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O direito de resposta na Lei de Imprensa:

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* Josemar Dias Cerqueira

             Arquivando recentemente alguns papéis, deparei-me com a citação bíblica:

            "Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu (…) tempo de estar calado e tempo de falar" (Eclesiastes,3:1-7)

            Sempre me recordo deste trecho da Bíblia quando encontro uma lide relacionada à liberdade de  expressão, sendo que venho observando, há algum tempo, o crescente volume de despachos determinando emendas em iniciais que pleiteiam direito de resposta com fundamento na Lei de Imprensa.

            Poucos operadores jurídicos já se detiveram na análise desta norma (Lei 5250/67) e, destes poucos, uma parcela ínfima se debruçou sobre o instituto do direito de resposta inserido nos arts. 29 a 36, nos quais temos de tudo: prazo decadencial, requisitos da inicial, sanções, procedimento e até parâmetros para a fixação de honorários de locutor, tudo agrupado em uma forma curiosa e inusitada.

            Analisemos a seguinte situação (ficção?):

            "O vereador ´José das Couves´, sendo entrevistado na RÁDIO SERRANA, no programa ´Voz do Povo´, pelo jornalista ´Paulo Lero´, afirmou: ´o Prefeito não paga o funcionalismo há quatro meses´."

            O Prefeito, sem nenhum débito com os servidores, ferido nos brios e pressionado pelas hostes de eleitores, aciona um advogado e ingressa na Vara Cível com uma ação buscando o direito de resposta. Começaram os problemas do Prefeito e de seu causídico.

1. DA CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO DE RESPOSTA.

            Embora os órgãos de comunicação tenham inúmeras proteções legais, a liberdade de imprensa possui limites em seu exercício.

            Uma análise do art. 220 da Constituição Federal ("Da Comunicação Social"), mostrará que, ao lado das expressões "a manifestação de pensamento…a expressão… não sofrerão qualquer restrição" e "nenhuma lei conterá… embaraço", temos os considerandos "observado o disposto nesta Constituição" e "observado o disposto no art. 5º,V".

            O art. 5º diz claramente:

            "É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo" (art. 5º,V da CF)

            Não deve, portanto, a parte ré levantar questão já pacificada, a exemplo de eventual ofensa à liberdade de expressão, embora não deva a parte autora usar o direito de resposta como panacéia, pois o dispositivo fala em "proporcional ao agravo" e a Lei de Imprensa, embora mais antiga, esclarece melhor ainda a terminologia.

            Não há, também, nenhuma vinculação do direito de resposta com alguma intenção específica do ofensor: não é a intenção que conta, e, sim, o resultado de sua ação.

            Ainda que inexistente o animus injuriandi, é princípio ético oferecer, a quem tenha sido afetado, o direito de resposta, a ocorrer, no mesmo horário e dia correspondente àquele em que foi enunciado o comentário – Recurso provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 258.854-1 – Lins – 4ª Câmara de Direito Privado – Relator: Fonseca Tavares – 08.08.96 – V. U.)

            O Direito de resposta não se confunde com o pedido de explicações, definido nos arts. 144 do Código Penal e 25 da Lei 5250/67, pois este está vinculado diretamente à ação penal, embora possa ter como conseqüência a publicação nos moldes do direito de resposta(art. 25§2º da Lei 5250/67).

2. DA PERDA DO DIREITO.

            O pleito é normalmente fulminado, ab initio, em duas situações comumente relegadas pelos ofendidos: decadência do direito e ajuizamento de outra ação paralelamente.

            2.1 Decadência.

            Se a parte ofendida não formular, por escrito e extrajudicialmente, seu pedido de resposta ou retificação em sessenta dias da data da publicação ou transmissão, decairá do direito, nos termos do art. 29§2º da Lei 5250/67 (na nova Lei de Imprensa, em estudos no Congresso, o prazo caiu para 30 dias).

            Observe-se que o prazo é decadencial: não se interrompe, nem suspende. Ademais, como a formulação de pedido de resposta diretamente ao ofensor deve, necessariamente, anteceder à propositura da ação judicial de pedido de resposta (ver item 4. adiante), é comum o autor ter o seu direito atingido pela decadência quando, antes de receber a petição inicial, o juiz determina a juntada de prova da adoção daquela providência.

            Se o art. 29§2º da Lei 5250/67 diz respeito ao pedido extrajudicial, há prazo para o pedido judicial ?

            Uma leitura atenta dos dispositivos relacionado ao direito de resposta mostrará que o legislador quis evitar a inércia do ofendido, tanto que aplicou um prazo decadencial curto para sua iniciativa. Imaginar que não haveria prazo para o pedido judicial, seria contrastar com todo o ordenamento jurídico e com o espírito da lei. Por interpretação analógica, então, podemos entender que após a conclusão da etapa extrajudicial nasce um novo prazo de sessenta dias para que o afrontado procure amparo no Poder Judiciário.

            Nosso Tribunal maior já se manifestou:

            "No sistema da atual lei de imprensa, a reclamação judicial à retificação fica condicionada ao exercício do direito de resposta, que é limitado por prazo decadencial de 60 dias. Diverso, portanto, é o momento da formalização de postulação judicial, então não alcançada por prazo decadencial, mais de prescrição, igualmente fixado em 60 dias por válida aplicação analógica, à falta de disposição a propósito, na mencionada legislação"(STF- RE 88558 – Rel Thompson Flores RT 553/463)

            O assunto, aliás, é tratado em um brilhante acórdão da lavra do Des. Sérgio Pitombo (TACRIM-SP, AC 798.447/9). De qualquer forma, a nova lei de imprensa esclareceu o problema (art. 18) : trinta dias para o pedido extrajudicial e, após fruição do prazo para publicação, trinta dias para ingresso da ação judicial, provando que a interpretação acima está correta.

            2.2 Ação judicial.

            Se o ofendido buscar amparo judicial em outra ação, cível ou criminal, com base no mesmo fato ofensivo, fica prejudicado o direito de resposta (art. 29 §3º da Lei 5250/67). O leitor atento perceberá que tal providência pode ser adotada antes ou no curso do pedido de resposta judicial. Se assim proceder, o insultado terá renunciado tacitamente ao seu direito de resposta:

            "A propositura de ação de indenização por danos morais no juízo cível acarreta a extinção do direito de resposta, ex vi do art. 29, § 3º, da Lei de Imprensa" (STJ – REsp 333.040-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 11/2/2003.)

3. DA LEGITIMIDADE.

            O legislador foi liberal neste aspecto. Pode ocupar o pólo ativo da relação processual a pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, podendo ser exercido este direito pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmãos do ofendido, se for pessoa morta ou ausente do País.

            É interessante observar o inusitado da legitimação dos parentes no caso de pessoa ausente do País. Preserva-se, neste momento, a viabilidade do exercício do direito dentro do curto prazo decadencial, embora tal providência não se coadune com o avanço tecnológico do século XXI.

            Nos termos do art-29 da lei-5250/967, toda pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade pública, que for acusado ou ofendido em publicação feita em jornal ou periódico, ou em transmissão de radiodifusão, ou a cujo respeito os meios de informação e divulgação veicularem fato inverídico ou errôneo, tem direito a resposta ou retificação. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal, APELAÇÃO CRIMINAL APR3621 DF, ACÓRDÃO: 16409, 1a Turma Criminal DATA: 14/08/1978, REL. : ANTONIO HONORIO PIRES, Diário da Justiça do DF: 06/09/1979 Pág.: 6.650 )

            No pólo passivo, o pedido deve ser endereçado contra o meio que propiciou a divulgação da ofensa (a emissora, jornal, revista, etc..) na pessoa do seu responsável legal (art. 32 §1º: "…que ordene ao responsável…"). Não se tratando de ação penal, não cabe a discussão sobre a possibilidade da pessoa jurídica ser ré de processo criminal. Observe-se que o diretor da empresa não pode ser sujeito passivo porque não arcará com a futura multa a ser aplicada na sentença. No exemplo dado, o Prefeito deveria pedir o direito de resposta contra a Rádio Serrana, nunca contra o locutor Paulo Lero.

4. DO PEDIDO EXTRAJUDICIAL.

            Como já manifestado, o ofendido deve buscar, antes da esfera judicial, o direito de resposta extrajudicial. Não se diga que a questão fere a Constituição porque se constitui em condição legal, como relata o acórdão abaixo:

            "Em sede de Lei de Imprensa, deve ser indeferido o direito de resposta na hipótese em que inexistiu prévio pedido diretamente à empresa responsável pela publicação, pois a tentativa extrajudicial é pressuposto indeclinável, sendo certo que tal exigência em nada conflita com o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, já que, apesar de vedado à legislação ordinária excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ela pode estabelecer condições de procedibilidade para o ingresso em Juízo." (Apelação nº 1.295.963/7 – São Paulo – 10ª Câmara – Relator: Ricardo Feitosa – 3/4/2002 – V.U. Voto nº 5.928)

            Este é um dos pontos a se destacar na propositura da ação judicial, distinto das ações de forma geral.

            O art. 30 da Lei 5250/67 cuida de disciplinar as características do pedido (tempo, tamanho, destaque, etc…). O art. 31 disciplina os prazos para atendimento do direito da resposta.

            Quanto ao custo, temos um aspecto interessante, embora, particularmente entendo que favoreça apenas ao ritmo procrastinatório. Quando a emissora deve arcar com os custos (ato praticado pelo redator chefe, gerente ou proprietário, nos termos do art. 30 §§ 3º e 4º da Lei 5250/67), pode exigir prova de que o ofendido já requereu a medida judicialmente.

            Dito de outra forma: para ajuizar a ação o insultado deverá provar que não obteve sucesso no pedido extrajudicial, mas a empresa pode condicionar o atendimento do pedido à prova de que há ação judicial !

            Presumo que o legislador quis exigir que o afrontado mostrasse que estava disposto a ir até o fim no seu propósito e garantir, imediatamente, à empresa, uma manifestação judicial quanto ao futuro responsável pelo custo. De qualquer forma, este dispositivo foi retirado da nova lei em tramitação.

            Em nosso exemplo, o Prefeito protocolaria na emissora seu pedido de resposta. A emissora poderia alegar que não há prova de que o Prefeito ajuizou alguma ação (art. 31§ 2º da Lei 5250/67). O Prefeito, então, deveria buscar o seu direito de resposta pela via judicial (art. 32 da Lei 5250/67), comprovando, pelo protocolo, a tentativa extrajudicial. A emissora poderia, neste momento, com a prova da ação judicial, publicar o direito de resposta, prejudicando a futura ordem judicial, mas não a sucumbência, pois reconheceu o pedido!

            Extraímos daí duas lições: o ofendido deve ter sempre a prova da tentativa extrajudicial e a emissora nada ganha (a não ser prazo!) em fazer uso do disposto no art. 31 §2º da Lei 5250/67, pois sucumbirá de qualquer forma.

5. DO JUÍZO COMPETENTE.

            Se o leitor chegou até aqui imaginando que estava na seara cível, se enganou.

            A lei é clara:

            "Requerendo ao juiz criminal que ordene ao responsável pelo meio de informação e divulgação a publicação ou transmissão nos prazos do art. 31"(art. 32 da Lei 5250/67, grifos do signatário)

            Este é mais um aspecto inusitado do direito de resposta. Tem cara cível, jeito cível, rito cível, mas pertence à seara criminal:

            01 – Compete ao juízo criminal, consoante disposto no parágrafo primeiro do art. 32 da Lei 5250/67, processar e decidir a respeito do exercício do direito de resposta previsto da Lei de Imprensa. 02 – Declarada a incompetência absoluta, os autos deverão ser remetidos ao juiz competente (CPC, art. 113, parágrafo segundo).(…). (Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Apelação Cível Apc3936796 Df, Acórdão: 89195, 5a Turma Civel Data: 30/09/1996, Relator: Jose Dilermando Meireles, Publicação: Diário da Justiça do DF: 30/10/1996 Pág: 19.481)

            A eventual sentença ordenando a transmissão tem, contudo, uma primeira parte de natureza penal: a ordem judicial de publicação ou transmissão será feita sob pena de multa (art. 32 § 5º da Lei 5250/67).

            Temos, porém, um aspecto cível marcante com a obrigação de fazer (transmitir ou publicar) e a definição do responsável pelo custo desta obrigação (art. 32§ 6º da Lei 5250/67), de natureza cautelar.

            Mais uma vez o patrono não pode arriscar o seu curto prazo de perecimento do direito com eventual oferecimento da ação em juízo incompetente.

6. DA RESPOSTA PRETENDIDA.

            Se o Prefeito foi acusado de não pagar o funcionalismo, não pode pretender que na sua resposta se comente sobre a qualidade do programa jornalístico, sobre os proprietários da emissora, sobre seus rivais políticos e coisas que tais.

            O direito de resposta existe para oferecer um contraponto às afirmações publicadas ou transmitidas e se a resposta foge deste arcabouço, não será deferida na justiça.

            O art. 34 da Lei 5250/67 cuida de limitar a atuação do ofendido, proibindo, em primeiro lugar, que a resposta fuja do fato considerado como ofensivo. Em segundo lugar, não permite que a resposta contenha expressões que possibilitem um novo direito de resposta, criando um círculo vicioso. Em terceiro lugar, veda o direito de resposta quando os comentários ditos ofensivos versam sobre atos ou publicações oficiais, sendo, portanto, públicos e não criação do ofensor, exceto se a própria autoridade pública quer retificar o ato ou publicação oficial, diretamente da emissora que o transmitiu. Temos, também, a impossibilidade de resposta quando ocorreu o simples exercício da crítica, desprovido de aspecto ofensivo.

            Não haverá direito de resposta, por conseguinte, se o nosso locutor afirmar que o Prefeito errou ao pavimentar a Rua "X" em detrimento de outra, pois neste caso temos uma simples crítica.

            Um outro aspecto que deve ser observado na inicial é que é necessário que seja juntado um exemplar do escrito ofensivo,no caso de jornais ou revistas, ou uma descrição detalhada, via degravação, da transmissão atacada, se o insulto aconteceu pelo rádio ou televisão, bem como da resposta pretendida em duas vias. A presença do texto ofensivo é indispensável para que o juiz aprecie o caráter ilícito do fato e os requisitos do art. 34 da Lei 5250/67, da mesma forma como ocorre com a resposta pretendida, que deve ser mensurada nos termos permitidos pela lei.

            Conforme o art. 58 da Lei 5250/67, as empresas de comunicação devem guardar os textos de todos seus programas pelo prazo de 20 a 60 dias, a depender do tipo do programa e da natureza da emissora. Dentro do lapso legal, qualquer interessado pode notificar a permissionária ou concessionária, mesmo extrajudicialmente, para não destruir textos ou gravações sem autorização judicial.

7. O RITO PROCEDIMENTAL.

            Cabe destacar, de logo que a procuração dada ao Advogado não se confunde com aquela descrita no art 44 do Código de Processo Penal, pela diferença entre as duas ações.

            Oferecida a inicial, com todos os seus requisitos, específicos e gerais, o juiz, em vinte e quatro horas, citará o responsável pela empresa para que, no mesmo prazo, justifique a não publicação pela via extrajudicial. Em seguida, o juiz, também no mesmo prazo, sentenciará. Havendo procedência no pedido, o juiz ordenará a publicação ou transmissão sob pena de multa.

            Da sentença cabe apelação sem efeito suspensivo, o que significa que a multa diária continuará a aumentar.

            A Lei de Imprensa (lei no. 5.150/67) foi omissa quanto ao prazo destinado ao recurso de apelação. Nesse caso, aplicam-se as normas contidas no CPP, que recepcionou a lei especial consoante expressa disposição constante no art. 10., inciso v § Único do CPP, ou seja, o art. 493 do CPP, que estipula em 5 dias o prazo para apelação (…). (Tribunal de Alçada do Paraná – Apelação Criminal – 0093157300 – Guarapuava – Juiz Conv. Clayton Reis – Segunda Câmara Criminal – Julg: 12/09/96 – Ac.: 4431 – Public.: 25/10/96).

            O legislador foi silente mas a inclinação majoritária é pela não participação do Ministério Público no processo, quer pela sua natureza, quer pela falta de previsão.

            (…) no procedimento referente ao pedido de resposta, sobre que versa o art. 29 e seguintes da lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa), não intervém o órgão do ministério público, visto lhe falece a pertinência subjetiva da ação (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo – Apelação nº 1.051.025 – 24/04/1.997 – Rel.: Carlos Biasotti – 15ª câmara)

            Desnecessária a intervenção do Ministério Público no procedimento atinente ao pedido de resposta ou de explicações a que se refere a lei 5250/67, pois se trata de medidas cautelares, ou preparatórias, e não de ação penal. (Tribunal de Alçada de Minas Gerais-Acórdão: 0259599-7 Apelação (Cr) Ano: 1998, Primeira Câmara Criminal, Relator: Juíza Jane Silva, Julg.: 19/08/1998, Publ.: DJ 20.11.98)

            Inexistindo norma expressa que imponha a manifestação do Ministério Público acerca do direito de resposta de que trata a Lei 5.250/67, em face de publicação ofensiva veiculada em jornal, não há falar em nulidade processual (…). (Tribunal de Alçada de Minas Gerais -Acórdão : 0311311-1 Apelação (Cr) Criminal Ano: 2000, Primeira Câmara Criminal, Relator: Juiz Lamberto Sant”anna, Data Julg.: 06/09/2000,)

            A negativa ou demora na publicação do direito de resposta constitui crime autônomo, dobrando a pena cominada na infração pertinente. O dispositivo se justifica porque as condutas que autorizam o direito de resposta, de regra, tipificam ilícitos na esfera penal (arts. 12/28 da Lei 5250/67), além da eventual caracterização do crime de desobediência.

            Ainda que o ofendido tenha conseguido o direito de resposta, judicial ou extrajudicialmente, não fica prejudicado o ajuizamento de outras ações para se apurar a responsabilidade penal ou civil, nos termos do art. 35 da Lei 5250/67.

8. CONCLUSÃO.

            No exemplo apresentado no início, o patrono do Prefeito deverá, ao buscar seu direito de resposta na esfera judicial:

            a) Tentar a resposta extrajudicialmente e ter provas disto (colhendo, por exemplo, declaração de testemunhas que atestem que a emissora se recusou a receber o direito de resposta);

            b) Ajuizar a ação na vara crime pertinente (art. 42 da Lei 5250/67). Não é na vara cível!;

            c) Juntar com a petição inicial duas cópias do texto ofensivo e da resposta pretendida;

            d) Obedecer ao prazo decadencial de 60 dias e não ajuizar outras ações com fundamento na mesma ofensa;

            Encerro com decisão recente sobre os espinhos desta lei:

            "Furo n”água

            Justiça nega a Fleury direito de resposta na TV Globo

            O ex-governador do Estado de São Paulo Luiz Antonio Fleury Filho teve seu pedido de resposta na TV Globo negado pelo juiz da 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro (SP), Oscild de Lima Jr.

            A defesa da emissora, feita pelo escritório Nilson Jacob, Rolemberg Advogados Associados, alegou que o pedido não era procedente, porque Fleury entrou com a ação antes de notificar a emissora. O juiz Lima Jr. entendeu que houve "falta de condição de procedibilidade", já que a Lei de Imprensa determina que só se deve ajuizar uma ação desse tipo se o veículo de comunicação se negar a publicar a resposta.

            O juiz também acolheu o outro argumento dos advogados da TV Globo, de que a petição inicial era inepta porque não continha a transcrição da reportagem. Para Lima Jr., sem a transcrição, dificulta-se o "conhecimento das eventuais inverdades contidas na notícia, a fim de compatibilizá-las com o texto da resposta pretendida." (Processo: 1.154/02, 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro (SP), Juiz Oscild de Lima Jr., Revista Consultor Jurídico, 6 de janeiro de 2003.)

 


Referência  Biográfica

Josemar Dias Cerqueira  –  Juiz de Direito em Brejões (BA)

Bioética, a “bola da vez”

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* Enéas Castilho Chiarini Júnior

         Com o intuito de contribuir para as discussões sobre a possibilidade ética e jurídica da utilização dos métodos de clonagem terapêutica e de manipulação genética, aproveitaremos, de maneira introdutória, do fato de que, recentemente, uma empresa de telecomunicações iniciou a apresentação de uma série de reportagens sobre os avanços da tecnologia científica, mais especificamente da engenharia genética.

        Em um primeiro momento, cabe aplaudir a iniciativa da referia empresa de trazer para a população em geral o conhecimento, ainda que superficial, do atual estágio das pesquisas que envolvem a manipulação genética.

        Foram apresentadas algumas das possibilidades abertas pela terapia genética que utiliza o método da clonagem de células para a produção de células-tronco, as quais são capazes de evoluírem para qualquer espécie de tecido orgânico, o que pode ser capaz de ajudar a encontrar a cura para uma série problemas de saúde, como, por exemplo, a paralisia decorrente de trauma na medula, ou, ainda, pode ser capaz de, entre outras coisas, “fabricar” órgãos humanos para fins de transplantes.

        No mesmo programa, em outra reportagem, foram apresentadas as possibilidades da clonagem não-terapêutica, trazendo-se o exemplo de uma empresa norte-americana que oferece o serviço de clonagem de animais de estimação, “produzindo” animaizinhos exatamente iguais aos que porventura tenham falecido.

        São duas reportagens que, como dito, devem ser aplaudidas pelo seu alto grau de conteúdo informativo, principalmente se considerarmos que, exatamente neste momento, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa alterar a Lei Nacional de Biossegurança, no qual existe a intenção de regulamentar, além de várias outras questões, a possibilidade (ou impossibilidade) de pesquisas que envolvam a manipulação genética de seres humanos.

        Porém, em um segundo momento, após atenta observação do primeiro programa da série, no qual o narrador da reportagem apenas afirmou existir uma corrente contrária à utilização da clonagem terapêutica, cabe a análise de algumas questões.

        Em primeiro lugar, a emissora de televisão deveria ter dado maior abertura à análise dos argumentos da corrente contrária, a qual questiona a aplicação da clonagem terapêutica.

        Pela corrente que condena a utilização da manipulação de material genético humano, uma das objeções que se faz é a de que o ser humano é ser humano desde a concepção – e não apenas a partir do terceiro ou quarto mês de gravidez, como defendem, principalmente, os ingleses -, e, apoiando-se nos direitos humanos e fundamentais, sobretudo o direito de respeito à dignidade da pessoa humana, aliada a lição kantiana de que o ser humano não pode, jamais, ser considerado um simples meio para se atingir um objetivo, por mais nobre que seja, não parece razoável que seres humanos, mesmo que “fabricados” em laboratório pela manipulação genética, sejam sacrificados e utilizados como forma de salvar outra vida.

