade (mútuo).

O empréstimo é contrato unilateral, gratuito, real abrangendo duas espécies: a) comodato que incide sobre bem infungível e inconsumível, é o chamado empréstimo de uso; b) mútuo que incide sobre bem fungível, consumível, chamado de empréstimo de consumo.

Assim, resumidamente a partir da entrega da coisa, dependendo da sua natureza bem como os direitos envolvidos podem dar ensejos aos seguintes contratos de empréstimo:

Para uso, temos o comodato;

Para consumo, temos o mútuo;

Para a guarda, temos o depósito;

Para administração, temos o mandato.

Os empréstimos (tanto comodato como mútuo) além de serem unilaterais e gratuitos ou benéficos são, em regra, comutativos, informais e reais.

Frise-se que o aperfeiçoamento desses contratos decorre com a traditio da coisa emprestada. Ao comentar sobre juros Flávio Tartuce recorda que para a jurisprudência, as entidades bancárias e financeiras não estão sujeitas à Lei de Usura (Dec. Lei 22.626/33) é o entendimento da Súmula 596 do STF confirmada pelo STJ e, por outros tribunais pátrios, inclusivo no mútuo oneroso ou feneratício.

Por acarretar a translação do domínio ao mutuário, não se converte, só por esta razão, em contrato de alienação ( senda esta somente meio e não o fim do contrato) pois o mutuante continua a ser o dono da coisa emprestada.

Apesar de discordar, Tartuce conclui sabiamente que por essa mesma corrente jurisprudencial dominante, o art. 591 do CC não é aplicável aos contratos bancários, valendo-se das regras de mercado.

O paradoxo intrigante é observar que o mútuo feneratício feito por um banco a uma pessoa natural ou física é caracterizado como contrato de consumo amparado pelo CDC (vide Súmula 297 do STJ) e, apesar da lei consumerista, este não está sujeito à Lei de Usura, podendo cobrar exorbitantes e abusivas taxas de juros amplamente praticadas pelo mercado brasileiro.

Nos demais contratos estão limitados os juros a 1% ao mês, ou 12% por ano conforme indica o Enunciado 20 do CJF. Há entendimento minoritário com referência à SELIC como complementar do art. 406 do CC de 2002.

Os juros convencionais no máximo poderão atingir 2 % ao mês ou 24 % ao ano pela previsão da velhusca Lei de Usura que para Tartuce não está revogada. Até porque a limitação dos juros e carência de força normativa das resoluções do BaCen, está perfeitamente em sintonia com o princípio da função social do contrato, com a proteção a dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e da boa-fé objetiva.

Orlando Gomes sempre condenou o que chamou de contrato usurário, e diante o novo conceito de usura, a sanção imposta é a nulidade do contrato. Mas, nos casos de usura pecuniária com juros superiores aos da taxa legal contrato não é nulo.

Recorre-se a conservação dos contratos e revisam-se as prestações devidas.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que perpetuam a saga de juristas baianos ilustres destacam que a apuração de juros na atividade bancária, é de fato, terreno explosivo.O STF ao julgar que a atividade financeira é essencialmente instável e que a imobilização da taxa de juros prejudicaria o desenvolvimento nacional, inúmeros abusos são perpetrados em detrimento sempre da parte mais fraca, o correntista, o depositante, o poupador.

Mais recentemente, o STJ fixou juros cobrados por uma empresa de factoring em 12% ao ano Resp 330 845/RS STJ, data de julg. 17/06/2003, publ. DJ 15/09/2003, p.322, RSTJ 180/432.

Os juros de mora contam-se desde da inicial citação do devedor, vide Enunciado 163 do CJF que frisa somente ser aplicável à responsabilidade contratual e não aos juros decorrentes da responsabilidade extracontratual, em face do art. 398 do CC, não afastando a Súmula 54 do STJ.

O art. 405 do CC deve ser aplicado somente nos casos de obrigação líquida e não vencida. No que tange ao direito intertemporal, prevendo que tendo a mora do devedor início ainda na vigência do C.C. de 1916, são devidos juros de mora de 6% ao ano até 10 de janeiro de 2003; a partir de 11 de janeiro de 2003 passa a incidir o teor do art. 406 do CC (Enunciado 164 do CJF).

O inadimplemento obrigacional quando a obrigação não é satisfeita conforme exatamente foi pactuado, surgindo o haftung, ou seja, a responsabilidade. A responsabilidade civil contratual com fulcro nos arts. 389 a 391 do CC.

Também surge o dever de indenizar as perdas e danos previsto nos arts. 402 ao 404 do CC.Em sentido genérico, o inadimplemento pode ocorrer em dois casos específicos: a) inadimplemento parcial, mora ou atraso, onde ocorrer apenas um retardamento parcial da obrigação que ainda pode ser cumprida e útil ao credor; b) o inadimplemento total ou absoluto que se dá quando a obrigação não pode ser mais cumprida, tornando-se inócua e inútil ao credor.

O critério para distinguirmos a mora do inadimplemento absoluto é exatamente a utilidade do cumprimento da obrigação para o credor. Logicamente os efeitos decorrentes da mora são menores do que seus efeitos no caso de inadimplemento absoluto.

A mora do devedor, solvendi ou debitoris tem na culpa seu elemento essencial eis o porquê é definida como retardamento culposo no cumprimento da obrigação. Já a mora do credor, accipiendi ou creditoris independe de culpa. E extrai-se o conceito de mora dos ditames do art. 394 do CC.

Prevê o art. 396 do CC que não havendo fato ou omissão imputado ao devedor, não incorre este em mora. A tradicional doutrina sempre apontou a culpa genérica (a que inclui tanto o dolo como a culpa estrita) é fator primordial para sua caracterização.

