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Lei 11.106/2005: Novas modificações ao Código Penal brasileiro

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* Renato Flavio Marcão

Sumário: 1. Introdução; 2. Sobre as modificações introduzidas; 2.1.  Art. 148 do Código Penal; 2.1.1. Sobre o §1º, inc. I; 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro; 2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos; 2.1.2. Sobre o § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; 2.1.3. Sobe o § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos; 2.2. Considerações gerais; 2.3. Art. 215 do Código Penal; 2.4. Art. 216 do Código Penal; 2.4.1. Sujeito passivo; 2.4.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal; 2.5. Causas de aumento de pena; 2.5.1. Sobre o inciso I; 2.5.2. Sobre o inciso II; 2.5.2.1. Texto suprimido; 2.5.2.2. Texto acrescido; 2.5.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II; 2.6. Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoas; 2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem; 2.8. Tráfico internacional de pessoas; 2.9. Tráfico interno de pessoas; 2.10. Irretroatividade da lei mais severa; 2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas; 2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada; 3. Dispositivos revogados; 3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107; 3.2. Sobre o art. 217; 3.3. Sobre o art. 219; 3.4. Sobre o art. 220; 3.5. Sobre os arts. 221 e 222; 3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226; 3.7. Sobre o § 3o do art. 231; 3.8. Sobre o art. 240; 4. Considerações finais.

 

1. Introdução

            Entrou em vigor no dia 29 de março de 2005, data de sua publicação, a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que alterou o Código Penal brasileiro em relação ao disposto nos arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231, e acrescentou o art. 231-A.

            Por força do disposto no art. 3º da referida lei,  o Capítulo V (Do lenocínio e do tráfico de mulheres) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

            Além das modificações acima indicadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, o novo diploma legal revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

            Em sentido amplo, as modificações foram sensíveis e as novas regras reclamam, desde logo, apreciação reflexiva para uma melhor compreensão de todos os temas abordados.

 2. Sobre as modificações introduzidas

            Para uma melhor compreensão, passaremos a analisar cada uma das modificações introduzidas no Código Penal, na exata mesma ordem de disposição constante da Lei 11.106/2005, e depois, em tópico distinto, cuidaremos de tecer considerações a respeito das regras revogadas, tudo conforme segue.

2.1.  Art. 148 do Código Penal

            No caput do 148 do Código Penal estão descritas as condutas que tipificam o seqüestro e o cárcere privado. Ao narrá-las o legislador assim dispôs: “privar alguém, de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.

            A pena prevista para as hipóteses do caput é de reclusão, de um a três anos.

            Na precisa visão de Nélson Hungria: “Entende Romeiro (Dicionário de direito penal), que o cárcere privado é um genus, de que o seqüestro é uma species: ‘O crime de cárcere privado pode tomar a forma de detenção ou de seqüestro; dá-se a detenção quando a violência exercida sobre a pessoa consiste no impedimento ou obstáculo de sair de um certo e determinado lugar; no seqüestro compreende-se o fato de conservar a pessoa em lugar solitário e ignorado, de modo que difícil seria a vítima obter socorro de outro’. Parece-nos, entretanto, mais acertado dizer que o seqüestro é o que é o gênero e o cárcere privado a espécie, ou, por outras palavras, o seqüestro (arbitrária privação ou compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o nome tradicional de cárcere privado quando exercido in domo privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado à prisão pública. Tanto no seqüestro quanto no cárcere privado, é detida ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no cárcere privado, há a circunstância de clausura ou encerramento. Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria uma diferença de tratamento penal”.[1]

             Evidencia-se como objeto jurídico da tutela penal a liberdade individual, a liberdade de ir e vir, ficar, permanecer; a liberdade de locomoção, em última análise.

            Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, assim como qualquer pessoa está em condição de ser sujeito passivo.

            O elemento subjetivo é o dolo. Basta o dolo genérico para a configuração, e não há forma culposa.

             Admite-se a tentativa.

             Conforme Celso Delmanto e outros: “É delito material, que se consuma no momento em que ocorre a privação; é permanente, sendo possível a prisão em flagrante do agente, enquanto durar a detenção ou retenção da vítima”.[2]

            Seus §§ estabelecem figuras qualificadas, e as modificações feitas pela nova lei estão dispostas no §1º.

2.1.1. Sobre o § 1º, inc. I

            O § 1º estabelece formas qualificadas em que a pena é de reclusão, de dois a cinco anos, e quanto à pena nada mudou.

            Em sua antiga redação o inc. I do §1º do art. 148 do Código Penal assim dispunha: “Se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente”.

            A nova redação tem o seguinte texto: “Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos”.

            A proteção penal agora foi estendida ao companheiro do agente e ao maior de 60 (sessenta) anos.

2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro

            Entenda-se: companheiro ou companheira.

            Aqui a redação ampliou o rol das formas qualificadas tendo em vista a necessidade de tratamento igualitário entre “cônjuge e companheiro” como decorrência do novo perfil jurídico-constitucional desta última situação reguladora de relacionamentos, que não está amparada nas mesmas formalidades que protegem os cônjuges.

            Antes da previsão expressa não era possível estender a forma qualificada aos autores de tais crimes praticados contra companheiros em razão de estar vedada em Direito Penal a interpretação ampliativa do alcance da norma de maneira a ensejar resultado gravoso ao réu.

            O sistema de proteção encontrava-se falho, omisso, e isso ao menos desde a Constituição Federal de 1988, tendo em vista a nova disciplina indicada para o tratamento das relações entre companheiros ou concubinos, conviventes em união estável.

            Questão interessante a ensejar debate nas instâncias judiciárias refere-se à possibilidade da forma qualificada estender-se aos autores de crimes contra “companheiro ou companheira” em se tratando de relação homoafetiva.

            Considerando que o ordenamento jurídico não dá proteção a tais relações; que não há por parte do Estado qualquer reconhecimento expresso para efeito de salvaguarda de direitos, o princípio da reserva legal impede que tais situações sejam reconhecidas para o efeito de permitir o elastério da norma agora prevista no inc. I, §1º, do art. 148 do Código Penal. Eventual ampliação do conceito de “companheiro” no sentido apontado ensejaria punição mais severa ao réu (ou à ré), vedada em razão da ausência de expressa cominação legal. Incabível falar, aqui, em aplicação de analogia, interpretação extensiva etc.

            Por outro lado, caso sobrevenha alguma lei regulando a união estável entre pessoas do mesmo sexo, equiparando-as às relações estáveis entre homem e mulher para efeito de reconhecimento estatal e salvaguarda de direitos, a regra agora em comento passará a ser aplicada em relação a tais situações hoje desprotegidas em face à legislação penal vigente.

            Anote-se, por oportuno, que para ter maior coerência sistêmica é preciso que o legislador, entre outras coisas, atualize o art. 61, inc. II, “e”, do Código Penal, que apenas se refere ao ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.

2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos

            No que tange à forma qualificada quando o crime for praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos é preciso notar que agora não há mais qualquer possibilidade de incidência da agravante genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal, sob pena de bis in idem, exceto em relação aos crimes consumados antes da vigência do novo regramento (sem permanência sob a égide do novo texto legal), se identificada e provada a hipótese.

            A mudança a tal respeito introduzida guarda coerência com as regras da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, convencionalmente denominada “Estatuto do Idoso”, sendo, por isso mesmo, acertado o acréscimo legislativo.

             Considera-se idoso, para os termos de tal lei, a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

            Se a inicial privação da liberdade ocorrer quando a vítima contar com menos de 60 (sessenta) anos de idade, porém, se alongar até que seja completado o sexagésimo aniversário, a qualificadora incidirá em razão de estarmos diante de crime permanente, cujo momento consumativo se protrai no tempo.

            De igual maneira, a nova regra também será aplicada aos casos em que a privação da liberdade teve início antes da vigência da nova lei, porém, se estendeu além da data de seu ingresso no ordenamento punitivo.

            Nestes casos é preciso buscar a melhor compreensão do art. 4º do Código Penal, segundo o qual, “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”, a evidenciar a opção do legislador penal, no que tange ao tempo do crime, pela adoção da teoria da atividade.

            Analisando os efeitos do art. 4º do Código Penal em ralação ao crime permanente Damásio de Jesus assim leciona: “Nele, em que o momento consumativo se alonga no tempo sob a dependência da vontade do sujeito ativo, se iniciado sob a influência de uma lei e prolongado sob outra, aplica-se esta, mesmo que mais severa. O fundamento de tal solução está em que a cada instante da permanência ocorre a intenção de o agente continuar a prática delituosa. Assim, é irrelevante tenha a conduta seu início sob o império da lei antiga, ou esta não incriminasse o fato, pois o dolo ocorre durante a eficácia da lei nova: presente está a intenção de o agente infringir a nova norma durante a vigência de seu comando”.[3]

2.1.2. Sobre o § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos

            A nova lei acrescentou ao § 1º o inc. IV com a seguinte redação: “se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos”.

            Em razão da nova disposição também será qualificado o crime quando a vítima não contar com 18 (dezoito) anos completos, e a pena será de reclusão, de dois a cinco anos.

            Se a privação da liberdade ocorrer no dia do aniversário a qualificadora não incidirá, pois, em tal caso, a vítima não poderá ser considerada menor de dezoito anos.

            A modificação é bem vinda, pois, com ela, fica estabelecida a harmonia no sistema de proteção ao menor de 18 (dezoito) anos, em coerência com o disposto na segunda figura do §1º do art. 159 do Código Penal, onde está estabelecido que o crime de extorsão mediante seqüestro será qualificado “se o seqüestrado for menor de dezoito anos”.

            Em relação a tal forma qualificada no crime do art. 159, ao seu tempo escreveu Nélson Hungria: “A circunstância de ser a vítima menor de 18 anos (isto é, que ainda não completou tal idade) também justifica a agravação especial, porque torna mínima, quando não nenhuma, a possibilidade de eximir-se ao seqüestrado, ao mesmo tempo que é infringida a incolumidade especialmente assegurada à criança e ao adolescente”.[4]

             Considerando que o crime de seqüestro ou cárcere privado é de natureza permanente, em algumas situações a privação da liberdade poderá iniciar quando a vítima for menor de dezoito anos e terminar após ela ter completado tal idade. Ainda será possível, em outra situação, que a privação da liberdade tenha se iniciado antes da nova lei e perdurado para além de seu ingresso no ordenamento.

            Em ambas as hipóteses a qualificadora incidirá.

            Reitere-se aqui a lição acima transcrita de Damásio de Jesus quanto a melhor compreensão que se deve dar ao art. 4º do Código Penal diante de crimes permanentes.

            A tentadora compreensão inversa levaria à conclusão no seguinte sentido: se a privação da liberdade iniciar quando a vítima ainda contar com menos de 18 (dezoito) anos, porém, se estender para além da data em que atingida tal idade, a qualificadora estará afastada.

            Se verificada a hipótese exatamente como acima aventada; com o prolongamento da privação da liberdade o réu estaria a se beneficiar, deixando de incidir em pena de dois a cinco anos, acabando por ser “agraciado” com a adequação típica de sua conduta no preceito primário, com pena cominada entre um e três anos, de reclusão.

            Aqui, a prolongação do sofrimento da vítima seria benéfica ao réu, o que não se pode admitir eticamente, tampouco à luz do disposto no art. 4º do Código Penal, conforme anotado.

            Na outra situação indicada, onde a privação da liberdade do menor de dezoito anos teve início antes da lei e se alongou para depois de sua vigência, a natureza permanente do crime impede, por absoluto, o não-reconhecimento da qualificadora, hipótese claramente incogitável.

2.1.3. Sobre o § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos

            A última alteração feita no art.148 decorre do inciso V, que também foi acrescido ao § 1º.

            Pela nova previsão, se o seqüestro ou o cárcere privado for praticado para fins libidinosos o crime também será qualificado e contará, obviamente, com pena mais elevada (reclusão, de dois a cinco anos).

            Atos libidinosos são aqueles praticados com a finalidade de satisfazer a lascívia, o prazer sexual.

            Se o crime for cometido para o fim de manter relação sexual (cópula vagínica) ou para a prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal (coito anal ou felação, por exemplo), a forma qualificada estará presente.

            Se além da privação da liberdade, configuradora de seqüestro ou cárcere privado, o réu (ou a ré) efetivamente praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal, contra a vontade da vítima (art. 214 do CP), ocorrerá concurso material de crimes (art. 69 do CP). Também haverá concurso material de crimes se além do seqüestro ou cárcere privado o agente submeter a vítima à relação sexual não consentida (art. 213 do CP).

            Na hipótese do inc. V, por certo haverá muita discussão a respeito do posicionamento acima adotado, pois não serão poucos os que entenderão que o crime de seqüestro ou cárcere privado deverá ser considerado crime meio para a prática do crime fim – atentado violento ao pudor ou estupro, dependendo do caso.

            A melhor exegese, entretanto, não autoriza tal compreensão, inclusive porque tais crimes prescindem, para sua configuração, das práticas tratadas no art. 148 do Código Penal.

2.2. Considerações gerais

            Como visto, em relação ao art. 148 do Código Penal foram feitas alterações que implicaram em novas formas de adequação típica qualificada.

            Em razão do princípio da anterioridade da lei penal; da irretroatividade da lei penal mais severa, somente os crimes praticados nos moldes descritos nas novas qualificadoras após a vigência da lei é que estarão sujeitos à forma qualificada que impõe punição mais severa. Não há qualquer possibilidade de agravamento de pena em razão das novas disposições no que tange aos fatos passados, consumados antes do ingresso das novas disposições no universo jurídico.

            De ver-se, entretanto, que o seqüestro e o cárcere privado são crimes permanentes, e mesmo que a inicial privação da liberdade tenha ocorrido antes da vigência da lei, ocorrendo, por exemplo, prisão em flagrante depois da data em que o regramento novo passou a ser aplicável, a tipificação se amoldará à forma qualificada em razão dos efeitos da permanência, conforme as observações acima apontadas, pois em tais situações, enquanto durar a permanência o crime estará em seu processo consumativo.

            Ressalte-se que em relação ao crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos, consumado antes da vigência da lei nova (sem permanência sob os efeitos dela), a conduta típica apenas comportará agravamento em razão da circunstância genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal.

2.3. Art. 215 do Código Penal

            Com o nomem criminis de posse sexual mediante fraude, na redação antiga o art. 215 do Código Penal punia a conduta de: “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude” (coloquei o itálico).

            Agora, conforme a Lei 11.106/2005, a redação do art. 215 passou a ser a seguinte: “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”.

             Conjunção carnal, para os termos da lei, quer dizer cópula vagínica, relação sexual.

            O crime em questão consuma-se com a efetiva conjunção carnal e somente é punido a título de dolo, podendo ser praticado mediante concurso de pessoas, com possibilidade de verificação da forma tentada.

            O objeto jurídico da tutela penal é a liberdade sexual da mulher.

            Sujeito ativo do crime só pode ser o homem, e somente a mulher honesta estava sujeita a ser vítima de tal ilícito penal, o que agora foi corrigido, pois a partir da “nova lei” qualquer mulher poderá ser vítima, sujeito passivo, portanto.

            A expressão “mulher honesta” constituía elemento normativo do tipo, e a exigência de honestidade impunha tratamento de natureza nitidamente discriminatória.

            A mudança agora introduzida ampliou a esfera de alcance da norma penal incriminadora, pois, se antes da mudança somente mulher que fosse considerada honesta estava protegida em sua liberdade sexual pela norma em comento, agora a proteção penal tem abrangência indistinta e não discriminatória em relação ao sexo feminino.