        Todo ser humano deve ser respeitado, tendo sua dignidade, integridade física e sua vida protegida desde o momento da concepção, é o que diz o Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969), do qual o Brasil é signatário.

        Pelo referido pacto internacional, o ser humano deve, portanto, ter seu direito à vida garantido e respeitado desde o momento da concepção (artigo 4º, I), não apenas após certo período de gestação como defendem alguns.

        Por outro lado, o que distingue o ser humano de outros animais? Como saber se uma vida é, ou não, pertencente à espécie humana, para que possa ser considerada digna de proteção?

        Acreditamos que o método mais seguro, no atual estágio de desenvolvimento científico da Humanidade, seria uma análise de sua constituição genética.

        O que faz com que o indivíduo seja membro da espécie humana é o fato de seu patrimônio genético ser compatível com o patrimônio genético comum à espécie humana, não importando quaisquer outras características.

        Desta forma, considerando-se que, desde a concepção, já estão presentes estas informações genéticas, deve-se respeitar o ser humano em potencial, fruto desta concepção – mesmo que artificial – o qual já possuiria uma expectativa de se desenvolver e tornar-se uma vida independente.

        Aliando-se, como já dito, este entendimento aos ensinamentos de Kant (segundo os quais a máxima “age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio” seria um imperativo categórico, do qual não se poderia afastar – Marcelo Campos Galuppo apud Marcelo Kokke Gomes, “O ser humano como fim em si mesmo: imperativo categórico como fundamento interpretativo para normas de imperativo hipotético” in www.jus.com.br. Acesso em: 29/5/2004), não seria desejável que tais pesquisas pudessem ser realizadas, mesmo que com a finalidade de salvar outra vida.

        Trazendo-se mais argumentos jurídicos à discussão, e analisando-se a questão sob o ponto de vista do princípio (ou regra, segundo Robert Alexy) da proporcionalidade, teríamos o problema do choque entre dois direitos fundamentais: o direito do produto da concepção (natural, ou artificial) à vida, e o direito à saúde e/ou à dignidade do ser humano ao qual se pretende beneficial pela terapia genética.

        Não se trata de estabelecer-se uma hierarquia de valores entre dois direitos fundamentais, mas não se pode sacrificar um dos direitos – no caso o direito à vida – em benefício de outro – o direito à saúde -, mesmo porque, o exercício do direito à saúde do paciente não seria prejudicado pelo efetivo exercício do direito à vida do ser humano em potencial, produto da concepção (isto sem falar que, em muitos casos existem outras alternativas capazes de minimizar os problemas do paciente).

        Ora, a impossibilidade de se anular completamente um direito em benefício de outro é lição tão conhecida no mundo jurídico que não são necessárias grandes argumentações para se demonstrar a impossibilidade jurídica de se permitir a realização de tais experimentos, pois para se salvar a vida do paciente estar-se-ia impossibilitando a vida do produto da concepção.

        Dirão alguns que, neste caso, estar-se-ia salvando-se uma vida – a do paciente – e que, mais do que isso, a concepção teria sido realizada apenas com o intuito de se salvar a vida do paciente, de forma que esta não viria a se desenvolver mesmo que não se salvasse a vida do paciente.

        Porém, é exatamente aqui que cabem as considerações kantianas trazidas acima. Não se pode admitir que uma vida seja gerada (ou criada, “produzida”, “fabricada”) apenas com o intuito de servir de meio para atingir uma finalidade, pois todo ser humano é único, irrepetível, e portador de valores e dignidade próprios, os quais devem, sob qualquer hipótese, serem respeitados desde a concepção, conforme o aludido Pacto de San Jose da Costa Rica.

        Ademais, o direito à vida é garantido para os que possuam meios orgânicos de sobreviver autonomamente, não existindo um dever de se fornecer os meios orgânicos necessários para que um ser humano possa continuar vivendo.

        Permitir-se tais experimentos seria incorrer em erro duas vezes: a primeira ao se utilizar um ser humano como meio – e não como finalidade em si mesmo -; e a segunda ao se anular completamente um direito fundamental para se garantir a possibilidade – pois não há garantias de que tal procedimento terapêutico irá, com certeza, salvar a vida do paciente – do exercício de outro direito.

        Cabe, ainda, lembrar que, sendo o Brasil signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, pacto este que estabelece normas de Direitos Humanos, e, sendo estes direitos irrenunciáveis e irreversíveis, não é possível para nosso país estabelecer uma norma, nem mesmo constitucional, que permita este tipo de manipulação genética envolvendo seres humanos, uma vez que isto seria vedado pela norma que exige a proteção da vida humana desde o momento da concepção.

        Estes são alguns dos principais argumentos defendidos pela corrente que não concorda com a liberação da pesquisa envolvendo a manipulação de células-tronco humanas.

        Por outro lado, outra questão que deve ser analisada é a relativa a problemática da permissão (ou proibição) da clonagem.

        Conforme fora relatado na segunda reportagem apresentada pelo programa de televisão em questão, na tentativa de se “produzir” um clone de um gato doméstico, foram necessárias mais de 80 (oitenta) tentativas.

        O que aconteceu com as tentativas anteriores? Quais as aberrações que foram produzidas pelos sucessivos erros durante o processo de “produção”? Seria eticamente aceitável o sacrifício de oitenta vidas para a “produção” de uma única vida sadia?

        O certo é que estes procedimentos são capazes de gerar lucro, pois conforme noticiado na referida reportagem, a empresa especializada em “re-produzir” animais de estimação falecidos cobra para cada “criação” bem sucedida a quantia de US$ 50 mil.

        O ideal seria que o referido programa de televisão trouxesse, não só um lado da problemática, mas, mais do que isso, apresentasse a real possibilidade de um amplo debate nacional sobre as questões envolvidas.

        É para isto que vem a Bioética, para analisar-se os dois lados destas e de outras questões semelhantes, pois, através de um estudo multidisciplinar, a bioética visa estudar e regular os limites da experimentação científica.

        Assim, como aparentemente esta emissora de televisão se predispôs a trazer à discussão as questões que envolvem os progressos científicos, podemos concluir que a Bioética está caminhando para se transformar na “bola da vez”, e deverá, em pouco tempo, se transformar em uma matéria da mais alta importância em nosso país.

        Como neste país as grandes mudanças ocorrem por força – ou com a permissão – da mídia, os profissionais que se preocupam com questões bioéticas devem aplaudir a iniciativa da referida emissora de televisão, pois, certamente, o caminho para uma grande discussão nacional a cerca destas questões está sendo vagarosamente aberto.

        Cabe aos profissionais, sobretudo das áreas médica e jurídica, que se preocupam com esta temática o dever de não perder esta oportunidade sem apresentar para a população em geral os vários lados que envolvem a regulamentação deste tipo de experimentação científica, pois a abertura da mídia é apenas o primeiro passo de uma discussão que deve envolver toda a população, uma vez que o que está em jogo é o futuro da humanidade como um todo.

        Caminharemos para um mundo onde certas técnicas científicas serão rigidamente regulamentadas e, em alguns casos, proibidas, ou, por outro lado, caminharemos para um “admirável mundo novo”, onde não haverá limites para as pesquisas científicas?

        As respostas serão dadas no futuro, mas a opção será feita hoje.                                    

 


Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior  –  Advogado em Pouso Alegre/MG; Especialista em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. Do Sul de Minas); Capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem); e membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL (Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas), é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

A Importância do Controle de Horário

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* Adilson Sanchez

                                    Não raro notamos severa resistência dos trabalhadores em “bater” ou “picar” o cartão de ponto. Mesmo o avanço da tecnologia, com os pontos eletrônicos – simples crachás – não afastou essa indisposição, muita próxima de um preconceito.

                                     As empresas, pretendendo adotar uma política branda em relação a esse tema, dispensando a anotação ou existência de controle de horário, acabam vítimas do argumento da inexistência formal do controle de horário para o pleito de valiosas horas extras, nas reclamações trabalhistas. 

                                    Sabe-se, o legislador limitou a jornada de trabalho, permitindo, apenas, prestação superior em número máximo de duas horas diárias (art. 59 da CLT), mediante o pagamento de adicional de hora extra sobre o salário 

                                    Exige a legislação o controle da jornada, seja para possibilitar a fiscalização trabalhista, seja para comprovar o pagamento correto pelo empregador das horas de trabalho de seus empregados, tanto da jornada normal como da extraordinária (art, 74, § 2º da CLT). 

                                    Assim, estão obrigados a manter controle de ponto os empregadores que tenham mais de dez empregados em determinado estabelecimento, excetuados aqueles que exercem cargo de confiança ou serviço externo sem fiscalização, nos termos do artigo 62 da CLT. 

                                    O registro do horário poderá ser manual, mecânico ou eletrônico, podendo ser utilizado um simples livro de ponto, apesar de habitualmente as empresas adotarem o "relógio de ponto" para o controle de horário, ou mesmo o controle eletrônico. 

                                    No caso de reclamação trabalhista com pedido de horas extras, deve-se observar o entendimento dos tribunais que considera obrigatória a juntada pelo empregador dos registros de horário, sob pena de considerar válido o pedido de horas extras, na conformidade do Enunciado TST nº 338, como segue: 

                                       É ônus do empregador, que conta com mais de dez empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário.

                                    Outrossim, não proceder ao controle de horário poderá acarretar multa administrativa no valor equivalente a 378,20 até 3.782 ufir, em eventual autuação, além de “forte dor de cabeça” na condução de eventual reclamação trabalhista. 

                                    Ocorre que a maior preocupação é a pertinente à prova em reclamações trabalhistas pleiteando horas extras. Sabe-se, não raro, há imprecisões nos pedidos de horas extras, com argumento de horários elastecidos sem respaldo nos fatos. Por vezes, o horário declinado pelo trabalhador acaba sendo acatado como se por todo o tempo do contrato fosse verdadeiro, resultado que nem mesmo ele perseguia.

                                     Assim, mostra-se eficaz, como matéria de prova, a adoção do controle de horário, senão vejamos:

                                    Horas Extraordinárias. Limitando-se o autor, na inicial, a alegar o recebimento incorreto das horas excedentes da 8ª diária ou 44ª semanal, sem declinar o horário cumprido, acaba por permitir a possibilidade de acolhimento, como corretos, dos horários registrados nos cartões de ponto juntados com a defesa. (TRT da 2ª Reg. – 7ª T. Ac. nº 02960562199, proc. nº 02950220295, DJ/SP de 05.12.96, pág. 63).

                                     Horas Extras. Inexistência de Controle de Horário. Inversão do Ônus da Prova. Não cumprindo o empregador a determinação estabelecida no art. 74, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, assume o ônus da prova. Não produzindo prova oral convincente, restam devidas as horas extras postuladas pelo empregado. (TRT da 12ª Reg. – 3ª T. RO nº 000743/00, DJ/SC de 14.06.00, pág. 235).

                                      Ônus da Prova. Registro de Ponto. Documento que deve existir nos arquivos da empresa, por força de lei (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 74, § 2). Transferência do ônus da prova para o trabalhador. Ilegalidade. (TRT da 2ª Reg. – 9ª T. RO nº 200668367, DJ/SP de 23.01.01).

                                     Nota-se, desse modo, que em se tratando de constituição da prova das horas extras, tendem os tribunais a considerar a prova documental, ou seja, o controle de ponto, de força probante ímpar.

                                     Mais objetivamente, se a empresa faz a juntada dos controles de horário, além de afastar a dúvida de pertencer ao reclamante a prova da jornada alegada, terá ele de produzir prova testemunhal robusta para elidir a prova documental (os cartões de ponto).

                                     Por outro lado, se a empresa não faz a juntada do controle de horário (tendo ou não o referido documento), e havendo determinação judicial para sua juntada, presume-se verdadeira a jornada alegada pelo trabalhador.

                                     Contudo, não basta manter os controles. Há necessidade que mantenham valor jurídico, ou seja, devem ser produzidos sem rasuras, com horários alternados (opõe-se à idéia do horário "britânico", por impossível todos os dias o trabalhador ter idêntico cumprimento da jornada), com cabeçalho, apontamento de horas e mediante assinatura para sua autenticidade.

                                     Neste particular acompanho o entendimento regional, eis que para que seja reconhecida a validade dos cartões de ponto é necessária a assinatura do empregado. Inexistindo assinatura, os mesmos se tornam imprestáveis como prova do controle da jornada laboral. (TST – Ac. 1ª T. 314/94, RR 77657/93.2, DJU de 08.04.94, pág. 7374).

                                      É destituído de força probante o cartão de ponto não assinado pelo empregado, pois, neste caso, se torna documento unilateral do empregador e incapaz, por isso, de atestar, quando impugnado, o cumprimento, ou não, da jornada diária de trabalho. (TST – Ac. 2ª T. 335/94, RR 62979/92.7, DJU de 06.05.94, pág. 10650).

                                     A assinatura do empregado no controle, confere ao documento autenticidade. Tanto que há decisões da sua predominância sobre a prova testemunhal, embora o tema seja dos mais polêmicos.

                                      Prova documental. Valor. Se a prova documental for autêntica e assinada pelo empregado, prevalece à oral, eis que fornece os elementos convincentes e concretos e só será infirmada pela oral se essa comprovar que existe qualquer irregularidade no conteúdo dos documentos. (TRT da 2ª Reg. – 9ª T. Ac. nº 02960335439, proc. nº 02950160608, DJ/SP de 23.07.96, pág. 25).

                                     Mostra-se, pois, de boa estratégia manter controle da jornada de trabalho.

                                     Alternativamente, como forma de abrandar o impacto da medida, a adoção de um simples “relatório de tempo”, comum na atualidade, não tem o alcance de substituir o controle de ponto previsto em lei, se especificar o início e término da jornada, mas apenas a carga horária prestada.

                                     Na verdade, pode-se adotar um controle alternativo. Ocorre que o Ministério do Trabalho baixou a Portaria nº 1120/95 autorizando a adoção de controles alternativos de horário de trabalho, conforme dispõe o seu artigo 1º que, por oportuno, transcreve-se:

                                     Os empregadores poderão adotar sistemas alternativos de controle da jornada de trabalho, desde que autorizados por convenção ou acordo coletivo de trabalho.

                                    Considerando, ainda, o reconhecimento dos instrumentos coletivos pela Constituição da República o que é cediço na jurisprudência, a negociação coletiva para criação de controle alternativo seria facilmente defensável, mesmo contra pretensão da fiscalização trabalhista para autuar a empresa, nos termos da Portaria nº 1120/95, senão vejamos:

                                      A Portaria MT nº 1120/95 possibilita, “desde que autorizados por convenção ou acordo coletivo”, controle por “exceção”, onde o empregado só registra a jornada se houver horas extras, atrasos, faltas etc., presumindo-se a jornada normal. É de duvidosa legalidade. (grifou-se) – Valentin Carrion, “in” Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, Saraiva, 24ª ed., pág.129).

                                     Porém, a opinião do renomado jurista não é corrente na doutrina, ao contrário, em que tendência é de possibilitar a flexibilização da legislação trabalhista, matéria para uma volumosa obra e não para esse simples rascunho, o que faz pensar que voltaremos ao assunto.

                                     Enquanto isso, clamamos às empresas para que mantenham e cuidem dos controles de horário, evitando modismos que levam ao abandono desse procedimento. Da mesma forma, clamamos aos magistrados que uma vez juntados os referidos controles sob as penas do artigo 359 do CPC que emprestem o valor jurídico necessário, de modo a afastar controvérsia desnecessária ao deslinde da reclamação.


 

Referência  Biográfica

Adilson Sanchez:  Advogado Trabalhista e Previdenciário; Autor do Manual de Rescisão do Contrato de Trabalho; Professor da Escola Superior de Advocacia e da FIA / FEA / USP.

A penhorabilidade do bem de família para pagamento de tributos incidentes sobre o próprio imóvel:

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* Enéas Castilho Chiarini Júnior

          De todos os recursos previstos no Código de Processo Civil, nenhum sofreu até hoje modificações tão profundas como o Agravo. Referidas mudanças vêm sendo implementadas desde o advento da Lei 9.139/95, que alterou toda a disciplina desse recurso, cujo texto anterior era o da lei 5.925/73, que também modificava o texto original da lei que instituiu o CPC, tal como se acha em vigor (Lei 5.869/73).    

          Segundo a Lei nº 8.009/90, Lei do Bem de Família, o imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar é impenhorável por dívidas de qualquer natureza, salvo as exceções previstas na mesma lei, dentre as quais, a do inciso IV do artigo 3º, que trata da cobrança de impostos, taxas e contribuições devidas em função do próprio imóvel.

          A Lei nº 10.406/02 – novo Código Civil – traz, no mesmo sentido, o artigo 1715.

          Uma vez que a Lei do Bem de Família trata de hipótese onde não é necessária escritura pública, protegendo o imóvel independentemente da escrituração registrada em cartório (artigo 5º, caput e parágrafo único), enquanto que o novo Código Civil exige para a proteção do imóvel efetiva escrituração pública em cartório de registro de imóveis (artigo 1714), a doutrina tem considerado a permanência em vigor daquela lei, para os casos em que não haja o registro em cartório da referida escritura pública.

          Desta forma, surge, na doutrina, duas modalidades de Bem de Família: a voluntária, regida pelo Código Civil, e que exige a escritura pública; e a legal, que protege o imóvel independentemente de qualquer condição.

          Em ambos os casos, como já dito, existe a possibilidade de desconsideração do bem de família para penhorá-lo face aos tributos decorrentes do próprio imóvel.

          O que nos propomos a discutir é a inconstitucionalidade – superveniente, no caso da Lei do Bem de Família; e originária, no caso do novo Código Civil – decorrente da alteração do artigo 6º da Constituição Federal, por força da Emenda Constitucional nº 26/2000, a qual elevou o direito à moradia à condição de direito social.

          Sendo, a partir da referida alteração constitucional, a moradia um direito social fundamental – posto que o artigo 6º da CF/88 se encontra dentro do Capítulo II do Título II: "Dos Direitos e Garantias Fundamentais" -, a possibilidade de penhorar-se o imóvel de domicílio do casal – ou entidade familiar, mesmo que unipessoal – não parece condizer com esta condição de fundamentalidade do direito à moradia.

          Se a moradia é direito constitucional fundamental do indivíduo, não pode uma norma infraconstitucional estabelecer hipóteses de perda deste direito que não estejam previamente elencadas – ou ao menos previstas, mesmo que implícitas – pela própria constituição federal.

          Apesar das demais hipóteses de penhorabilidade do bem de família possuírem fundamento legítimo – qual seja a impossibilidade de locupletamento ilícito por parte do proprietário do imóvel – estas hipóteses também podem ser objeto de controvérsia sobre a sua constitucionalidade face ao referido "novo" artigo constitucional. Porém, não nos propomos, ao menos por hora, a tratar destas situações. Nos concentraremos nos argumentos sobre a hipótese da penhorabilidade decorrente de tributos devidos pelo imóvel.

          Claro que irão criticar este ensaio, afirmando, desde logo, que a hipótese de desconsideração do bem de família para possibilitar a penhorabilidade do mesmo para adimplemento de obrigação tributária decorrente do próprio imóvel está, implicitamente, presente na Constituição Federal de 1988, a qual abriga expressamente a supremacia do interesse público sobre o interesse privado (artigo 5º, incisos XXIV e XXV, ou, ainda, como decorrência do próprio Estado Democrático de Direito esculpido no caput do art. 1º da CF), e, sendo a penhorabilidade do bem de família por dívidas tributárias de interesse público – uma vez que não interessa para a sociedade arcar com os custos de um imóvel que beneficie apenas uma família -, este entendimento deveria prevalecer sobre o interesse individual de impenhorabilidade do referido imóvel.

          Porém, apesar do princípio da supremacia do interesse público, existem outras normas constitucionais que devem ser levadas em consideração.

          Dentre as regras que podem ser elencadas para defender a idéia da inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família pode-se citar o próprio artigo 6º da Constituição Federal que estabelece o direito à moradia como sendo um Direito Fundamental – de segunda "geração" (ou "gestação", conforme defendemos em outra oportunidade) – do indivíduo em face do Estado.

          Dirão, contra este artigo, que se trata de norma constitucional de conteúdo meramente programático e que não possui força suficiente para exigir-se uma prestação positiva do Estado no sentido de garantir moradia a todos os indivíduos.

          Porém, não se trata de exigir-se uma prestação positiva do Estado para conferir moradia aos indivíduos, mas, tão somente de impedir que o Estado venha, por ato seu, desrespeitar e impedir o livre exercício pelo indivíduo de seu referido direito à moradia. Neste sentido, deve-se invocar a lição do grande José Afonso da Silva segundo a qual toda norma constitucional – independentemente de ser, ou não, simples norma programática – deverá ter um mínimo de eficácia no sentido de, ao menos, ser capaz de impedir a promulgação de leis com elas incompatíveis, o que, no caso, tornaria a penhorabilidade do bem de família inconstitucional se confrontado com o artigo 6º da Constituição Federal.

          Pode-se, também, citar-se o inciso XXII do artigo 5º da Constituição que garante o direito à propriedade, mesmo sem se esquecer do seu vizinho, o inciso XXIII que subordina a propriedade à sua função social, pois, a função social primordial de um imóvel é, sem dúvida alguma, servir de moradia.

          Assim, apesar da supremacia do interesse público sobre o individual, a Constituição garante o direito à propriedade – apesar de condicionar o referido direito à função social da propriedade – e, principalmente, estabelece o direito à moradia como sendo direitos fundamentais.

          Só estes dispositivos já seriam suficientes para uma discussão sobre a inconstitucionalidade defendida neste estudo, porém, deve-se lembrar, ainda, que, além destes dispositivos, a Constituição Federal traz, como objetivos da República Federativa do Brasil, a missão de construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza, a marginalização e a desigualdade social, e, acima de tudo, promover o bem de todos (artigo 3º, incisos I, III e IV).

          Mais que isso, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é, justamente, a dignidade da pessoa humana, o que, diga-se, é absolutamente incompatível com a perda de sua moradia.

          Desta forma, uma vez que a Constituição Federal garante o direito à propriedade e à moradia – ambos como direitos fundamentais do indivíduo – e estabelece como metas a erradicação da pobreza e marginalização social, na construção de uma sociedade justa e solidária fundamentada na dignidade da pessoa humana, a possibilidade de penhorabilidade do bem de família, em favor da fazenda pública, torna-se, irremediavelmente, inconstitucional.