Outros doutrinadores pós-modernos entendem que a culpa não é fator substancial para a caracterização da mora debendi ou do devedor. Nessa corrente, temos a Judith Martins-Costa defendendo que muitas vezes a culpa não estará presente, o que não prejudicaria a plena caracterização do atraso no adimplemento.

A doutrinadora cita, por exemplo, os casos que envolvem obrigação de resultado assumida em situações em que a análise da culpa é dispensada. A primeira tese que vê na culpa o elemento primordial para plena tipificação da mora é predominante entre nossos tribunais, e o primeiro efeito da mora do devedor é responsabilizá-lo por todos prejuízos causados ao credor, somados os juros, atualização monetária calculados segundo os índices oficiais e honorários advocatícios em caso de ação específica.

Se por causa da mora, a prestação tornar-se inútil ao credor poderá rejeitá-la, cabendo a reparação por perdas e danos (art. 395 do CC). É onde a mora converte-se em inadimplemento absoluto.

Nesse sentido, o Enunciado 162 do CJF no seguinte teor: “A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deve ser diferida objetivamente consoante o princípio da boa-fé objetiva e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor”.

A utilidade da obrigação é mensurada à luz da função social das obrigações e dos contratos, da boa-fé objetiva, da manutenção estrutural do negócio jurídico de modo evitar-se a onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa.

Estando em mora ex vi o art. 399 do CC, o devedor responderá pela impossibilidade da prestação embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou força maior caso tenham ocorrido durante o atraso de adimplemento.Poderá a responsabilidade do devedor sr afastada se o devedor provar isenção de culpa ou que o dano sobreviria mesmo que a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Há uma exceção ao disposto no art. 393 do CC onde a parte não responderá pelo caso fortuito (evento totalmente imprevisível) ou pela força maior (evento previsível embora inevitável), provando o devedor que a perda ocorreria mesmo não havendo mora, a sua responsabilidade deverá ser afastada.

Também será igualmente afastada a responsabilidade se o devedor provar a ausência de culpa, e sobre tal previsão vige polêmica.

Houve até proposta de enunciado sobre o art. 399 do CC pelo CJF preocupada em ressalvar que quando houver mora do devedor com atraso culposo no cumprimento obrigacional, é evidente a ausência da culpa acarreta ipso facto a inexistência da mora.

Professor Agostinho Alvim sustentava que provada a ausência de culpa, deixa de haver mora, por faltar o elemento subjetivo, e consoante ao art. 963 do CC. Assim o devedor responderá pela mora, salvo se provar ausência de culpa.

A referida proposta de enunciado choca-se com entendimento doutrinários e jurisprudenciais dominantes. E, a proposta não fora aprovada diante de votos contrários, capitaneados por Judith Martins-Costa.

A mora accipiendi ou do credor ou creditoris ou credendi não carece da culpa para sua tipificação, e gera três efeitos (art. 400 do CC) a saber:

a) afasta do devedor isento de dolo a responsabilidade pela conservação da coisa, não respondendo o mesmo por conduta culposa (imprudência, imperícia ou negligência) que gera a perda do objeto obrigacional;

b) obrigar o credor a ressarcir o devedor pelas despesas empregadas na conservação da coisa;

c)sujeitar o credor a receber a coisa pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o tempo do contrato e do cumprimento da obrigação.

Diante da mora do credor, é possível ao devedor valer-se da ação de consignação judicial ou extrajudicial nos termos dos arts 890 do CPC e art. 334 do CC.

Quando as moras são simultâneas, a mora do devedor e do credor numa mesma situação, uma elimina a outra, como se nenhuma das partes houvesse incorrido em mora. Ocorre, a chamada “compensação dos atrasos”.

Tal tratamento doutrinário está em sintonia com a regra segundo a qual ninguém poderá beneficiar-se da própria torpeza (boa-fé objetiva), bem como o princípio da conservação do negócio jurídico.

A purgação da mora serve para afastar ou neutralizar os efeitos do atraso decorrentes (art. 401 do CC). Através da purga ou emenda da mora, tanto o credor como devedor que caiu em mora, corrigem e sanam a falta cometida cumprindo com a obrigação ainda em tempo hábil ao adimplemento.

Deve então, reparar os eventuais prejuízos causados ao outro sujeito da relação obrigacional. Purgando a mora, o devedor dá pela oferta da prestação com o acréscimo de juros, correção monetária, multa e honorários advocatícios, sem prejuízo das eventuais perdas e danos.

Enquanto o credor purga a mora, este se oferece para receber a prestação do devedor, sujeitando-se aos efeitos da mora já ocorridos. Podem simultaneamente devedor e credor purgar a mora, ocasião em que ambos renunciaram aos prejuízos dela decorrentes.

Sobre a purgação da mora no caso da locação de imóvel urbano, o art. 62, II da Lei 8.245/91 possibilita ao locatário purgar a mora, no caso da ação de despejo por falta de pagamento.

O locatário desta forma evitará a rescisão locatícia, requerendo dentro do prazo de contestação, buscando autorização para pagar o débito atualizado independentemente de cálculo e mediante depósito judicial onde estarão incluídos: os aluguéis, os acessórios da locação que vencerem até a efetivação do depósito; as multas e penalidades contratuais quando exigíveis; os juros moratórios e as custas e honorários advocatícios do advogado do locador, fixados em 10% sobre o montante devido, se do contrato não constar disposição diversa.

Autorizada a emenda da mora e efetuada o depósito judicial até 15 dias após a intimação do deferimento, se o locador alegar que a oferta não é integral, justificando a diferença, o locatário poderá complementar o depósito judicial, no prazo de dez dias, contados da ciência dessa última manifestação (art.62, III da Lei 8.245/91).

Não complementado o depósito tempestivamente, o pedido da rescisão locatícia prosseguirá pela diferença podendo o locador levantar a quantia já depositada.