            Merece aplauso o reparo legislativo, pois se a figura do crime de estupro (art. 213 do CP) também visa à proteção da liberdade sexual da mulher, seja ela sexualmente honesta ou não (prostituta pode ser vítima do crime de estupro, RT 700/355), era sem sentido lógico deixar desprotegida penalmente, para os fins do crime de posse sexual mediante fraude, a liberdade sexual da mulher que optou por adotar conduta sexual de contornos mais frouxos.

            A ausência de honestidade sexual da mulher devassa não pode constituir motivo para a ausência de proteção penal, na exata medida em que aquelas dotadas de menor recato também podem ser submetidas à ação de “ter conjunção carnal, mediante fraude”.

            A ausência de honestidade sexual nunca constituiu imunidade à fraude que pode ser empregada para fins sexuais, e não é ético deixar sem proteção, como forma de “punição” ou “patrulhamento” da liberdade, aquela que se colocou a usar de seu erotismo de forma avolumada, com pouco ou nenhum critério.

            A proteção agora é plena e, de certa forma, confirma a liberdade de cada um no sentido de poder conduzir sua vida sexual como bem lhe aprouver.

            Em termos práticos é preciso anotar que inquéritos policiais arquivados no passado, exclusivamente em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima, não poderão ser agora reabertos apenas em razão da mudança legislativa. Não há como se justificar a aplicação do art. 18 do Código de Processo Penal na hipótese em testilha, e eventual tentativa nesse sentido irá configurar flagrante constrangimento ilegal, sanável pela via do habeas corpus.

             Absolvições impostas em Primeira Instância em razão da comprovada ausência de honestidade da vítima (antes da nova lei) não poderão ser modificadas em grau de recurso com fundamento exclusivo na mudança legislativa.

            Com efeito. A nova regra é mais gravosa na medida em que amplia o alcance da descrição típica para situações que antes não estavam nos limites da tipificação, e os princípios da anterioridade da lei[5] e da irretroatividade da lei penal mais severa[6] impedem a aplicação do texto novo em relação aos crimes já consumados no passado, sob a égide do antigo regramento.

2.4. Art. 216 do Código Penal

             Encerrando o rol de proteção à liberdade sexual quanto aos crimes praticados mediante fraude, o art. 216 do Código Penal regula a figura do “atentado ao pudor mediante fraude”.

            Enquanto o art. 215 do Código Penal se refere à prática de conjunção carnal, assim compreendida a relação sexual entre homem e mulher, nos termos em que acabamos de expor no tópico acima, o artigo sob análise se refere à prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal.

            Na precisa e oportuna lição de Nelson Hungria, “ato libidinoso é todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência”.[7] E o mesmo autor ainda ensinou: “O ato libidinoso a que se refere o texto legal, além de gravitar na órbita da função sexual, deve ser manifestamente obsceno ou lesivo da pudicícia média. Não pode ser confundido com a simples inconveniência, nem ser reconhecido numa atitude ambígua”.[8]

            O que distingue o atentado fraudulento ao pudor (art. 216 do CP) do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) é o meio empregado para a prática dos atos libidinosos.

            A mudança na redação do art. 216 foi tão severa e radical quanto acertada.

             Enquanto a forma fundamental punia como crime a conduta de “induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal”, com a Lei 11.106/2005 a tipificação básica passou a ser muito mais ampla.

            Com a nova redação, constitui crime de atentado ao pudor mediante fraude: “Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (coloquei o itálico).

            Houve profunda alteração quanto à possibilidade de sujeição passiva.

2.4.1. Sujeito passivo

            Antes, o crime do art. 216 do Código Penal só podia ser praticado contra mulher, e não bastava a condição de mulher pura e simplesmente; não era toda e qualquer mulher que podia ser vítima; era preciso tratar-se de mulher honesta.

            Com a retirada do elemento normativo do tipo: mulher honesta, e a inclusão da expressão “alguém”, a sujeição passiva ficou ampliada consideravelmente, conforme já é possível antever.

            No que pertine ao tema “mulher honesta” remetemos o leitor àquilo que já foi expendido nas reflexões ligadas ao art. 215 do Código Penal (item 2.3, supra), no que for pertinente.

            Quanto ao mais, cumpre anotar que agora o homem também pode ser vítima de crime de atentado ao pudor mediante fraude. A expressão alguém é indeterminada quanto ao sexo, permitindo que tanto o homem quanto a mulher, seja ela honesta ou não, figurem como vítima.

            E era assim que devia ser mesmo. Não havia razão lógica ou jurídica para as restrições quanto à possibilidade de sujeição passiva no tocante ao crime em comento.

            Não se justificava a proteção jurídico-penal tão-só à mulher honesta.

             Homens e mulheres, indistintamente, podem ser vítima do crime sob análise.

            A restrição à mulher honesta tinha ranço discriminatório, razão maior da mudança imposta em boa hora, senão tardiamente.

             Inclusive por coerência, era preciso alinhar o art. 216 do Código Penal ao art. 214 do mesmo “Codex”, que não contém restrições quanto a sujeição passiva, de maneira a permitir que homens e mulheres sejam considerados vítimas do crime de atentado violento ao pudor, nos termos de sua regulamentação.

            A lacuna está preenchida.

            A discriminação condenável foi banida e o sistema de proteção foi aperfeiçoado.

2.4.2. Parágrafo único do art. 216 do Código Penal

            Para ser coerente com as disposições contidas no caput do art. 216 foi preciso mudar a redação de seu parágrafo único.

            A antiga redação era nos seguintes termos: “se a ofendida é menor de dezoito e maior de catorze anos”.[9]

            Ampliada a sujeição passiva, que agora não alcança apenas vítima do sexo feminino, não era correto manter na redação do parágrafo único a expressão “ofendida”.

            Se a regra não fosse modificada iria proporcionar odioso tratamento discriminatório, com previsão de pena qualificada apenas quando a vítima fosse do sexo feminino, excluindo a possibilidade de qualificadora quando “o ofendido” fosse menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos de idade.

             Substituído o vocábulo “ofendida” por “vítima”, ampliou-se a forma qualificada para alcançar vítimas de ambos os sexos, como deve ser.

            A pena prevista para a forma qualificada foi mantida: reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

2.5. Causas de aumento de pena

            O art. 226 do Código Penal está no Capítulo IV do Título VI, onde estão as “Disposições gerais”, e estabelece causas de aumento de pena para os crimes previstos nos capítulos anteriores, assim entendidos aqueles que se encontram no mesmo Título VI (Dos crimes contra os costumes), a saber: Capítulo I (Dos crimes contra a liberdade sexual); Capítulo II (Da sedução e da corrupção de menores); Capítulo III (Do rapto), este, agora com todos os seus artigos revogados, conforme o art. 5º da “nova lei”.

            Suas disposições elencam agravantes especiais das quais decorre cota fixa de aumento de pena.

            O texto antigo era expresso nos seguintes termos: “A pena é aumentada de quarta parte: I – se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas; II – se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; III – se o agente é casado”.

             A nova redação está posta nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”, e sobre tal matéria trataremos em tópico distinto.

            Antes da mudança imposta com a Lei 11.106/2005 a quota fixa de aumento de pena era comum a todas as modalidades previstas (quarta parte), agora, o aumento será de quarta parte apenas na hipótese do inciso I, e de metade nas situações do inciso II.

2.5.1. Sobre o inciso I

            No que tange ao inciso I cumpre observar que não houve mudança de redação no sentido de ampliar ou restringir o alcance da norma. A mesma previsão que antes justificava o aumento de pena ainda persiste.

            Ainda em relação ao inciso I é importante destacar que “o dispositivo não se refere, indistintamente, a concurso de duas ou mais pessoas para o crime, mas ao fato de ter sido o crime cometido, isto é, executado com pluralidade de agentes”.[10]

2.5.2. Sobre o inciso II

            Em relação ao inciso II as mudanças foram consideráveis e buscaram uniformizar o tratamento jurídico-penal dentro de uma acertada visão sistêmica e atualizada do Direito.

            No texto legal foram mantidas as seguintes causas de aumento: se o agente é, ascendente, irmão (ou irmã, entenda-se), tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela.

2.5.2.1. Texto suprimido

            Foi suprimida do texto a figura do “pai adotivo”.

             Obviamente, com tal providência não quis o legislador beneficiar o “pai adotivo” que praticar os crimes a que se refere o art. 226. E efetivamente não beneficiou.

            É que desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), e também em razão do “Novo Código Civil” (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), não mais se justifica, juridicamente, a utilização da expressão “pai adotivo”, isso em razão do tratamento jurídico desde então dispensado à adoção, e notadamente em razão dos efeitos que dela decorrem.

            Em razão do novo tratamento jurídico dispensado à adoção, e dos efeitos que dela resultam, a figura do antigo “pai adotivo” agora se enquadra na figura do ascendente, já expressa na antiga redação do inciso II, que nesse ponto não sofreu alteração.

            Está mantida, pois, a proteção jurídico-penal, e agora ajustada com a nova realidade jurídica na sempre necessária visão sistêmica.

2.5.2.2. Texto acrescido

            Além do que foi mantido e retirado do inciso II, conforme analisamos acima, a mudança legislativa acrescentou que a pena também será aumentada de metade se o agente for: madrasta, tio, cônjuge ou companheiro.

            Como o texto antigo já previa como causa de aumento de pena o fato do delito ter sido praticado por padrasto; visando acabar com as discussões sobre a possibilidade de se estender ou não a causa de aumento para a madrasta autora de delito de igual natureza, isso em razão de princípios como o da taxatividade, da reserva legal etc., a Lei 11.106/2005 ajustou a redação do inciso II de forma à não permitir a continuidade da discussão.

            Aliás, o reparo era mesmo necessário também em razão das demais mudanças instituídas com a própria Lei 11.106/2005.

            Se o agente for tio da vítima a pena também será aumentada a partir da vigência da “nova lei”. Entenda-se: tio ou tia.

            Tal compreensão não está proibida em razão da ausência de previsão expressa. Diga-se o mesmo em relação ao companheiro ou companheira.

            É certo que o inciso refere-se apenas e tão-somente ao tio (no masculino) e ao companheiro (no masculino), e isso poderia levar à conclusão no sentido de que o legislador quis excluir da incidência da causa de aumento de pena regulada no inciso II do art. 226 a tia e a companheira, até porque em relação ao padrasto cuidou de acrescentar a figura feminina correspondente (madrasta), cautela não adotada em relação aos outros dois (tio e companheiro).

            Ocorre, entretanto, que buscando o espírito da lei; o espírito das mudanças impostas, a conclusão não pode ser outra. O que se pretendeu, mesmo, foi a ampliação para o tio, de sexo masculino ou feminino, e ao companheiro do sexo masculino ou feminino.

            Ainda que assim não se entenda, uma outra possibilidade de enquadramento da tia e da companheira será possível, se identificada a hipótese estabelecida na parte final do inc. II.

            Se por um lado é até possível dizer que o texto legal se afigura imperfeito quanto ao seu alcance de proteção jurídico-penal, e isso em razão da ausência de expressa menção a tais figuras (tia e companheira), é certo que estamos diante de um típico caso de interpretação analógica, onde as cláusulas específicas estão seguidas de cláusula genérica, e isso em razão da parte final do inciso II onde se lê: “… preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Sendo assim, se a agente for tia ou companheira, exercendo, a qualquer título, autoridade sobre a vítima, estará justificada a causa de aumento (embora com outro fundamento).

            Maior discussão, entretanto, ficará para a hipótese de companheiro ou companheira, isso em razão da questionável autoridade que um possa exercer sobre o outro.

            No que tange aos conviventes em relação homoafetiva reiteramos o que já ficou anotado por ocasião das observações ao art. 148 do Código Penal (item 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), para onde remetemos o leitor.

            Quanto à figura do cônjuge não há qualquer questionamento. A previsão refere-se ao cônjuge do sexo masculino e também ao cônjuge do sexo feminino.

2.5.2.3. Aumento de pena nas hipóteses do inciso II

            As causas descritas no inciso II agora ensejam aumento de metade da pena (antes o aumento era de quarta parte).

            No que pertine a incidência da nova regulamentação sobre fatos já consumados antes de sua vigência é preciso ter em vista as disposições dos arts. 1º e 4º do Código Penal, que estão amparados no art. 5º, incs. XXXIX e XL da Constituição Federal.

2.6. Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoas

             Conforme o art. 3º da Lei 11.106/2005, o Capítulo V do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

            O título passou de: “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” para: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas” (coloquei o itálico).

            A mudança foi necessária em razão das modificações introduzidas nos arts. 227 e 231 do Código Penal, conforme veremos abaixo.

2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem

            Sob o nomem criminis de “mediação para servir a lascívia de outrem” o art.227 do Código Penal tipifica a conduta de “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem”, estabelecendo pena de reclusão, de um a três anos para a forma simples.

            As formas qualificadas estão elencadas nos §§ 1ºe 2º.

            Em conformidade com o disposto no § 3º, “se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

            A nova lei deu maior abrangência ao § 1º do art. 227, que na redação antiga tinha o seguinte texto: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, marido, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

            A nova redação está nos seguintes termos: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

            Como se vê, a expressão “marido” foi substituída por “cônjuge ou companheiro”.             De melhor rigor técnico e  em sintonia com as regras que integram o sistema jurídico vigente, a mudança merece aplauso.

             Enquanto a previsão antiga se referia apenas ao marido, cônjuge do sexo masculino, portanto, agora fala em cônjuge ou companheiro. Leia-se: cônjuge do sexo masculino ou feminino; companheiro ou companheira.

            No que tange aos reflexos incidentes sobre os fatos praticados sob a égide do regramento antigo é preciso destacar que não houve qualquer abrandamento em relação ao “marido” que cometeu tal crime, visto que a forma qualificada quanto a este permaneceu intacta, somente com nova linguagem técnica, qual seja: cônjuge.

            Por outro vértice, se a conduta fora praticada antes da nova lei por cônjuge do sexo feminino; por companheiro ou companheira, não estará submetida ao novo tratamento penal. Quanto a estes, somente a partir da vigência da “nova lei” é que se submeterão a seus efeitos penais severos.

            Quanto ao mais, para evitar o enfaro da repetição remetemos o leitor ao que foi dito por ocasião das considerações ao art. 148 do Código Penal (2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), no que for pertinente.

2.8. Tráfico internacional de pessoas

            Outra mudança trazida pela Lei 11.106/2005 está no art. 231 do Código Penal, antes denominado crime de “tráfico de mulheres”.

            Agora o nomem criminis passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, e isso em razão da nova redação do art. 231 e também para destacar sua diferença com o novo tipo penal trazido com a “lei nova”, denominado “tráfico interno de pessoas”, expresso no art. 231-A, objeto de apreciação no tópico seguinte.

            A redação antiga do art. 231 tinha o seguinte teor: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico).

            Para a forma fundamental a pena era de reclusão, de três a oito anos.

            Com a nova redação o sistema repressivo passou a punir como crime de “tráfico internacional de pessoas” as seguintes condutas: “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico para destacar as mudanças).

            Foi mantida a pena de reclusão no mesmo patamar, contudo, agora ela deverá ser aplicada cumulativamente com pena de multa. Antes da nova lei a imposição de pena de multa só se verificava se o crime fosse cometido com o fim de lucro, conforme a redação do § 3º que acabou revogado. Para o legislador, agora, tal crime sempre será praticado com o fim de lucro, conclusão que não é de todo desacertada.

            A mudança introduzida no caput atualizou o tipo penal com a realidade dos dias hodiernos.

            O verbo intermediar, incluído no caput, tem considerável alcance e por certo proporcionará o enquadramento de muitas condutas convergentes à prática do crime em questão, antes de difícil conformação e ajustamento às hipóteses típicas.