          Ainda não é tudo. Apesar de não conter força normativa, deve-se considerar o preâmbulo da Constituição Federal como sendo um parâmetro de interpretação constitucional, o que nos leva a concluir, mais uma vez, pela inconstitucionalidade da perda do bem de família, pois o preâmbulo constitucional é claro ao afirmar que a Assembléia Nacional Constituinte fora convocada para "instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna […] fundada na harmonia social".

          Assim, não parece possível pugnar-se pela constitucionalidade das referidas normas infraconstitucionais.

          É claro que levar a proposta até aqui exposta às últimas conseqüências acabaria por conduzir a uma falência do Estado brasileiro, uma vez que estaria aberta a possibilidade da grande maioria da população deixar de pagar tributos relativos aos seus imóveis.

          Não se discute o dever de todos os indivíduos pagar seus tributos, porém, não se pode esquecer dos milhares de brasileiros que se sacrificam todos os dias em uma jornada de trabalho desgastante que, ao final do mês só é capaz de garantir uma retribuição pecuniária que mal lhe garante o direito a uma alimentação saudável (o que não é nada condizente com a norma do inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal, que estabelece um salário mínimo capaz de garantir alimentação, moradia, educação, saúde, vestuário, lazer, transporte, vestuário, higiene e previdência social).

          Assim (se se entender que a possibilidade da penhorabilidade do bem de família é constitucional), na prática, o que acontecerá é o surgimento da possibilidade de o Estado garantir um salário mínimo insuficiente para a alimentação digna, sem deixar condições aos indivíduos de pagarem seus tributos para, após o inadimplemento destes, penhorar sua única moradia, fruto de uma vida de sacrifícios e privações (o que, em última análise, seria equivalente a hipótese de o Estado tirar proveito de sua própria torpeza).

          Sabe-se que é bastante comum a isenção de impostos – principalmente o IPTU – de famílias que se encontram em situações de pobreza e marginalização, justamente para impedir-se o quadro pintado nestas linhas acima, porém, normalmente o que acontece é que serão isentas apenas as famílias que se encontram no que poderíamos chamar de "adiantado estado de putrefação social", esquecendo-se das inúmeras famílias que, apesar de possuírem uma renda um pouco maior (cinco salários mínimos, ou, talvez, mais que isso), possuem um gasto mensal que impossibilita o adequado pagamento dos tributos decorrentes do seu bem de família sem correspondentes sacrifícios pessoais.

          É justamente em favor destes que se está a escrever as presentes linhas. Não se está procurando defender aqueles que possuem condições de pagar em dia todos os seus tributos sem maiores privações econômicas, mas, apenas aqueles que, como dito, estão pouco acima da linha da pobreza.

          Qualquer dos extremos poderia resultar em uma situação de injustiça.

          Cabe, aqui, invocar os ensinamentos de Buda, segundo os quais a virtude está no meio termo, de forma que o que pretendemos é afirmar a possibilidade de, caso a caso – através do controle difuso da constitucionalidade -, afastar-se a aplicabilidade da penhorabilidade do bem de família (porque, como visto, em determinados casos concretos levaria a uma inconstitucionalidade da norma), sempre levando-se em consideração as condições econômicas das famílias envolvidas.

 


Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior:   Advogado e árbitro em Pouso Alegre (MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) em parceria com a Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais (FDSM) – 2004

Indenização e Dúvida Adicional

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* Adilson Sanchez

A Lei nº 6.708/79 (DOU de 30.10.79), criou a indenização de um salário, devida ao empregado dispensado, sem justa causa, no período de 30 (trinta) dias que antecede a data de correção salarial da categoria, dispondo: 

O empregado dispensado, sem justa causa, no período de 30 (trinta) dias que antecede a data de sua correção salarial, terá direito à indenização adicional equivalente a um salário mensal, seja ele, ou não, optante pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. 

Posteriormente, a Lei nº 7.238/84 ressaltou o direito a esta indenização, não obstante a polêmica acerca da vigência ou não do referido ordenamento. 

Nesse sentido, merece destaque o acórdão abaixo: 

Os Decretos-Leis do Plano Cruzado (2.283/86 e 2.284/86) não contêm qualquer disposição revogando o art. 9º da Lei nº 7.238/84, nem disciplinam eles inteiramente a matéria tratada na mencionada Lei, especialmente em relação à indenização devida em decorrência da dispensa injusta ocorrida no período de trinta dias que antecede a data da correção salarial da categoria. 

Portanto, se a dispensa imotivada do empregado ocorrer dentro do trintídio a que alude o art. 9º mencionado, como na hipótese destes autos, a indenização adicional será devida. (Ac. 2ª T. – TST nº 101/89, RR 2.419/88.8, DJU de 07.04.89).  

Por fim, o Tribunal Superior do Trabalho – TST, editou o Enunciado de Súmula nº 306 (DJU de 05.11.92, pág. 20044), que pôs fim à discussão, determinando: 

É devido o pagamento da indenização adicional na hipótese de dispensa injusta do empregado, ocorrida no trintídio que antecede a data-base. A legislação posterior não revogou os artigos 9º da Lei nº 6708/79 e da 9º da Lei nº 7238/84.  

Observe-se que o TST adaptou a norma legal à realidade, ou seja, enquanto a legislação não se referia à data base da categoria, o Enunciado tratou de restringir o direito à indenização somente em relação aos reajustes anteriores à data-base, pois, caso contrário, as correções de salários mensais e bimestrais instituídas posteriormente, comprometeriam a aplicação da norma, visto que todo e qualquer empregado demitido passaria a ter direito à indenização adicional.

Tencionou o legislador evitar a demissão obstativa do direito de reajustes salariais. Criou-se, desse modo, um óbice para a despedida de trabalhadores às vésperas da correção de salários que, em ocorrendo, permite o pagamento de uma indenização adicional de um salário. 

Esse é o fundamento maior para a definição dos diversos casos polêmicos que se apresentam, devendo nortear a tomada de decisão a respeito de uma ou outra questão.  

Assim, poderíamos dizer que um empregado comissionista puro não fará jus à indenização adicional, ainda que dispensado nos trinta dias que antecedem a data-base da categoria, porque o seu salário independe de reajustes da categoria, mas dos preços. Não se configura, portanto, a demissão obstativa. 

Em situações comuns, a indenização adicional será devida no caso de demissão sem justa causa do trabalhador. 

Não será devida a indenização adicional no caso de: a) pedido de demissão (quero dizer, auto demissão); b) demissão por justa causa; c) término de contrato por prazo determinado, inclusive o de experiência; d) falecimento do empregado; e, e) culpa recíproca. 

Outra questão pertinente é a tratada pelo Enunciado de Súmula do TST nº 182, que definiu a projeção do aviso prévio. Dispôs que o tempo do aviso prévio, mesmo indenizado, conta para efeito da indenização adicional. 

Por exemplo: a) empregado cuja categoria tenha data-base em 1º de outubro e que foi demitido em 15 de agosto, com aviso prévio indenizado, faz jus à indenização adicional pois, projetando-se o aviso prévio, a rescisão se daria nos trinta dias antecedentes à data-base (em 13 de setembro). b) utilizando o mesmo exemplo, se o empregado fosse demitido, com aviso prévio indenizado, em 10 de setembro, não faz jus a indenização adicional pois, projetando-se o aviso prévio, a data da rescisão ultrapassaria a data-base, o que garantiria ao empregado o reajuste salarial e não a indenização. 

Prevalece a orientação em caso de o empregado ter trabalhado durante o pré-aviso, computando-se, inclusive, o tempo de redução de 7 (sete) dias. 

Mas gerou forte polêmica o direito à indenização adicional (art. 9º da Lei nº 7.238/84) em conjunto com o reajuste salarial de data-base, em face do Enunciado TST nº 314, como podemos notar: 

Se ocorrer a rescisão contratual no período de 30 dias que anteceda à data-base, observado o Enunciado de nº 182 do TST, o pagamento das verbas rescisórias com o salário já corrigido não afasta o direito à indenização adicional prevista nas Leis nºs. 6.708/79 e 7.238/84. 

O Enunciado transcrito oferece dubiedade na sua conclusão e nos faz chegar ao ponto absurdo de ter que interpretar jurisprudência. Vejam só…

O tema retornou ao TST, definindo-se ser indevido o pagamento da indenização adicional quando o aviso prévio, inclusive indenizado, superar a data-base da categoria. Nessa situação, deve-se conceder única e exclusivamente o reajuste de data-base refletido nas verbas rescisórias, senão vejamos: 

INDENIZAÇÃO ADICIONAL. ENUNCIADOS 182 E 314/TST. Havendo a rescisão contratual ocorrido posteriormente à data-base da categoria, considerando a projeção do aviso prévio, a indenização adicional prevista nas Leis nº 6.708/79 e 7.238/84 é indevida, nos termos dos Enunciados 182 e 314/TST. (TST Ac. SBDI1, E-RR 385.743/1997-6, DJU de 26.10.01, pág. 565).  

Resta claro que a indenização adicional será paga somente se a rescisão contratual ocorrer nos trinta dias que antecedem a data-base da categoria, compreendido o aviso prévio indenizado. 

As decisões que consideram o direito ao pagamento da indenização adicional, cumulada com o reajuste salarial de data-base, devem ser objeto de recurso ao TST, servindo ao conhecimento do apelo a ementa acima transcrita, pois específica à hipótese, nos termos do artigo 896 da CLT 

Por outro lado, se a empresa efetuar o pagamento da indenização, quando, na verdade, deveria ter pago o aumento salarial refletido nas verbas rescisórias, ainda que tenha sido por erro, o fato é que não poderá posteriormente, compensar um pagamento com outro, prevalecendo o direito do trabalhador em receber o reajuste salarial.


Referência  Biográfica

Adilson Sanchez:   Advogado Trabalhista e Previdenciário. Autor do Manual de Rescisão do Contrato de Trabalho (Ed. LTr). Professor da Escola Superior de Advocacia e da FIA/FEA/USP.

A ética do afeto

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* Maria Berenice Dias

Toda mudança traz a sensação de afronta ao que é certo, havendo uma tendência de rejeitar o novo por considerá-lo uma quebra do que sempre foi tido como correto. Assim, tudo o que se opõe ao que está posto parece contrariar o que é verdadeiro e bom. A tendência de repetir o estabelecido decorre não só do medo do desconhecido, mas também da dificuldade de se lidar com o diferente, o incomum. Isso se dá em relação a tudo, mas, nas relações familiares é mais acentuada a resistência ao que desponta como novidade. O primeiro impulso é de rechaço, de reprovação.

Ao longo da história, a família sempre gozou de um conceito sacralizado por ser considerada a base da sociedade. As relações afetivas foram primeiro apreendidas pela religião, que as solenizou como união divina, abençoada pelos céus. Claro que o Estado, com toda a sua onipotência, não poderia dar um tratamento menos intervencionista às relações familiares. Buscando o estabelecimento de padrões de estrita moralidade e objetivando regulamentar a ordem social, transformou a família em uma instituição matrimonializada. Engessando-a no conceito de casamento, impôs de forma autoritária deveres, penalizando comportamentos que comprometessem sua higidez, além de impedir sua dissolução. O modelo tradicional da família sempre foi o patriarcal, sendo prestigiado exclusivamente o vínculo heterossexual.

Sob a justificativa de preservar a sociedade, impõe o Estado, ainda hoje, sanções e penas a quem se afasta do parâmetro legal ou ousa comprometer a estabilidade das relações sociais. A tendência do legislador é de arvorar-se no papel de guardião dos bons costumes, buscando a preservação de uma moral conservadora. É o grande ditador que prescreve como as pessoas devem proceder, impondo condutas afinadas com o moralismo vigente. Limita-se a regulamentar os institutos socialmente aceitáveis e, com isso, acaba refugiando-se em preconceitos. Qualquer agir que se diferencie do parâmetro estabelecido é tido como inexistente por ausência de referendo legal.

Eleito o casamento como modelo de família, foi consagrado como a única modalidade aceitável de convívio. Como forma de impor obediência à lei, por meio de comandos intimidatórios e punitivos e por normas cogentes e imperativas, são estabelecidos paradigmas comportamentais na esperança de gerar posturas alinhados com o perfil moral majoritário. A jurisprudência igualmente não resiste à sedutora arrogância de punir quem vive de maneira diversa do aceito como certo. Na tentativa de desestimular atitudes que se afastem do único parâmetro reconhecido como legítimo, nega juridicidade a quem se rebela e afronta o normatizado. Com isso, acaba-se não só negando direitos, também se deixa de reconhecer a existência de fatos. A desobediência é condenada à invisibilidade. O transgressor é punido com a negativa de inserção no âmbito do jurídico. Tudo que surge à margem do modelo posto como correto não merece regulamentação. Situações reais simplesmente desaparecem.

Apesar das sanções legais, ainda assim, significativo movimento social trouxe profundos reflexos na formação da família. Difícil identificar as causas, mas não se pode negar que a laicização do Estado revolucionou os costumes e especialmente o Direito de Família, provocando sensíveis mudanças em seu próprio conceito.

Sobreveio o pluralismo das entidades familiares, e as novas estruturas de convívio escaparam às normatizações existentes. O distanciamento entre Estado e Igreja culminou na busca de referenciais outros para a mantença das estruturas convencionais. Sem o freio da religião, valores outros precisaram ser prestigiados, e a moral e a ética foram convocadas como formas de adequação do convívio social. Esses os paradigmas que começaram a ser invocados para tentar conter a evolução dos costumes.

A questão pós-moderna essencial passa a ser a ética. Tanto a ética como a moral têm muito em comum: ambas regulam relações humanas mediante normas de conduta impostas aos indivíduos para possibilitar a vida em sociedade. Não é fácil distinguir moral e ética. A moral tem um caráter mais pessoal, exige fidelidade aos próprios pensamentos e convicções íntimas. A ética, como atributo ou qualidade do caráter, representa o estudo dos padrões morais estabelecidos. É reconhecida como a ciência da moral, ou seja, o estudo dos deveres e obrigações do indivíduo e da sociedade.

 A ética é mais ampla do que o Direito e tem uma dimensão maior do que a moral, pois uma gama enorme de regras, estabelecidas apenas como deveres, escapam do universo normativo do Direito. A ética enfeixa em si mesmo o Direito e a moral, servindo-lhes de esteio e sustentação. Apesar de não se confundirem, o Direito se justifica enquanto regulamenta as relações humanas fundamentais ao Estado mediante a imposição de sanções. Já a ética não necessita de qualquer órgão ou poder para lhe dar efetividade. Sua exigibilidade não necessita da coerção estatal. A tendência do Estado é ditar normas jurídicas de modo a impor posturas que obedeçam aos padrões morais e éticos vigorantes na sociedade em determinada época. O Direito não pode ser aético, menos ainda antiético.

Ainda que as normas éticas e morais variem no tempo e no espaço, são elas que dão sustentação ao Direito, emprestando conteúdo de validade à legislação. Assim, o Direito não pode prescindir da ética, sob pena de perder sua razão de ser. Qualquer norma, qualquer decisão que chegue a resultado que se divorcie de uma solução de conteúdo ético não subsiste. Essa preocupação não deve ser só do legislador, mas também os aplicadores do Direito precisam conduzir suas decisões de forma que a solução não se afaste de padrões éticos. É mister que a sentença imponha um agir de boa-fé. Não pode gerar prejuízo a ninguém e, muito menos, chancelar enriquecimento sem causa.

Quer a excessiva rigidez normativa, quer a injustificada omissão da lei em regrar fatos reconhecidos como contrários à moral acabam produzindo um efeito perverso: além de não alcançarem o desiderato pretendido, não impedem que as pessoas conduzam sua vida da forma que melhor lhes agrade. A exclusiva regulamentação dos comportamentos tidos como aceitáveis deixa à margem da jurisdição tudo o que não é cópia do modelo ditado como único. Com isso, acabam sendo incentivadas posturas proibidas por não gerarem qualquer ônus. Olvida-se o legislador de que negar a existência de fatos existentes e não lhes atribuir efeitos só fomenta irresponsabilidades. A aparente ‘punição’, além de não alcançar o intuito inibitório, não dispõe de qualquer conteúdo repressivo, transformando-se em fonte de injustificáveis e indevidos privilégios. Desse modo, a Justiça acaba sendo conivente com o infrator.

Exemplos não faltam. De forma desarrazoada, omite-se a lei em regulamentar as uniões de pessoas do mesmo sexo. Ainda que esta seja uma realidade, tais relacionamentos são alvo da exclusão social pelo simples fato de não atenderem ao preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Como sempre, teme o legislador aprovar qualquer lei voltada a parcelas minoritárias da população, alvo do preconceito e da discriminação. Por conseqüência, a falta de regulamentação faz com que a Justiça simplesmente se omita em reconhecer essas uniões. Nega-lhes reconhecimento, como se a falta de lei pudesse significar ausência de direitos. O preconceito é de tal ordem que a afetividade que dá origem a esses relacionamentos – tanto que são nominados de uniões homoafetivas – simplesmente não é visualizada. No máximo são alocados no Direito Obrigacional, procedendo-se à divisão dos bens amealhados durante a vida em comum. Ao serem reconhecidos como uma sociedade de fato e não como uma sociedade de afeto, são expurgados do universo das relações familiares. Com isso, simplesmente são alijados dos pares homossexuais quaisquer direitos no âmbito do Direito das Famílias e do Direito Sucessório. Essa postura acaba chancelando o enriquecimento sem causa de parentes remotos, deixando ao desabrigo os parceiros que dividiram uma existência marcada pela solidariedade e compartilhamento de vidas. Olvida-se a Justiça que a convivência faz presumir a mútua colaboração e que deixar de reconhecer tais uniões como uma entidade familiar revela uma postura punitiva. O resultado não pode ser mais desastroso: deixa-se de atentar a preceitos éticos em nome da preservação de um falso moralismo.

Mas há mais. Buscando resguardar a concepção de família afinada com o conceito de casamento, tanto a lei como a Justiça rejeitam efeitos às uniões paralelas, negando direito a quem se comporta fora do padrão convencional. Porém, o simples fato de não estarem tais relacionamentos regulamentados não quer dizer que não existam. Vetar a inserção dessas uniões no âmbito da juridicidade é ingenuamente tentar punir quem se afasta da moral conservadora, sendo, como sempre, a condenação de ordem patrimonial.

Negar a existência de vínculos afetivos paralelos, rotulando-os de concubinato adulterino e alijando-os do Direito das Famílias, nada mais significa do que beneficiar quem praticou adultério e infringiu o dogma da monogamia. Não impor qualquer responsabilidade ao varão que mantém relacionamento concomitante ao casamento é premiá-lo, pois, além de não ter que dividir o patrimônio, também não lhe é imposta qualquer outra responsabilidade. Assim, o grande beneficiado é exatamente quem foi infiel. O juiz, assumindo o papel de paladino da justiça, da moral e dos bons costumes, simplesmente recusa qualquer direito a quem ousa ser conivente com o adúltero. Com isso privilegia o homem que assim agiu e pune a mulher que se manteve leal ao parceiro.

Ver, tanto nas uniões homoafetivas como nas relações paralelas, meras sociedades de fato, expurgando-as do âmbito do Direito das Famílias e simulando que a origem não é um elo de afetividade, e sim uma sociedade com fins lucrativos, é uma postura preconceituosa, pois tenta eliminar a origem de tais relacionamentos. Engessar tais vínculos familiares no Direito das Obrigações e impor as regras do Direito Societário destinadas às sociedades irregulares é punir as uniões com a invisibilidade, banindo-as do Direito das Famílias e do Direito Sucessório.

Diante de situações como essas, o juiz não pode ser nem tímido nem preconceituoso e precisa encontrar uma saída que não gere enormes distorções. Não pode arvorar-se de qualidades mágicas, como se tivesse o condão de fazer desaparecer fatos que existem. É chegada a hora de pôr um fim a essa verdadeira alquimia e enlaçar as relações afetivas – todas elas, tenham a conformação que tiverem – no conceito de entidade familiar. A Justiça precisa perder o hábito de fingir que não vê situações que estão diante de seus olhos. A enorme dificuldade de visualizar relações afetivas decorre de puro preconceito. Ainda que tenha havido uma sensível mudança na concepção da família, não basta a inserção do afeto como elemento constitutivo dos vínculos familiares. Além do afeto, é impositivo invocar também a ética, que merece ser prestigiada como elemento estruturante da família. Ao confrontar-se com situações em que o afeto é o traço diferenciador das relações interpessoais, não é possível premiar comportamentos que afrontam o dever de lealdade. A omissão em extrair conseqüências jurídicas por determinada situação não corresponder ao vigente modelo de moralidade não pode chancelar enriquecimento injustificado.

O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos. Ainda que certos relacionamentos sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o magistrado não deve afastar-se do princípio ético que precisa nortear todas as suas decisões. Principalmente em sede de Direito das Famílias, deve estar atento para não substituir princípios éticos por ultrapassados moralismos conservadores já distanciados da realidade social. É preciso privilegiar a ética.

A finalidade da lei não é imobilizar a vida, cristalizá-la, mas permanecer em contato com ela, segui-la em sua evolução e a ela se adaptar. O envelhecimento das leis frente a uma sociedade em rápida transformação e o constante surgimento de novos fenômenos sociais a reclamar a atenção do Direito contribuíram para deslocar ao juiz a solução de problemas e de incertezas que deveriam encontrar uma resposta na sede legislativa.[1] O Direito tem um papel social a cumprir, e o juiz deve dele participar, interpretando as leis não somente segundo seu texto e suas palavras, mas consoante as necessidades sociais que é chamado a reger, segundo as exigências da justiça e da eqüidade que constituem seu fim.[2] E, na ausência da lei, é mister que o juiz invoque os princípios constitucionais, cujo valor se encontra em sua universalidade e racionalidade e depende principalmente de uma condição ética.

Daí a importância vital da jurisprudência, que deve ser. Manter-se o juiz preso à letra da lei significa, à medida que as leis envelhecem, afastar-se cada vez mais das necessidades sociais. Não enxergar fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a ética condiciona todo o Direito, principalmente, o Direito das Famílias. Necessário é recorrer a um valor maior, que é o da prevalência da ética nas relações afetivas.

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[1] Eugênio Fachini Neto. O juiz não é só de Direito…, 401.

[2] Plauto Faraco de Azevedo. Aplicação do direito e contexto social, 149.

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, onde é  Presidente da 7ª Câm. Cível, Membro efetiva do Órgão Especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

Reflexos da Emenda Constitucional nº 45/04 no Direito do Trabalho

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* Eraldo Teixeira Ribeiro

Tratamos a seguir dos reflexos decorrente da Emenda Constitucional nº 45/04, de 08-12-04, denominada como a reforma do judiciário, dando ênfase ao Direito e Processo do Trabalho.