Não se permitirá a purga da mora do locatário que se utilizar por duas vezes nos doze meses imediatamente à propositura da ação de despejo. É uma natural sanção contratual para o locatário que não atua com boa-fé objetiva.

Com relação à alienação fiduciária introduzida pela Lei 10.931/2004 com a purgação da mora, houve alteração substancial do art. 3, segundo parágrafo do Decreto-Lei 911/1969. Pela nova redação legal, o devedor fiduciante teria que pagar integralmente a dívida pois caso contrário ocorrerá consolidação da propriedade a favor do credor fiduciário.

O art. 54 do CDC admite que os contratos de adesão contenham cláusula resolutiva, desde que a escolha caiba ao consumidor. A resolução é forma de extinção de contratos por inexecução, a escolha a que se refere o dispositivo legal, em caso de existência de cláusula resolutiva expressa deve ser interpretada como possibilidade de que o devedor em mora tem de optar entre a purgação e a continuidade da relação contratual de um lado, e a extinção contratual de um lado, e a extinção por inadimplemento, de outro.

A conclusão é que a inovação introduzida pela Lei 10.931/2004 não é incompatível com essa interpretação, mas simplesmente conferiu mais uma faculdade do devedor, qual seja a de obter a extinção do contrato, com a restituição do bem apreendido, livre de ônus, pela integral execução das obrigações pactuadas.

O art. 591 do CC permite a capitalização anual dos juros no mútuo de fins econômicos desde que expressamente pactuada. Os juros mensais serão separados do capital e nele inseridos apenas ao término de cada ano, quando houver previsão de capitalização no contrato. Destarte, caberá capitalização, para a inclusão dos juros vencidos depois de um ano capital, rendendo-se juros no ano subseqüente. Subentende-se anual o período para qualquer norma especial que permita a capitalização dos juros.

De acordo com o STJ a capitalização de juros é possível nos contratos de mútuo bancário desde que celebrados a partir de 31 de março de 2000, a data da publicação da Medida Provisória 1.963/2000, reeditada sob n. 2.170-36/2001 cujo art. 5º autoriza o procedimento.

Excepcionalmente, a súmula 93 do TSF permite a cobrança de juros sobre juros por períodos menores, pela vontade dos contratantes quando da emissão de cédula de crédito industrial ou comercial, respectivamente, Dec-Lei 167/67, Dec-Lei 413/69, Lei 6.480/80 permitindo a capitalização semestral.

Sobre o tema, o STF através do Relator Ministro Sydney Sanches deferiu liminar ADIn 2.316/DF para suspender a eficácia do art. 5º da referida Medida Provisória de 2001 que permitia a capitalização dos júris com periodicidade inferior a um ano nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.

Convém recordar que a Súmula 30 do STJ veda a cumulação da comissão de permanência com a correção monetária, o que realmente seria um bis in idem. E, também veda-se a cumulação da comissão de permanência com a multa moratória e/ou juros de mora, conforme nos aduz a Súmula 296 do STJ.

Finalmente com base na Súmula 294 do STJ concebeu o seguinte enunciado: “não é potestativa a cláusula contratual que prevê comissão de permanência, calculada pela taxa média apurada pelo Banco central do Brasil, limitada à taxa do contrato.”

Obviamente o presente artigo somente tem cunho didático e, não poderia jamais pretender exaurir tema de acirrada polêmica e grande profundidade.

Referências

GAGLIANO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Novo curso de direito civil. Volume III, tomo 1, São Paulo, Saraiva, 2005.

GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Coordenação de Ricardo Pereira Lima. Contrato Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Série Concursos Públicos, volume 3 Teoria Geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo, Editora Método, 2006.

SIMÃO, José Fernando. Direito Civil contratos, volume 5,Série Leituras Jurídicas , Provas e Concursos, São Paulo, Editora Altas, 2005.

DE FARIAS, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 2006.

WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos, 16ª. Edição com a colaboração do Prof. Semy Glanz, São Paulo, Editora Saraiva, 2004.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 2005. volume III, 12ª edição.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil: direito das obrigações: parte especial, volume 6, tomo I contratos, Série Sinopses Jurídicas, 7ª. Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2004.

VENOSA, Silvio Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 5 ed.;. São Paulo, Atlas, 2005(Coleção Direito Civil volume II).

SOARES, Paulo Brasil Dill. Código do Consumidor Comentado. 6a. edição, Rio de Janeiro, Editora Destaque, 2000.

 


REFERÊNCIA  BIOGRÁFICA

GISELE LEITE:  Formada em Direito pela UFRJ, em Pedagogia pela UERJ, Mestre em Direito, em Filosofia, professora universitária da Universidade Veiga de Almeida e outras do Rio de Janeiro.

A Lei Maria da Penha faz um ano, há o que comemorar?

0

*Maria Berenice Dias

         A Lei Maria da Penha, a lei de combate à violência contra a mulher, está comemorando um ano de vigência. Cabe questionar, afinal, o que se tem a festejar?

Claro que a Lei trouxe  grandes avanços. Assim, com o seu nascimento, muitas mudanças ocorreram. Acabou o calvário das mulheres que, depois de registrar queixa na polícia, precisavam ir para as filas da defensoria para só então conseguir, por exemplo, afastar o agressor da casa e obter alimentos.

Agora, registrada a ocorrência perante a autoridade policia, a vítima é ouvida, sendo tomada a termo a representação. A polícia tem que lhe garantir proteção, acompanhá-la ao hospital ou posto de saúde e para submeter-se ao exame de corpo de delito. Também deve fornecer transporte para lugar seguro após a retirada de seus pertences de casa.  Ao ser informada de seus direitos, requerendo a mulher a aplicação de alguma medida protetiva, o expediente deve ser encaminhado à justiça no prazo de 48 horas.