             Enquanto as condutas de promover ou facilitar têm alcance mais restrito, a intermediação completa o rol das condutas típicas que normalmente estão ligadas às infrações de tal natureza e permite não deixar a descoberto; fora da esfera de proteção penal, razoável número de comportamentos que se ajustam ao verbo.

             Enquanto qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em questão, na antiga redação somente a mulher é que poderia ser sujeito passivo.

            A nova redação deu ao crime uma redefinição e também maior alcance, pois, com a retirada do monopólio do sexo feminino em relação ao pólo passivo, agora qualquer pessoa poderá nele figurar: homem ou mulher.

            A restrição foi derrubada.

            Sensível  à realidade dos dias atuais e conhecendo as práticas que envolvem a exploração sexual em sentido amplo, o legislador reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso ampliou, a proteção penal também ao sexo masculino, pois já não é novidade a comercialização e exploração sexual do homem, o que era quase inimaginável no tempo em que se redigiu o Código Penal brasileiro.

            Foram mantidas as redações dos §§ 1º 2º e as penas reclusivas exatamente como antes. Acrescentou-se apenas a pena de multa, agora cumulativamente aplicada.

            A revogação do § 3º, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ precedentes.

             Haveria, pois, flagrante impertinência em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

2.9. Tráfico interno de pessoas

            Além da nova tipificação ampliada em relação ao art. 231 a Lei 11.106/2005 também criou novo tipo penal.

            Para o aperfeiçoamento do sistema punitivo, além de punir o tráfico internacional de pessoas agora com maior amplitude, o legislador cuidou de tipificar o crime de “tráfico interno de pessoas”, estabelecendo como crime previsto no art. 231-A do Código Penal as condutas de: “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”. A pena abstratamente prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, exatamente como a pena prevista para o art. 231, caput, e por força do disposto em seu parágrafo único, ao crime de tráfico interno de pessoas também são aplicáveis as regras dos §§ 1º e 2º do art. 231.

            O objeto jurídico da tutela penal é a honra sexual; a lei também visa proteger os bons costumes.

             Qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo, independentemente do sexo, ocorrendo o mesmo em relação ao sujeito passivo.

            O elemento subjetivo do tipo é o dolo. Basta o dolo genérico.

            A consumação ocorre com a prática efetiva de pelo menos uma das condutas descritas no tipo penal, sendo admissível a forma tentada (art. 14, II, co CP).

            A figura do art. 231-A é tipo alternativo, de conduta variada.

             Promover significa dar impulso, colocar em execução (de qualquer forma); intermediar quer dizer servir de intermediário ou mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraçar, tornar mais simples, dar maior agilidade.

            Recrutamento é a reunião; agrupamento ou alistamento de pessoas. Não é preciso que o recrutamento envolva várias pessoas; basta uma para a configuração do ilícito.

             Transporte é o deslocamento de um lugar a outro. Enquanto o agente estiver promovendo o transporte o crime será de natureza permanente, assim considerado aquele cuja conduta delituosa se mantém no tempo e no espaço.

           Transferência significa mudança de um lugar a outro. Há uma sutil diferença entre esta conduta e a anterior (transporte). Enquanto transporte tem o sentido de levar alguém para local em que se pratica a prostituição (para os fins do tipo legal), a transferência pressupõe a mudança de um lugar onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação.

             Alojamento é local específico destinado ao abrigo de pessoas.

             Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa receber alguém em local não destinado ao alojamento. Acolher é dar amparo, guarida; dar refúgio, proteção ou conforto físico.

            É preciso que as práticas acima analisadas tenham por alvo “pessoa que venha a exercer a prostituição”. Exercer a prostituição é prostituir-se; dedicar-se ao comércio sexual; à satisfação voluntária da lascívia de outrem em troca de vantagem.

            Para a adequação típica é preciso, ainda, que tais condutas tenham ocorrido no território nacional, pois se uma das práticas tocar território estrangeiro a figura penal será a do art. 231 (observados os parâmetros da tipificação), e não a do art. 231-A.

            A pena abstratamente prevista afasta a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), e eventual condenação até 4 (quatro) anos não impedirá a substituição da privativa de liberdade por restritiva de direito, desde que presentes os demais requisitos exigidos em lei. Se fixada a privativa de liberdade até o limite acima indicado, seu cumprimento poderá iniciar-se no regime aberto, observadas as disposições do art. 33 c.c. o art. 59, ambos do Código Penal. 

2.10. Irretroatividade da lei mais severa

2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas

            As inovações acrescidas ao § 1º do art. 227 e ao caput do art. 231, e bem assim a nova figura penal do art. 231-A, obviamente não se aplicam aos casos consumados antes da vigência da Lei 11.106/2005.

             Princípios de contornos constitucionais como o da anterioridade da lei (princípio da legalidade ou reserva legal) e da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, incs. XXXIX e XL, da CF), também previstos no art. 1º do Código Penal, impedem a retroação do alcance do texto novo para atingir situações consumadas ao tempo em que a regulamentação normativa era outra, mais benéfica.

            De tal sorte, para os termos do novo art. 227 do Código Penal, somente os crimes praticados por cônjuge do sexo feminino; companheiro ou companheira, após a vigência da nova regulamentação penal é que se submeterão à forma qualificada do § 1º.

            Nessa mesma linha argumentativa, as inovações dos arts. 231 e 231-A só incidirão sobre fatos praticados sob a égide da nova ordem penal. Observe-se, contudo, que em relação à prática do verbo “transporte”, previsto no art. 231-A, onde a conduta é de natureza permanente, poderá ocorrer hipótese em que ele venha a perdurar vários dias. Sendo assim, se iniciado antes da vigência da lei nova, o transporte se estender para além do início da exigência do texto novo, poderá ocorrer prisão em flagrante, por exemplo, e regular processo com a nova definição típica.

2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada

            A experiência da vida contemporânea, pautada pela febre do enriquecimento, indica que muitas vezes a pena de multa poderá surtir efeitos econômicos e psicológicos no réu, bem mais severos que a ameaça ou imposição de pena privativa de liberdade.

            É forçoso reconhecer, entretanto, que para tal realidade seria necessário um sistema de execução mais eficaz do que o determinado com a redefinição da pena de multa como dívida de valor, nos termos da Lei 9.268/96.

            Pelas mesmas razões expostas no item anterior, a pena de multa agora cumulativamente imposta não obriga o aplicador da lei em relação aos fatos passados, consumados antes da vigência do texto novo.

            Para os casos consumados antes da Lei 11.106/2005, com ou sem investigação ou processo de conhecimento iniciado antes de 29 de março de 2005 (data em que a lei entrou em vigor), já não subsiste qualquer possibilidade de aplicação de pena de multa, ainda que o crime tenha sido cometido com o fim de lucro, e isso em razão da revogação expressa do §3º do art. 231 (cf. art. 5º da nova lei).

            Aqui é forçoso reconhecer que a pena de multa deixou de existir para os casos passados. Não há como se restabelecer a vigência do § 3º. A revogação expressa é causa intransponível e obstativa de tal possibilidade.

3. Dispositivos revogados

            Além das modificações anteriormente apontadas e analisadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, a Lei 11.106/2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

             Passaremos, a seguir, à análise dos dispositivos revogados, seguindo a mesma ordem de disposição acima indicada.     

3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107

            O art. 107 do Código Penal estabelece de forma exemplificativa algumas causas de extinção da punibilidade, não sendo demais lembrar que punibilidade “é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção”, conforme a objetiva lição de Damásio de Jesus.[11]

            Os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal estabeleciam como causas de extinção da punibilidade o casamento da vítima com o agente e o casamento da vítima com terceiro, respectivamente.

             Conforme o texto revogado do inc. VII do art. 107 do Código Penal, a punibilidade seria extinta: “pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II, e III do Título VI da Parte Especial deste Código”.

            Nos termos do revogado inc. VIII do art. 107 do Código Penal, também seria extinta a punibilidade: “pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação pena no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração”.

            As disposições acima transcritas abrangiam os crimes de estupro, atentado violento ao pudor; posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores e rapto (arts. 213 a 221 do CP), sendo imprescindível observar as ressalvas legais que determinavam limitações ao alcance das regras.

             Impunha-se a extinção da punibilidade em razão da reparação pelo casamento. Entendia-se que o matrimônio limpava a honra da vítima manchada pelo crime, constituindo, em tese, razão suficiente para a terminação dos questionamentos judiciais acerca dos fatos.

             Segundo parece ser o entendimento do legislador, o novo tratamento penal apresentado com a Lei 11.106/2005 não permitia a continuidade dos dispositivos antigos.

            Agora, o casamento não mais constitui causa de extinção da punibilidade, e bem por isso algumas vezes a vítima poderá unir-se em matrimônio com o réu, livre e espontaneamente; formar família, e depois ver o cônjuge condenado pela prática da conduta precedente, ensejadora de procedimento na esfera criminal.

            Haverá discrepância de conseqüências, pois em se tratando de crimes de ação penal privada a vítima poderá optar pelo não ajuizamento da ação; pela renúncia ao direito de queixa; pelo perdão; e ainda após o ajuizamento da queixa-crime provocar a extinção da punibilidade pela perempção (art. 60 do CPP), caso seja seu desejo, por exemplo, após casar-se com o réu.

            De outro vértice, em se tratando de crime de ação penal pública tais institutos são inaplicáveis, e sem a possibilidade de extinção da punibilidade em razão do casamento poderá ocorrer a situação acima aventada, danosa à estabilidade da união familiar.

            O tempo dirá se a mudança foi acertada, entretanto, desde já é possível antever situações onde haverá sério problema sócio-familiar que poderia ser evitado com a permanência das regras extirpadas do art. 107 do Código Penal.

3.2. Sobre o art. 217

            O polêmico crime de sedução estava previsto no art. 217 do Código Penal, e segundo a redação típica assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”.

            Nos dias atuais o crime em questão era de difícil configuração em razão da necessária conjugação das elementares que o integravam. Era preciso que a vítima fosse virgem; menor de dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime cogitável será o de estupro); inexperiente e ingênua, ou que depositasse justificável confiança em seu sedutor.

            De longa data a melhor doutrina reclamava a revogação do tipo penal em comento. A jurisprudência também demonstrava a mesma tendência.

            Não era difícil perceber que a previsão legal não estava ajustada aos dias atuais.

            A perda da virgindade pela mulher, nas condições do art. 217, já não precisava da proteção penal.

            Há mais. Qualquer proteção que se pretendesse estabelecer sobre o objeto jurídico da tutela penal em questão (a integridade ou virgindade da menor) prescindia de tipificação conforme o art. 217, haja vista o teor das disposições contidas nos arts. 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra violência ou grave ameaça, e as regras dos arts. 215 e 216 que cuidam das hipóteses em que são empregados meios fraudulentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta à proteção da moral sexual dos adolescentes de ambos os sexos, já que o tipo penal se refere a “… pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos…”.

            Como se vê, não havia justificação lógica ou jurídica para a permanência do crime de sedução no ordenamento jurídico, e bem por isso a revogação do tipo penal é bem vinda.

            Em relação ao antigo crime de sedução ocorreu abolitio criminis, sendo aplicável a regra do art. 2º do Código Penal.

3.3. Sobre o art. 219

            O art. 219 do Código Penal cuidava do crime de “rapto violento ou mediante fraude”.

             Conforme a narração típica, configurava referido crime: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos.

            A nova lei aboliu a expressão “mulher honesta” do Código Penal e também cuidou de acrescentar, entre outras regras já analisadas, o inciso V ao §1º do art. 148, com a seguinte redação: “Se o crime é praticado com fins libidinosos”.

            O art. 148 tipifica o crime de seqüestro ou cárcere privado, contendo formas qualificadas no § 1º, sendo estas punidas com reclusão, de dois a cinco anos.

            Em razão do disposto no inc. V acrescentado ao § 1º do art. 148 deixou de ser necessária a previsão contida no art. 219 do Código Penal, visto que a conduta deste último artigo passou a ser tratada naqueles dispositivos (art. 148, § 1º, inc. V).

            A partir da Lei 11.106/2005, privar alguém (homem ou mulher) de sua liberdade, para fins libidinosos, constitui crime de seqüestro ou cárcere privado qualificado, e não rapto.

3.4. Sobre o art. 220

            Com o nome de “rapto consensual” o art. 220 do Código Penal estabelecia pena de detenção, de um a três anos, se a raptada fosse maior de catorze e menor de vinte e um anos, e o rapto fosse praticado com seu consentimento” (coloquei o itálico).

            Em relação a tal ilícito ocorreu abolitio criminis (art. 2º do CP).

            Muito embora alguns possam sustentar que referida tipificação agora se encontra no inc. IV do §1º do art. 148, acrescido com a Lei 11.106/2005, tal conclusão não é acertada, pois nas hipóteses de seqüestro ou cárcere privado o consentimento válido da vítima impede a tipificação. 

3.5. Sobre os arts. 221 e 222

            O art. 221 do Código Penal trazia “causas de diminuição de pena” aplicáveis aos crimes dos arts. 219 e 220.

            O art. 222, também se referindo aos arts. 219 e 220; tratava do concurso de crimes envolvendo rapto.

            Em razão da revogação dos arts. 219 e 220, não havia qualquer razão justificadora para a permanência dos dois artigos subseqüentes no ordenamento jurídico.

            Todo o conteúdo do Capítulo III (Do rapto) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), arts. 219, 220, 221 e 222; foi revogado expressamente.

3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226

            Em sua antiga redação o artigo 226, III, do Código Penal, determinava o aumento de quarta parte da pena, em relação aos delitos a que está vinculado, se o agente era casado ao tempo do ilícito.

            A nova redação do art. 226 está nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.

            Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”.

            A regra mais benéfica alcança não só os fatos praticados após a vigência da nova lei, mas também aqueles consumados antes, e isso por força do disposto no parágrafo único do art. 2º do Código Penal, verbis: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

3.7. Sobre o § 3o do art. 231

             Referindo-se ao que antes era denominado crime de “tráfico de mulheres”, e que agora passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, o § 3º do art. 231 do Código Penal tinha a seguinte redação: “Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

            A revogação do § 3º do art. 231 do Código Penal, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo.

             Haveria, pois, flagrante impertinência e descompasso em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

            É revogação era mesmo de rigor, diante da modificação imposta.

3.8. Sobre o art. 240

            O crime de adultério estava previsto no art. 240 do Código Penal, e tinha por objeto jurídico da tutela penal “a organização jurídica da família e do casamento”.[12]

            Mesmo reconhecendo a importância da proteção jurídica da família e do casamento, é de se concluir que hoje não mais se justifica a proteção penal outorgada pelo legislador de 1940.

            Não se trata de render homenagens ao adultério. O que é forçoso reconhecer é que o casamento e a família encontram outras formas de proteção no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, que determina o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges.

             Conforme assevera  Claus Roxin[13], o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.

            O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, o que demonstra a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito.

            As regras previstas na legislação civil são apropriadas e suficientes, e sendo assim, a revogação do tipo penal em que se encontra o crime de adultério é medida juridicamente saudável e condizente com a realidade jurídico-social em que vivemos. 

4. Considerações finais

             Conforme visto, as modificações introduzidas no Código Penal foram significativas e tendentes à atualização do sistema penal repressivo no que pertine aos delitos alcançados.

            Embora sujeita a críticas pontuais, é força convir que, em sentido amplo a nova lei contém mais acertos do que erros, contrariando a sofrível realidade da produção legislativa no campo penal nos últimos tempos, o que se espera seja o primeiro passo na escolha de um novo caminho.

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[1] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. VI, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1955, p. 183/184.

[2] DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, São Paulo, Renovar, 6ª ed., 2002, p. 318.