Duração razoável de tramitação dos feitos

No art. 5o, LXXVIII, da CF, determinou-se que os feitos judiciais e/ou administrativos, tenham duração razoável, prestigiando, assim, o princípio da celeridade processual, sempre presente às causas trabalhistas.

Quiçá os prazos processuais possam ser doravante observados pelas partes e serventuários do judiciário. A iniciativa constitucional, extreme de dúvida, assevera o questionamento sobre a indesejável morosidade do judiciário na prestação de seus serviços.

Publicidade de atos judiciais

Reiterou-se que as decisões (considerar, no âmbito do judiciário trabalhista, os despachos, as decisões e as sentenças) devem ser públicos, prestigiando, porém, o interesse púbico se o sigilo recomendar (Art. 93, IX, da CF).

Imediata distribuição dos feitos em segunda instância

Assegurou o art. 93, XV, da CF, a imediata distribuição dos feitos em grau de recurso (segunda instância). A medida procura eliminar a morosidade na distribuição e sorteio de turmas e câmaras nos juízo de segunda instância.

Quarentena dos magistrados

Assegura o art. 95, V, da CF, a chamada “quarentena”, que significa que o magistrado não poderá exercer a advocacia antes de decorridos três anos de sua aposentadoria ou exoneração.

Efeito vinculante nas ações declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade

Tema da mais relevância na esfera judicial, diz respeito ao efeito vinculante das decisões (entender como acórdão) editados pelo STF nas ações declaratórias de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade.

Com efeito, estabelece o art. 102, § 2o, da CF, que as decisões de mérito proferidas nessas ações, produzirão efeito vinculante, relativamente em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e, também, na esfera administrativa direta e indireta, federal, estadual e municipal.

Portanto, os julgados nas ações de constitucionalidade ou inconstitucionalidade (ADCon e ADIn), constituem precedentes que devem ser observados na esfera judicial inferior e, também, na administrativa.

Por certo, que doravante haverá considerável diminuição de recursos na instância constitucional. Portanto, é necessário mais que nunca, o acompanhamento dos processos em tramitação no STF, pois haverá vinculação para os feitos em primeira e segunda instâncias.

Recurso extraordinário

O art. 102, § 3o, da CF impõe ao interessado no recurso extraordinário a demonstração da repercussão geral das questões constitucionais, segundo os permissivos legais de admissibilidade.

O Tribunal só pode recusar a análise do recurso extraordinário (art. 102, CF) pelo voto de dois terços de seus membros.

Instalação de Varas do Trabalho

A criação de Varas do Trabalho dependerá de lei ordinária, sendo que nas comarcas onde não tiver sido instalada, poderá o Juiz de Direito apreciar a matéria trabalhista submetida a julgamento. A interposição de recurso, nesse caso, será de competência do TRT a que pertencer a jurisdição (art. 112, CF).

Competência da Justiça do Trabalho

A competência material da Justiça do Trabalho foi ampliada com a nova redação do art. 114, da CF, estendendo a jurisdição trabalhista para outros tipos de conflitos, além daqueles entre trabalhadores e empregadores.

Sedimentou-se o entendimento de que as ações que envolvam o exercício do direito de greve devem ser julgadas pela Justiça do Trabalho (art. 114, II, CF). Novidade encontramos na redação do inciso III, que assegura que os litígios sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores, são de competência da Justiça do Trabalho.

Sacramentou-se que mandado de segurança e habeas corpus, relativos à jurisdição trabalhista também se sujeitam à Justiça do Trabalho, sendo novidade a menção do habeas data.

A competência é da Justiça do Trabalho quando se tratar de conflito de jurisdição trabalhista (art. 114, V, CF). As ações relativas à indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho, que antes comportavam entendimentos dúbios, agora passam a ser julgadas no âmbito trabalhista, em razão do art. 114, VI, CF.

As penalidades impostas aos empregadores, pelos órgãos fiscalizadores, agora passam a ser julgados no âmbito trabalhista (art. 114, VII, CF), assim como a execução das contribuições sociais (art. 114, VIII, CF).

Outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, poderão ser julgadas pela Justiça do Trabalho, em razão da edição de lei ordinária disciplinando o inciso IX, do art. 114, CF.

Arbitragem

A solução de conflito de natureza trabalhista, por meio de arbitragem, é renovada no novo texto constitucional (art. 114, § 2o, CF) e, havendo recusa, podem as partes ajuizar dissídio coletivo.

Greve

Ocorrendo greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão ao interesse público, poderá o Ministério Público do Trabalho ajuizar dissídio coletivo (art. 114, § 3o, CF).

Composição dos Tribunais Regionais do Trabalho

A composição dos Tribunais Regionais do Trabalho passa a ser, no mínimo, de sete membros selecionados, quando possível, na própria região, entre brasileiros com idade compreendida entre trinta e sessenta e cinco anos (art. 115, CF).

Persiste a garantia constitucional de um quinto de vagas destinadas aos advogados e membros do Ministério Público do Trabalho com mais de dez anos de atividade (art. 115, I, CF).

Jurisdição itinerante

Novidade no âmbito da Justiça do Trabalho é a chamada justiça itinerante, que deve consistir da realização de audiência e de mais atos jurisdicionais fora da sede do juízo, a exemplo do que ocorre no bem sucedido juizado especial cível (art. 115, § 1o, CF).

Para tanto, poderá o judiciário se valer de equipamentos públicos e comunitários, que de uma forma muito particular, contribuirá em muito com a presença do Estado em lugarejos afastados da sede do juízo.

Persistindo o jus postulandi no âmbito da Justiça do Trabalho (cf. art. 791, CLT), aliando-se, agora, à justiça itinerante, nos parece sábia a iniciativa, na medida em que os mais diversos conflitos poderão ser solucionados no próprio local, quer através da conciliação, quer por meio da regular instrução e julgamento dos feitos submetidos à apreciação do judiciário trabalhista.

Câmaras regionais da Justiça do Trabalho

Outra novidade introduzida pela EC 45/04, diz respeito à possibilidade dos Tribunais Regionais do Trabalho instituírem as chamadas câmaras regionais, uma espécie de descentralização do Poder Judiciário.

De fato, o art. 115, § 2o, da CF, introduz essa permissão aos TRTs de instituírem as câmaras regionais, tal como se pode exemplificar com os foros regionais da Justiça Comum Estadual.

Súmula vinculante do STF

Um dos temas mais debatidos pela sociedade, diz respeito ao efeito vinculante das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Com a redação do art. 103-A, CF, estabelece que dois terços dos integrantes do STF poderão aprovar súmula vinculante em relação aos órgãos do judiciário e da administração pública direta e indireta, quer na esfera federal, estadual e municipal.

As súmulas serão editadas para encerrar discussão sobre a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia entre os órgãos julgadores ou entre esses e a administração pública, que acarrete ou venha a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questões idênticas (art. 103-A, § 1o, CF).

A provocação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante, poderá ser provocada por todos aqueles que têm legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (art. 103-A, § 2o, CF).

Quando não observadas as orientações expostas nas súmulas vinculantes do STF, caberá ao interessado apresentar reclamação ao próprio STF que, julgando procedente o pedido, determinará a anulação do ato administrativo ou judicial (art. 103-A, § 3o, CF).

Sobre a relevância do tema (súmula vinculante do STF), resolvemos inserir na quarta edição, todas as posições sumuladas pelo Pretório Excelso acerca de matéria trabalhista.

O art. 8o, da EC 45/04, estabelece, por fim, que as atuais súmulas do Supremo Tribunal Federal somente produzirão efeito vinculante após sua confirmação por dois terços de seus integrantes e publicação na imprensa oficial. Portanto, haverá necessidade da aprovação de dois terços dos membros do STF e a sua efetiva publicação, para que as atuais súmulas possam produzir o efeito desejado, ou seja, o vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da administração pública.

Conselho Nacional de Justiça

Foi instituído o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, CF), cuja composição de seus 15 membros é a seguinte:

a)    um Ministro do STF;

b)    um Ministro do STJ;

c)     um Ministro do TST;

d)     um Desembargador de Tribunal de Justiça;

e)     um Juiz Estadual;

f)       um Juiz de Tribunal Regional Federal;

g)      um Juiz Federal;

h)      um Juiz de TRT;

i)        um Juiz do Trabalho;

j)        um membro do Ministério Público da União;

k)       um membro do Ministério Público Estadual;

l)        dois advogados; e

m)      dois cidadãos.

A competência do CNJ é a seguinte:

a)     zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;

b)      zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas;

c)       receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;

d)      rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de membros do Ministério Público da União ou dos Estados julgados há menos de um ano;

e)      elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias sobre a situação do Ministério Público no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar a mensagem prevista no art. 84, XI.

 Composição do TST

O Tribunal Superior do Trabalho passa a contar com 27 (vinte e sete) Ministros, escolhidos dentre brasileiros com idade entre trinta e cinco e sessenta e cinco anos de idade, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 111-A, CF), inclusive quanto aos Ministros integrantes do TST oriundos do quinto constitucional (metade constituídos por advogados e a outra metade por representantes do Ministério Público Trabalho, ambos com mais de dez anos de atividades).

O TST já contava, antes do advento da EC 24/99, com 27 (vinte e sete) Ministros, dentre os quais 10 (dez) eram oriundos da representação paritária (chamados Juízes Classistas). Esse número havia sido reduzido para, apenas, 17 (dezessete) Ministros com o advento da EC 24/99, agora estabelecido o número de 27 (vinte e sete).

Deverá funcionar junto ao TST, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, uma novidade que deve contribuir para uma melhoria da prestação jurisdicional (art. 111-A, § 2o, I, CF).

Também foi criado o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (art. 111-A, § 2o, II, CF), cuja atribuição primordial será a supervisão administrativa, orçamentária, financeira e patrimonial, como órgão central do sistema, sendo que as decisões terão efeito vinculante. Esse Conselho deverá ser instalado no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias.

Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas

Atribui-se à legislação infraconstitucional a disciplina sobre o Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (art. 3o, da EC 45/04), consistente de valores arrecadados com a imposição das multas trabalhistas e administrativas oriundas dos órgãos fiscalizadores do trabalho.


Referência  Biográfica

Eraldo Teixeira Ribeiro – Advogado militante; Professor e Autor de obras na área trabalhista

Dosimetria da Pena: História e Direito Comparado

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* Josemar Dias Cerqueira

As notas a seguir voltam-se para a pena privativa de liberdade, espécie mais conhecida das sanções.

A história demonstra que a custódia de uma pessoa buscava evitar a sua fuga até a definição sobre sua situação. A prisão, portanto, era uma visão canhestra da prisão preventiva atual. A pena final aplicável aos delitos era basicamente aquela de cunho corporal, tal como a morte, os castigos e os suplícios. A reclusão do indivíduo em estabelecimentos surge como tipo de sanção com o advento do poder religioso na idade média, através da imposição a determinados religiosos de seu recolhimento a celas monásticas, visando ao cumprimento de penitências, originando as terminologias atuais de celas e penitenciárias.

Os primeiros grupos humanos possuíam regras proibitivas relacionadas aos preceitos religiosos. O desenvolvimento dos grupos sociais, contudo, levou ao reconhecimento de delitos não vinculados à religiosidade, originando os conjuntos rudimentares de codificação de sanções, ainda com permissão da vingança privada. Surgem os delitos contra o organismo estatal e sua sobrevivência, bem como aqueles relacionados ao dia-a-dia da população.

A regra de talião foi o mais notável destas normas antigas, originada da expressão latina que determina que a sanção é proporcional ao dano causado. A disciplina inicial atrelava a pena ao suplício do criminoso, no órgão corporal usado para o crime:

“cortava-se as mãos do ladrão, a língua do caluniador, marcava-se o rosto da adúltera, castrava-se o estuprador.” PIERANGELLI , José Henrique. Das Penas: Tempos Primitivos e legislações antigas. p. 6

Ainda que se verifique o absurdo nestes primeiros momentos, não se pode negar o início do sentido de proporcionalidade, deixando de lado a arbitrariedade pura e simples até então reinante: ao se vincular o delito à sanção, evitava-se a liberalidade da punição a ser aplicada ao crime.

Um exemplo pertinente da presença histórica da regra de talião é o denominado código de Hamurabi, que tanto influenciou o direito asiático e o direito hebreu, com um proêmio, que, por incrível que pareça, poderia figurar em muitos regramentos modernos:

[…]para implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar[…]. LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito,  p. 2

Outra legislação antiga curiosa é o denominado código de Manu, criado pela casta indiana dos Brâmanes que os colocava acima até do rei. Como o objetivo maior da classe dominante era evitar a miscigenação entre as castas, o adultério era severamente castigado, superando a realidade das outras legislações de então. Para se ter uma idéia, havia a previsão de banimento para quem seduzisse a mulher alheia.

Da regra do talião surge o sistema de composição, de destaque nos povos germânicos, introduzido aqui e ali ao longo da história, visando a compensação pelos danos causados e evitando-se a aplicação da punição, sem falar no aspecto financeiro da sanção.

Com o advento da civilização romana surge na lei das doze tábuas o prenúncio de limites no método de fixação das penas. Embora o magistrado possuísse grande arbítrio para determinar a pena, que variava desde a simples multa até a morte, inclusive por precipitação de montanhas, algumas sanções dependiam de confirmação pelos comícios das centúrias.

A limitação ao poder do magistrado ganhou força no desenvolvimento das sociedades. Na carta magna de 1215, por exemplo, já se menciona o princípio da proporcionalidade na aplicação da multa, que será reforçado e ampliado na carta de Henrique III de 1225:

Carta de Henrique III. 14 – Um homem livre só será punido por um pequeno delito proporcionalmente a este: por um grande delito só o será proporcionalmente a gravidade do mesmo, mas sem perder o seu feudo(salvo consentimento seu). LIMA, João Batista de Souza, ob cit, p. 80.

Inúmeras são as penas curiosas verificadas nas civilizações antigas.  Os germanos introduziram, por exemplo, uma pena singular, também conhecida entre os gregos, indianos e outras civilizações: a perda da paz. Baseada no sistema de Talião, quem causava a perda da paz alheia, perderia a própria paz, sendo aplicada quando o delito atingia a vítima de tal forma que comprometia a harmonia de suas relações com a família, com os deuses ou com o próprio agrupamento social e o criminoso não podia arcar com a composição. O  delinqüente perdia, então, a própria paz, o que significava a ausência de proteção jurídica do grupo social. Logo, já que o criminoso não era protegido pelo grupo em que estava inserido, nem mesmo por suas leis, poderia ser agredido ou morto por qualquer pessoa, bem como perder a posse do seu patrimônio, que passava a ser coisa de ninguém. Além desta, a história relaciona inúmeras penas bizarras: ser marcado a ferro, abraçar coluna incandescente, cozimento, haraquiri (abertura do próprio abdômen), crucificação, destruição da residência, jogado na chamas ou no rio, emparedamento, ser costurado e queimado no interior de um boi,  ser sepultado vivo, cegueira por azeite quente, privação de sepultura e pisoteio por animais.

No lento evoluir da questão da dosimetria da pena, pode-se perceber que lentamente foram retiradas do julgador as amarras que impediam a individualização da pena, a ser entendida, conforme Anabela Miranda, como sendo a "adequação da punição não só à personalidade do condenado, como também a todos os aspectos significativos que o crime apresenta, quer no plano subjectivo quer objectivo"(RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. p 54).

De uma pena sem regras, o desenvolvimento da questão nos legou uma preocupação relevante com o tema, desde sua razão de existir, passando pelo agente aplicador e suas limitações: “Que la inserción del juez entre las partes del delito indica precisamente el tránsito de la pena privada a la pena pública.”(CARNELUTTI, Francesco. El Problema de la pena, p 69).

A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Três foram as ordenações que vigoraram no Brasil até o advento do primeiro Código Penal no império: Alfonsinas (1500), Manuelinas (1514) e Filipinas (1603). Estes regramentos mantiveram o mesmo padrão da idade média, recheados de penas cruéis, castigos corporais e completa onipresença do julgador sobre o condenado, tendo a privação de liberdade o mesmo caráter de outrora, ou  seja, uma prisão cautelar como garantia para a futura pena, a ser decidida pelo governante ou quem este instituía para tanto.

Inobstante a existência, estas normas serviam apenas como referência, pois a colônia, estando distante do controle do rei, valia-se de seus próprios ocupantes para aplicação do que se denominava justiça. Os governantes indicados pelo monarca exerciam amplos poderes na gestão e distribuição das leis.

O Código Penal do império de 1830 efetuou uma leve redução nas penas cruéis, na esteira dos movimentos iluministas, mantendo, porém, muitas outras de igual característica. Estavam no código, por exemplo, as penas de morte, galés, banimento, degredo e açoites. Este código introduziu no Brasil, através do art. 63, o sistema de margens penais (pena mínima e pena máxima) vigorando para a dosimetria os graus preestabelecidos: mínimo, médio e máximo.

O Código Penal da República (1890) desapareceu com as penas cruéis e incluiu os graus sub-médio e sub-máximo. Prosseguiu, portanto, a tentativa de positivação na fixação da medida da pena, iniciada no código do império.

O aplicador da lei deveria obedecer às regras que lhe entregavam a pena a ser aplicada: valor mínimo quando não existiam agravantes mais existiam atenuantes; valor máximo quando existiam agravantes mais não existiam atenuantes; média aritmética entre mínimo e máximo quando não existiam nem agravantes nem atenuantes ou mesmo se esses se compensavam; média aritmética entre o valor médio e o valor máximo, denominado de sub-máximo, quando existiam agravantes e atenuantes, com prevalência das primeiras; média aritmética entre o valor mínimo e o valor médio, denominado de sub-médio, quando as atenuantes prevaleciam sobre as agravantes.

Além do desprezo completo pela particularidade do caso e do infrator, o método utilizado levava a penas absurdas, de até frações de horas, retirando do magistrado qualquer influência na adequação da pena:

Não era o juiz que graduava a pena; também não era o criminoso que servia de objeto a essa graduação; a bem dizer nem era o crime, in concreto que oferecia as condições dessas dosagens; a soberania do direito penal, na sua adequação prática, que é arte da aplicação da pena, era exercida, firme e hieraticamente, por esta deusa da medida: a aritmética.(VERGARA, Pedro. Das penas principais e sua aplicação. RJ. Livraria Boffoni editora,1948, páginas 249 apud  BOSHI, José Antonio Paganella, ob cit, p 171)

O Código Penal da República foi substituído pela Consolidação das leis penais de Vicente Piragibe de 1932, cujo artigo 62 repetiu o mesmo texto do artigo 62 do  Código Penal de 1890. A consolidação, entretanto, foi logo substituída pelo Código Penal de 1940, que aplicou uma individualização da pena em grau mais elevado, já bem próxima da redação atual do art. 59 do Código Penal:

Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau da culpa, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime. (Art. 42 do Código Penal de 1940. PIERANGELLI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil, p 446).

Na fórmula atual para delimitação da pena privativa de liberdade, é de se destacar a terminologia pena-base, prevista no art. 59 do Código Penal. A nomenclatura pena-base foi introduzida em nossa legislação pelo Código Penal de 1969, que sequer entrou em vigência, embora a denominação criada perdure até hoje:

“A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quantidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento ou a diminuição.(pena base).” Art. 63 do Código Penal de 1969.

Apenas para registro, a definição vernacular original é “pena base”(sem hífen). Consagrou-se, contudo, a adoção do nome composto.

O DIREITO COMPARADO

Com o desenvolvimento das escolas penais, pode-se notar a existência de normas específicas para fixar os critérios gerais de dosimetria da pena. Ainda que existam pequenas diferenças entre os países, nota-se um núcleo comum, voltado para o máximo de individualização possível, entremeado aqui e acolá com as peculiaridades dos regimes de governo e com a tradição de cada nação. Destaco a presença do Código Penal Padrão para a América Latina, embrião de futura legislação comum para os países do continente.

– ESPANHA

Artículo 66. 1. En la aplicación de la pena, tratándose de delitos dolosos, los jueces o tribunales observarán, según haya o no circunstancias atenuantes o agravantes, las siguientes reglas: 1ª Cuando concurra sólo una circunstancia atenuante, aplicarán la pena en la mitad inferior de la que fije la Ley para el delito. 2ª Cuando concurran dos o más circunstancias atenuantes, o una o varias muy cualificadas, y no concurra agravante alguna, aplicarán la pena inferior en uno o dos grados a la establecida por la Ley, atendidos el número y la entidad de dichas circunstancias atenuantes. 3ª Cuando concurra sólo una o dos circunstancias agravantes, aplicarán la pena en la mitad superior de la que fije la Ley para el delito. 4ª Cuando concurran más de dos circunstancias agravantes y no concurra atenuante alguna, podrán aplicar la pena superior en grado a la establecida por la Ley, en su mitad inferior. 5ª Cuando concurra la circunstancia agravante de reincidencia con la cualificación de que el culpable al delinquir hubiera sido condenado ejecutoriamente, al menos, por tres delitos comprendidos en el mismo título de este Código, siempre que sean de la misma naturaleza, podrán aplicar la pena superior en grado a la prevista por la Ley para el delito de que se trate, teniendo en cuenta las condenas precedentes, así como la gravedad del nuevo delito cometido(…).

– ITÁLIA

Art. 133 – Gravità del reato: valutazione agli effetti della pena

Nell’esercizio del potere discrezionale indicato nell’articolo precedente, il giudice deve tenere conto della gravità del reato, desunta: 1) dalla natura, dalla specie, dai mezzi, dall’oggetto, dal tempo, dal luogo e da ogni altra  modalità dell’azione; 2) dalla gravità del danno o del pericolo cagionato alla persona offesa dal reato; 3) dalla intensità del dolo o dal grado della colpa.

Il giudice deve tener conto, altresì, della capacità a delinquere del colpevole, desunta: 1) dai motivi a delinquere e dal carattere del reo; 2) dai precedenti penali e giudiziari e, in genere, dalla condotta e dalla vita del reo, antecedenti al reato; 3) dalla condotta contemporanea o susseguente al reato; 4) delle condizioni di vita individuale, familiare e sociale del reo.

– PORTUGAL

Art. 71º Determinação da medida da pena (…) 2 Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

– ARGENTINA

Art. 40.- En las penas divisibles por razón de tiempo o de cantidad, los tribunales fijarán la condenación de acuerdo con las circunstancias atenuantes o agravantes particulares a cada caso y de conformidad a las reglas del artículo siguiente.