Os méritos da lei não são somente esses. A vítima sempre estará acompanhada de defensor. A desistência da representação só pode ser feita perante o juiz em audiência designada para tal fim e com a presença do Ministério Público. Foi criada mais uma hipótese de prisão preventiva, sempre que o agressor descumprir alguma medida protetiva concedida à vítima. Como não mais pode ser aplicada a entrega de cestas básicas ou o pagamento de multa a título de condenação, é possível determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Mas certamente o grande ganho foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. De forma enfática foi afastada a aplicação da Lei dos Juizados Especiais, deixando muito clara a repulsa à forma de como a violência vinha sendo tratada – e mal tratada – pela justiça. Além das ameaças à vítima para desistir da representação, eram forçados acordos e a pena, quando aplicada, era a entrega de cestas básicas. Conclusão: era barato bater na mulher!

Porém, a lei não determinou a criação desses juizados especiais em  foram impostos prazos para sua instalação.

Em face da enorme má vontade da justiça em criar esses juizados, sob a surrada alegação de falta de recursos, o fato é que neste um ano foram instalados juizados em pouquíssimos estados e ainda assim, só um nas capitais.

Enquanto não criados, houve o deslocamento da competência para as varas criminais e não para as varas de família. O resultado está sendo desastroso. Os juízes acabam dando preferência aos processos de réus presos. Ao depois, mais afeitos a julgar ações criminais não estão qualificados para aplicar medidas protetivas, que tem natureza familiar.

Diante desse quadro, é forçoso reconhecer que a violência doméstica está em situação muito pior do que estava antes do advento da lei que veio para coibi-la. A responsabilidade é do Poder Judiciário que continua condenando à invisibilidade a agressão contra a mulher, como se fosse uma questão privada, onde a justiça não precisa pôr a colher.

 Assim, após um ano de vigência da Lei Maria da Penha pouco se tem a comemorar. Não há a quem dar os parabéns, nesta data querida e, com isso, infelizmente, a violência ainda terá mitos anos de vida!

 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

MARIA BERENICE DIAS:   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, Vice-Presidente Nacional do IBDFAM  – www.mariaberenice.com.br


Punição remunerada: Magistrado punido não deve receber aposentadoria

0

* Edson Pereira Belo da Silva

O Conselho Nacional de Justiça, por unanimidade, em 31 de julho último, decidiu instaurar processo administrativo contra: o ministro Paulo Medina, do Superior Tribunal de Justiça; o ex-vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro) José Eduardo Carreira Alvim; o desembargador federal José Ricardo de Siqueira Regueira, também do TRF-2; e o juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas), Ernesto Dória.

Ao proferir essa decisão, o CNJ simplesmente fez uso da competência “correcional” que lhe foi conferida pela Constituição Federal (artigo 103-B, § 4.º, inciso III), qual seja, “avocar os processos disciplinares em curso“. Em outras palavras, aquele órgão do Poder Judiciário (artigo 92, inciso I-A) quis dizer que somente ele julgará, administrativamente, os magistrados envolvidos na Operação Hurricane.

Com isso, o STJ e os Tribunais Regionais (TRF-2 e TRT-15) ficam livres de desempenhar espinhosa tarefa: julgarem seus colegas magistrados (ministro, desembargadores federais e juiz).

Antes de prosseguirmos, importante assinalar que é um despropósito, ou até mesmo surreal, a Lei Complementar 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), em seu artigo 34, nominar os membros do Poder Judiciário de outras duas formas distintas, além de “Juiz”. Notem-se: “ministro” para os Tribunais Superiores (STF, STJ, TSE, STM e TST); “desembargador” para os Tribunais de Justiça; e “Juiz” para os outros Tribunais e magistratura de primeira instância. Enfatize-se, ainda, que nem a LOMAN e, muito menos, a Carta da República reconhecem outras denominações, como, por exemplo, àquelas criadas nos Regimentos Internos dos cinco TRFs e de vários TRTs: “Desembargador Federal” e “Desembargador Federal do Trabalho”. Nem mesmo os Estados Unidos 1 teve a audácia de nominar os seus juízes das Cortes de Apelação e Suprema de forma mais pomposa. Enfim, só “Juiz”, basta.

Retomando o tema, tem-se como acertada e razoável a decisão do CNJ, uma vez que agiu para concentrar na sua competência os julgamentos administrativos dos aludidos magistrados, evitando, sobretudo, que os respectivos Tribunais (STJ, TRF-2 e TRT-15) onde eles atuam pudessem, de alguma forma, lançar mão do “corporativismo”, bem como proferir decisões divergentes ou conflitantes e determinar punições mais brandas ou excessivas.

Soterrou o CNJ, portanto, qualquer esperança dos envolvidos em utilizar-se de suas amizades mais íntimas, das influências políticas-administrativas ou até mesmo de exercerem eventual “chantagem” sobre as corregedorias daquelas Cortes. Nesses aspectos, tudo leva a crer que, por enquanto, o CNJ parece estar imunizado, sobremaneira pela sua composição (ministros, desembargadores, juízes, advogados, membros do Ministério Público e cidadãos indicados pelo Congresso) e por localizar-se na Capital Federal, onde a mídia se concentra.

Aguardemos a decisão final do CNJ.

Punibilidade Premiada. Alteração Legislativa

Não se pretende aqui — e de maneira alguma — estabelecer um juízo de valor sobre as supostas condutas ilícitas imputadas aqueles magistrados pelo Ministério Público Federal, as quais o CNJ decidiu investigar, unanimemente; pelo contrário, até pelo princípio da presunção de inocência (artigo 5.º, inciso, LVII, da CF), deve-se reputá-los como tal ante a necessidade do trânsito em julgado de eventual punição imposta pelo mencionado Conselho.