[3] JESUS, Damásio E. de. Código Penal anotado, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 15.

[4] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VII, 1958, p. 73.

[5] Art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal; art. 1º do Código Penal.

[6] Art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal; art. 2º, parágrafo único, do Código Penal.

[7] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 131.

[8] HUNGRIA, Nélson, Ob., Cit., p. 133.

[9] Pena – reclusão, de dois a quatro anos.

[10] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VIII, 1956, p. 247.

[11] Código Penal anotado, São Paulo, Saraiva, 8ª ed., p. 280.

[12] DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 505.

[13] Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega,  1986. p. 28.

 


 

Referência  Biográfica

Renato Flavio Marcão –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós) Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP) Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP) Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP) Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP) Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva), e, Curso de Execução Penal (Saraiva).

Medidas Provisórias – Ditadura ou Democracia? Crime de Responsabilidade e Impeachment

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* Leon Frejda Szklarowsky 

Considerações Gerais

Instrumentos legislativos excepcionais não constituem novidade no Direito. Desde os mais remotos tempos, governantes de todos os países utilizam-se de meios nem sempre ortodoxos para legislar sobre qualquer matéria, passando por cima do Poder competente, driblando a morosidade dos Parlamentos ou até para saciar seu apetite legiferante e quem sabe mais o quê! 

O Brasil-Império conheceu a medida provisória, incrustada no artigo 179 da Carta de 25 de março de 1824, utilizável somente em casos excepcionais. O inciso XXXV ordenava que: “nos casos de rebeldia, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado que se dispensem por tempo determinado algumas formalidades que garantam a liberdade individual, poder-se-ha fazer por acto especial do Poder Legislativo. Não se achando, porém, a esse tempo reunida a Assembléia, e correndo a Pátria perigo imminente, poderá o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória, e indispensável, suspendendo-a immediatamente que cesse a necessidade urgente que a motivou; devendo, num e outro caso, remeter à Assembléia, logo que reunida for, uma relação motivada das prisões, e d’outras medidas de prevenção tomadas; e quaesquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a ellas, serão responsáveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito.”

Pelo abuso, a autoridade era responsável e, sem dúvida, punida devidamente. Vários eram os requisitos necessários para que essa medida, de caráter restrito, fosse adotada, não sem antes saber o Governo se a Assembléia estava ou não reunida e se a nação corria perigo. A Carta era severa e não admitia desvios. Acorrentava o governante com extremo rigor, conquanto lhe permitia fazer uso da medida excepcional, quando e se necessário.

Opõe-se a esse entendimento, com veemência, Brasilino Pereira dos Santos, argumentando que nem por analogia ou extensão é possível chegar-se à conclusão de que a medida provisória já existia no Império, visto que aquele instituto mais se assemelhava ao atual estado de sítio ou de defesa atual[2].

No Direito Comparado, o decreto ou decreto-lei é usado com maior ou menor elasticidade e freqüência, como substituto eventual de diplomas oriundos do Legislativo, não importando o sistema político adotado: parlamentarismo ou presidencialismo. Países democráticos utilizam-no nos casos de extrema necessidade[3]. Esta é também a opinião de Canotilho e Jorge Miranda, que denominam tais atos de “atos governamentais”. Canotilho faz um estudo comparativo entre o Direito lusitano e o Direito de outros países, inclusive o brasileiro, e conclui que estes atos legislativos são imprescindíveis no mundo dinâmico atual[4].  

No Brasil, o decreto, com força de lei, ou mais precisamente de lei constitucional, foi inaugurado pelo Marechal Deodoro, que implantou a República, fazendo-a nascer por meios oblíquos, construindo o caminho que seria palmilhado pelos seus sucessores com maior ou menor amplitude e intensidade, dependendo das circunstâncias e do momento[5].

Era o início de malvada e desavergonhada tradição, glorificada, em 1937, por Getúlio Vargas, que governou por decreto-lei até 1945. O Presidente da República poderia ser autorizado pelo Parlamento a expedir decretos-leis, nas condições e nos limites da autorização, ou ainda, nos períodos de recesso ou dissolução do Congresso, sobre matérias de competência da União, com exceção das especificadas neste artigo[6].

Todo seu governo, porém, calçou-se no artigo 180 da Carta polaca. Esta autorizava o Chefe do Executivo a expedir decreto-lei com força de lei ordinária sobre todas as matérias de competência da União, enquanto o Parlamento Nacional não se reunisse.. O resto é de todos conhecido, por ter vivido naquela época ou pela leitura dos compêndios de história ainda não devidamente digeridos!

De 1964 a 1988, os governos revolucionários legislaram por atos institucionais ou por decretos-leis. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1/69 exigiam, como regra, os requisitos de urgência ou relevância, quase nunca (ou jamais, mesmo!) obedecidos. A matéria era restrita, salvo curto período, na primeira fase da Revolução quando tudo era passível de decreto-lei.   

Com sua edição pelo Presidente da República, o decreto-lei passaria a vigorar imediatamente, podendo o Congresso Nacional aprová-lo ou rejeitá-lo, sem direito de apresentar emendas. Este estava completamente manietado.

A Constituição de 1988 inaugurou a medida provisória, com fonte no Direito italiano, como sucessora do decreto-lei, considerado entulho autoritário, sem qualquer restrição quanto à matéria a ser regulada, salvo a penal, consoante opinião de doutrinadores e orientação iterativa do Supremo Tribunal Federal[7].

Ao contrário do decreto-lei do ciclo revolucionário, os pressupostos de relevância e urgência são concomitantes e não alternativos.

A medida provisória é mais democrática que o decreto-lei, porque não há restrição quanto à apresentação de emendas e destaques, pelos parlamentares, que poderão alterar o texto original, convertendo-a em projeto de lei de conversão. Neste caso, aquela manter-se-á, na íntegra, até a sanção ou o veto do Presidente da República. Poderão, também, aprová-la como veio do Executivo ou, ainda, rejeitá-la, in totum ou em parte.

O governo necessita de instrumento ágil para, em momentos de extrema necessidade e urgência, legislar sobre matéria que não pode aguardar a manifestação do legislador, pelas vias ordinárias. Eis a razão suficiente para outorgar ao Chefe do Executivo a competência e a prerrogativa para legislar, por decreto-lei ou por medida provisória, substituindo-se ao legislador, momentaneamente[8].

Se o Legislativo não tem condições de atender aos reclamos da sociedade, com a prontidão exigida pelos novos tempos impostos pela revolução tecnológica e científica, faz-se necessário que o Chefe do Governo disponha de instrumental adequado. Esta é também a manifestação do Ministro Márcio Thomaz Bastos. Eis suas palavras: “Acho que não dá para governar sem medida provisória. O que dá é para caminhar na direção do disciplinamento, de modo que você possa construir um arcabouço de instituições, passar a usar menos, diminuindo progressivamente”[9].

Durante a discussão do projeto de emenda constitucional que se transformou na Emenda nº 32, após tramitar por mais de cinco longos anos, o Deputado Jutahy Magalhães propusera a supressão do artigo 246 da Constituição, por não haver necessidade de mantê-lo após a regulamentação das medidas provisórias[10]. Reconhece, no entanto, que a medida provisória deveria, realmente, ser mantida, por indispensável à governabilidade.[11].

Há os que se insurgem contra a utilização desproporcional desse instrumento, com destaque para Mercadante, que assevera “a necessidade de se concluir as negociações para reformular a tramitação das Medidas Provisórias (MPs)”, porque “a situação não poder ficar como está”.[12]

Natureza da Medida Provisória

A medida provisória é ato legislativo complexo – lei sob condição resolutiva –, visto que só se completa com a participação obrigatória do Congresso Nacional, que deve proceder ao exame prévio de sua constitucionalidade quanto ao preenchimento dos requisitos de urgência e relevância e, posteriormente, deliberar quanto ao mérito. Eis o casamento indissolúvel e necessário entre os dois Poderes. Um não sobrevive sem o outro. A exigência constitucional é rigorosa e os prazos também, em face da urgência. Nem poderia ser diferente.

Contudo, como sói acontecer, desde quando surgiu, com a Constituição de 1988 e antes, com o decreto-lei, todos os governantes têm abusado, criminosa e impunemente, da sua utilização, banalizando um instrumental que, sem dúvida, é necessário, nos casos de extrema urgência e relevância, e não é estranho ao Direito Constitucional dos países mais adiantados, parlamentaristas ou presidencialistas, como instrumento necessário e insubstituível de governabilidade.[13]

Não é preciso que se emende novamente a Constituição, para nela inserir outras limitações e encurtar ou aumentar prazos. A experiência mostra que não são as constrições que impedirão sua utilização. Basta que se cumpram, religiosa e rigorosamente, os ditames da Carta Maior, da Lei Complementar 95/98, modificada pela Lei Complementar 107/2001 e da Resolução 1/2002, do Congresso Nacional, pois leis há em profusão. Falta a consciência de seu cumprimento.

Lembre-se do ilustre Ministro Nilson Naves que, com muita propriedade e fina ironia, em congresso de magistrados federais, realizado, em Camboriu (SC), comentou que, para cada espirro do juiz, interpõe-se um agravo. Da mesma forma, pode-se dizer: para cada gosto ou vontade mal servida, faz-se uma modificação na Constituição, via emenda constitucional. Não seria fora de propósito invocar-se o inesquecível Kafka.      

O Brasil é um manancial de leis tão caudaloso quanto os rios São Francisco (o velho Chico) e Amazonas. É preciso que sejam obedecidos os  diplomas existentes. Nada mais. Cultue-se a submissão às leis. Punam-se, com rigor, os que as infringem. Como é sabido, a indisciplina no cumprimento da Lei mais importante do País é patente.

A Resolução n° 1, de 2002, do Congresso Nacional, que regulamenta a apreciação de medidas provisórias, dispõe que, nas 48 horas seguintes à publicação destas, o Presidente do Congresso Nacional publicará e distribuirá avulso da matéria e designará a Comissão Mista, composta de senadores e deputados, para seu estudo e parecer. Esta tem o prazo de 24 horas para instalar-se, proceder à eleição do presidente e designar o relator. As emendas poderão ser apresentadas nos 5 dias seguintes à publicação da medida provisória no DOU, vedada a apresentação de matéria estranha àquela nela tratada, reproduzindo, na verdade, a proibição da Lei Complementar 95/98, alterada pela Lei Complementar 107/01, jamais cumprida!

O parágrafo único do artigo 59 da CF determina à lei complementar a disciplina quanto à elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. O artigo 7º da citada LC cit. dispõe que o primeiro artigo do texto legal indicará o seu objeto e o respectivo âmbito de aplicação. Cada lei deverá tratar de um único objeto, exceto as codificações, e não poderá conter matéria estranha ao seu objeto ou a ele não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. Essas disposições aplicam-se não só às leis, mas também às medidas provisórias e aos demais atos normativos mencionados no caput do artigo 59 citado, e ainda aos decretos e aos demais atos regulamentares expedidos pelos órgãos do Executivo (artigo 1º, parágrafo único, da LC 95/98). Não vinga a tese esdrúxula e equivocada de que a medida provisória não estaria sujeita a essa ordem. Basta a leitura atenta da lei para desmontar esta tese.

Faz-se necessário o aclaramento de duas questões: a conceituação do que seja o interesse público relevante ou a relevância e a urgência, inserindo-os na Resolução nº 1 citada, para servir de roteiro simples, fácil e didático aos governantes.

Tanto a resolução quanto o decreto legislativo compõem o processo legislativo[14]. O procedimento para apreciação de medidas provisórias tem rito próprio regulado pela Resolução nº 1 antes citada e o decreto legislativo disciplina as relações jurídicas decorrentes das medidas provisórias durante a sua vigência.

Interesse público relevante ou relevância é a realidade que se superpõe a tudo, se sobreleva. Sua desconsideração pode afetar a ordem pública ou social. É indispensável. Urgente é o que é iminente, devendo ser realizado com extrema rapidez, de imediato, sob pena de não surtir o efeito desejado ou necessário. Tais condições estão indissoluvelmente acorrentadas.

Deste modo, o Chefe do Executivo continua a ser o árbitro de sua necessidade, não obstante a discricionariedade não pode transformar-se em arbítrio. Deverá ele pautar-se, segundo os ditames da Constituição, e submeter-se aos pressupostos objetivos, sem segundas e escusas interpretações.

Alguns juristas advogam a tese de que, em se tratando de matéria urgente, seria suficiente o Presidente da República solicitar urgência no projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional. Entretanto, na prática, isto raramente funciona, de sorte que a medida provisória é realmente necessária. Até seus mais ferozes inimigos reconhecem sua importância no veloz mundo moderno.

Pois bem, se há abuso, há que se encontrar o respectivo remédio intimidativo e eficaz, capaz de exterminar o malfadado vírus.

Abuso Desenfreado e Impunidade

Todos os governos têm abusado, sistemática e criminosamente, quer do uso dos decretos-leis, no passado, quer da adoção de medidas provisórias, passando ao largo das exigências constitucionais, como se estas não existissem ou fossem mero ornamento sem qualquer importância. A indisciplina é total. Não há que falar neste ou naquele governo, pois todos eles invariavelmente romperam a linha da legalidade e do razoável, tratando de matéria avessa ao disciplinamento por medida provisória ou não enxergando, deliberadamente, os pressupostos vestibulares.

Não cabe culpa somente ao Presidente da República ou aos Chefes do Executivo estadual, do Distrito Federal ou municipal[15] por transpor a linha divisória da legalidade e embrenhar-se no abuso desenfreado da expedição de medidas provisórias.

O Congresso Nacional (ou as Assembléias Estaduais, a Câmara Legislativa do Distrito Federal e as Câmaras Municipais) detém poderes descomunais de, in limine, fulminá-la de morte, se a urgência e a relevância não estiverem caracterizadas e se for objeto de matéria terminantemente proibida pela Lei Maior, após as emendas constitucionais restritivas.

Este exame raramente é feito com a profundidade merecida. O Legislativo tem, pois, o dever e a competência exclusiva e inarredável de apreciar previamente, se a medida provisória atende os pressupostos constitucionais, antes de deliberar sobre o seu mérito.

O Chefe do Executivo é o árbitro primeiro da necessidade de expedi-las, contudo o Congresso Nacional é o seu juiz maior e fiscal. Se se omite no cumprimento do dever de casa, culpa também lhe cabe. E quanta! Basta barrá-la, por lhe faltarem os requisitos preambulares e, certamente, o Chefe do Poder Executivo cuidará de ser mais parcimonioso e disciplinado na sua edição.

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, o legislador fechou o cerco, estreitando cada vez mais os poderes do Presidente da República ou, conforme o caso, do Governador ou do alcaide. A Emenda de Revisão nº 1, de 1º de março de 1994, iniciou o processo que culminou com a promulgação da citada Emenda Constitucional nº 32[16]. Somente as matérias não vedadas expressamente poderão ser legisladas por medidas provisórias[17].

Após a promulgação da referida Emenda, outras tantas propostas de modificação desse instituto vem-se apresentando[18]

A exigência constitucional é rigorosa e os prazos também, devido, evidentemente, à urgência. Nem poderia ser diferente. Não há como questioná-la.

Crime de responsabilidade

O crime de responsabilidade está desenhado na Constituição e na Lei 1079, de 10 de abril de 1950, modificada pela Lei 10.028, de 19 de outubro de 2000. Se o Chefe do Executivo ultrapassar as barreiras impostas pelo Texto Maior na adoção de medidas provisórias, estará ferindo letalmente a Carta Magna.

O artigo 85 da CF cataloga como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra a Constituição da República e, especialmente, contra:

“………………………………………………………………………………………………………………..