Art. 41.- A los efectos del artículo anterior, se tendrá en cuenta: 1º. la naturaleza de la acción y de los medios empleados para ejecutarla y la extensión del daño y del peligro causados; 2º. la edad, la educación, las costumbres y la conducta precedente del sujeto, la calidad de los motivos que lo determinaron a delinquir, especialmente la miseria o la dificultad de ganarse el sustento propio necesario y el de los suyos, la participación que haya tomado en el hecho, las reincidencias en que hubiera incurrido y los demás antecedentes y condiciones personales, así como los vínculos personales, la calidad de las personas y las circunstancias de tiempo, lugar, modo y ocasión que demuestren su mayor o menor peligrosidad.

– BOLÍVIA

Art. 37°.- (FIJACIÓN DE LA PENA). Compete al juez, atendiendo la personalidad del autor, la mayor o menor gravedad del hecho, las circunstancias y las consecuencias del delito: 1. Tomar conocimiento directo del sujeto, de la víctima y de las circunstancias del hecho, en la medida requerida para cada caso.

Art. 38°.- (CIRCUNSTANCIAS)

1. Para apreciar la personalidad del autor, se tomará principalmente en cuenta:

a) La edad, la educación, las costumbres y la conducta precedente y posterior del sujeto, los móviles que lo impulsaron a delinquir y su situación económica y social.  b) Las condiciones especiales en que se encontraba en el momento de la ejecución del delito y los demás antecedentes y condiciones personales, así como sus vínculos de parentesco, de amistad o nacidos de otras relaciones, la calidad de las personas ofendidas y otras circunstancias de índole subjetiva. Se tendrá en cuenta asimismo: la premeditación, el motivo bajo antisocial, la alevosía y el ensañamiento. 2. Para apreciar la gravedad del hecho, se tendrá en cuenta: la naturaleza de la acción, de los medios empleados, la extensión del daño causado y del peligro corrido.

– CUBA

ARTÍCULO 47.1. El tribunal fija la medida de la sanción, dentro de los límites establecidos por la ley, guiándose por la conciencia jurídica socialista y teniendo en cuenta, especialmente, el grado de peligro social del hecho, las circunstancias concurrentes en el mismo, tanto atenuantes como agravantes, y los móviles del inculpado, así como sus antecedentes, sus características individuales, su comportamiento con posterioridad a la ejecución del delito y sus posibilidades de enmienda.

– MACAU

Artigo 65.º (Determinação da medida da pena)(…) 2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

– Standard Penal Code for Latin America

Article 73 – The court will fix the sentence within the limits provided for each crime, taking into account the following circumstances unless the law specifically considers such circumstances as elements of the crime or modifiers of liability: 1. Objective and subjective aspects of the criminal act. 2. The extent of the harm or danger caused. 3. The manner, time and place of the act. 4. The predominant motivations of the perpetrator. 5. Other personal factors of the perpetrator or of the victim, in the measure that they influenced the commission of the crime. 6. The conduct observed by the perpetrator after the crime took place.

Inobstante os avanços, a legislação espanhola ainda apresenta uma certa tentativa de pré-fixação da pena envolvendo critérios objetivos, guardando certa semelhança com o que se observava em nossos códigos até 1940.

Algumas legislações introduzem elementos não previstos expressamente em nosso art. 59.  Estão previstas, por exemplo, a condição econômica do agente (Portugal), seu comportamento posterior ao ato(Itália), idade e educação(Bolívia), grau de violação dos deveres impostos ao agente(Macau), além da previsão ampla de observar qualquer situação que tenha influenciado no crime(Código Penal padrão para a América Latina).

Por outro lado a premissa da definição da pena no sistema cubano passa pela “conciencia jurídica socialista”.

Não se pode deixar de destacar, contudo, a consideração, por algumas legislações, do grau de comprometimento do Estado na formação do ato criminoso, enquadrando-se, mutatis mutandi, na co-culpabilidade estatal defendida por muitos doutrinadores (RIVACOBA Y RIVACOBA, Manuel de. La dosimetria em la determinación legal. Revista de Derecho Penal y Criminología. No 4. 1994. p. 747/756).:

A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. (art. 71, 2, (f) do Código Penal de Portugal)

[…]especialmente la miseria o la dificultad de ganarse el sustento propio necesario y el de los suyos, la participación que haya tomado en el hecho,[…](art. 41,2º do Código Penal da Argentina)

A disparidade entre os regramentos, ainda que preservando a preocupação com a individualização em sua maioria, sinaliza que a fixação da pena de forma correta é crucial nos ordenamentos.

A questão da dosimetria da pena, portanto,  preocupou no passado, atormenta o presente e certamente estará no centro das discussões jurídicas do futuro, no Brasil e nos demais Países.

 


Referência  Biográfica

Josemar Dias Cerqueira:  Juiz de Direito em Brejões (BA).

Quais Súmulas?

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*Luiz Alberto de Vargas e Ricardo Carvalho Fraga

1.Sentença e Acórdão

            Uma sentença, proferida por um juiz de primeiro grau, e uma decisão, de um tribunal, certamente, tem finalidades sociais bem distintas, as quais ainda não estão perfeitamente delimitadas entre nós.[1]  As conseqüências processuais de tais indefinições atingem o próprio direito de recorrer da parte, sendo mesmo fator de insegurança jurídica.

            A possibilidade de revisão das decisões judiciais é uma das características mais relevantes de nosso sistema processual. Tal ponto é bem ressaltado pela doutrina, ao justificar a existência do duplo grau de jurisdição como uma garantia do devido processo legal, evitando a possibilidade de abuso de poder por parte do juiz.[2] Ainda que exista controvérsia quanto a ser ou não tal garantia expressamente prevista na Constituição Federal, em geral a lei assegura a possibilidade de recurso contra toda decisão judicial, constituindo exceções decisões irrecorríveis.

             A segurança jurídica justifica, assim, a situação, a princípio paradoxal, de que se exigir duas decisões de um mesmo Poder, que podem ser contraditórias ou redundantes. Conforme Manoel Antônio Teixeira Filho, é a “consciência da falibilidade” do julgador, inerente à natureza humana, “a causa essencial e remota de haver-se permitido – e em alguns casos tornado obrigatório – o reexame dos pronunciamentos judiciais”.[3]  

  2. A  motivação das decisões judiciais  

            Destaca-se sobremaneira o papel que a instância revisora possui no controle de que as decisões judiciais efetivamente cumpram sua função social, anulando as sentenças que importem em negativa da prestação jurisdicional ou da tutela judicial efetiva, como no caso das decisões não fundamentadas ou que não atendam satisfatoriamente a matéria versada nos autos.  

            A exigência de fundamentação da sentença, portanto, tem um caráter instrumental, de clarificação das razões de decidir, a serviço da melhor prestação jurisdicional. Tal mister, destinado essencialmente à sociedade, não se confunde com um suposto dever de atender todos os reclamos – mesmo os pouco razoáveis – das partes, pois a motivação decisional serve ao processo – e não aos caprichos particulares.  

            Mais recentemente, a motivação de uma decisão judicial foi melhor estudada. Maria Thereza Gonçalves Pero salienta que a explicitação dos motivos tem funções “extraprocessual” e “endoprocessual”.[4] Quanto a esta segunda, serve para viabilizar/facilitar a utilização dos recursos pelas partes, ainda inconformadas. Quanto à primeira, serve para a verificação/confirmação da independência judicial. [5]  

            Na prática, entretanto, a pretexto de se assegurar a tutela judicial efetiva, não são poucos os recursos ou embargos de declaração que, na realidade, não buscam a explicitação da fundamentação decisional, mas apenas representam a inconformidade da parte com uma sentença desfavorável. Tais manifestações apenas expressam uma evidente intolerância intelectual, como se a única racionalidade possível a ser acolhida pelo julgamento fosse aquela que coincide com as teses expostas pela parte recorrente. Confunde-se negativa de prestação jurisdicional com o não- acolhimento das alegações da parte. 

            Infelizmente, muitos acórdãos terminam por incentivar o comportamento intolerante da parte, já que, inexplicavelmente, passam a exigir do julgador de primeiro grau a manifestação explícita a respeito de TODOS os argumentos apresentados pelas partes, mesmo que claramente incongruentes com a  razão de decidir adotada pela sentença. 

            Ao acolher a intolerância intelectual da parte vencida, o acórdão, em verdade, talvez esteja expressando uma ânsia não confessada do julgador do segundo grau em “refazer” integralmente o decidido, como que nulificando o trabalho da instância revisada. 

            Como já se disse em outro trabalho, “a revisão de uma sentença parte, ou deve partir, de um trabalho já realizado pela primeira instância, que enfrentou o exame da prova, delineou as questões jurídicas em debate, encontrou uma razão de decidir e se posicionou sobre os valores em conflito. O acórdão não é, ou não deveria ser, o refazimento de tal trabalho, mas exatamente a revisão de alguns pontos de um trabalho jurídico já existente”[6].  

            Eduardo Couture lembra que a segunda instância “é somente um meio de controle”, ou seja, “em nosso direito, esta solução é apoiada por um conjunto de circunstâncias especiais que tornam muito clara a tese de que a segunda instância não supõe uma renovação do debate e da prova”. [7] Hoje, na América Latina, apenas na República Dominicana, como regra, se produz, inclusive, nova instrução na segunda instância.  

          A finalidade da exigência de motivação das decisões judiciais não é “convencer” as partes ou a outros, profissionais do Direito ou leigos.[8] A exposição exaustiva de todos os argumentos, além de impossível, pode ter pequena contribuição, conforme o caso. A finalidade, prende-se, como já se tem exposto, nestas linhas, ao necessário desenvolvimento do processo e ao controle da atuação do julgador.  

            No Brasil, o mesmo estudo mencionado antes, da professora em São Paulo, Maria Thereza Gonçalves Pero, aponta a “falta de suficientes elementos normativos” para que se perceba toda esta questão e inclusive “qual seria o conteúdo mínimo necessário para que se considere uma sentença suficientemente motivada”.[9] 

            O comportamento da parte descontente com a decisão recorrida necessita ser canalizado de modo a permitir o prosseguimento do debate. Tal exigência, de qualquer modo, não pode ser tão exagerada. Não se pode imaginar, tampouco, que o trabalho de um novo julgamento seja tão simples. As falas anteriores, do julgamento recorrido e das partes desde o início do processo, podem ter pontos de intersecção, nítidos ou não. Dois entendimentos do Tribunal Superior do Trabalho revelam a delicadeza do tema. Trata-se das OJ 90 SDI II do TST [10] e OJ 340 SDI I do TST [11]. As datas recentes de suas edições ainda não permitem que se vislumbre nitidamente o alcance que lhes será dado.  

             Por certo, o tema apresenta grandes dificuldades, exatamente pela maleabilidade do conceito de “suficiente motivação”. Porém, deve-se ter presente que a suficiência em questão atende a critérios objetivos, em prol do esclarecimento processual da verdade – e não em função de critérios subjetivos dos litigantes.

3.  Segurança jurídica x celeridade processual  

          A discussão da relação sentença-acórdão também tem um vertente na acesa polêmica entre a segurança jurídica e a celeridade processual.  

            Tal polêmica ganha, nos dias de hoje, novos contornos, na esteira dos debates do projeto de Reforma do Judiciário, em discussão no Congresso Nacional. Não são poucas as vozes que, com razão,  apontam o excesso de recursos como uma das causas da morosidade do Poder Judiciário, preconizando uma valorização das decisões de instâncias inferiores, impondo-se limites mais estritos ao poder de recorrer das partes.  [12]  

            É curioso e preocupante constatar-se que os órgãos públicos são, de longe, os litigantes mais freqüentes nos tribunais superiores. Seus recursos são interpostos a exaustão. Talvez, bem mais recentemente, já exista alguma mínima reversão deste quadro. [13]  

            Paralelamente a este debate e, muitas vezes, confundindo-se com este, está a antiga polêmica a respeito da conveniência de uma uniformização jurisprudencial relativamente a questões amplamente já debatidas em sucessivos processos, tendo se consolidado uma posição predominante, pelo menos nas instâncias superiores. Tradicionalmente em tais casos, os Tribunais têm adotado as Súmulas de Jurisprudência, sinalizando à sociedade o provável resultado de demandas repetitivas, algo que, sem dúvida, contribui para o aumento da segurança jurídica.[14] 

            Sempre se questiona até que ponto as Súmulas de Jurisprudência são um fator de inibição da criatividade jurisprudencial, já que induzem ao juiz de primeiro grau à (in)cômoda posição de meramente chancelar a jurisprudência dominante, abdicando de apreciar aspectos novos ou apresentar argumentos distintos, que, eventualmente, levariam a uma revisão do próprio entendimento consolidado. Ademais, há a delicada questão a respeito de se a independência judicial ficaria ou não comprometida pela excessiva proliferação de súmulas jurisprudenciais. [15]  

4. Acórdão e Súmula  

              Um Acórdão e uma “Súmula de Jurisprudência” também tem finalidades diversas. 

            A edição de uma Súmula deveria ser vista como algo positivo, na medida em que representasse a unificação da jurisprudência. Do ponto  de vista social, poderia significar algum aprendizado coletivo. Seria uma manifestação dos profissionais do Direito, sinalizando para a sociedade como um todo.  

            Entretanto, esta visão positiva das funções sociais desempenhadas pelas súmulas de jurisprudência somente se mantém quando esta não se encerra em um formulismo  esterilizador que impeça novos avanços, próprios da evolução  da vida social. Esta é bem mais complexa do que podem expressar as fórmulas jurídicas. Nem tudo pode/deve transformar-se em súmula, não apenas porque cada caso individual merece ser apreciado pelo Poder Judiciário em sua singularidade, mas porque, “no mundo social, as repetições são mais raras” do que nas ciências naturais. [16]  

           Com alguma frequência, traz-se à baila o exemplo dos Estados Unidos como paradigma de aplicação de precedentes jurisprudenciais.      Sabe-se, no entanto, que a situação é bem outra, ao contrário do que se afirma certas vezes. Os “precedentes” utilizados naquele País têm sido pouco estudados entre nós. Francisco Rossal de Araújo lembrou a diferença entre o mérito, “holding”, e as motivações, “dicta”. Apenas os primeiros têm maior relevância para o julgamento dos casos posteriores.[17]  

            Ronald Dworkin lembra que os juristas britânicos e norte-americanos falam da doutrina do precedente, mas “estabelecem, contudo, uma distinção entre aquilo que poderíamos chamar de doutrina estrita e doutrina atenuada do precedente”. Mais adiante, esclarece que “doutrina atenuada do precedente exige que o juiz atribua algum peso a decisões anteriores sobre o mesmo problema, e que ele deve segui-las a menos que as considere erradas o bastante para suplantar a presunção inicial em seu favor”.[18]  

            Assim, mesmo nos EUA, de nenhuma maneira, a conveniência da estabilização jurisprudencial pode justificar o estancamento do avanço doutrinário ou a asfixia da criatividade jurisprudencial.  

            Em acirrado debate sobre escolha dos integrantes da Suprema Corte dos EUA, Miguel Beltrán de Felipe chegou a expressar que “la petrificicación que implica el originalismo no es legítima ni desde el punto de vista social ni desde el puramente interpretativo”.[19]  

            De fato, já no mesmo dia da edição de alguma súmula, eventualmente, algum profissional do direito pode vislumbrar a possibilidade de novos avanços, a partir da observação mais atenta dos fatos sociais. Algum professor ou estudioso mais cuidadoso pode perceber alguma peculiaridade, antes inexistente, inclusive porque os fatos sociais não se repetem exatamente do mesmo modo.  Algum jurisdicionado mais exigente e/ou criativo pode deparar-se, por vontade sua ou não, com uma situação, efetivamente, já diversa.  

            Existem, ainda, situações nas quais o debate, ainda que seja mais acirrado na sociedade, ainda é incipiente, na jurisprudência e inclusive na doutrina. Pode-se afirmar que, somente através do debate processual e também através da dialética comunicação entre Judiciário e sociedade, que se estabelece em função do processo judicial, é que se criam as melhores condições de compreender e aprimorar o direito.  

            Alfredo Buzaid salientou que a jurisprudência é o direito vivo, proclamando “a norma jurídica concreta que atuou quando surgiu o conflito de interesses.” [20]                       

            A consolidação da jurisprudência somente é possível após inúmeros julgamentos sobre casos com alguma semelhança. Acrescenta-se, se isto já não estava implícito, que não se trata de um julgamento em abstrato. Aqui, não se está na esfera de elaboração de uma lei, necessariamente genérica. Luiz Flávio D’Urso aponta esta distinção entre lei e julgamento judicial. [21]            

            Temos, assim, idealmente a súmula como a síntese de um trabalho coletivo realizado por todos os operadores do Direito, a partir da experiência concreta em um razoável número de casos similares durante um tempo igualmente razoável.  

            Parece pouco defensável uma súmula que cause surpresa àqueles que acompanham a jurisprudência, pois, em tal caso, não se trataria de uma  uniformização de jurisprudência, propriamente dita, que necessariamente lhe seria anterior.[22] Nesta situação, talvez, todo o  debate, profundo ou não, estaria ocorrendo, se isto for viável, na única e iluminada sessão que encontraria o rumo a ser seguido nas demais decisões.  

            A inovação jurisprudencial nas instâncias ordinárias pode ser justificada pelas necessidades de criação adaptativa às mudanças sociais. Zagrebelsky fala sobre a contínua tensão, no trabalho do juiz, entre a necessidade de salvaguardar, o quanto possível, a continuidade dos standards decisionais e as exigências de adequação da jurisprudência ao novo, o que feito através de uma “contínua e interpretativa recriação, sob a pressão dos casos”. Segundo ele, somente esta força que, nos seus diversos tempos, dá vida à Constituição como documento de normas escritas, impede que esta seja facilmente posta fora do jogo.[23]            

            É de lembrar-se Mauro Cappeletti quando afirma que o controle dos juízes, pelas partes, se concretiza no julgamento de cada caso. Neste sentido, Mauro Cappelletti lembra que os juízes devem estar "conectados" com seu tempo e sociedade e que sendo o processo judicial participativo, aí, os juízes exercem seu papel "sobre e dentro de limites dos interesses e da controvérsia das partes", havendo, neste momento, um "contato do Judiciário com os reais problemas, desejos e aspirações da sociedade". [24]  

            Por isso, a uniformização jurisprudencial não pode, seja a pretexto de  segurança jurídica, seja a pretexto de celeridade processual, sufocar a criatividade jurisprudencial que emana da primeira instância, principalmente, porque estará a negar a própria dinâmica da vida social.           

5.Celeridade com eventual prejuízo da prestação jurisdicional  

            Já se buscou assinalar os aspectos positivos da unificação jurisprudencial. Esta pode contribuir para o aprimoramento das regras sociais, suas compreensões por todos e conseqüentes cumprimentos. Os valores “segurança” e “certeza” estariam preservados. A própria celeridade do Poder Judiciário estaria sendo reforçada.  

            Todavia, não se acredita que a celeridade  deva ser o ânimo primeiro e mais relevante para que se busque a uniformização da jurisprudência. Se assim procedêssemos, estaríamos, na verdade, abreviando o debate jurídico e, talvez, também, toda troca de idéias que lhe é paralela na sociedade.  

            Quando a força “vinculante” de uma súmula é alçada a fator determinante de sua observação, talvez, se esteja revelando que esta não é resultado de um debate anterior que tenha sido capaz de obter um mínimo de consenso. Uma súmula, mesmo que não vinculante, deve/ria ter a força resultante de quanto profundo foi o embate anterior de idéias. Se todos opinaram e tiveram seus argumentos considerados e rebatidos, provavelmente, estejam próximos do convencimento ou, do mínimo, da aceitação do entendimento predominante. No mínimo, todos reconheceriam alguma razoabilidade no resultado final de tal embate.  

            Não é abreviando ou simplificando os embates das idéias que se aperfeiçoará o funcionamento do Poder Judiciário. Neste sentido, é extremamente perigosa certa Proposta de “Comissão de Efetividade” da AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, no sentido de que se “5. permite o indeferimento da inicial com julgamento de mérito, quando o pedido estiver em confronto com súmula do STF, dos Tribunais Superiores ou do Tribunal a quem o recurso será interposto;” [25].  

            A proposição antes mencionada terminou sendo apresentada como o PROJETO DE LEI Nº 3577, DE 2004, do Deputado Federal MAURÍCIO RANDS. Teve o acréscimo de que seja dada “ciência à parte contrária.” Tramita, pois, no Congresso Nacional, e se constitui em tentativa busca da celeridade em nítido prejuízo da própria prestação jurisdicional, ferindo já o próprio acesso ao Judiciário. [26] 

 6. Acórdão e ação rescisória 

            Em outro momento, bastante anterior, expressamos que as ações rescisórias, de modo incipiente, mas já visível, passavam a ser utilizadas com finalidades distintas das previstas originalmente.[27] Mecanismo excepcional, destinado a corrigir decisões judiciais claramente contrárias à literalidade da lei, entre outros, a ação rescisória não pode ser desvirtuada a ponto de servir como instrumento de disciplina judiciária. Como exemplo de tais exageros, comentávamos que chegou a existir proposição de que os “fundamentos” contrários a lei federal pudessem ensejar ação rescisória.[28]  

            O balizamento jurisprudencial em relação a ação rescisória deve ser necessariamente o contido na clara redação da Súmula 343 do STF, pela qual “não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. [29]  

            Entretanto, a despeito da clareza da súmula do Supremo Tribunal Federal, o TST, a pretexto de assegurar a disciplina judiciária, tem passado ao largo da mesma,  exigindo das instâncias inferiores uma submissão a orientações sumulares, que ele mesmo tem dificuldade em praticar em suas decisões. Em dois relevantes temas, o TST não passou a acompanhar integralmente a as decisões do STF. Um deles é o relativo à base de cálculo do adicional de insalubridade, havendo, apenas recentemente, alguma diminuição da distância entre os entendimentos das duas Cortes, com a “restauração” Enunciado 17 do TST, ao final de 2.003.[30] Outro é o relativo às conseqüências da aposentadoria quanto a questionada “extinção” do contrato de trabalho, existindo inclusive liminares do STF, em Ações Diretas de Inconstitucionalidade. 

            Quanto as ações rescisórias, as súmulas e, no caso do TST, as Orientações Jurisprudenciais, de suas Sessões Especializadas, tem expressiva relevância.[31] 

            Muito significativa é a OJ 77 [32] que procura delimitar o que pode ser considerado “controverso” ou não.  Como se conclui de sua leitura, tal orientação jurisprudencial pretendeu que todas as orientações do TST consolidadas em súmula ou OJ tornassem, com efeito automático, superadas todos os entendimentos adotados em contrário. A partir dali, as decisões das instâncias inferiores passariam a ser atacáveis por meio de ação rescisória, se não as seguissem. Isso equivale a dizer que a inclusão de entendimento de Orientação Jurisprudencial constituiria um “decreto de irrazoabilidade” de toda a jurisprudência em contrário que se produzisse no País. E, portanto, o TST se permitia modificar/cassar sentenças transitadas em julgado que contrariassem suas orientações jurisprudenciais, ainda que estas não sejam do seu Pleno, mas somente de uma Sessão Especializada, SDI-1.  