Destarte, o que se condena, e há muito tempo, é a “nefasta” e injusta possibilidade de todos os juízes em referência virem a ser apenado com aposentadoria com vencimentos integrais ou proporcionais ao tempo de serviço. Diante das gravíssimas acusações, inclusive de repercussão internacional, se condenados no âmbito administrativo, não poderão eles ser aposentados com vencimentos, senão excluídos da magistratura.

A LOMAN prevê a possibilidade de “demissão” do magistrado (artigo 42, inciso VI), mas tão somente nas hipóteses dos incisos I, II, alíneas “a” a “c”, do seu artigo 26. Vejamos: (i) “em ação penal por crime comum ou de responsabilidade”; “(ii) em procedimento administrativo para a perda do cargo nas hipóteses seguintes: a) exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular; b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento; c) exercício de atividade político-partidária”.

Percebe-se, assim, que os magistrados investigados pelo CNJ, eventualmente, apenas perderão o cargo por decisão judicial transitada em julgado — processo com ampla defesa —, haja vista que na esfera administrativa não se encontra embasamento legal para demiti-los, isso caso sejam eles responsabilizados, afinal. 2 Resulta daí, em princípio, a absurda intenção do CNJ de admitir se aplicar à aposentadoria com vencimentos.

Urge enfatizar, contudo, que o problema não está com o CNJ, senão com a legislação em vigor, notadamente a Constituição Federal, a qual exige sentença judicial com trânsito em julgado para perda do cargo (artigo 95, inciso I), isto é, um longo processo judicial que pode chegar a dez anos, mais ou menos. Por sua vez, não se vislumbra dos demais Poderes da República (Executivo e Legislativo) essa mesma exigência legal para se demitir o funcionário público ou “cassar” mandado de Chefe do Executivo ou de Parlamentar. Em outros termos, pode-se, administrativamente (Conselho de Ética, processo de “impeachment”, Sindicância, etc.), após o devido processo legal, afastar de forma definitiva o servidor público ou agente político do cargo que ocupa.

A irresignação quanto a isso já chegou ao CNJ, que através de um dos seus importantes membros, Conselheiro Vatuil Abdala, deixou assente: “Há uma incompreensão da sociedade quando o magistrado comete uma irregularidade grave e que a punição é algo que quase significa um prêmio: aposentadoria integral, se ele já tem tempo suficiente de serviço, ou licença remunerada. Ou seja, não trabalha e recebe os vencimentos integrais. A sociedade não entende isso, com toda a razão. É preciso que haja uma modificação da LOMAN, que já data de mais de trinta anos, autorizando (a corregedoria do) tribunal, se for o caso, aplicar a pena de afastamento definitivo do magistrado”.3

Por seu turno, a “vitaliciedade” do magistrado, uma de suas garantias (artigo 95, inciso I, da CF), nesse contexto, deve ceder à própria razão ou ao princípio da razoabilidade, onde todas as questões jurídicas se assentam.

Como visto, pelo sistema atual, o juiz só perde o cargo por sentença judicial transitada em julgado. No caso de ação penal, por exemplo, o juízo criminal — Tribunal, é o “indigesto” foro por prerrogativa da função —, se entender por responsabilizar determinado magistrado, deve decretar a perda do seu cargo ou função pública, como um dos efeitos da condenação, conforme disposto no artigo 92, inciso I, alíneas “a” e “b”, do Código Penal: (i) “quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública”; “(ii) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatros anos nos demais casos”.

Nesse sentido, acompanhando o imperativo legal acima transcrito, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, consignado no RHC 84.903–RN, 1.ª Turma, julgado em 16 de novembro de 2004, cujo acórdão é da lavra do ministro Sepúlveda Pertence: “Tribunal de Justiça: Ação penal originária em crime contra a vida imputado a magistrado que, uma vez condenado, teve a perda do cargo decretada: ‘quorum’ para condenação: não aplicação do art. 27, § 6.º, da LOMAN”. 4

Uma vez transitada em julgado a sentença judicial que decretou a perda do cargo do juiz condenado — tornou-se ela indiscutível —, aplica-se de imediato os seus efeitos no capo administrativo, revogando, desde logo, a aposentadoria com vencimentos concedida pelo processo disciplinar instaurado. O posicionamento do STJ é nessa mesma linha:

“ADMINISTRATIVO. MAGISTRADO. PERDA DO CARGO EM DECORRÊNCIA DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO. CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA. CABIMENTO. CUMPRIMENTO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. PREVISÃO NA LOMAN. DESNECESSIDADE. OFENSA AO ATO JURÍDICO PERFEITO. NÃO OCORRÊNCIA.

1. Transita em julgado a sentença penal condenatória que expressamente determinou a perda de cargo da Recorrente, torna-se inviável o exame do cabimento dessa penalidade, ao argumento de que a redação anterior do art. 92, inciso I, do CP, não previa tal efeito, no bojo do presente ‘mandamus’, haja vista ser a revisão criminal a via correta para sanar eventual imperfeição da mencionada sentença.

2. Prescinde de previsão legal expressa a cassação de aposentadoria de magistrado condenado à perda de cargo em sentença penal transitada em julgado, uma vez que a cassação é consectário lógico da condenação, sob de pena de se fazer tábula rasa à norma constitucional do art. 95, inciso I, da CF/88, que prevê a perda de cargo de magistrado vitalício, somente em face de sentença judicial transitada em julgado. Precedente do STJ.

3. Sendo a cassação da aposentadoria compulsória mera decorrência da condenação penal transitada em julgado que decretou a perda do cargo do magistrado, é despicienda a instauração de processo administrativo, com todos seus consectários, para se proceder à referida cassação, sendo certo que inexiste ofensa à ampla defesa ou ao contraditório.