II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (princípio fundamental da democracia);

…………………………………………………………………………………………………… .”

José Afonso da Silva sustenta que os regimes democráticos não se compatibilizam com a irresponsabilidade do governante. O Presidente da República tanto pode cometer crimes comuns quanto crimes de responsabilidade, distinguindo-se os que atentam contra o livre exercício do Poder Legislativo.[19]

O Chefe do Executivo detém a competência legítima, derivada da Constituição, de editar medidas provisórias, segundo os parâmetros constitucionais. Cometerá ele atentado à Lei Magna, se obstruir o livre exercício de um dos Poderes da República. Neste caso, estará praticando o linchamento da Carta. A doutrina, em uníssono, esposa este entendimento.[20]

O atentado à Constituição constitui, assim, crime de responsabilidade e configura-se no exato momento em que o Presidente da República edita a medida provisória contrariando os cânones da Carta, ferindo um dos Poderes do Estado.

O artigo 4º da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, foi recepcionado pela Constituição de 1988. Sua redação coincide com o citado artigo 85. Qualquer cidadão pode denunciar o Presidente da República perante a Câmara dos Deputados.[21]

A Câmara dos Deputados tem competência privativa para autorizar, por dois terços dos seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República. O processo e o julgamento cabem privativamente ao Senado Federal.[22] O Presidente do Supremo Tribunal Federal presidirá a sessão de julgamento e a condenação consistirá na perda do cargo e inabilitação por oito anos para o exercício de função pública, independentemente das demais sanções judiciais cabíveis. O quorum mínimo para a condenação é de dois terços dos votos do Senado Federal.

Estas atribuições são exclusivas da Câmara e do Senado. José Afonso da Silva ensina que, nesses casos, o Presidente perde o mandato, em virtude de cassação, por decisão do Senado Federal. Alerta, no entanto, que o Vice-Presidente somente se submeterá ao processo, quando e se assumir a presidência e incorrer no crime de responsabilidade.[23]

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, comentando a anterior Carta de 1969, que não difere da atual, neste particular, assegura que, entre nós, o impeachment já era previsto na Constituição de 1824 e em todas as Constituições republicanas, embora permanecesse em desuso, como peça de museu. Em suas lições, menciona que a violação do livre exercício do Poder Legislativo representa, na verdade, violência contra este Poder e sua independência.[24]

O abuso deve ser punido rigorosamente, sem dúvida.  A punição primária cabe ao Parlamento e a punição-sanção, inclusive penal, deve ser da iniciativa do Ministério Público. Este deve ficar atento, alerta. O arsenal legislativo existe, até em demasia. Só, assim, o instituto não será conspurcado e sua utilização não ficará banalizada, tal qual ocorre atualmente com as emendas constitucionais que valem menos que a lei ordinária ou a medida provisória e a Constituição deixa de ser o Documento solene, seguro e garantidor das relações jurídicas, para tornar-se uma massa disforme e insossa.     

Conclusão

A medida provisória é um mal necessário, mas seu uso deve ficar adstrito aos pressupostos constitucionais. Semelhantemente, o remédio mal usado não produz efeito ou pode até matar o paciente.

Não se pode condenar a medida provisória pela sua utilização desregrada. É como condenar o avião por sua utilização na guerra, matando milhões de pessoas. Todos se recordam do suicídio de Santos Dumont, martirizado porque sua invenção se tornou a mais mortífera arma bélica. Ou a energia nuclear que pode produzir o bem-estar da humanidade ou simplesmente exterminá-la da face da Terra, ou ainda produzir monstros e aberrações que nem os mais proféticos escritores são capazes de prever.

Puna-se a autoridade que ferir a Constituição, mas não se macule este instituto indevidamente!    

Seu uso abusivo deve ser punido, sem contemplação. O atentado à Constituição, pelo Presidente da República, configura, sem dúvida, crime de responsabilidade, passível de impeachment.                                                

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[1] O Professor Leon Frejda Szklarowsky é advogado, Subprocurador-Geral da Fazenda Nacional aposentado, juiz arbitral da American Arbitration Association, Presidente do Conselho de Ética e Gestão do Superior Tribunal de Justiça Arbitral do Brasil, em São Paulo, e conselheiro e juiz arbitral da Câmara de Arbitragem da Associação Comercial do DF. Acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da Academia Brasileira de Direito Tributário e membro dos Institutos dos Advogados Brasileiros, de São Paulo e do Distrito Federal e da Associação Nacional dos Escritores. Vice-presidente do Instituto Jurídico Consulex. Entre as obras literárias, citem-se: A Orquestra das Cigarras e Hebreus. Entre suas obras jurídicas, citem-se: Responsabilidade Tributária, Execução Fiscal, Medidas Provisórias (esgotadas), Crimes de Racismo, Contratos Administrativos e Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade. Em elaboração final: Teoria e Prática da Arbitragem. E-mail: leonfs@solar.com.br  

[2] in As Medidas Provisórias no Direito Comparado e no Brasil, Editora LTr, São Paulo, 1994, p.214.

[3] Cf. as obras de nossa autoria, Medidas Provisórias, Editora Revista dos Tribunais, 1991 (esgotada) e Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade, Editora NDJ, 2003, pp. 41 e segs.

[4] Cf. citação de Ives Gandra da Silva Martins, in Dica de Leitura, Diário do Comércio, de 13 de outubro de 2003.

[5] Cf. Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889.

[6] Cf. os artigos 12 e 13 da Carta.

[7] Consulte-se nossa obra citada, Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade, com farta jurisprudência e bibliografia.

[8] Esta não é a opinião de juristas de escol, como Palhares Moreira Reis, Antonio José M. Feu Rosa, Ives Gandra da Silva Martins, Hugo de Brito Machado, José Afonso da Silva, entre outros.

[9] Consulte-se a entrevista do Ministro a Mariângela Galucci e a Fausto Macedo, in O Estado de São Paulo, de 29 de dezembro de 2002, página A-8.

[10] Cf. Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001.

[11] Cf. Diário da Câmara dos Deputados, de 20 de janeiro de 2000, in voto em separado ao parecer da Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara dos Deputados.

No Diário da Câmara dos Deputados de 26 de abril de 2000 (pp. 19129 a 19177), encontra -se notável manancial para estudo, acerca das alterações propostas no Senado e na Câmara, ao Substitutivo, discussão, pronunciamentos, parecer, votação e integrantes da Comissão, de todos os partidos.

[12] Cf. site do Senador Aloízio Mercadante: www. senado.gov.br/agencia/verNoticia.aspx?codNoticia=43272. Consulta feita em 20 de janeiro de 2005, às 11,13 h.

[13] Cf. a obra de nossa autoria, Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade, cit., contendo farta jurisprudência e exposição doutrinária.

[14] Cf. 59 da Constituição Federal.

[15] Sobre a constitucionalidade da faculdade de os Estados legislarem, por meio de medidas provisórias, nas hipóteses e limites impostos pela Lei Maior, consulte-se a ADIN nº 812-9, do Estado de Tocantins, publicada no DJU, de 14-5-93. Este feito foi relatado pelo Ministro Maurício Corrêa. O Ministro Marco Aurélio, em sua manifestação, assentou que a Carta não contém nenhuma disposição que proíba os Estados de se utilizarem desses instrumentos legislativos, apesar de possíveis desvios de conduta que possam ocorrer. Este raciocínio vale para o Distrito Federal e para os Municípios. O Ministro Carlos Mário Velloso, no entanto, não concordou com a decisão da maioria. Entende ele que a função legislativa compete ao Legislativo e o Executivo e o Judiciário somente podem fazê-lo, se autorizados expressamente por lei.

[16] Examinem-se as Emendas Constitucionais nº 5, 6 e 7, de 1995.

[17] Cf. nosso Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade cit.

[18] Cf., entre outras, a PEC 384/2005, do Deputado João Almeida, do PSDB, e a PEC 368/2005, do Deputado Francisco Turra, do PP/RS. A PEC 371, de 10 de março de 2005, de autoria dos Deputados Robson Tuma e do Deputado Ciro Nogueira, proíbe a edição de medidas provisórias sobre direito tributário (acrescenta a alínea “e” ao inciso I do § 1º do artigo 62 da CF) e suprime o § 2º do mesmo artigo.

[19] Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição, 1990, p. 472.

[20] Citem-se entre outros: Ives Gandra da Silva Martins, Toshio Mukai, Hugo de Brito Machado.

[21] Cf. artigo 14 da Lei 1.079 modificada pela Lei 10.028, de 20 de outubro de 2.000.

[22] Cf. artigos 51, 52, 85 e 86 da CF.

[23] Cf. aut. e op. cits, pp.449, 450 e 469.

[24] Cf. Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1983, pp. 224, 384 e 387.


Referência  Biográfica

Leon Frejda Szklarowsky  –  Advogado, Subprocurador-Geral da Fazenda Nacional aposentado, juiz arbitral da American Arbitration Association, Presidente do Conselho de Ética e Gestão do Superior Tribunal de Justiça Arbitral do Brasil, em São Paulo, e conselheiro e juiz arbitral da Câmara de Arbitragem da Associação Comercial do DF. Acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da Academia Brasileira de Direito Tributário e membro dos Institutos dos Advogados Brasileiros, de São Paulo e do Distrito Federal e da Associação Nacional dos Escritores. Vice-presidente do Instituto Jurídico Consulex. Entre as obras literárias, citem-se: A Orquestra das Cigarras e Hebreus. Entre suas obras jurídicas, citem-se: Responsabilidade Tributária, Execução Fiscal, Medidas Provisórias (esgotadas), Crimes de Racismo, Contratos Administrativos e Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade. Em elaboração final: Teoria e Prática da Arbitragem.

Mandado de Segurança: quem deve estar no pólo passivo?

1

* Jaques Bushatsky 

Esbarram incontáveis mandados de segurança em espinhoso problema prático: quem deve ser eleito para integrar o pólo passivo da ação?

Mostra-se mais tormentoso o tema nesses procedimentos do que nas demandas entre particulares ou mesmo nas ações ordinárias dirigidas em face do Estado. Nas outras modalidades de ações judiciais, é indicado como réu o “Estado”, sem qualquer identificação de autoridade ou agente, assim como em ações contra entes de direito privado, não se busca o presidente ou diretor de uma companhia, exemplificativamente, mas singelamente, a sociedade acionada. 

Na emaranhada Administração Pública, burocratizada ao extremo e caracterizada pela repartição minuciosa de competências, poderes, deveres, poderia parecer difícil saber-se exatamente quem (aí compreendido o cargo ou função e não a pessoa, evidentemente) estaria a praticar determinado ato ou a omitir-se, ilegalmente. Mas essa pesquisa deve, obrigatoriamente, preceder o ajuizamento.

E na verdade, não se cuida de identificação complicada: basta a averiguação, insista-se, da autoridade que comandou o ato combatido, ou que deveria ter praticado determinado ato, não realizado.

Registre-se, mesmo a complexidade estrutural do organismo estatal (situação que é velha, aliás), não impossibilita aos particulares, a identificação da autoridade responsável pelos atos, constatação provada pela esmagadora maioria dos mandados de segurança impetrados em matéria fiscal da competência estadual (é nessa área que se concentra a maioria das impetrações), nos quais são indicados corretamente os agentes públicos coatores. Logo, não consiste óbice intransponível, o identificar a autoridade responsável pelo ato inquinado de ilegal.

Desde que o mandado de segurança objetiva, única e exatamente, a correção do ato ou omissão, uma vez verificada ilegalidade evidente, é essencial a correta indicação da autoridade impetrada, responsável pelo ato atacado, portanto. Realmente, outra não é a conclusão que decorre do artigo 1º da Lei nº 1.533/51, diploma que rege os mandados de segurança.

A pensar-se diferentemente, cair-se-ia no vazio, pois uma vez atendido o pedido de segurança, não se saberia a quem dirigir a ordem judicial. Ou, situação extrema, seria a obtida ordem judicial, encaminhada à autoridade errada, incapaz diante da organização de competências estatal, de cumpri-la, aplicável, então, a máxima “ad impossibilia nemo tenetur”, ninguém pode ser obrigado a fazer o impossível.   

Diante da natureza da matéria fática que venha a ser alegada pelo impetrante e mais, analisada a exata origem do ato a ser guerreado em mandado de segurança, será definida a autoridade contra quem deva a ação ser dirigida. Em outras palavras, é necessário que o impetrante indague: qual é a Autoridade habilitada para concretizar o ato objetivado? Contra esta, somente contra ela, deverá ser apontado o mandado de segurança.

Saliente-se, é coatora, a autoridade que efetivamente comande o ato, que efetivamente deixe de fazer o que lhe competia e não, a autoridade hierarquicamente superior (que porventura tenha traçado normas gerais de atuação), ou aquela inferior (que exerça a atividade mais singela). Exemplificando: não será coator um Secretário de Estado que dite normas gerais em sua área, não será coator o agente que entregue uma notificação, será coator o funcionário que ordene, decida determinada providência após analisar circunstâncias fáticas específicas.

É pacífica a jurisprudência, clara ao concluir que não cabe ao juiz, substituindo o interessado, investigar quem deve ocupar o pólo passivo da relação processual. De fato, a prejudicial de ilegitimidade de parte tem sido reiteradamente acolhida pelos nossos Tribunais, colhendo-se no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para ilustração, os acórdãos prolatados nos mandados de segurança nº s. 148.513-2 (Rel. Des. MOHAMED AMARO), 148.608-2 (Rel. Des. ALBANO NOGUEIRA), 146.289-2 (Rel. Des. OETTERER GUEDES), 148.350-2(Rel. Des. ACCIOLY FREIRE), 146.343-2 (Rel. Des. ODYR PORTO), 146.954-2 (Rel. Des. JOSÉ PACHECO.

Tal como nos demais, nesse último aresto mencionado, ficou decidido, textualmente: "Como bem observou a autoridade impetrada, contando com o apoio do ilustre Procurador oficiante, é parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação. A coação não partiu de S. Exa. Como ficou dito, o ato que se pretende corrigir não está afeto à autoridade contra a qual se volta a impetrante. Não é o Secretário da Fazenda quem expede ordem para a arrecadação do tributo, mas o Chefe do Posto Fiscal. Assim, acolhendo a preliminar de ilegitimidade passiva de parte, extinguem o processo, em virtude da carência da ação."

E, no Mandado de Segurança nº 147.023-2, relator o Desembargador BOURROUL RIBEIRO, decidiu-se que: "Na espécie merece acolhida a primeira preliminar argüida pelo impetrado de ser parte ilegítima. A imposição tida como ilegal não é do Secretário da Fazenda que expede instruções para a arrecadação dos tributos, mas sim o Chefe do Posto Fiscal. É ele o encarregado da arrecadação do tributo. (…) isto porque se houver deslocação de competência, em matéria tributária, todos os mandados de segurança teriam como autoridade coatora o Sr. Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda."

Conseqüência incontornável da indicação errada é a imediata extinção da ação, com base no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil, lido em conjunto com o art. 1º da Lei 1.533/51, base dos decretos judiciais de extinção dos processos.

Em suma, desde que infeliz seria a situação de, mesmo detendo-se direito incontroverso, não se obter proteção judicial por erro na indicação do coator, cabe atentar à severa (a par de lógica) jurisprudência a respeito do tema, de molde a poder-se restaurar direito porventura vilipendiado.

 


Referência  Biográfica

Jaques Bushatsky  –   Advogado. Coordenador das áreas de condomínio e locação da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB-SP.

Reforma do Judiciário

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* Pedro Lenza 

            1. Breve histórico de sua tramitação

            Como todos sabem, no dia 17 de novembro de 2004, finalmente, após 13 anos de tramitação, foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) n. 45/2004.