            Tal compreensão terminou por ser revogada, quanto aos seus efeitos e conseqüências, pela posterior OJ 118 [33], que retomou o trilho do Enunciado 343 do STF, restringindo a possibilidade de ação rescisória à violação de lei – e não de súmula. De toda sorte, pode-se imaginar, exagerando os argumentos e esquecendo uma interpretação mais sistemática, que durante quase todo ano de 2002 e boa parte de 2003 toda decisão contrária a um Enunciado ou Orientação Jurisprudencial do TST poderia ter sido alvo de ação rescisória, ainda que não afrontasse diretamente algum dispositivo legal.  

            O Enunciado 83 do TST, por outro lado, com redação nova em 2003, passou a não admitir que resistam a ação rescisória os julgamentos em matéria controversa, quando tratarem de tema constitucional. [34] Assim, em matéria constitucional, o TST  reconhece a suas próprias decisões, um caráter vinculante que o próprio STF não atribui a seus próprios acórdãos. [35]  

            Assinale-se, para não assustar o leitor mais preocupado, que, todavia, a Súmula 343 do STF permanece inalterada e não tem esta ressalva. Toda matéria controversa na jurisprudência pode resistir a ação rescisória.  

            A combinação destes entendimentos jurisprudenciais antes mencionados, OJ 77 e Enunciado 83, ambos do TST, se adotados em sua literalidade, sem a observação do pensamento do STF, levaria a que as decisões de VTs e TRTs deveriam prever antecipadamente qual viria a ser o entendimento do TST, tratando-se de matéria constitucional. Repete-se, tais decisões deveriam buscar adivinhar o posicionamento futuro da mais alta corte trabalhista, sob pena de serem alvo fácil de ações rescisórias. 

7.  Celeridade com preservação da prestação jurisdicional.  

            Diversa é a situação do art 557 do CPC, com redação de 1998. Ali, o relator poderá negar seguimento ao recurso se perceber ser “manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Superior ou de Tribunal Superior”. Tem-se, já, de algum modo, a súmula impeditiva de recurso.  

            Nesta situação do art 557, existe, sim, uma apreciação judicial do caso e confrontação deste com a jurisprudência dominante. Nem o juiz viu-se constrangido a aplicar um entendimento que não seja o seu e tampouco deixou de fazer o exame sobre a possível existência de peculiaridades novas no caso, o que levaria para uma decisão diversa das súmulas existentes. 

            Neste caso, não se percebe alguma decisão judicial com ausência de motivação. Esta crítica não pode ser lançada a utilização desta nova norma. Medite-se sobre certa cautela, existente no próprio texto legal. No parágrafo primeiro, na hipótese inversa, ou seja, provimento ao recurso quando a decisão recorrida for colidente com a súmula, foi utilizada a palavra “poderá”. Até o momento, não vingou alguma tese sobre eventual direito  adquirido da parte que teria a vantagem com a aplicação destas normas, como lembra Silvio Nazareno Costa.[36]   

            Igualmente inovadora e positiva é a disposição, mais recente, do § 3º do art 515 do CPC. Agora, “Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento. (Parágrafo acrescido pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)”.  

            Também aqui, não se percebe, em tese, nenhuma insuficiente prestação jurisdicional. O primeiro grau já teve apreciado o caso, ainda que sobre certos limites. O segundo grau, estará apreciando-o por inteiro, neste segundo momento. Não se acompanha a injustificada resistência à aplicação mais ampla possível desta norma. [37]  

            Recorde-se que na Reforma do Poder Judiciário, em um dos Sub-Relatórios, que antecederam o Relatório do então Deputado Federal Aloysio Nunes Ferreira, de autoria do Deputado Federal José Roberto Batoquio, constou que “ao reformar decisão o tribunal deve resolver o mérito, mesmo que a decisão recorrida se tenha omitido sobre as alegações das partes ou seja nula, ressalvada a necessidade de produzir-se prova”. 

8. Considerações Gerais. 

            Repete-se que o julgamento de primeiro grau e o realizado pelos tribunais tem funções diversas. Cada um tem um relevante papel a cumprir. A preservação e aprimoramento de ambos são necessários.  

             Bem diverso é o tema da unificação de jurisprudência. Ainda outra é a função da própria lei. 

            Neste quadro, a criação jurisprudencial concentrada nas instâncias superiores arrosta o sério risco da extrapolação dos limites constitucionais dos poderes do Judiciário[38], uma vez que o juiz torna-se um legislador sem controle legislativo e um julgador sem revisão judicial. Tais riscos estão presentes em todas os mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade e, especialmente, em caso de adoção do instituto da Súmula Vinculante.  

            Sebastião Vieira Caixeta, Procurador do Trabalho da 10ª Região, salienta que “a jurisdição política constitucional vem sendo paulatinamente transferida da base para o ápice do Poder Judiciário”, caracterizando um “quadro concentrador”, com “vasta repercussão sobre a organização judiciária brasileira e o acesso ao Judiciário”.[39]  

            Equivocadamente se associa a Súmula Vinculante à idéia de agilização do processo, quando esta não representa um efetivo instrumento de aperfeiçoamento do processo. Comparando-se a proposta à da instituição de uma Súmula Impeditiva de Recurso [40], verifica-se que esta última além de mais eficiente do ponto de vista da agilização processual, não oferece qualquer dano à independência e à criatividade jurisprudenciais.  

            A insistência dos Tribunais Superiores com a proposta de Súmula Vinculante somente pode ser compreendida porque, em realidade, muito mais do que um expediente de pacificação da jurisprudência ou de agilização do processo judicial, constitui-se em mecanismo de concentração de poder na cúpula do Poder Judiciário.  

            Entre nós, Lenio Luiz Streck salientou os riscos das decisões que se limitem a citar esta ou aquela súmula, “descontextualizadas”. Ter-se-iam, nestes casos, decisões que “embora fundamentadas, não são suficientemente justificadas” porque “não são agregados aos ementários jurisprudenciais os imprescindíveis suportes fáticos”. [41]  

            Retornando aos ensinamentos do Presidente do Tribunal Constitucional da Itália, Zagrebelski, afirma-se a relevância de bem observar “as exigências do caso na interpretação do direito”.  O mesmo estudioso do direito constitucional atual, acrescenta que tais exames “não excluem, por completo, a possibilidade que, em determinados momentos históricos, existam movimentos individuais da jurisprudência, de rompimento com o seu contexto geral, e que mereçam o mais alto apreço e respeito. A independência material garantida aos juizes permite que a sua adesão ao contexto espiritual geral em que operam deva ser voluntária, mas não imposta. Tal adesão é considerada livre do ponto de vista subjetivo e ocorrerá de acordo com as condições que cada juiz entender de colocar a si mesmo” [42].  

            Assim, pode-se dizer que, na função de sintetizar a jurisprudência proveniente das instâncias inferiores, os Tribunais têm a difícil missão de executar tal tarefa sem restringir demasiadamente o espaço decisional dos juízes de primeiro grau, nem consolidar orientações tão rígidas que inviabilizem sua adaptação às constantes mutações da vida social. 

            No primeiro caso, estaríamos diante de uma restrição à independência judicial. No segundo, diante de uma decisão que, pelo decurso do tempo, tornar-se-ia socialmente ineficaz. Em ambos os casos, o jurisdicionado seria o grande prejudicado. 

            Antes de saber-se da força vinculante ou não das súmulas, impõe-se bem identificar quais súmulas são desejadas, pela sociedade, e, dentre estas, quais são possíveis, em razão do embate jurídico efetivamente existente.

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 [1] Em outro trabalho, procuramos apresentar evidências de que uma decisão de Tribunal atende a finalidades bem distintas das de  uma decisão de primeiro grau: “O acórdão analisa apenas alguns aspectos da sentença, talvez os mais relevantes, socialmente, ou seja, aqueles que foram objeto do recurso, salvo os recursos de ofício, os quais já são questionados nos debates constitucionais sobre reformas do Poder Judiciário. Esses pontos destacados pelas partes tendem a ser repetidos em todos os recursos. O trabalho de segunda instância, assim, torna-se muito mais importante quanto à fixação de orientação jurisprudencial sobre pontos que as partes transformaram, por força da repetição, em matéria de interesse geral do que seria a simples revisão, caso a caso, dos aspectos tornados controvertidos em cada sentença.  (“Fatos e Jurisprudência”, inserido na coletânea “Direito do Trabalho Necessário”, coordenadora Maria Madalena Telesca, Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 2002, p. 51).

[2] NERY JÚNIOR, Nelson. “Teoria Geral dos Recursos”, 4a. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 35.

[3] Teixeira Filho, Manoel Antônio. “Sistema dos recursos trabalhistas”. LTr, São Paulo, p. 24.

[4] Maria Thereza Gonçalves Pero, “A Motivação da Sentença Civil”, São Paulo: Saraiva, 2001, pgs. 62 e 69 especialmente.

[5] Exigem melhor estudo, inclusive histórico, que foge aos objetivos das presentes linhas, certos dispositivos existentes na legislação do Uruguai. O art 466 dispunha que as “leis e doutrinas aplicáveis” deveriam ser mencionadas nos julgamentos. Após, o art 197 do Código Geral do Processo estabelece que “as razões jurídicas por cujo mérito se aplica o direito”devem ser expostas”. Eduardo Couture apontava que chegava a caracterizar “nulidade formal” a sentença que deixava de “acrescentar novos fundamentos à de primeira (art 738)” (Obra citada, p. 304)

[6] “Fatos e Jurisprudência”, ob. cit., p 51.

[7] Eduardo Couture, “Fundamentos do Direito Processual Civil”, Campinas: Red Livros, p 281.

[8] Neste sentido,  observação de um dos signatários, lembrando Alain Supiot, José Maria da Rosa Tesheiner e outros, no texto “Ouvir e/ou Falar”, incluído em  “Direito do Trabalho Necessário”, ob já citada, pg 59, e “Direito e Castelos”, São Paulo: LTr, 2002, pg 25.

[9] Obra citada, p 71.

[10] SDI II do TST: 90. Recurso ordinário. Apelo que não ataca os fundamentos da decisão recorrida. Não-conhecimento. Art. 514, II, do CPC. (Inserido em 27.05.2002) Não se conhece de recurso ordinário para o TST, pela ausência do requisito de admissibilidade inscrito no art. 514, II, do CPC, quando as razões do recorrente não impugnam os fundamentos da decisão recorrida, nos termos em que fora proposta.

[11] SDI I do TST: 340. Efeito devolutivo. Profundidade. Recurso ordinário. Art. 515, § 1º, do CPC. Aplicação. DJ 22.06.2004 – Parágrafo único do artigo 168 do Regimento Interno do TST O efeito devolutivo em profundidade do Recurso Ordinário, que se extrai do § 1º do art. 515 do CPC, transfere automaticamente ao Tribunal a apreciação de fundamento da defesa não examinado pela sentença, ainda que não renovado em contra-razões. Não se aplica, todavia, ao caso de pedido não apreciado na sentença.

[12] Entre as quais, a Associação dos Magistrados do Brasil, valendo o registro de seu site www.amb.com.br

[13] Várias já são as súmulas administrativas da AGU, Advocacia Geral da União, contrárias a interposição de recursos desnecessários ou mesmo inúteis, como se verifica na consulta ao site deste Órgão, em 14 de novembro de 2.004,  https://www.agu.gov.br/Base_jur/sumulas/sumulas.htm

[14] O incremento da segurança jurídica com uma maior previsibilidade das decisões judiciais tem sido insistentemente apresentado, até mesmo como uma suposta necessidade, única e premente, para a criação de um ambiente mais favorável aos negócios. Por isto, o Documento 319 do Banco Mundial tem sido criticado por inúmeras Associações de Juízes em nosso País. Trata-se do estudo, de autoria de Maria Dokolias, de junho de 1996, sob o título “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe – elementos para reforma”, Washington. 

[15] O elevado número de Enunciados e Orientações Jurisprudenciais do TST, buscando regrar tudo, pode terminar por não regrar nada. Na verdade, há de se preservar a compreensão sobre a necessidade de serem forjadas decisões que sejam seguidas, simplesmente pela qualidade de seus argumentos e intensidade do debate que lhe foi anterior.

[16] Fany Fajerstein, “A Causa e a Greve: um Problema de Epistemologia Jurídica”, in “Democracia e Direito do Trabalho”, coordenador Luiz Alberto de Vargas, São Paulo: LTr, 1995, p. 112. A autora, Juíza do Trabalho em Campinas, fazia tal observação ao justificar seu voto vencido, relativamente a morte de trabalhador em manifestação de encerramento de movimento grevista de motoristas em sua cidade. Argumentava, pois, que o “fato” -aquela manifestação reprimida com violência- já estava para além daqueles considerados na legislação sobre a greve, eis que inclusive posterior a esta.

[17] Francisco Rossal de Araújo, “O Efeito Vinculante das Súmulas. Um Perigo para a Democracia?”, in Revista ANAMATRA, número 26, p 44.

[18] Ronald Dworkin, “O Império do Direito”, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p 31.

[19] Miguel Beltrán de Felipe, “Originalismo e interpretación – Dworkin vs. Bork: una polémica constitucional”, Madrid: Civitas, p 91. Em páginas anteriores, o autor resume as idéias do “originalismo” como aquelas que expressam que “la Constituición tiene um significado para el cual no hace falta recurrir a funtes extra constitucioales”, pg 45. Dito de outro modo, buscam negar a validade da “jurisprudência de valores” sustentada por Dworkin, entre outros, acreditando que o texto original solucionou todas as possíveis controversas.

[20] Alfredo Buzaid, “Uniformização da Jurisprudência”, Porto Alegre: Revista Ajuris, número 34, 1985, p. 190.

[21] Conforme Luiz Flávio Borges D’Urso “a súmula cria uma decisão normativa que se caracteriza como “erga omnes” ante a obrigatoriedade de outros julgamentos, significando que uma decisão superior se transforma em força de norma constitucional. No fundo, como se pode concluir, o Poder Judiciário adquire a posição de Poder Legislativo, função que não foi legitimada pelo povo, única entidade que, nas democracias, tem o poder de transferir seu poder para seus representantes. E, ao usurpar funções que integram outro Poder, o Judiciário, por meio da súmula vinculante, não deixa de contribuir para a ruptura de regras constitucionais, logo ele que deveria ser o guardião do Estado democrático de Direito”. (“A reforma do Judiciário deve instituir a Súmula vinculante?”, artigo publicado na Folha de Säo Paulo, 17/7/2004, pg. A3).

[22] A súmula 291 do TST, que versa sobre indenização de horas extras suprimidas,  é um exemplo paradigmático de uma súmula “surpreendente”, já que, a despeito de seus méritos, baseou-se em escassas decisões de instâncias inferiores. Ademais, o anterior Enunciado 76, sobre o mesmo tema, muito mais visivelmente decorria de alguma interpretação dos textos legais, entre os quais o art 468 da CLT.

[23] Gustavo Zagrebelski, “A Justiça Constitucional – Natureza e limites do uso judiciário da Constituição”, especialmente, pgs 40, 41 e 47, tradução livre de Anderson. Vichinkeski Teixeira., mestrando PUC RS.

[24] Mauro Cappelletti, "Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da justiça constitucional", in Revista do Tribunal Regional Federal 4ª , n. 40, 2001, p 15/49, pagina 42.

[25] O texto de tal proposição foi consultado no site www.amb.com.br em 12 de outubro de 2.004.

[26] Tal projeto encontra-se apensado ao PL 3804/93, na CCJ da Câmara, com Parecer do relator, Paulo Magalhães, pela aprovação, conforme dados do Boletim AMB Informa, número 66, de 30 de setembro de 2004, p. 3

[27] Luiz Alberto de Vargas, coordenador, “Democracia e Direito do Trabalho”, São Paulo: LTr, 1995, p. 115, capítulo sob o título “Ação Rescisória, Violação Literal de Lei, Limites Objetivos”.

[28] Obra citada, p. 119, referindo-se ao art 191 do Anteprojeto de Código de Processo do Trabalho, elaborado por Comissão do Tribunal Superior do Trabalho.

[29] Bem clara igualmente era a Súmula 134 do extingo TFR: “Não cabe ação rescisória por violação de literal disposição de lei se, ao tempo em que foi prolatada a sentença rescindenda, a interpretação era controvertida nos tribunais, embora posteriormente se tenha fixado favoravelmente à pretensão do autor”.

[30] O STF decidiu que a base de cálculo não pode ser o salário mínimo, já há bastante tempo, em 1998, conforme RE nº 236396/MG – 1ª T – Min. Sepúlveda Pertence, in DJU 20/11/98, in LTr 62/1621.

[31] No tema do Recurso de Revista, a relevância do tema talvez seja ainda mais visível. Refira-se ao estudo de Milton Varela Dutra, Revista TRT da Quarta Região, Porto Alegre: número 30, p. 43, logo após a alteração do art 896 da CLT, pela Lei 9.756 de 1998. Ali, estão mencionados os estudos, nem sempre convergentes, dos Juizes do Trabalho Cláudio Brandão, Bahia, Moreira de Luca, São Paulo, e Manoel Antonio Teixeira Filho, Paraná.

[32] SDI II do TST 77: Ação rescisória. Aplicação do Enunciado nº 83 do TST. Matéria controvertida. Limite temporal. Data de inserção em Orientação Jurisprudencial do TST. (Inserido  em 13.03.2002) A data da inclusão da matéria discutida na ação rescisória, na Orientação Jurisprudencial do TST, é o divisor de águas quanto a ser, ou não, controvertida nos Tribunais a interpretação dos dispositivos legais citados na ação rescisória.

[33] SDI II do TST 118. Ação rescisória. Expressão "lei" do art. 485, V, do CPC. Indicação de contrariedade a súmula ou orientação jurisprudencial do TST. Descabimento. DJ 11.08.2003 – Parágrafo único do artigo 168 do Regimento Interno do TST Não prospera pedido de rescisão fundado no art. 485, inciso V, do CPC, com indicação de contrariedade a súmula, uma vez que a jurisprudência consolidada dos tribunais não corresponde ao conceito de lei.

[34] Muitos tem argumentado ser duvidosa a utilidade de que os Tribunais Superiores, exceto o STF, editem súmulas de jurisprudência em matéria constitucional.

[35] O Juiz do TRT do Rio de Janeiro, José Nascimento Araújo Neto, aponta que a idéia de súmula vinculante “colide com o controle difuso da constitucionalidade das leis, típico do nosso sistema”, Boletim da Amatra do Rio de Janeiro, “No Mérito”, número 32, janeiro/agosto de 2004, pg 14.

[36] Silvio Nazareno Costa, “ Súmula Vinculante e Reforma do Judiciário”, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p 168.

[37] Em Seminário realizado pela AMATRA RS, Associação dos Magistrados do Trabalho no Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2004, teve-se conhecimento dos estudos do Juiz de Minas Gerais, Luis Ronan Neves Koury, sendo lembrado, entre outros, o texto de Estêvão Mallet, na Revista LTr, número 67-02/137, os quais saúdam esta inovação legislativa.

[38] Cláudio Baldino Maciel, na condição de Presidente da AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, manifestou-se neste sentido, Folha de São Paulo, 11 de julho de 2004, havendo notas também no site desta Associação www.amb.com.br

[39] Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, Brasília: número 12, 2004, p 98/125, aqui, referidas as páginas 120, 121 e 122.

[40] Proposta apresentada pela AMB e ANAMATRAà Reforma do Judiciário. Os sites destas Associações são, respectivamente, www.amb.com.br e www.anamatra.org.br  A AJURIS, na verdade, talvez tenha sido a primeira associação a apresentar tal proposição, www.ajuris.org.br

[41] Lenio Luiz Streck, “Súmulas no Direito Brasileiro – Eficácia, Poder e Função”, Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 1998, p. 274 e 275.

[42] Gustavo Zagrebelski, no texto antes citado, pgs, 42 e 47. Outro estudo do mesmo autor é “Derecho Dúctil”, cujo título em italiano é “Diritto Mitte”, o qual propiciou intenso debate na lista via internet da ANAMATRA no ano de 2003, entre outros.


Referência  Biográfica

Luiz Alberto de Vargas e Ricardo Carvalho Fraga – Juizes do Trabalho no RS.

Lei 11.106/2005: Novas modificações ao Código Penal brasileiro

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* Renato Flavio Marcão

Sumário: 1. Introdução; 2. Sobre as modificações introduzidas; 2.1.  Art. 148 do Código Penal; 2.1.1. Sobre o §1º, inc. I; 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro; 2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos; 2.1.2. Sobre o § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; 2.1.3. Sobe o § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos; 2.2. Considerações gerais; 2.3. Art. 215 do Código Penal; 2.4. Art. 216 do Código Penal; 2.4.1. Sujeito passivo; 2.4.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal; 2.5. Causas de aumento de pena; 2.5.1. Sobre o inciso I; 2.5.2. Sobre o inciso II; 2.5.2.1. Texto suprimido; 2.5.2.2. Texto acrescido; 2.5.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II; 2.6. Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoas; 2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem; 2.8. Tráfico internacional de pessoas; 2.9. Tráfico interno de pessoas; 2.10. Irretroatividade da lei mais severa; 2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas; 2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada; 3. Dispositivos revogados; 3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107; 3.2. Sobre o art. 217; 3.3. Sobre o art. 219; 3.4. Sobre o art. 220; 3.5. Sobre os arts. 221 e 222; 3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226; 3.7. Sobre o § 3o do art. 231; 3.8. Sobre o art. 240; 4. Considerações finais.

 

1. Introdução

            Entrou em vigor no dia 29 de março de 2005, data de sua publicação, a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que alterou o Código Penal brasileiro em relação ao disposto nos arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231, e acrescentou o art. 231-A.

            Por força do disposto no art. 3º da referida lei,  o Capítulo V (Do lenocínio e do tráfico de mulheres) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

            Além das modificações acima indicadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, o novo diploma legal revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

            Em sentido amplo, as modificações foram sensíveis e as novas regras reclamam, desde logo, apreciação reflexiva para uma melhor compreensão de todos os temas abordados.

 2. Sobre as modificações introduzidas

            Para uma melhor compreensão, passaremos a analisar cada uma das modificações introduzidas no Código Penal, na exata mesma ordem de disposição constante da Lei 11.106/2005, e depois, em tópico distinto, cuidaremos de tecer considerações a respeito das regras revogadas, tudo conforme segue.