4. O ato que determinou a exclusão da Impetrante da folha de pagamento não se constitui revisão do ato de aposentação, mas sim mero cumprimento de determinação judicial que determinou a perda de cargo, razão pela qual é descabida a aplicação do art. 54 da Lei 9.784/99. Inexiste ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Precedente do STF. 5. Recurso ordinário desprovido”. 5

Importante enfatizar, ainda, que as garantias atribuídas pela Carta Política aos magistrados também se estendem aos membros do Ministério Público (artigo 128, § 2.º, incisos I, alíneas “a” a “c”, CF), como, por exemplo, o membro do “parquet” só perdera o cargo após enfrentar o mesmo procedimento legal destinado aos juízes.

A situação parece surreal. Hoje, a nosso sentir, temos no Poder Judiciário e no Ministério Público duas instituições quase que intocáveis, revelando uma extrema dificuldade legal para punir exemplarmente. Isso se agrava ainda mais, quando lembramos que os membros dessas duas instituições não são eleitos. E aí que reside o surrealismo: o Presidente, Governador, Prefeito e Parlamentar, eleitos diretamente pelo povo (vontade popular), podem perder os seus mandatos na esfera administrativa, ou seja, não é preciso uma sentença com trânsito em julgado para tanto; ao passo que os componentes da magistratura e do parquet não podem.

Isso revela, indiscutivelmente, que o sistema vigente está incorreto. Não é possível que o autêntico representante do povo — aqueles com mandato — possa perder o seu mandado sem a necessidade de processo judicial, enquanto que para o juiz ou promotor tal processo é imperativo para perda do cargo. Cinde-se aí a democracia, posto restar claro que o Judiciário possui poderes para afastar do cargo o eleito pelo povo, mas aquele com mandato (do Executivo ou Legislativo) não dispõe desse mesmo poder.

Harmonia e independência entre os Poderes da República (artigo 2.º, da CF), só na teoria. Impera no universo político a seguinte máxima: “a teoria na pratica é outra coisa”.

Pois bem. Não seria o momento de se pensar num novo modelo para os membros do Poder Judiciário, como o do norte-americano, por exemplo, onde quase todos os 50 Estados da Confederação adotam o sistema de mandato, dentre eles: California, Florida, New York, New Jersey, Ohio, Pennsylvania, Texas, Washington?6. Ressalte-se, que o magistrado é, absolutamente, desde o império colonizador, uma pessoa oriunda da classe mais abastarda da sociedade; enquanto que os réus, sempre punidos, advêm das camadas mais pobres, onde se situa a grande maioria do povo. É muito fácil punir que não tem força política ou foro privilegiado!

Mas, no caso em comento, o Congresso Nacional, comandante da “Embarcação Legislativa Brasil”, começa a se orientar muito mais pelo farol (pela Lei) ao discutir no Projeto de Lei Complementar 58/2007 — tramitando na Câmara dos Deputados e apresentado pela Deputada Federal Dalva Figueiredo do PT/AP — o tema em pauta: EMENTA: “Veda a concessão de aposentadoria proporcional, como pena disciplinar, a juízes cuja conduta for considerada, em processo administrativo, civil ou criminal, negligente no cumprimento dos deveres do cargo, incompatível com a dignidade, a honra e o decoro das funções ou cujo proceder funcional seja incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário, além de alterar e revogar dispositivos da Lei Complementar n.° 35, de 14 de março de 1979.” 7

Esse projeto de lei é um passo largo para corrigir uma parte dessa esdrúxula situação de quase impunidade aos magistrados infratores. Só esperamos que os lobistas de plantão não influenciem, de forma negativa, na tramitação do aludido projeto.

O afastamento do juiz da função ocorre não só por corrupção, mas também por incapacidade ou manifestação pessoal e absurdamente deturpada da legislação vigente, como ocorreu recentemente com o magistrado, da 9.ª Vara Criminal da Capital paulista, que indeferiu o processamento da queixa-crime proposta por Richarlyson, atleta do São Paulo Futebol Clube.8. Aliás, oportuna à observação de Régis Fernandes Oliveira (desembargador aposentado), em obra de fôlego sobre a magistratura, ao comentar sobre a garantia da “vitaliciedade”: “O juiz tem sido afastado de sua carreira por diversos problemas, como incapacidade, apesar de todas as fases de apuração no concurso, ou penalidade, acarretada por corrupção”. 9.

Ainda sobre a obra diferenciada do referido autor-doutrinador, observa-se a presença de uma visão ou entendimento, verdadeiramente moderna, pouco discutida no campo jurídico-social, qual seja: a neutralidade do juiz. Segundo o professor Regis: “O juiz é, necessariamente, um ser político. Carrega para os autos todas as sua angustias, seus preconceitos, suas convicções, sua ideologia. Não há juiz neutro”. A neutralidade é incompatível com a só condição de ser alguém integrante da comunidade. O juiz transplanta para as suas decisões sua carga de convencimento. É inarredável da condição humana”. 10.

Entretanto, se a “neutralidade” não é uma característica do Poder Judiciário, conforme o magistério do mencionado doutrinador, pelos menos a “probidade” de seus membros deve ser, pois, consoante lição de Piero Calamandrei: “Sem probidade não pode haver justiça”. 11

Finalmente, os magistrados também devem guardar os seus mandamentos. E nesse passo, somente o saudoso professor Edgard de Moura Bittencourt 12 menciona em sua excelente obra 20 mandamentos, dos quais os dois mais substanciais, a nosso ver, são importantes lembrar: (i) “O juramento prestado guardarás com retidão e estritamente”; (ii) “Servidor das leis te conservarás até a morte, simplesmente”.