            Na Câmara dos Deputados, apresentada pelo Deputado Hélio Bicudo, em 26 de março de 1992, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) recebeu o n. 96/92. Após vários anos, tendo como última relatora a Deputada Zulaiê Cobra, a referida PEC, aprovada em dois turnos, foi encaminhada para o Senado Federal (SF) e passou a ter o n. 29/2000, no qual o primeiro relator, o Senador Bernardo Cabral, emitiu importantes pareceres, n. 538 e n. 1.035/2002, ambos aprovados pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

            Naquele mesmo ano, contudo, a legislatura se encerrou sem a apreciação da matéria em 2.º turno, apesar do enorme esforço do Senador Bernardo Cabral, não reeleito. Iniciada a nova legislatura, além do expressivo número de emendas apresentadas no 1.º turno durante a legislatura anterior, a grande renovação da Casa, mais de 50% de sua composição fizeram com que o Presidente do SF, José Sarney, com o aval absoluto do Plenário, determinasse o retorno da matéria à CCJ para um novo parecer, tendo sido designado, então, em 26 de junho de 2003, o Senador José Jorge como o novo relator da Reforma do Judiciário.

            No Senado, a partir do ano de 2000, 17 PECs sobre o Judiciário tramitaram em conjunto. Foram realizadas 14 audiências públicas com a participação de Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunais Superiores, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público (MP), institutos, como o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) etc. O SF, diante dessa multiplicidade de projetos, transformou as 17 PECs em outras 4, nos termos do Parecer n. 451/2004 (DSF de 8 de maio de 2004, p. 12728-12912) e Emenda n. 240 da CCJ:

            a) A de n. 29/2000 foi aprovada, transformando-se na EC n. 45/2004, promulgada em 8 de dezembro de 2004 e publicada no DOU de 31 de dezembro de 2004.

            b) Uma segunda, desmembrando-se da anterior, levou o n. 29-A/2000, também aprovada em dois turnos no SF. Na medida em que modificou a redação de artigos da originária PEC n. 96/92 da Câmara dos Deputados (CD), precisou retornar àquela Casa em prestígio ao princípio do bicameralismo. Na CD, foi reapresentada, em 10 de janeiro de 2005, com o n. 358/2005, para ser discutida e votada em dois turnos, buscando alterar os seguintes dispositivos da Constituição Federal (CF) de 88: arts. 21, 22, 29, 48, 93, 95, 96, 98, 102, 103-B, 104, 105, 107, 111-A, 114, 115, 120, 123, 124, 125, 128, 129, 130-A e 134. Acrescenta, ainda, os arts. 97-A, 105-A, 111-B e 116-A e dá outras providências. Dentre tantas novidades, a referida PEC n. 29-A/2000 do SF (n. 358/2005 da CD): transfere a Defensoria do Distrito Federal (DF) para o DF, tornando-a autônoma; dá autonomia também à Defensoria Pública da União; restringe a competência dos Tribunais de Justiça para o julgamento de prefeitos; altera o art. 93; inclui a necessidade de permanência de três anos no cargo para que o magistrado tenha direito à vitaliciedade na função; proíbe a prática de nepotismo nos Tribunais e Juízos; modifica, novamente, a competência da Justiça Trabalhista; altera a composição do Superior Tribunal Militar (STM) e regras sobre o MP; amplia as competências do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ); institui a “súmula impeditiva” de recursos, a ser editada pelo STJ e pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST); trata da conciliação, mediação, arbitragem etc.

            c) Uma terceira PEC, nova, foi apresentada ao próprio SF, levando o n. 26/2004, que altera o art. 100 da CF/88, permitindo o parcelamento de precatórios (chamados de títulos sentenciais) em até 60 parcelas. Como se trata de matéria nova, ainda deverá ser apreciada pelo SF (em dois turnos) para, se aprovada, ir para a CD.

            d) Nessa mesma situação está uma quarta PEC, de n. 27/2004 do SF, que autoriza a lei a instituir juizados de instrução criminal para as infrações penais nela definidas.

            Cabe alertar que, logo após a aprovação da Reforma (EC n. 45/2004), diversos sites, inclusive o do SF, divulgaram o que chamaram de pareceres n. 1.747 e n. 1.748/2004 da CCJ. O primeiro fixava a redação da EC n. 45, que seria promulgada e publicada, e o segundo foi o projeto que retornou à Câmara. Alguns trabalhos utilizaram o texto disponível à época.

            Em virtude de entendimentos entre as Casas, foram procedidos ajustes nos dois pareceres, remanejando-se dispositivos do de n. 1.747 para o de n. 1.748, que voltou para a CD. Assim, peço que o ilustre leitor tome muito cuidado com o estudo, destacando-se que, em razão da referida republicação (DSF de 9 de dezembro de 2004, p. 41569-41583), foram transferidos para a CD (na PEC n. 358/2005) os seguintes dispositivos constitucionais: 93, III; 102, I, “a”; 102, § 2.º; 104, par. ún., I; 107, caput; 114, I; 115, caput; 125, § 8.º; 103-B, VI e VIII; 111-A, I, e § 1.º, e 130-A, § 2.º, IV.

            2. Esquematização das alterações trazidas pela EC n. 45/2004

            Podemos destacar as principais novidades:

            1) A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (art. 5.º, LXXVIII, e art. 7.º da EC n. 45/2004).

            2) A previsão do real cumprimento do princípio de acesso à ordem jurídica justa, estabelecendo-se a Justiça Itinerante e a sua descentralização, como a autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública Estadual (arts. 107, §§ 2.º e 3.º; 115, §§ 1.º e 2.º; 125, §§ 6.º e 7.º; 134, § 2.º; 168, e art. 7.º da EC n. 45/2004).

            3) A possibilidade de se criar varas especializadas para a solução das questões agrárias. Nessa linha de especialização em prol da efetividade, sugerimos também varas especializadas para as áreas do consumidor, ambiental, coletiva etc. (art. 126, caput);

            4) A “constitucionalização” dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo quorum qualificado das emendas constitucionais (art. 5.º, § 3.º).

            5) A submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI), cuja criação tenha manifestado adesão (art. 5.º, § 4.º).

            6) A federalização de crimes contra direitos humanos, por exemplo, tortura e homicídio praticados por grupos de extermínio, mediante incidente suscitado pelo Procurador-Geral da República (PGR) no STJ, objetivando o deslocamento da competência para a Justiça Federal. Busca-se, acima de tudo, adequar o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos (art. 109, V-A e § 5.º).

            7) Previsão do controle externo da Magistratura por meio do Conselho Nacional de Justiça, como a criação de ouvidorias para o recebimento de reclamações (arts. 52, II; 92, I-A, e § 1.º; 102, I, “r”; 103-B, e art. 5.º da EC n. 45/2004).

            8) Previsão do controle externo do MP por meio do Conselho Nacional do Ministério Público, como a criação de ouvidorias para o recebimento de reclamações (arts. 52, II; 102, I, “r”; 130-A e art. 5.º da EC n. 45/2004).

            9) A ampliação de algumas regras mínimas a serem observadas na elaboração do Estatuto da Magistratura, todas no sentido de se dar maior produtividade e transparência à prestação jurisdicional, na busca da efetividade do processo, destacando-se: a) a previsão da exigência de três anos de atividade jurídica para o bacharel em Direito como requisito para o ingresso na carreira da Magistratura; b) aferição do merecimento para a promoção conforme o desempenho, levando-se em conta critérios objetivos de produtividade; c) maior garantia ao magistrado para recusar a promoção por antiguidade somente pelo voto fundamentado de 2/3 de seus membros, conforme procedimento próprio e assegurasda a ampla defesa; d) impossibilidade de promoção do magistrado que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão; e) previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento; f) o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta (e não mais 2/3) do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa; g) previsão de serem as decisões administrativas dos tribunais tomadas em sessão pública; h) o fim das férias coletivas do Poder Judiciário, tornando a atividade jurisdicional ininterrupta; i) a previsão de número de juízes compatíveis com a população; j) a distribuição imediata dos processos em todos os graus de jurisdição (art. 93).

            10) Ampliação da garantia de imparcialidade dos órgãos jurisdicionais pelas seguintes proibições: a) vedação aos juízes de receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; b) instituição da denominada quarentena, proibindo membros da Magistratura de exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastaram, por aposentadoria ou exoneração, pelo prazo de três anos. A quarentena também se aplica aos membros do MP (art. 95, par. ún., IV e V, e 128, § 6.º).

            11) Previsão de que as custas e os emolumentos sejam destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça, fortalecendo-a, portanto (art. 98, § 2.º).

            12) Regulação do procedimento de encaminhamento da proposta orçamentária do Judiciário e solução em caso de inércia. Proibição de realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 99, §§ 3.º, 4.º e 5.º).

            13) A extinção dos Tribunais de Alçada, passando os seus membros a integrar os TJs dos respectivos Estados e uniformizando, assim, a nossa Justiça (art. 4.º da EC n. 45/2004).

            14) Transferência de competência do STF para o STJ no tocante à homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias (art. 102, I, “h” (revogada); 105, I, “i”, e art. 9.º da EC n. 45/2004).

            15) A ampliação da competência do STF para o julgamento de recurso extraordinário quando se julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Muito se questionou sobre essa previsão. Observa-se que ela está correta, já que, quando se questiona a aplicação de lei, acima de tudo, há um conflito de constitucionalidade, pois é a CF que fixa as regras sobre competência legislativa federativa. Por outro lado, quando se questiona a validade de ato de governo local em face de lei federal, acima de tudo, estamos diante de questão de legalidade a ser enfrentada pelo STJ, como mantido na Reforma (art. 102, III, “d”, e 105, III, “b”).

            16) A criação do requisito da repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso para o conhecimento do recurso extraordinário. Essa importante regra vai evitar que o STF julgue brigas particulares de vizinhos, como algumas discussões sobre “assassinato” de papagaio ou “furto de galinha”, já examinadas pela mais alta Corte (art. 102, § 3.º).

            17) A adequação da Constituição, no tocante ao controle de constitucionalidade, ao entendimento jurisprudencial já pacificado no STF, constitucionalizando o efeito dúplice ou ambivalente da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) como o seu efeito vinculante. Ampliação da legitimação para agir. Agora os legitimados da ADC são também da ADI (e não mais somente os quatro que figuravam no art. 103, § 4.º, revogado). Apenas para se adequar ao entendimento do STF e à regra do art. 2.º, IV e V, da Lei n. 9.868/99, fixou-se, expressamente, a legitimação da Câmara Legislativa e do Governador do DF para a propositura de ADI, e, agora, ADC (art. 102, § 2.º; 103, IV e V; revogação do § 4.º do art. 103 e art. 9.º da EC n. 45/2004).[3]

            18) Ampliação da hipótese de intervenção federal dependendo de provimento de representação do Procurador-Geral da República para, além da já existente ADI Interventiva (art. 36, III, c.c. 34, VII), agora, também, objetivando prover a execução de lei federal (pressupondo ter havido a sua recusa). A competência, que era do STJ, passa a ser do STF (art. 34, VI, primeira parte, c.c. o art. 36, III; revogação do art. 36, IV, e o art. 9.º da EC n. 45/2004).

            19) Criação da Súmula Vinculante do STF (art. 103-A e art. 8.º da EC n. 45/2004).

            20) A aprovação da nomeação de Ministro do STJ pelo quorum de maioria absoluta dos membros do SF, equiparando-se ao quorum de aprovação para a sabatina dos Ministros do STF, e não mais maioria simples ou relativa como era antes da Reforma (art. 104, parágrafo único).

            21) Previsão de funcionamento no STJ: a) da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, cabendo-lhe, dentre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e promoção na carreira; b) e do Conselho da Justiça Federal como órgão central do sistema e com poderes correicionais, cujas decisões terão caráter vinculante (art. 105, par. ún., I e II).

            22) No âmbito trabalhista, dentre tantas modificações, podemos destacar: a) o aumento da composição do TST de 17 para 27 Ministros, deixando-se de precisar convocar juízes dos TRTs para atuar como substitutos; b) em relação ao sistema de composição, reduziram-se as vagas de Ministros do TST oriundos da advocacia e do Ministério Público do Trabalho. Dessa vez, eles ocupam somente 1/5, os outros 4/5 são preenchidos entre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, provenientes da Magistratura da carreira, indicados pelo próprio Tribunal Superior; c) fixação do número mínimo de sete juízes para os TRTs; d) modificação da competência da Justiça do Trabalho; e) previsão da criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, este último deverá ser instalado no prazo de 180 dias; f) a lei criará varas da Justiça do Trabalho, podendo, nas comarcas não abrangidas por sua jurisdição, atribuí-las aos Juízes de Direito, com recurso para o respectivo Tribunal Regional do Trabalho; g) previsão de criação, por lei, do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas, integrado pelas multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do trabalho, além de outras receitas (arts. 111, §§ 1.º, 2.º e 3.º (revogados); 111-A; 112; 114; 115 e arts. 3.º, 6.º e 9.º da EC n. 45/2004);

            23) Fixação de novas regras para a Justiça Militar (art. 125, §§ 3.º, 4.º e 5.º);

            24) Como fixado para a Magistratura (art. 99, §§ 3.º ao 5.º), regulação do procedimento de encaminhamento da proposta orçamentária do MP e solução em caso de inércia. Proibição de realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 127, §§ 4.º, 5.º e 6.º).

            25) Nos mesmos termos da Magistratura, diminuição do quorum de votação para a perda da garantia da inamovibilidade de 2/3 para a maioria absoluta (art. 128, § 5.º, I, “b”).

            26) Ampliação da garantia de imparcialidade dos membros do MP: a) vedação do exercício de atividade político-partidária, sem qualquer exceção; b) vedação do recebimento, a qualquer título ou pretexto, de auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; c) instituição, conforme já vimos, e nos termos da Magistratura, da denominada quarentena, proibindo-os de exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastaram, por aposentadoria ou exoneração, pelo prazo de três anos (art. 128, § 5.º, II, “e”, “f”, e § 6.º).

            27) Conforme já vimos para a atividade jurisdicional, também no sentido de se dar maior produtividade e transparência no exercício da função, na busca da efetividade do processo, destacam-se, para o MP: a) a obrigatoriedade de as funções só poderem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição; b) a previsão da exigência de três anos de atividade jurídica para o bacharel em Direito como requisito para o ingresso na carreira do MP; c) a distribuição imediata dos processos; d) e, no que couber, as regras já apresentadas em relação ao art. 93 para a Magistratura (art. 129, §§ 2.º, 3.º, 4.º e 5.º).

            28) A EC n. 45/2004 entrou em vigor na data de sua publicação, em 31 de dezembro de 2004, e foi promulgada em 8 de dezembro de 2004 (art. 10 da EC n. 45/2004).

            3. Ações diretas de inconstitucionalidade já propostas até a presente data (2.2.2005)

 

Data da propositura
 Número da ADI no STF e autor
 Objetivo
 
9.12.2004
 ADI n. 3.367 da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
 •
 A entidade questiona, em especial, a criação do Conselho Nacional de Justiça e a sua composição por membros de diferentes poderes e por magistrados de diferentes instâncias, ferindo os arts. 2.º e 18 da CF/88. A questão será julgada, em definitivo, pelo pleno nos termos do art. 12 da Lei n. 9.868/99. 
 

 
20.1.2005
 ADI n. 3.392 da Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL)
 •
 Objetiva-se afastar a necessidade do “comum acordo” como condição para a propositura de dissídios coletivos. Também será aplicada a regra do art. 12 da Lei n. 9.868/99. 
 

 
25.1.2005
 ADI n. 3.395 da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)
 •
 Busca-se atacar o art. 114, I. Alegou-se vício formal em relação à tramitação e à interpretação. 
 