2.1.  Art. 148 do Código Penal

            No caput do 148 do Código Penal estão descritas as condutas que tipificam o seqüestro e o cárcere privado. Ao narrá-las o legislador assim dispôs: “privar alguém, de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.

            A pena prevista para as hipóteses do caput é de reclusão, de um a três anos.

            Na precisa visão de Nélson Hungria: “Entende Romeiro (Dicionário de direito penal), que o cárcere privado é um genus, de que o seqüestro é uma species: ‘O crime de cárcere privado pode tomar a forma de detenção ou de seqüestro; dá-se a detenção quando a violência exercida sobre a pessoa consiste no impedimento ou obstáculo de sair de um certo e determinado lugar; no seqüestro compreende-se o fato de conservar a pessoa em lugar solitário e ignorado, de modo que difícil seria a vítima obter socorro de outro’. Parece-nos, entretanto, mais acertado dizer que o seqüestro é o que é o gênero e o cárcere privado a espécie, ou, por outras palavras, o seqüestro (arbitrária privação ou compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o nome tradicional de cárcere privado quando exercido in domo privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado à prisão pública. Tanto no seqüestro quanto no cárcere privado, é detida ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no cárcere privado, há a circunstância de clausura ou encerramento. Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria uma diferença de tratamento penal”.[1]

             Evidencia-se como objeto jurídico da tutela penal a liberdade individual, a liberdade de ir e vir, ficar, permanecer; a liberdade de locomoção, em última análise.

            Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, assim como qualquer pessoa está em condição de ser sujeito passivo.

            O elemento subjetivo é o dolo. Basta o dolo genérico para a configuração, e não há forma culposa.

             Admite-se a tentativa.

             Conforme Celso Delmanto e outros: “É delito material, que se consuma no momento em que ocorre a privação; é permanente, sendo possível a prisão em flagrante do agente, enquanto durar a detenção ou retenção da vítima”.[2]

            Seus §§ estabelecem figuras qualificadas, e as modificações feitas pela nova lei estão dispostas no §1º.

2.1.1. Sobre o § 1º, inc. I

            O § 1º estabelece formas qualificadas em que a pena é de reclusão, de dois a cinco anos, e quanto à pena nada mudou.

            Em sua antiga redação o inc. I do §1º do art. 148 do Código Penal assim dispunha: “Se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente”.

            A nova redação tem o seguinte texto: “Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos”.

            A proteção penal agora foi estendida ao companheiro do agente e ao maior de 60 (sessenta) anos.

2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro

            Entenda-se: companheiro ou companheira.

            Aqui a redação ampliou o rol das formas qualificadas tendo em vista a necessidade de tratamento igualitário entre “cônjuge e companheiro” como decorrência do novo perfil jurídico-constitucional desta última situação reguladora de relacionamentos, que não está amparada nas mesmas formalidades que protegem os cônjuges.

            Antes da previsão expressa não era possível estender a forma qualificada aos autores de tais crimes praticados contra companheiros em razão de estar vedada em Direito Penal a interpretação ampliativa do alcance da norma de maneira a ensejar resultado gravoso ao réu.

            O sistema de proteção encontrava-se falho, omisso, e isso ao menos desde a Constituição Federal de 1988, tendo em vista a nova disciplina indicada para o tratamento das relações entre companheiros ou concubinos, conviventes em união estável.

            Questão interessante a ensejar debate nas instâncias judiciárias refere-se à possibilidade da forma qualificada estender-se aos autores de crimes contra “companheiro ou companheira” em se tratando de relação homoafetiva.

            Considerando que o ordenamento jurídico não dá proteção a tais relações; que não há por parte do Estado qualquer reconhecimento expresso para efeito de salvaguarda de direitos, o princípio da reserva legal impede que tais situações sejam reconhecidas para o efeito de permitir o elastério da norma agora prevista no inc. I, §1º, do art. 148 do Código Penal. Eventual ampliação do conceito de “companheiro” no sentido apontado ensejaria punição mais severa ao réu (ou à ré), vedada em razão da ausência de expressa cominação legal. Incabível falar, aqui, em aplicação de analogia, interpretação extensiva etc.

            Por outro lado, caso sobrevenha alguma lei regulando a união estável entre pessoas do mesmo sexo, equiparando-as às relações estáveis entre homem e mulher para efeito de reconhecimento estatal e salvaguarda de direitos, a regra agora em comento passará a ser aplicada em relação a tais situações hoje desprotegidas em face à legislação penal vigente.

            Anote-se, por oportuno, que para ter maior coerência sistêmica é preciso que o legislador, entre outras coisas, atualize o art. 61, inc. II, “e”, do Código Penal, que apenas se refere ao ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.

2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos

            No que tange à forma qualificada quando o crime for praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos é preciso notar que agora não há mais qualquer possibilidade de incidência da agravante genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal, sob pena de bis in idem, exceto em relação aos crimes consumados antes da vigência do novo regramento (sem permanência sob a égide do novo texto legal), se identificada e provada a hipótese.

            A mudança a tal respeito introduzida guarda coerência com as regras da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, convencionalmente denominada “Estatuto do Idoso”, sendo, por isso mesmo, acertado o acréscimo legislativo.

             Considera-se idoso, para os termos de tal lei, a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

            Se a inicial privação da liberdade ocorrer quando a vítima contar com menos de 60 (sessenta) anos de idade, porém, se alongar até que seja completado o sexagésimo aniversário, a qualificadora incidirá em razão de estarmos diante de crime permanente, cujo momento consumativo se protrai no tempo.

            De igual maneira, a nova regra também será aplicada aos casos em que a privação da liberdade teve início antes da vigência da nova lei, porém, se estendeu além da data de seu ingresso no ordenamento punitivo.

            Nestes casos é preciso buscar a melhor compreensão do art. 4º do Código Penal, segundo o qual, “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”, a evidenciar a opção do legislador penal, no que tange ao tempo do crime, pela adoção da teoria da atividade.

            Analisando os efeitos do art. 4º do Código Penal em ralação ao crime permanente Damásio de Jesus assim leciona: “Nele, em que o momento consumativo se alonga no tempo sob a dependência da vontade do sujeito ativo, se iniciado sob a influência de uma lei e prolongado sob outra, aplica-se esta, mesmo que mais severa. O fundamento de tal solução está em que a cada instante da permanência ocorre a intenção de o agente continuar a prática delituosa. Assim, é irrelevante tenha a conduta seu início sob o império da lei antiga, ou esta não incriminasse o fato, pois o dolo ocorre durante a eficácia da lei nova: presente está a intenção de o agente infringir a nova norma durante a vigência de seu comando”.[3]

2.1.2. Sobre o § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos

            A nova lei acrescentou ao § 1º o inc. IV com a seguinte redação: “se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos”.

            Em razão da nova disposição também será qualificado o crime quando a vítima não contar com 18 (dezoito) anos completos, e a pena será de reclusão, de dois a cinco anos.

            Se a privação da liberdade ocorrer no dia do aniversário a qualificadora não incidirá, pois, em tal caso, a vítima não poderá ser considerada menor de dezoito anos.

            A modificação é bem vinda, pois, com ela, fica estabelecida a harmonia no sistema de proteção ao menor de 18 (dezoito) anos, em coerência com o disposto na segunda figura do §1º do art. 159 do Código Penal, onde está estabelecido que o crime de extorsão mediante seqüestro será qualificado “se o seqüestrado for menor de dezoito anos”.

            Em relação a tal forma qualificada no crime do art. 159, ao seu tempo escreveu Nélson Hungria: “A circunstância de ser a vítima menor de 18 anos (isto é, que ainda não completou tal idade) também justifica a agravação especial, porque torna mínima, quando não nenhuma, a possibilidade de eximir-se ao seqüestrado, ao mesmo tempo que é infringida a incolumidade especialmente assegurada à criança e ao adolescente”.[4]

             Considerando que o crime de seqüestro ou cárcere privado é de natureza permanente, em algumas situações a privação da liberdade poderá iniciar quando a vítima for menor de dezoito anos e terminar após ela ter completado tal idade. Ainda será possível, em outra situação, que a privação da liberdade tenha se iniciado antes da nova lei e perdurado para além de seu ingresso no ordenamento.

            Em ambas as hipóteses a qualificadora incidirá.

            Reitere-se aqui a lição acima transcrita de Damásio de Jesus quanto a melhor compreensão que se deve dar ao art. 4º do Código Penal diante de crimes permanentes.

            A tentadora compreensão inversa levaria à conclusão no seguinte sentido: se a privação da liberdade iniciar quando a vítima ainda contar com menos de 18 (dezoito) anos, porém, se estender para além da data em que atingida tal idade, a qualificadora estará afastada.

            Se verificada a hipótese exatamente como acima aventada; com o prolongamento da privação da liberdade o réu estaria a se beneficiar, deixando de incidir em pena de dois a cinco anos, acabando por ser “agraciado” com a adequação típica de sua conduta no preceito primário, com pena cominada entre um e três anos, de reclusão.

            Aqui, a prolongação do sofrimento da vítima seria benéfica ao réu, o que não se pode admitir eticamente, tampouco à luz do disposto no art. 4º do Código Penal, conforme anotado.

            Na outra situação indicada, onde a privação da liberdade do menor de dezoito anos teve início antes da lei e se alongou para depois de sua vigência, a natureza permanente do crime impede, por absoluto, o não-reconhecimento da qualificadora, hipótese claramente incogitável.

2.1.3. Sobre o § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos

            A última alteração feita no art.148 decorre do inciso V, que também foi acrescido ao § 1º.

            Pela nova previsão, se o seqüestro ou o cárcere privado for praticado para fins libidinosos o crime também será qualificado e contará, obviamente, com pena mais elevada (reclusão, de dois a cinco anos).

            Atos libidinosos são aqueles praticados com a finalidade de satisfazer a lascívia, o prazer sexual.

            Se o crime for cometido para o fim de manter relação sexual (cópula vagínica) ou para a prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal (coito anal ou felação, por exemplo), a forma qualificada estará presente.

            Se além da privação da liberdade, configuradora de seqüestro ou cárcere privado, o réu (ou a ré) efetivamente praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal, contra a vontade da vítima (art. 214 do CP), ocorrerá concurso material de crimes (art. 69 do CP). Também haverá concurso material de crimes se além do seqüestro ou cárcere privado o agente submeter a vítima à relação sexual não consentida (art. 213 do CP).

            Na hipótese do inc. V, por certo haverá muita discussão a respeito do posicionamento acima adotado, pois não serão poucos os que entenderão que o crime de seqüestro ou cárcere privado deverá ser considerado crime meio para a prática do crime fim – atentado violento ao pudor ou estupro, dependendo do caso.

            A melhor exegese, entretanto, não autoriza tal compreensão, inclusive porque tais crimes prescindem, para sua configuração, das práticas tratadas no art. 148 do Código Penal.

2.2. Considerações gerais

            Como visto, em relação ao art. 148 do Código Penal foram feitas alterações que implicaram em novas formas de adequação típica qualificada.

            Em razão do princípio da anterioridade da lei penal; da irretroatividade da lei penal mais severa, somente os crimes praticados nos moldes descritos nas novas qualificadoras após a vigência da lei é que estarão sujeitos à forma qualificada que impõe punição mais severa. Não há qualquer possibilidade de agravamento de pena em razão das novas disposições no que tange aos fatos passados, consumados antes do ingresso das novas disposições no universo jurídico.

            De ver-se, entretanto, que o seqüestro e o cárcere privado são crimes permanentes, e mesmo que a inicial privação da liberdade tenha ocorrido antes da vigência da lei, ocorrendo, por exemplo, prisão em flagrante depois da data em que o regramento novo passou a ser aplicável, a tipificação se amoldará à forma qualificada em razão dos efeitos da permanência, conforme as observações acima apontadas, pois em tais situações, enquanto durar a permanência o crime estará em seu processo consumativo.

            Ressalte-se que em relação ao crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos, consumado antes da vigência da lei nova (sem permanência sob os efeitos dela), a conduta típica apenas comportará agravamento em razão da circunstância genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal.

2.3. Art. 215 do Código Penal

            Com o nomem criminis de posse sexual mediante fraude, na redação antiga o art. 215 do Código Penal punia a conduta de: “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude” (coloquei o itálico).

            Agora, conforme a Lei 11.106/2005, a redação do art. 215 passou a ser a seguinte: “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”.

             Conjunção carnal, para os termos da lei, quer dizer cópula vagínica, relação sexual.

            O crime em questão consuma-se com a efetiva conjunção carnal e somente é punido a título de dolo, podendo ser praticado mediante concurso de pessoas, com possibilidade de verificação da forma tentada.

            O objeto jurídico da tutela penal é a liberdade sexual da mulher.

            Sujeito ativo do crime só pode ser o homem, e somente a mulher honesta estava sujeita a ser vítima de tal ilícito penal, o que agora foi corrigido, pois a partir da “nova lei” qualquer mulher poderá ser vítima, sujeito passivo, portanto.

            A expressão “mulher honesta” constituía elemento normativo do tipo, e a exigência de honestidade impunha tratamento de natureza nitidamente discriminatória.

            A mudança agora introduzida ampliou a esfera de alcance da norma penal incriminadora, pois, se antes da mudança somente mulher que fosse considerada honesta estava protegida em sua liberdade sexual pela norma em comento, agora a proteção penal tem abrangência indistinta e não discriminatória em relação ao sexo feminino.

            Merece aplauso o reparo legislativo, pois se a figura do crime de estupro (art. 213 do CP) também visa à proteção da liberdade sexual da mulher, seja ela sexualmente honesta ou não (prostituta pode ser vítima do crime de estupro, RT 700/355), era sem sentido lógico deixar desprotegida penalmente, para os fins do crime de posse sexual mediante fraude, a liberdade sexual da mulher que optou por adotar conduta sexual de contornos mais frouxos.

            A ausência de honestidade sexual da mulher devassa não pode constituir motivo para a ausência de proteção penal, na exata medida em que aquelas dotadas de menor recato também podem ser submetidas à ação de “ter conjunção carnal, mediante fraude”.

            A ausência de honestidade sexual nunca constituiu imunidade à fraude que pode ser empregada para fins sexuais, e não é ético deixar sem proteção, como forma de “punição” ou “patrulhamento” da liberdade, aquela que se colocou a usar de seu erotismo de forma avolumada, com pouco ou nenhum critério.

            A proteção agora é plena e, de certa forma, confirma a liberdade de cada um no sentido de poder conduzir sua vida sexual como bem lhe aprouver.

            Em termos práticos é preciso anotar que inquéritos policiais arquivados no passado, exclusivamente em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima, não poderão ser agora reabertos apenas em razão da mudança legislativa. Não há como se justificar a aplicação do art. 18 do Código de Processo Penal na hipótese em testilha, e eventual tentativa nesse sentido irá configurar flagrante constrangimento ilegal, sanável pela via do habeas corpus.

             Absolvições impostas em Primeira Instância em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima (antes da nova lei) não poderão ser modificadas em grau de recurso com fundamento exclusivo na mudança legislativa.

            Com efeito. A nova regra é mais gravosa na medida em que amplia o alcance da descrição típica para situações que antes não estavam nos limites da tipificação, e os princípios da anterioridade da lei[5] e da irretroatividade da lei penal mais severa[6] impedem a aplicação do texto novo em relação aos crimes já consumados no passado, sob a égide do antigo regramento.

2.4. Art. 216 do Código Penal

             Encerrando o rol de proteção à liberdade sexual quanto aos crimes praticados mediante fraude, o art. 216 do Código Penal regula a figura do “atentado ao pudor mediante fraude”.

            Enquanto o art. 215 do Código Penal se refere à prática de conjunção carnal, assim compreendida a relação sexual entre homem e mulher, nos termos em que acabamos de expor no tópico acima, o artigo sob análise se refere à prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal.

            Na precisa e oportuna lição de Nelson Hungria, “ato libidinoso é todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência”.[7] E o mesmo autor ainda ensinou: “O ato libidinoso a que se refere o texto legal, além de gravitar na órbita da função sexual, deve ser manifestamente obsceno ou lesivo da pudicícia média. Não pode ser confundido com a simples inconveniência, nem ser reconhecido numa atitude ambígua”.[8]

            O que distingue o atentado fraudulento ao pudor (art. 216 do CP) do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) é o meio empregado para a prática dos atos libidinosos.

            A mudança na redação do art. 216 foi tão severa e radical quanto acertada.

             Enquanto a forma fundamental punia como crime a conduta de “induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal”, com a Lei 11.106/2005 a tipificação básica passou a ser muito mais ampla.

            Com a nova redação, constitui crime de atentado ao pudor mediante fraude: “Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (coloquei o itálico).

            Houve profunda alteração quanto à possibilidade de sujeição passiva.

2.4.1. Sujeito passivo

            Antes, o crime do art. 216 do Código Penal só podia ser praticado contra mulher, e não bastava a condição de mulher pura e simplesmente; não era toda e qualquer mulher que podia ser vítima; era preciso tratar-se de mulher honesta.

            Com a retirada do elemento normativo do tipo: mulher honesta, e a inclusão da expressão “alguém”, a sujeição passiva ficou ampliada consideravelmente, conforme já é possível antever.

            No que pertine ao tema “mulher honesta” remetemos o leitor àquilo que já foi expendido nas reflexões ligadas ao art. 215 do Código Penal (item 2.3, supra), no que for pertinente.

            Quanto ao mais, cumpre anotar que agora o homem também pode ser vítima de crime de atentado ao pudor mediante fraude. A expressão alguém é indeterminada quanto ao sexo, permitindo que tanto o homem quanto a mulher, seja ela honesta ou não, figurem como vítima.

            E era assim que devia ser mesmo. Não havia razão lógica ou jurídica para as restrições quanto à possibilidade de sujeição passiva no tocante ao crime em comento.

            Não se justificava a proteção jurídico-penal tão-só à mulher honesta.

             Homens e mulheres, indistintamente, podem ser vítima do crime sob análise.

            A restrição à mulher honesta tinha ranço discriminatório, razão maior da mudança imposta em boa hora, senão tardiamente.

             Inclusive por coerência, era preciso alinhar o art. 216 do Código Penal ao art. 214 do mesmo “Codex”, que não contém restrições quanto a sujeição passiva, de maneira a permitir que homens e mulheres sejam considerados vítimas do crime de atentado violento ao pudor, nos termos de sua regulamentação.

            A lacuna está preenchida.

            A discriminação condenável foi banida e o sistema de proteção foi aperfeiçoado.

2.4.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal

            Para ser coerente com as disposições contidas no caput do art. 216 foi preciso mudar a redação de seu parágrafo único.

            A antiga redação era nos seguintes termos: “se a ofendida é menor de dezoito e maior de catorze anos”.[9]

            Ampliada a sujeição passiva, que agora não alcança apenas vítima do sexo feminino, não era correto manter na redação do parágrafo único a expressão “ofendida”.

            Se a regra não fosse modificada iria proporcionar odioso tratamento discriminatório, com previsão de pena qualificada apenas quando a vítima fosse do sexo feminino, excluindo a possibilidade de qualificadora quando “o ofendido” fosse menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos de idade.

             Substituído o vocábulo “ofendida” por “vítima”, ampliou-se a forma qualificada para alcançar vítimas de ambos os sexos, como deve ser.

            A pena prevista para a forma qualificada foi mantida: reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

2.5. Causas de aumento de pena

            O art. 226 do Código Penal está no Capítulo IV do Título VI, onde estão as “Disposições gerais”, e estabelece causas de aumento de pena para os crimes previstos nos capítulos anteriores, assim entendidos aqueles que se encontram no mesmo Título VI (Dos crimes contra os costumes), a saber: Capítulo I (Dos crimes contra a liberdade sexual); Capítulo II (Da sedução e da corrupção de menores); Capítulo III (Do rapto), este, agora com todos os seus artigos revogados, conforme o art. 5º da “nova lei”.

            Suas disposições elencam agravantes especiais das quais decorre cota fixa de aumento de pena.

            O texto antigo era expresso nos seguintes termos: “A pena é aumentada de quarta parte: I – se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas; II – se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; III – se o agente é casado”.

             A nova redação está posta nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”, e sobre tal matéria trataremos em tópico distinto.

            Antes da mudança imposta com a Lei 11.106/2005 a quota fixa de aumento de pena era comum a todas as modalidades previstas (quarta parte), agora, o aumento será de quarta parte apenas na hipótese do inciso I, e de metade nas situações do inciso II.

2.5.1. Sobre o inciso I

            No que tange ao inciso I cumpre observar que não houve mudança de redação no sentido de ampliar ou restringir o alcance da norma. A mesma previsão que antes justificava o aumento de pena ainda persiste.

            Ainda em relação ao inciso I é importante destacar que “o dispositivo não se refere, indistintamente, a concurso de duas ou mais pessoas para o crime, mas ao fato de ter sido o crime cometido, isto é, executado com pluralidade de agentes”.[10]

2.5.2. Sobre o inciso II

            Em relação ao inciso II as mudanças foram consideráveis e buscaram uniformizar o tratamento jurídico-penal dentro de uma acertada visão sistêmica e atualizada do Direito.

            No texto legal foram mantidas as seguintes causas de aumento: se o agente é, ascendente, irmão (ou irmã, entenda-se), tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela.

2.5.2.1. Texto suprimido

            Foi suprimida do texto a figura do “pai adotivo”.

             Obviamente, com tal providência não quis o legislador beneficiar o “pai adotivo” que praticar os crimes a que se refere o art. 226. E efetivamente não beneficiou.

            É que desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), e também em razão do “Novo Código Civil” (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), não mais se justifica, juridicamente, a utilização da expressão “pai adotivo”, isso em razão do tratamento jurídico desde então dispensado à adoção, e notadamente em razão dos efeitos que dela decorrem.

            Em razão do novo tratamento jurídico dispensado à adoção, e dos efeitos que dela resultam, a figura do antigo “pai adotivo” agora se enquadra na figura do ascendente, já expressa na antiga redação do inciso II, que nesse ponto não sofreu alteração.

            Está mantida, pois, a proteção jurídico-penal, e agora ajustada com a nova realidade jurídica na sempre necessária visão sistêmica.

2.5.2.2. Texto acrescido

            Além do que foi mantido e retirado do inciso II, conforme analisamos acima, a mudança legislativa acrescentou que a pena também será aumentada de metade se o agente for: madrasta, tio, cônjuge ou companheiro.