A posição aqui firmada não é uma indignação contra o Poder Judiciário ou Ministério Público, senão uma forma de apontar alguns equívocos absurdos decorrentes da legislação em vigor que rege a classe, cuja qual nem a magistratura e, muito menos, o “parquet” tem ou manifesta intenção de modificá-la.

Há décadas que os magistrados são punidos com vencimentos, proporcionais ou não, e ninguém ou quase ninguém, ou até mesmo Instituição pública ou ONGs, se levantou contra isso. Se for feito um rigoroso levantamento através dos anos, revelaram-se as dezenas ou centenas de casos em que juízes foram punidos com os vencimentos. Note-se, por exemplo, o caso dos quatro magistrados citados no início desse texto. O próprio CNJ já acenou com essa possibilidade, caso sejam comprovadas algumas das denúncias imputadas a eles, dado que a Lei não lhe permite excluí-los administrativamente, mesmo que seja observada a defesa ampla, o contraditório, os recursos e outras medidas pertinentes (artigo 5.º, inciso LV, da CF).

Os magistrados não são eleitos, nem podem perder o cargo na seara administrativa. Do outro lado, a lei lhes permite afastar os chefes e parlamentares dos outros dois Poderes (Executivo e Legislativo), assim como declarar a perda do mandato outorgado pelo povo.

Da forma que a legislação pátria está posta, o juiz, data vênia, só pode mesmo posar de “Zeus” — muitas vezes arrogante e insensível — ou ser comparado ao chefe do antigo “Poder Moderador”, onde a irresponsabilidade ou o ilícito não se pune. Tem-se ai um autêntico absolutismo.

O povo, como dono do poder (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), assiste pacificamente os seus representantes (políticos) serem punidos pelo Judiciário, quando se comprovam os ilícitos; todavia, quando o magistrado é a bola da vez, vê Poder Judiciário, cujos representantes não são eleitos e que saem da classe mais “nobre” da sociedade, decidir o destino do seu próprio membro, já que não é possível fazê-lo de outra forma. Reside aí, portanto, a desarmonia e a falta de independência entre os três Poderes da República.

Para se corrige essa questão teratológica se faz necessário modificar a Constituição Federal, através da respectiva Emenda, para autorizar o Conselho Nacional de Justiça, sobretudo, depois de observado o devido processo legal-administrativo, a decidir também, se for o caso, pela perda do cargo (sem qualquer vencimento) do juiz que o fez por merecer, uma vez que este não honrou o sagrado juramento ou guardou os tradicionais mandamentos legais.

Posteriormente, ou concomitantemente, será necessário também alterar a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. A sobredita punição administrativa com vencimentos, que atualmente é prevista na Loman e na Constituição Federal, traduz-se, na realidade, num “prêmio”, até que uma decisão judicial transitada em julgado possa por fim a essa gritante distorção normativa.

___________________________

Notas de rodapé

1- Ver MEADOR, Daniel Jonh. Os Tribunais nos Estados Unidos Tradução de Elen Gracie Northfleet. Brasília: USIS, 1996. p. 84-96.

2- Ver Vladimir Passos de Freitas: “Conduta administrativa: há muitas punições aplicadas aos juízes pelos tribunais”: http://conjur.estadao.com.br/static/text/47434,1.

3- http://extra.globo.com/rio/materias/2007/05/07/295664821.asp

4- http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp.

5- http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc: RMS 18.763/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06.12.2005, DJ 13.02.2006 p. 832.

6- Ob. cit., p. 85-90.

7- http://www2.camara.gov.br/proposicoes.

8- http://conjur.estadao.com.br/static/text/58226,1.

9- Em “O juiz na sociedade moderna”. São Paulo: FTD, 1997. p. 38.

10- Ibidem. p.87. Para Eugenio Raúl Zaffaroni, historicamente, a questão do Judiciário é, antes de tudo, uma questão política. “Poder judiciário: crise, acertos e desacertos”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1995. p. 78.

11- “Eles, os juízes, vistos por um advogado”. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 42.

12- “O juiz: estudos e notas sobre a carreira, função e personalidade do magistrado contemporâneo”. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária Ltda., 1966. p. 219-220.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Edson Pereira Belo da Silva: é advogado, pós-graduado em Direito.

 

STF mantém gratuidade do transporte coletivo urbano prevista no Estatuto do Idoso

0

DECISÃO:  STF –  Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente, nesta quarta-feira, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3768, que questionava a constitucionalidade do artigo 39, caput, da Lei n. 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Essa norma estabelece a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos para os maiores de 65 anos. Divergiu do voto da maioria apenas o ministro Marco Aurélio.

A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), autora da ação, e a Associação dos Usuários de Transportes Coletivos de Âmbito Nacional (Autcan) pretendiam que, adotando a técnica da interpretação do artigo 39 do Estatuto do Idoso, o STF declarasse inconstitucional a sua aplicação ao serviço de transporte coletivo urbano prestado no regime de permissão ou concessão. Alegavam a ausência de norma federal específica instituindo um mecanismo compensatório da gratuidade nele prevista. 

As associações propuseram a alternativa de o STF declarar inconstitucional a aplicação  do dispositivo, até que sobrevenha norma federal específica instituindo o mecanismo de compensação da gratuidade.

O principal argumento da autora da ADI foi que o artigo impugnado – que assegura aos maiores de 65 anos a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares – atinge o direito constitucional da preservação do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos. Segundo ela, ao não prever o custeio da gratuidade, o artigo impugnado transfere o ônus do seu custeio às camadas mais desfavorecidas da população – que se utilizam do transporte urbano coletivo – por meio de reajustes tarifários, o que representaria uma dupla inconstitucionalidade.

No entender da NTU, o artigo 230 da Constituição, ao instituir a gratuidade do transporte coletivo urbano para idosos com mais de 65 anos, teria o propósito de atribuir o ônus do seu custeio aos municípios.