 


 No julgamento da medida cautelar, o Min. Nelson Jobim, concedeu liminar, com efeito ex tunc, para dar interpretação, conforme a CF, ao inc. I do art. 114, “suspendo, ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inc. I do art. 114 da CF (…) que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, ‘(…) apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo’”. 
 


 A ADI foi distribuída por prevenção, em 1.º de fevereiro de 2005, ao Min. Cezar Peluso.
 

 

            4. Conclusão

            A emenda, de um modo geral, nesse primeiro balanço, parece bastante adequada, abrindo as portas para que as reformas processuais se implementem na busca e na retomada da credibilidade do Judiciário, infelizmente abalada pela ineficiência processual dos últimos anos. Esperamos que não seja apenas mais uma lei, mas, acima de tudo, o despertar de uma nova mentalidade

——————————————————————————–

[1] Prezado leitor, o objetivo deste estudo não é aprofundar as mudanças, mas, simplesmente, identificar, esquematizar e organizar as principais novidades para facilitar o estudo, após ter apresentado um brevíssimo histórico com um alerta sobre a redação do texto da emenda. Em outras oportunidades, certamente, poderemos analisar cada um dos itens da Reforma.

[2] Mestre e Doutorando pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC). Ex-Consultor Internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), prestando serviços para a Agência Nacional de Saúde (ANS).Coordenador do Núcleo Pinheiros da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (ESA-OAB/SP). Integrante do projeto piloto, Professor da Escola Virtual e orientador da Pós-Graduação da ESA-OAB/SP. Professor convidado para várias instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Regional do Trabalho (TRT), cursos de Pós-Graduação, Simpósios e Congressos. E-mail: pedrolenza@uol.com.br.

[3] Conforme já alertamos, o primeiro texto publicado sobre a reforma, inclusive no site do Senado Federal, ampliava o objeto da ADC, incluindo, além da lei federal, a lei estadual. Essa regra, não foi aprovada e, em razão da republicação dos pareceres (DSF 9.12.2004, p. 41569-83), foi transferida para a CD (na PEC n. 358/2005 – “PEC Paralela do Judiciário”). Cuidado, portanto, nas provas! O único objeto da ADC continua sendo a lei federal, nos termos do art. 102, I, “a”, não alterado, apesar da modificação do art. 102, § 2.º.

 


Referência  Biográfica

Pedro Lenza  –  Mestre e Doutorando pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC). Ex-Consultor Internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), prestando serviços para a Agência Nacional de Saúde (ANS).Coordenador do Núcleo Pinheiros da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (ESA-OAB/SP). Integrante do projeto piloto, Professor da Escola Virtual e orientador da Pós-Graduação da ESA-OAB/SP. Professor convidado para várias instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Regional do Trabalho (TRT), cursos de Pós-Graduação, Simpósios e Congressos

Pensão integral e a eficácia da Emenda Constitucional n° 41/03

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* Danilo Alejandro Mognoni Costalunga 

SUMÁRIO: I – Considerações iniciais; II – Breve análise sobre a problemática da eficácia das normas constitucionais; III – Regime jurídico constitucional do benefício de pensão por morte; IV – Eficácia da Emenda Constitucional n.° 41, de 2003;  V – Considerações finais.

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS 
 

Em relação ao estudo da eficácia das normas constitucionais, seguindo advertência de INGO WOLFGANG SARLET[1], necessária a tomada de posição na esfera terminológica e conceitual.

Neste sentido, a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA orienta a distinguirmos a vigência (qualidade da norma que a faz existir juridicamente, após regular promulgação e publicação, tornando-se de observância obrigatória) da eficácia (possibilidade de gerar efeitos jurídicos)[2].   

Por sua vez, ainda que presente uma correlação dialética de complementariedade entre vigência e eficácia[3], indispensável a análise da concepção clássica de JOSÉ AFONSO DA SILVA a respeito da eficácia social e eficácia jurídica da norma.  Para o renomeado constitucionalista, a eficácia social da norma,  que confunde-se com a efetividade da norma, diz com sua real obediência e aplicação aos fatos, com a realização concreta do direito[4], ao passo que a eficácia jurídica “designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. Possibilidade e não efetividade.”[5].  

Por outro lado, sobre a relação entre a eficácia jurídica e a aplicabilidade importa registrarmos que, embora fenômenos conexos[6],  apenas a norma vigente será eficaz (no sentido jurídico) por ser aplicável e na medida de sua aplicabilidade. 

Assim, bem delimitada nossa posição na esfera terminológica e conceitual, cumpre agora a análise sobre a problemática da eficácia das normas constitucionais. 

II – BREVE ANÁLISE SOBRE A PROBLEMÁTICA DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS 
 

A concepção atual da doutrina a esse respeito em geral é no sentido de que a maior parte das disposições constitucionais constitui direito plena e diretamente aplicável[7].  

Do mesmo modo, pacífico o entendimento doutrinário de que mesmo as normas constitucionais de eficácia imediata, como dizem, auto-aplicáveis, podem depender de regulamentação legislativa, para que possam ter maior executoriedade, ou com o objetivo de serem adaptadas às transformações e às circunstâncias vigentes na esfera social e econômica[8].  

Conforme lição do renomado JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, referendado pelo não menos importante INGO WOLFGANG SARLET[9], as normas constitucionais podem ser classificadas em dois grupos: as normas de eficácia plena e as normas de eficácia limitada ou reduzida[10]. 

Segundo JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA as normas de eficácia plena produzem, desde o momento de sua promulgação, todos os seus efeitos essenciais, isto é, todos os objetivos especialmente visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto, sendo que as normas de eficácia limitada ou reduzida não produzem, logo ao serem promulgadas, todos os seus efeitos essenciais, porque não se estabeleceu sobre a matéria uma normatividade para isso suficiente, deixando total ou parcialmente essa tarefa ao legislador ordinário[11].  

Ainda o mesmo JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA classifica as normas de eficácia limitada ou reduzida em dois outros grupos: normas programáticas e normas de legislação, as primeiras versando sobre matéria de natureza eminentemente ética e social, e as segundas dependentes de legislação concretizadora para alcançarem sua eficácia plena, regulando de forma direta a matéria que constitui seu objeto, sendo, contudo, insuscetíveis de aplicação imediata, por reclamarem normas legislativas instrumentais às quais se acham condicionadas[12].  

A doutrina mais tradicional vale-se de classificação semelhante, embora com semântica diversa:  JOSÉ AFONSO DA SILVA classifica as normas constitucionais em normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada[13].   Por sua vez, CELSO RIBEIRO BASTOS e CARLOS AYRES BRITTO as definem como normas inintegráveis e integráveis, de eficácia parcial ou de eficácia plena[14].  

Na dicção de INGO WOLFGANG SARLET as normas de eficácia contida (cf. doutrina JOSÉ AFONSO DA SILVA), ou normas de eficácia limitada ou reduzida (cf. doutrina JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA), são normas que enunciam uma reserva legal em matéria de restrição dos efeitos[15]. 

III – REGIME JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE  

O benefício de pensão por morte encontra disciplina legal no art. 40 da Constituição da República Federativa do Brasil, dispositivo este que ao longo dos anos sofreu inúmeras alterações. 

Abaixo, transcrevemos a redação original do art. 40 da CRFB, com as respectivas alterações por força das Emendas Constitucionais n.° 03/93, 20/98 e, mais recentemente, a EC 41/03, que posteriormente será objeto do presente estudo no que diz com a sua eficácia.  

CRFB de 1988

“Art. 40. ……………………………………………………………………………………

§ 5.º O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior.”  

Emenda Constitucional Nº 3, de 1993

“Art. 40……………………………………………………………………………………

§ 6º As aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei.”  

Emenda Constitucional Nº 20, de 1998

"Art. 40. ……………………………………………………………………………………

§ 7° Lei disporá sobre a concessão do benefício da pensão por morte, que será igual ao valor dos proventos do servidor falecido ou ao valor dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no § 3º.

§ 8° Observado o disposto no art. 37, XI, os proventos de aposentadoria e as pensões serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei.

§ 14. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.

§ 15. Observado o disposto no art. 202, lei complementar disporá sobre as normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para atender aos seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo.

§ 16. Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar." 

Emenda Constitucional Nº 41, de 2003

"Art. 40. . ……………………………………………………………………………………

§ 7º Lei disporá sobre a concessão do benefício de pensão por morte, que será igual:

I – ao valor da totalidade dos proventos do servidor falecido, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso aposentado à data do óbito; ou

II – ao valor da totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se deu o falecimento, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso em atividade na data do óbito.

§ 8º É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei.

§ 18. Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos."  

IV – EFICÁCIA DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.° 41, DE 2003                                               

No que diz com a proposta de análise do presente estudo, relativamente à pensão integral, cabe referir que ao dispor o art. 40, § 7.º da CRFB, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n.° 41, de 19 de dezembro de 2003,  que Lei disporá sobre a concessão do benefício de pensão por morte , não temos dúvidas em afirmar que a mesma é norma de eficácia limitada ou reduzida e de legislação[16], limitada[17], bem como  integrável e de eficácia parcial[18].  

Neste sentido, por expressa determinação legal, aos 20-02-2004 foi publicada a Medida Provisória nº 167, de 20 de fevereiro de 2004[19], que dispõe sobre a aplicação de disposições da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, altera dispositivos das Leis nºs. 9.717, de 27 de novembro de 1998, 9.783, de 28 de janeiro de 1999, 8.213, de 24 de julho de 1991, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e dá outras providências[20].  

A MP 167/04[21], ao dispor sobre a aplicação de disposições da Emenda Constitucional nº 41, por exigência da própria EC 41/03,  legitimou o fato de que a EC 41/03, insuscetível de aplicação imediata, por reclamar norma legislativa instrumental à qual se acha condicionada, era dependente de legislação concretizadora para alcançar sua eficácia plena, regulando de forma direta a matéria que constitui seu objeto[22].  

Em decorrência,  tem-se que a MP n. 167/04[23], que dispôs sobre a aplicação de disposições da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, implementando uma série de alterações no regime previdenciário, entrando em vigor na data de sua publicação, dia 20-02-2004, é o marco referencial para a solução da questão ora discutida.  

Da análise que se faça da mencionada MP, a segunda alteração introduzida pela MP nº 167/04[24] está contida em seu art. 2º que estipula a forma de cálculo das pensões por morte concedidas após a publicação da MP, vale dizer, concedidas após o dia 20-02-2004, tudo nos moldes do § 7º do art. 40 da Constituição Federal – CRFB/88, com a redação dada pela EC nº 41/03. 

Segundo noticia a MP 167/04[25], as pensões corresponderão ao valor da remuneração ou dos proventos percebidos pelo servidor ativo ou inativo, limitados ao teto do RGPS. Os dependentes dos servidores ativos ou aposentados que percebiam remuneração superior ao teto do RGPS farão jus a uma pensão correspondente ao limite máximo do RGPS acrescido de 70% (setenta por cento) da parcela da remuneração ou proventos que ultrapassar o referido limite, verbis:

 “I) à totalidade dos proventos percebidos pelo aposentado na data anterior à do óbito, até o limite máximo dos benefícios do RGPS, acrescido de 70% da parcela excedente a este limite; ou

II) à totalidade da remuneração de contribuição percebida pelo servidor no cargo efetivo na data anterior ao óbito, até o limite máximo dos benefícios do RGPS, acrescido de 70% da parcela excedente a este limite.”  

Assim, estando contida no art. 2º a forma de cálculo das pensões por morte,  aplicável às pensões  concedidas após a publicação da MP, ou seja, após o dia 20-02-2004, tem-se que o direito ao pensionamento integral,  correspondente a 100% do montante que o segurado falecido perceberia se vivo fosse, é inerente a todos os beneficiários da pensão por morte decorrente de passamento verificado até o dia 19-02-2004, benefício este disciplinado pelo regime jurídico anterior, constante da EC 20/98.  Isto pela orientação pacífica de que o direito à pensão rege-se pela lei vigente à data do falecimento do segurado – tempus regit actum.  

A negativa por parte da Administração em conceder o benefício de pensão por morte em valor integral ao que percebia o beneficiário instituidor se vivo fosse, uma vez verificado o decesso deste beneficiário em data anterior a 19-02-2004, representa grave ofensa à lei.   

Vale lembrar que, na forma do artigo 40, § 7°, da CRFB, com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 20/98, a concessão do benefício da pensão por morte “… será igual ao valor dos proventos do servidor falecido ou ao valor dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no art. 3º”.    Ao interpretar o então art. 40, § 5º – substituído pelo aludido dispositivo – o STF firmou entendimento de que “a pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, sendo que este quantum deverá corresponder ao valor da respectiva remuneração ou proventos, observado o teto inscrito no art. 37, XI, da CF”[26].  

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS  

Já afirmamos em outra oportunidade que a história nos demonstra que a vida em sociedade e seus sistemas jurídicos sofreram uma série de importantes e profundas transformações, aparentemente lentas e progressivas, na formulação de direitos que conduziram a uma verdadeira revolução na nossa concepção jurídica, política, econômica e social[27]. 

Estas transformações dos sistemas jurídicos possibilitaram a passagem de um sistema irracional para um sistema racional de direito: o arbítrio deu lugar à justiça e a legalidade, a anarquia do regime feudal foi substituída pelo reforço do poder de certos reis e senhores, a economia fechada cedeu para a economia de troca, o costume foi suplantado pela lei[28].  

Assim, ante a questão noticiada no presente ensaio, representada pela negativa de pagamento do benefício de pensão por morte em valor integral ao que percebia o beneficiário instituidor se vivo fosse, desde que o mesmo tenha falecido em data anterior a 19-02-2004, a nós parece que muitos daqueles sistemas jurídicos, sem prejuízo de sua simultânea abertura material e estabilidade[29], estão tomando forma novamente: estamos na contramão da história e da própria lógica na evolução da vida em sociedade, passando de um sistema racional para um sistema irracional de direito[30]. 

Resta sabermos, então, fiéis ao princípio da legalidade e, é claro, não descurando  do fato de que o direito deva ser justo, razoável, solidário e igualitário, qual a razão da negativa da Administração em adimplir o benefício de pensão por morte em valor integral ao que percebia o beneficiário instituidor se vivo fosse, uma vez verificado o decesso deste beneficiário em data anterior a 19-02-2004?   

Estaríamos, como já assinalado[31], retornando ao sistema irracional de direito, em que a arbitrariedade prevalece sobre a lei, em que o acatamento da administração ao direito e à lei deixou de ser regra de observância permanente e obrigatória, desvirtuando-se a gestão dos negócios públicos e os fundamentos da ação administrativa?
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[1] Cf. INGO WOLFGANG SARLET,  Os Direitos Fundamentais sociais na Constituição de 1988.

[2] Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2.ª ed., São Paulo: RT, 1982, p. 42.

[3] Neste sentido,  MARIA HELENA DINIZ, Constituição de 1988: Legitimidade. Vigência e

Eficácia. Supremacia.

[4] Cf. LUIZ ROBERTO BARROSO, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, p. 83

[5] Cf. J.A. da Silva, Aplicabilidade das Norma Constitucionais, pp. 55-6

[6] Cf. INGO WOLFGANG SARLET,  Os Direitos Fundamentais sociais na Constituição de 1988.

[7] Neste sentido, vide por todos, JOSÉ AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2.ª ed., São Paulo: RT, 1982, p. 76.

[8] Neste sentido, INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos Direitos Fundamentais, 3.ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 229.

[9] Neste sentido, INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos Direitos Fundamentais, 3.ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 231.

[10] Cf. JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 317.

[11] Cf. JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 317.