            Como o texto antigo já previa como causa de aumento de pena o fato do delito ter sido praticado por padrasto; visando acabar com as discussões sobre a possibilidade de se estender ou não a causa de aumento para a madrasta autora de delito de igual natureza, isso em razão de princípios como o da taxatividade, da reserva legal etc., a Lei 11.106/2005 ajustou a redação do inciso II de forma à não permitir a continuidade da discussão.

            Aliás, o reparo era mesmo necessário também em razão das demais mudanças instituídas com a própria Lei 11.106/2005.

            Se o agente for tio da vítima a pena também será aumentada a partir da vigência da “nova lei”. Entenda-se: tio ou tia.

            Tal compreensão não está proibida em razão da ausência de previsão expressa. Diga-se o mesmo em relação ao companheiro ou companheira.

            É certo que o inciso refere-se apenas e tão-somente ao tio (no masculino) e ao companheiro (no masculino), e isso poderia levar à conclusão no sentido de que o legislador quis excluir da incidência da causa de aumento de pena regulada no inciso II do art. 226 a tia e a companheira, até porque em relação ao padrasto cuidou de acrescentar a figura feminina correspondente (madrasta), cautela não adotada em relação aos outros dois (tio e companheiro).

            Ocorre, entretanto, que buscando o espírito da lei; o espírito das mudanças impostas, a conclusão não pode ser outra. O que se pretendeu, mesmo, foi a ampliação para o tio, de sexo masculino ou feminino, e ao companheiro do sexo masculino ou feminino.

            Ainda que assim não se entenda, uma outra possibilidade de enquadramento da tia e da companheira será possível, se identificada a hipótese estabelecida na parte final do inc. II.

            Se por um lado é até possível dizer que o texto legal se afigura imperfeito quanto ao seu alcance de proteção jurídico-penal, e isso em razão da ausência de expressa menção a tais figuras (tia e companheira), é certo que estamos diante de um típico caso de interpretação analógica, onde as cláusulas específicas estão seguidas de cláusula genérica, e isso em razão da parte final do inciso II onde se lê: “… preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Sendo assim, se a agente for tia ou companheira, exercendo, a qualquer título, autoridade sobre a vítima, estará justificada a causa de aumento (embora com outro fundamento).

            Maior discussão, entretanto, ficará para a hipótese de companheiro ou companheira, isso em razão da questionável autoridade que um possa exercer sobre o outro.

            No que tange aos conviventes em relação homoafetiva reiteramos o que já ficou anotado por ocasião das observações ao art. 148 do Código Penal (item 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), para onde remetemos o leitor.

            Quanto à figura do cônjuge não há qualquer questionamento. A previsão refere-se ao cônjuge do sexo masculino e também ao cônjuge do sexo feminino.

2.5.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II

            As causas descritas no inciso II agora ensejam aumento de metade da pena (antes o aumento era de quarta parte).

            No que pertine a incidência da nova regulamentação sobre fatos já consumados antes de sua vigência é preciso ter em vista as disposições dos arts. 1º e 4º do Código Penal, que estão amparados no art. 5º, incs. XXXIX e XL da Constituição Federal.

2.6. Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoas

             Conforme o art. 3º da Lei 11.106/2005, o Capítulo V do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

            O título passou de: “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” para: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas” (coloquei o itálico).

            A mudança foi necessária em razão das modificações introduzidas nos arts. 227 e 231 do Código Penal, conforme veremos abaixo.

2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem

            Sob o nomem criminis de “mediação para servir a lascívia de outrem” o art.227 do Código Penal tipifica a conduta de “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem”, estabelecendo pena de reclusão, de um a três anos para a forma simples.

            As formas qualificadas estão elencadas nos §§ 1ºe 2º.

            Em conformidade com o disposto no § 3º, “se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

            A nova lei deu maior abrangência ao § 1º do art. 227, que na redação antiga tinha o seguinte texto: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, marido, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

            A nova redação está nos seguintes termos: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

            Como se vê, a expressão “marido” foi substituída por “cônjuge ou companheiro”.             De melhor rigor técnico e  em sintonia com as regras que integram o sistema jurídico vigente, a mudança merece aplauso.

             Enquanto a previsão antiga se referia apenas ao marido, cônjuge do sexo masculino, portanto, agora fala em cônjuge ou companheiro. Leia-se: cônjuge do sexo masculino ou feminino; companheiro ou companheira.

            No que tange aos reflexos incidentes sobre os fatos praticados sob a égide do regramento antigo é preciso destacar que não houve qualquer abrandamento em relação ao “marido” que cometeu tal crime, visto que a forma qualificada quanto a este permaneceu intacta, somente com nova linguagem técnica, qual seja: cônjuge.

            Por outro vértice, se a conduta fora praticada antes da nova lei por cônjuge do sexo feminino; por companheiro ou companheira, não estará submetida ao novo tratamento penal. Quanto a estes, somente a partir da vigência da “nova lei” é que se submeterão a seus efeitos penais severos.

            Quanto ao mais, para evitar o enfaro da repetição remetemos o leitor ao que foi dito por ocasião das considerações ao art. 148 do Código Penal (2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), no que for pertinente.

2.8. Tráfico internacional de pessoas

            Outra mudança trazida pela Lei 11.106/2005 está no art. 231 do Código Penal, antes denominado crime de “tráfico de mulheres”.

            Agora o nomem criminis passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, e isso em razão da nova redação do art. 231 e também para destacar sua diferença com o novo tipo penal trazido com a “lei nova”, denominado “tráfico interno de pessoas”, expresso no art. 231-A, objeto de apreciação no tópico seguinte.

            A redação antiga do art. 231 tinha o seguinte teor: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico).

            Para a forma fundamental a pena era de reclusão, de três a oito anos.

            Com a nova redação o sistema repressivo passou a punir como crime de “tráfico internacional de pessoas” as seguintes condutas: “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico para destacar as mudanças).

            Foi mantida a pena de reclusão no mesmo patamar, contudo, agora ela deverá ser aplicada cumulativamente com pena de multa. Antes da nova lei a imposição de pena de multa só se verificava se o crime fosse cometido com o fim de lucro, conforme a redação do § 3º que acabou revogado. Para o legislador, agora, tal crime sempre será praticado com o fim de lucro, conclusão que não é de todo desacertada.

            A mudança introduzida no caput atualizou o tipo penal com a realidade dos dias hodiernos.

            O verbo intermediar, incluído no caput, tem considerável alcance e por certo proporcionará o enquadramento de muitas condutas convergentes à prática do crime em questão, antes de difícil conformação e ajustamento às hipóteses típicas.

             Enquanto as condutas de promover ou facilitar têm alcance mais restrito, a intermediação completa o rol das condutas típicas que normalmente estão ligadas às infrações de tal natureza e permite não deixar a descoberto; fora da esfera de proteção penal, razoável número de comportamentos que se ajustam ao verbo.

             Enquanto qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em questão, na antiga redação somente a mulher é que poderia ser sujeito passivo.

            A nova redação deu ao crime uma redefinição e também maior alcance, pois, com a retirada do monopólio do sexo feminino em relação ao pólo passivo, agora qualquer pessoa poderá nele figurar: homem ou mulher.

            A restrição foi derrubada.

            Sensível  à realidade dos dias atuais e conhecendo as práticas que envolvem a exploração sexual em sentido amplo, o legislador reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso ampliou, a proteção penal também ao sexo masculino, pois já não é novidade a comercialização e exploração sexual do homem, o que era quase inimaginável no tempo em que se redigiu o Código Penal brasileiro.

            Foram mantidas as redações dos §§ 1º 2º e as penas reclusivas exatamente como antes. Acrescentou-se apenas a pena de multa, agora cumulativamente aplicada.

            A revogação do § 3º, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ precedentes.

             Haveria, pois, flagrante impertinência em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

2.9. Tráfico interno de pessoas

            Além da nova tipificação ampliada em relação ao art. 231 a Lei 11.106/2005 também criou novo tipo penal.

            Para o aperfeiçoamento do sistema punitivo, além de punir o tráfico internacional de pessoas agora com maior amplitude, o legislador cuidou de tipificar o crime de “tráfico interno de pessoas”, estabelecendo como crime previsto no art. 231-A do Código Penal as condutas de: “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”. A pena abstratamente prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, exatamente como a pena prevista para o art. 231, caput, e por força do disposto em seu parágrafo único, ao crime de tráfico interno de pessoas também são aplicáveis as regras dos §§ 1º e 2º do art. 231.

            O objeto jurídico da tutela penal é a honra sexual; a lei também visa proteger os bons costumes.

             Qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo, independentemente do sexo, ocorrendo o mesmo em relação ao sujeito passivo.

            O elemento subjetivo do tipo é o dolo. Basta o dolo genérico.

            A consumação ocorre com a prática efetiva de pelo menos uma das condutas descritas no tipo penal, sendo admissível a forma tentada (art. 14, II, co CP).

            A figura do art. 231-A é tipo alternativo, de conduta variada.

             Promover significa dar impulso, colocar em execução (de qualquer forma); intermediar quer dizer servir de intermediário ou mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraçar, tornar mais simples, dar maior agilidade.

            Recrutamento é a reunião; agrupamento ou alistamento de pessoas. Não é preciso que o recrutamento envolva várias pessoas; basta uma para a configuração do ilícito.

             Transporte é o deslocamento de um lugar a outro. Enquanto o agente estiver promovendo o transporte o crime será de natureza permanente, assim considerado aquele cuja conduta delituosa se mantém no tempo e no espaço.

           Transferência significa mudança de um lugar a outro. Há uma sutil diferença entre esta conduta e a anterior (transporte). Enquanto transporte tem o sentido de levar alguém para local em que se pratica a prostituição (para os fins do tipo legal), a transferência pressupõe a mudança de um lugar onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação.

             Alojamento é local específico destinado ao abrigo de pessoas.

             Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa receber alguém em local não destinado ao alojamento. Acolher é dar amparo, guarida; dar refúgio, proteção ou conforto físico.

            É preciso que as práticas acima analisadas tenham por alvo “pessoa que venha a exercer a prostituição”. Exercer a prostituição é prostituir-se; dedicar-se ao comércio sexual; à satisfação voluntária da lascívia de outrem em troca de vantagem.

            Para a adequação típica é preciso, ainda, que tais condutas tenham ocorrido no território nacional, pois se uma das práticas tocar território estrangeiro a figura penal será a do art. 231 (observados os parâmetros da tipificação), e não a do art. 231-A.

            A pena abstratamente prevista afasta a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), e eventual condenação até 4 (quatro) anos não impedirá a substituição da privativa de liberdade por restritiva de direito, desde que presentes os demais requisitos exigidos em lei. Se fixada a privativa de liberdade até o limite acima indicado, seu cumprimento poderá iniciar-se no regime aberto, observadas as disposições do art. 33 c.c. o art. 59, ambos do Código Penal. 

2.10. Irretroatividade da lei mais severa

2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas

            As inovações acrescidas ao § 1º do art. 227 e ao caput do art. 231, e bem assim a nova figura penal do art. 231-A, obviamente não se aplicam aos casos consumados antes da vigência da Lei 11.106/2005.

             Princípios de contornos constitucionais como o da anterioridade da lei (princípio da legalidade ou reserva legal) e da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, incs. XXXIX e XL, da CF), também previstos no art. 1º do Código Penal, impedem a retroação do alcance do texto novo para atingir situações consumadas ao tempo em que a regulamentação normativa era outra, mais benéfica.

            De tal sorte, para os termos do novo art. 227 do Código Penal, somente os crimes praticados por cônjuge do sexo feminino; companheiro ou companheira, após a vigência da nova regulamentação penal é que se submeterão à forma qualificada do § 1º.

            Nessa mesma linha argumentativa, as inovações dos arts. 231 e 231-A só incidirão sobre fatos praticados sob a égide da nova ordem penal. Observe-se, contudo, que em relação à prática do verbo “transporte”, previsto no art. 231-A, onde a conduta é de natureza permanente, poderá ocorrer hipótese em que ele venha a perdurar vários dias. Sendo assim, se iniciado antes da vigência da lei nova, o transporte se estender para além do início da exigência do texto novo, poderá ocorrer prisão em flagrante, por exemplo, e regular processo com a nova definição típica.

2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada

            A experiência da vida contemporânea, pautada pela febre do enriquecimento, indica que muitas vezes a pena de multa poderá surtir efeitos econômicos e psicológicos no réu, bem mais severos que a ameaça ou imposição de pena privativa de liberdade.

            É forçoso reconhecer, entretanto, que para tal realidade seria necessário um sistema de execução mais eficaz do que o determinado com a redefinição da pena de multa como dívida de valor, nos termos da Lei 9.268/96.

            Pelas mesmas razões expostas no item anterior, a pena de multa agora cumulativamente imposta não obriga o aplicador da lei em relação aos fatos passados, consumados antes da vigência do texto novo.

            Para os casos consumados antes da Lei 11.106/2005, com ou sem investigação ou processo de conhecimento iniciado antes de 29 de março de 2005 (data em que a lei entrou em vigor), já não subsiste qualquer possibilidade de aplicação de pena de multa, ainda que o crime tenha sido cometido com o fim de lucro, e isso em razão da revogação expressa do §3º do art. 231 (cf. art. 5º da nova lei).

            Aqui é forçoso reconhecer que a pena de multa deixou de existir para os casos passados. Não há como se restabelecer a vigência do § 3º. A revogação expressa é causa intransponível e obstativa de tal possibilidade.

3. Dispositivos revogados

            Além das modificações anteriormente apontadas e analisadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, a Lei 11.106/2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

             Passaremos, a seguir, à análise dos dispositivos revogados, seguindo a mesma ordem de disposição acima indicada.     

3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107

            O art. 107 do Código Penal estabelece de forma exemplificativa algumas causas de extinção da punibilidade, não sendo demais lembrar que punibilidade “é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção”, conforme a objetiva lição de Damásio de Jesus.[11]

            Os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal estabeleciam como causas de extinção da punibilidade o casamento da vítima com o agente e o casamento da vítima com terceiro, respectivamente.

             Conforme o texto revogado do inc. VII do art. 107 do Código Penal, a punibilidade seria extinta: “pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II, e III do Título VI da Parte Especial deste Código”.

            Nos termos do revogado inc. VIII do art. 107 do Código Penal, também seria extinta a punibilidade: “pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação pena no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração”.

            As disposições acima transcritas abrangiam os crimes de estupro, atentado violento ao pudor; posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores e rapto (arts. 213 a 221 do CP), sendo imprescindível observar as ressalvas legais que determinavam limitações ao alcance das regras.

             Impunha-se a extinção da punibilidade em razão da reparação pelo casamento. Entendia-se que o matrimônio limpava a honra da vítima manchada pelo crime, constituindo, em tese, razão suficiente para a terminação dos questionamentos judiciais acerca dos fatos.

             Segundo parece ser o entendimento do legislador, o novo tratamento penal apresentado com a Lei 11.106/2005 não permitia a continuidade dos dispositivos antigos.

            Agora, o casamento não mais constitui causa de extinção da punibilidade, e bem por isso algumas vezes a vítima poderá unir-se em matrimônio com o réu, livre e espontaneamente; formar família, e depois ver o cônjuge condenado pela prática da conduta precedente, ensejadora de procedimento na esfera criminal.

            Haverá discrepância de conseqüências, pois em se tratando de crimes de ação penal privada a vítima poderá optar pelo não ajuizamento da ação; pela renúncia ao direito de queixa; pelo perdão; e ainda após o ajuizamento da queixa-crime provocar a extinção da punibilidade pela perempção (art. 60 do CPP), caso seja seu desejo, por exemplo, após casar-se com o réu.

            De outro vértice, em se tratando de crime de ação penal pública tais institutos são inaplicáveis, e sem a possibilidade de extinção da punibilidade em razão do casamento poderá ocorrer a situação acima aventada, danosa à estabilidade da união familiar.

            O tempo dirá se a mudança foi acertada, entretanto, desde já é possível antever situações onde haverá sério problema sócio-familiar que poderia ser evitado com a permanência das regras extirpadas do art. 107 do Código Penal.

3.2. Sobre o art. 217

            O polêmico crime de sedução estava previsto no art. 217 do Código Penal, e segundo a redação típica assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”.

            Nos dias atuais o crime em questão era de difícil configuração em razão da necessária conjugação das elementares que o integravam. Era preciso que a vítima fosse virgem; menor de dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime cogitável será o de estupro); inexperiente e ingênua, ou que depositasse justificável confiança em seu sedutor.

            De longa data a melhor doutrina reclamava a revogação do tipo penal em comento. A jurisprudência também demonstrava a mesma tendência.

            Não era difícil perceber que a previsão legal não estava ajustada aos dias atuais.

            A perda da virgindade pela mulher, nas condições do art. 217, já não precisava da proteção penal.

            Há mais. Qualquer proteção que se pretendesse estabelecer sobre o objeto jurídico da tutela penal em questão (a integridade ou virgindade da menor) prescindia de tipificação conforme o art. 217, haja vista o teor das disposições contidas nos arts. 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra violência ou grave ameaça, e as regras dos arts. 215 e 216 que cuidam das hipóteses em que são empregados meios fraudulentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta à proteção da moral sexual dos adolescentes de ambos os sexos, já que o tipo penal se refere a “… pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos…”.

            Como se vê, não havia justificação lógica ou jurídica para a permanência do crime de sedução no ordenamento jurídico, e bem por isso a revogação do tipo penal é bem vinda.

            Em relação ao antigo crime de sedução ocorreu abolitio criminis, sendo aplicável a regra do art. 2º do Código Penal.

3.3. Sobre o art. 219

            O art. 219 do Código Penal cuidava do crime de “rapto violento ou mediante fraude”.

             Conforme a narração típica, configurava referido crime: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos.

            A nova lei aboliu a expressão “mulher honesta” do Código Penal e também cuidou de acrescentar, entre outras regras já analisadas, o inciso V ao §1º do art. 148, com a seguinte redação: “Se o crime é praticado com fins libidinosos”.

            O art. 148 tipifica o crime de seqüestro ou cárcere privado, contendo formas qualificadas no § 1º, sendo estas punidas com reclusão, de dois a cinco anos.

            Em razão do disposto no inc. V acrescentado ao § 1º do art. 148 deixou de ser necessária a previsão contida no art. 219 do Código Penal, visto que a conduta deste último artigo passou a ser tratada naqueles dispositivos (art. 148, § 1º, inc. V).

            A partir da Lei 11.106/2005, privar alguém (homem ou mulher) de sua liberdade, para fins libidinosos, constitui crime de seqüestro ou cárcere privado qualificado, e não rapto.

3.4. Sobre o art. 220

            Com o nome de “rapto consensual” o art. 220 do Código Penal estabelecia pena de detenção, de um a três anos, se a raptada fosse maior de catorze e menor de vinte e um anos, e o rapto fosse praticado com seu consentimento” (coloquei o itálico).

            Em relação a tal ilícito ocorreu abolitio criminis (art. 2º do CP).

            Muito embora alguns possam sustentar que referida tipificação agora se encontra no inc. IV do §1º do art. 148, acrescido com a Lei 11.106/2005, tal conclusão não é acertada, pois nas hipóteses de seqüestro ou cárcere privado o consentimento válido da vítima impede a tipificação. 

3.5. Sobre os arts. 221 e 222

            O art. 221 do Código Penal trazia “causas de diminuição de pena” aplicáveis aos crimes dos arts. 219 e 220.

            O art. 222, também se referindo aos arts. 219 e 220; tratava do concurso de crimes envolvendo rapto.

            Em razão da revogação dos arts. 219 e 220, não havia qualquer razão justificadora para a permanência dos dois artigos subseqüentes no ordenamento jurídico.

            Todo o conteúdo do Capítulo III (Do rapto) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), arts. 219, 220, 221 e 222; foi revogado expressamente.

3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226

            Em sua antiga redação o artigo 226, III, do Código Penal, determinava o aumento de quarta parte da pena, em relação aos delitos a que está vinculado, se o agente era casado ao tempo do ilícito.

            A nova redação do art. 226 está nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”.

            A regra mais benéfica alcança não só os fatos praticados após a vigência da nova lei, mas também aqueles consumados antes, e isso por força do disposto no parágrafo único do art. 2º do Código Penal, verbis: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

3.7. Sobre o § 3o do art. 231

             Referindo-se ao que antes era denominado crime de “tráfico de mulheres”, e que agora passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, o § 3º do art. 231 do Código Penal tinha a seguinte redação: “Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

            A revogação do § 3º do art. 231 do Código Penal, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo.

             Haveria, pois, flagrante impertinência e descompasso em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

            É revogação era mesmo de rigor, diante da modificação imposta.

3.8. Sobre o art. 240

            O crime de adultério estava previsto no art. 240 do Código Penal, e tinha por objeto jurídico da tutela penal “a organização jurídica da família e do casamento”.[12]

            Mesmo reconhecendo a importância da proteção jurídica da família e do casamento, é de se concluir que hoje não mais se justifica a proteção penal outorgada pelo legislador de 1940.

            Não se trata de render homenagens ao adultério. O que é forçoso reconhecer é que o casamento e a família encontram outras formas de proteção no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, que determina o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges.

             Conforme assevera  Claus Roxin[13], o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.

            O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, o que demonstra a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito.

            As regras previstas na legislação civil são apropriadas e suficientes, e sendo assim, a revogação do tipo penal em que se encontra o crime de adultério é medida juridicamente saudável e condizente com a realidade jurídico-social em que vivemos. 

4. Considerações finais

             Conforme visto, as modificações introduzidas no Código Penal foram significativas e tendentes à atualização do sistema penal repressivo no que pertine aos delitos alcançados.

            Embora sujeita a críticas pontuais, é força convir que, em sentido amplo a nova lei contém mais acertos do que erros, contrariando a sofrível realidade da produção legislativa no campo penal nos últimos tempos, o que se espera seja o primeiro passo na escolha de um novo caminho.

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[1] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. VI, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1955, p. 183/184.

[2] DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, São Paulo, Renovar, 6ª ed., 2002, p. 318.

[3] JESUS, Damásio E. de. Código Penal anotado, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 15.

[4] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VII, 1958, p. 73.

[5] Art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal; art. 1º do Código Penal.

[6] Art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal; art. 2º, parágrafo único, do Código Penal.

[7] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 131.

[8] HUNGRIA, Nélson, Ob., Cit., p. 133.

[9] Pena – reclusão, de dois a quatro anos.

[10] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 247.

[11] Código Penal anotado, São Paulo, Saraiva, 8ª ed., p. 280.

[12] DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 505.

[13] Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega,  1986. p. 28.

 


 

Referência  Biográfica

Renato Flavio Marcão –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós) Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP) Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP) Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP) Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP) Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva), e, Curso de Execução Penal (Saraiva).