Entretanto, à exceção do ministro Marco Aurélio, todos os demais ministros presentes à sessão de hoje acompanharam o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, que sustentou que o artigo 230 da Constituição é auto-aplicável. Segundo ela, o STF não é foro para discutir a compensação da gratuidade do serviço. Além disso, as empresas concessionárias e permissionárias que firmaram ou renovaram contratos de transporte coletivo urbano tinham a obrigação de conhecer o preceito constitucional.

Cármen Lúcia disse que o artigo 39 da Lei 10.741/03 e o artigo 230 da Constituição asseguram o direito de uma dignidade humana mínima no sentido da integração social do idoso. Ela lembrou que o transporte coletivo urbano é usado justamente apelas camadas mais desfavorecidas da população e que ambas as normas se inserem nos direitos e garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana, por seu turno frutos de prolongadas lutas sociais. Para ela, a pretensão da NTC “é perversa”. Disse, ainda, que a autora poderia, isto sim, propor alteração de contratos, dentro da legislação pertinente em vigor, caso comprovasse ameaça ao equilíbrio econômico-financeiro das empresas contratantes.

Nesse contexto, ela lembrou observação da Advocacia Geral da União (AGU) que, ao sustentar a flagrante improcedência da ADI, lembrou que, na capital paulista, a gratuidade do transporte coletivo para idosos já existe desde 1983, quando foi instituída pelo então prefeito Mário Covas. E não há, segundo ela, notícia de que as empresas paulistanas de transporte coletivo estejam sofrendo problemas de desequilíbrio econômico-financeiro.

Ao votar com a relatora, o ministro Carlos Ayres Britto observou que a relatora havia retratado “o advento de um novo constitucionalismo fraternal ou, como dizem os italianos, ‘altruístico’, com ações distributivistas e solidárias”.  Segundo ele, “não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados”.

Para o ministro Marco Aurélio, o parágrafo 2º do artigo 230 da Constituição não disciplina o custeio da gratuidade, e esta implica ônus. E, se a Constituição consagra a livre iniciativa, é preciso que defina quem deve arcar com a gratuidade.

Diante desse entendimento, o ministro votou, não pela inconstitucionalidade do artigo 39 do Estatuto do Idoso, mas por uma nova interpretação constitucional, excluindo aquelas que afastem o ônus da Administração pública em compensar a gratuidade.


FONTE:

  STF, 19 de setembro de 2007.

STJ cassa acórdão do TJDF para reconhecer validade de paternidade sócio-afetiva

0

DECISÃO:   *STJ –   O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça cassou o acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDF) que anulou declaração de paternidade feita por M.S.B. em favor de A.C.M.B., pouco antes de sua morte, por considerar que houve falsidade ideológica do registro civil.

Em outubro de 2001, O. de S.B., irmã de M.S.B., ajuizou ação declaratória de inexistência de parentesco alegando que A.C.M.B. não era sua sobrinha biológica e que o reconhecimento feito antes do falecimento do irmão teria sido simulado, caracterizando falsidade ideológica. O TJDF julgou o pedido procedente para anular o registro civil e determinar a retirada do sobrenome paterno e a exclusão do nome dos avós paternos. A.C.M.B. interpôs embargos de declaração que foram rejeitados pelo Tribunal.

No recurso especial ajuizado no STJ, A.C.M.B. sustentou que, enquanto o TJDF reconheceu a ausência de paternidade biológica como causa suficiente para a anulação do registro civil, outros Tribunais teriam considerado tal fato irrelevante quando ausentes quaisquer vícios do ato jurídico, como erro, dolo, simulação, coação e fraude, mas presente a filiação sócio-afetiva. Observou, ainda, que, com a manutenção do acórdão recorrido, os bens que lhe foram deixados como legítima seriam herdados pela tia.

Acompanhando o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a Turma, por unanimidade, entendeu que a ausência de vínculo biológico é fato que, por si só, não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento, já que a relação sócio-afetiva não pode ser desconhecida pelo Direito.

O voto

Em seu voto, a relatora detalhou a evolução legislativa e jurídica do conceito de filiação e citou jurisprudência e precedentes que permitiram o amplo reconhecimento dos filhos ilegítimos. Nancy Andrighi reconheceu que o STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação nas circunstâncias em que há dissenso familiar, em que a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu.

“Não se podem impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. Mas, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica”, ressaltou a ministra em seu voto.

De acordo com os autos, mesmo ciente de que não era o pai biológico de A.C.M.B., M.S.B. criou-a como filha desde o seu nascimento, em 1980, e optou por reconhecê-la como tal, muito embora não fosse seu genitor. Segundo a ministra, o que existe no caso julgado é um pai que quis reconhecer a filha como se sua fosse e uma filha que aceitou tal filiação. “Não houve dissenso entre pai e filha que conviveram, juntamente com a mãe, até o falecimento. Ao contrário, a longa relação de criação se consolidou no reconhecimento de paternidade ora questionada em juízo.”

Para Nancy Andrighi, paternidade sócio-afetiva e biológica são conceitos diversos e a ausência de uma não afasta a possibilidade de se reconhecer a outra.

Assim, por unanimidade, a Turma deu provimento ao recurso especial para cassar o acórdão recorrido, julgar improcedente a ação declaratória de inexistência de parentesco ajuizada pela tia e inverter os ônus pelo pagamento de todos os gastos decorrentes da atividade processual. O STJ também reformou a decisão do TJDF que impôs à recorrente o pagamento de multa pela interposição de embargos de declaração com intuito procrastinatório. Para o STJ, os embargos tinham nítido caráter de prequestionamento.

 

 

 FONTE:  STJ, 19 de setembro de 2007.