[12] Cf. JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 323 e ss.

[13] Cf JOSÉ AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2.ª ed., São Paulo: RT, 1982, p. 79 e 89.

[14] Cf. CELSO RIBEIRO BASTOS e CARLOS AYRES BRITTO, Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São Paulo: saraiva, 1982, pp. 117 e ss.

[15] Neste sentido, INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos Direitos Fundamentais, 3.ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 237.

[16] Cf. JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

[17] Cf JOSÉ AFONSO DA SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2.ª ed., São Paulo: RT, 1982.

[18] Cf. CELSO RIBEIRO BASTOS e CARLOS AYRES BRITTO, Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São Paulo: saraiva, 1982.

[19] Como sabido, com a edição da EC n. 32/01, a Medida Provisória perde a eficácia, desde a sua edição, se não for convertida em lei no prazo de 60 dias (a partir da sua publicação), admitindo-se, no entanto, a prorrogação automática do prazo por mais 60 dias, uma única vez, caso os 60 dias originários se esgotem sem a apreciação da Medida Provisória pelas duas casas do Congresso Nacional.

[20] A MP 167/2004 foi convertida em lei aos 21-06-2004, data na qual foi publicada a Lei n.° 10.887, de 18 de junho de 2004, dispondo sobre a aplicação de disposições de disposições da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, alterando dispositivos das Leis nºs. 9.717, de 27 de novembro de 1998, 9.783, de 28 de janeiro de 1999, 8.213, de 24 de julho de 1991, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e dando outras providências.

[21] Convertida na Lei n.° 10.887, de 18-06-2004.

[22] Cf. JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES TEIXEIRA, Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 323 e ss.

[23] Convertida na Lei n.° 10.887, de 18-06-2004.

[24] Convertida na Lei n.° 10.887, de 18-06-2004.

[25] Convertida na Lei n.° 10.887, de 18-06-2004.

[26] Cf. RE 199.461-4-SP-2ª Turma, in RT 737/145.

[27] Cf. DANILO ALEJANDRO MOGNONI COSTALUNGA, Taxação dos Inativos:do racional ao irracional.

[28] Cf. JOHN GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

[29] Cf. INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003

[30] Cf. JOHN GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

[31] Cf. DANILO ALEJANDRO MOGNONI COSTALUNGA, Taxação dos Inativos: do racional ao irracional.

 


Referência  Biográfica

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga  –  Advogado em Porto Alegre – RS; Professor de Direito no UniRitter, Membro Efetivo do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual, Membro Honorário da ABDPC – Associação Brasileira de Direito Processual Civil,  Especialista em Direito Processual Civil,  Mestrando em Direito pela PUCRS.

Breves comentários sobre os dispisitivos legais que subsidiam a política de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho

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* Rita de Cássia Tenório Mendonça 

Às pessoas com deficiência, assim como a todo cidadão brasileiro, é constitucionalmente garantido o direito ao trabalho, cujo valor social constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso V, da CF/88)

O direito ao trabalho é um dos mais importantes – se não o mais importante – dos direitos humanos de segunda geração, também denominados direitos de justiça ou direitos prestacionais.

Como direito fundamental de liberdade social, característico do Estado Social, os direitos humanos de segunda geração impõem um dever de ação ao Estado consistente em uma atividade positiva, o que lhe garante a necessária efetividade.

Dada sua importância, rememora Brito Filho que o direito ao trabalho é previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos da Organização das Nações Unidas, sendo a principal base das normas da Organização Internacional do Trabalho, organismo internacional especializado na matéria (2004, p.26).

O objetivo deste artigo é colecionar os dispositivos legais que garantem o direito ao trabalho ao povo brasileiro e, mais especificamente, trazendo a discussão os artigos que cuidam em garantir esse direito fundamental social às pessoas com deficiência.

Nos últimos cinco anos, viu-se ostentar posição de destaque no cenário nacional as medidas de inclusão social das pessoas com deficiência, cuja principal e mais efetiva dimensão, a sua inserção no mercado de trabalho, encontrou guarida, principalmente, no art. 93, da Lei n.º 8.213/91, que estabelece a obrigatoriedade das empresas promoverem a contratação de um mínimo de pessoas com deficiência, proporcional ao número total de trabalhadores que compõem seus quadros.

O mencionado dispositivo, pedra de toque dos trabalhos de inclusão, em boa hora veio beneficiar as pessoas com limitações físicas, mentais ou sensoriais, habilitadas e aptas para o labor, garantindo para as mesmas, como garante o nosso ordenamento jurídico, para qualquer cidadão dito “normal”, o direito ao trabalho.

No entanto, pouca divulgação há sobre os demais dispositivos de lei que fundamentalmente se relacionam com a questão da inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho e, inclusive, proporcionam estabilidade aos trabalhos de inclusão, mormente por lhe definir critérios, preencher lacunas e suavizar contradições.

Destaque-se que enquanto não lhe foi possível conferir uma interpretação sistemática, o mencionado artigo, de forma isolada e encerrado no corpo do Plano de Benefícios da Previdência Social, pouca força coercitiva mostrou para promover a inclusão das pessoas com deficiência no mercado laboral. E outra circunstância não era de se esperar. Isso porque embora o artigo estabelecesse um mandamento justo e legítimo, inclusive em completa consonância com a concepção da atual Constituição, se apresentava isolado e sem efetividade.

Afinal, preceituava a determinação, mas não dispunha como realizar a inserção, não estabelecia as sanções pelo seu descumprimento, não determinava que órgãos seriam responsáveis pela fiscalização de seu cumprimento, e não promovia o chamamento das pessoas com deficiência, sensibilizando-as para a necessidade de qualificarem-se, apanhando a todos de surpresa, empresariado, órgãos fiscalizadores e até os próprios beneficiários, que passaram a vislumbrar as portas do mercado de trabalho sendo descerradas, mas sem que pudessem transpô-las, por não possuírem a qualificação necessária para se tornarem competitivas.

A questão da inclusão social das pessoas com deficiência não se resume a sua inserção no mercado de trabalho, mas lhe tem como ponto alto. Dada sua complexidade, por óbvio, não poderia se conter em apenas um artigo, inserto em lei que sequer trata da questão com a especificidade necessária para esgotar-lhe as particularidades.

Isso explica, inclusive, porque somente a partir de 1999 é que passamos a observar as movimentações mais maciças de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. É que somente nesse ano foi expedido o Decreto n.º 3.298, de 20/12/99, que dissipou muitas das indagações e conflitos existentes sobre a questão até aquele momento.

Destaque-se que não é de hoje a preocupação de tornar produtivas as pessoas com deficiência, que a princípio sempre foram vistas como um encargo a ser suportado, com um certo desagrado, pelos ditos “normais” da sociedade.

A Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, já se preocupavam com a questão da igualdade para todos, indistintamente. Mas isso de forma geral, sem que dirigissem atenção especial e diferenciada a questão das pessoas com deficiência.

O marco das discussões direcionadas, em verdade, foi o ano de 1981, proclamado pelas Nações Unidas como o “Ano Internacional das Pessoas Deficientes”.

Especial destaque merecem as Resoluções 37/52 e 37/53 da Assembléia Geral da ONU, reunida em 3 de dezembro de 1982, cujos propósitos foram os de promover, respectivamente, o programa de Ação Mundial para Pessoas com Deficiência e a proclamação da Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência.

Evidencie-se que no mundo moderno há um número expressivo de pessoas com deficiência devido as mais diversas causas, entre elas as guerras, as doenças, a violência, a pobreza, os acidentes etc. A cifra estimada é de que são 500 milhões as pessoas com deficiência em todo o mundo. Na maioria dos países, pelo menos uma em cada dez pessoas tem uma deficiência física, mental ou sensorial. Desses 500 milhões, estima-se que no mínimo 350 milhões vivam em zonas que não dispõem dos serviços necessários para ajudá-las a superar as suas limitações.

No Brasil, segundo a ONU, 10% (dez por cento) da população é composta de pessoas com algum tipo de deficiência. O Censo 2000 assentou 14,5%, o que corresponde a 24,5 milhões de pessoas (mais precisamente, 24.537.984 PPD’s), das quais 15,14 milhões têm idade e condições de integrarem o mercado formal do trabalho, desde que proporcionadas às necessárias condições de acessibilidade.

De acordo com dados divulgados pela OIT, o desemprego entre as pessoas com deficiência com idade para trabalhar é extremamente maior do que entre as pessoas ditas “normais”, podendo chegar a 80% em alguns países em desenvolvimento.

Nesse cenário, a legislação brasileira, uma das mais avançadas no que respeita a inclusão social das pessoas com deficiência, preocupa-se sobremaneira e primordialmente com sua inserção no grupo das pessoas economicamente ativas.

Na Constituição, destacam-se dispositivos cujo sentido é garantir a essas pessoas o direito a um convívio social equilibrado, o direito social ao trabalho e a proibição de qualquer tipo de discriminação, ainda que no tocante a salários e critérios de admissão.

Diversas leis esparsas também dispõem a respeito dos seus direitos, inclusive disciplinando sua inserção no mercado laboral e punido com rigor o preconceito de que normalmente são vítimas.

Felizmente, constata-se que a legislação que atualmente se dedica a proteção das pessoas com deficiência encontra-se em evidência, eis que o ordenamento jurídico brasileiro em muito avançou em benefício dessas pessoas especiais, principalmente após a Constituição Federal de 1988, que em seu próprio bojo já lhes confere ampla proteção e garantia de inclusão (art. 1º, IV; art. 3º, III e IV; art. 5º, XIII; art. 7º, XXXI; art. 37, VIII; art. 170, VII e VIII; art. 203, IV e V; art. 208, III; art. 215; art. 217, §3º; art. 227, §1º, II; art. 244)1 .

Sensível a essa problemática, o Brasil, seguindo uma tendência mundial, ante o crescente desemprego, com conseqüências mais graves ainda, quando se tratam de pessoas com deficiência ou pessoas reabilitadas que, via de regra, necessitam de condições especiais para o desempenho satisfatório de suas funções, cuidou, através de lei, de estabelecer “reserva de mercado” em benefício dessas pessoas, consignando no art. 93, da Lei n.º 8.213/91 (Plano de Benefícios da Previdência Social) que:

Art. 93 – A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) de seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas na seguinte proporção:
I – até 200 empregados = 2%
II – de 201 a 500 empregados = 3%
III – de 501 a 1000 empregados = 4%
IV – de 1001 em diante = 5%

Infelizmente, o mandamento permaneceu adormecido, como mencionado, e apenas a partir de 1999 é que se passou a perceber, finalmente, as primeiras movimentações no sentido de lhe dar cumprimento efetivo. É que somente ao final de 1999 a questão da inserção das pessoas com deficiência ficou melhor esclarecida, com a edição do Decreto n.º 3.298, de 20/12/99, que dedicou sua Seção IV para tratar justamente do seu acesso ao mercado de trabalho. Mais especificamente em seu art. 362 , o mencionado decreto reiterou o já contido na Lei n.º 8.213/91 e expôs de forma mais precisa sobre a questão da inserção das pessoas com deficiência no mercado de laboral.

Para que não se crie confusão, é de se ressaltar que o Decreto n.º 3.298, de 20/12/99, em verdade, regulamenta a Lei n.º 7.853, de 24/10/89 e não o art. 93, da Lei n.º 8.213/91, embora seus preceitos com ele tenham profunda relação.

De forma inovadora, o decreto estabeleceu, ainda, em seu art. 36, § 1º, que a pessoa com deficiência efetivamente contratada só poderá ser dispensada após a contratação de substituto em condições semelhantes. Com isso não buscou proporcionar estabilidade a essas pessoas em seus cargos, como pensaram alguns, a princípio, mas apenas instrumentos de obstar qualquer intenção de empregadores menos escrupulosos, de efetuarem um cumprimento inicial da lei, para mostrarem adaptação aos órgãos fiscalizadores, e num momento posterior, silenciosa e gradativamente, eliminarem essas pessoas de seus quadros.

Também é de se destacar a Instrução Normativa n.º 20/20013 , do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados quando da fiscalização das relações de trabalho das pessoas portadoras de deficiência nas empresas, que entre outros pontos orienta que não pode ser considerada relação de trabalho a ser abatida na cota legal o trabalho realizado por pessoas com deficiência em oficinas terapêuticas (em nenhuma hipótese) ou, em se tratando de oficinas de produção, caso ausentes os requisitos caracterizadores de vínculo empregatício nos moldes celetistas (art. 3º, CLT).

Estabelece, também, que não é de se considerar parte da cota a ser cumprida as pessoas com deficiência que prestam serviços por meio de empresas terceirizadas. Nesse caso, o número de pessoas com deficiência contratadas pode muito bem ser descontado do percentual que essas empresas prestadoras de serviços que, porventura, possuam mais de 100 empregados, estejam obrigadas a cumprir, mas nunca da tomadora dos serviços, posto que não os prestadores não compõem seus quadros e não são seus efetivos empregados.

Outra importante questão tratada no bojo da mencionada Instrução Normativa é de que o percentual a ser aplicado, previsto na legislação, deverá incidir sobre o número total de trabalhadores do empreendimento, quando se tratar de empresa com mais de um estabelecimento. Isto é de fundamental importância posto que se aplicado o percentual da lei sobre o número de empregados de cada estabelecimento individualizado, integrante de uma mesma rede ou grupo empresarial, em vez de fazê-lo incidir sobre o número total de empregados do grupo, é considerável a redução do número de vagas reservadas, em detrimento das pessoas com deficiência.

Destaque-se de seu conteúdo, por fim, a determinação de que as frações de unidade, qualquer que sejam, quando do cálculo da incidência do percentual sobre o número de empregados, significarão a contratação de um trabalhador, sendo sempre arredondadas para o número inteiro maior que o resultado percentual.

Importante evidenciar que de acordo com a RAIS – Relatório Anual de Informações Sociais –, no Brasil existem 31.979 estabelecimentos com mais de cem empregados. Se todos cumprissem a reserva legal, seriam gerados 559.511 postos de trabalho a serem ocupados pelas pessoas com deficiência. Lamentavelmente, número suficiente para empregar apenas 3,7% das 15,14 milhões em idade adequada e com condições para trabalhar. Portanto, necessário que a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho seja conseqüência natural da superação de preconceitos e efetuada de forma natural, e não somente até que se atinja determinado percentual previsto em lei, que consoante demonstrado não atenderá a todo o universo de pessoas com deficiência aptas ao trabalho.

Na prática, constata-se que muitas dessas pessoas são friamente eliminadas da possibilidade de uma participação ativa na sociedade, em razão de obstáculos materiais que, à propósito, já deviam ter sido eliminados por força do que dispõem os arts. 227, §2º, e 244, da CF/88, art. 2º, V, ‘a’, da Lei n.º 7.853, de 24/10/894 , bem como a Lei n.º 10.098, de 19/12/20005 , que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência com mobilidade reduzida, determinando a supressão de barreiras e obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção, na reforma de edifícios, nos meios de transporte e de comunicação.

No ambiente de trabalho, por meio de uma aplicação mais ampla dos princípios ergonômicos é possível a adaptação, quase sempre a um custo reduzido, das ferramentas, do maquinário e do material, ajudando a aumentar as oportunidades de emprego para essas pessoas. Em outros casos, sequer isso é necessário, eis que elas se superam e desenvolvem formas diferenciadas de exercerem suas funções, sem necessidade alguma de modificação do posto de trabalho e sem que haja constatação de queda na produção, como já concluíram os estudos especializados, o que traz por terra o frágil argumento dos opositores da política de inclusão que, temendo diminuição dos seus lucros, lamentavelmente, buscam convencer a opinião pública de que a melhor medida seria a viabilização de políticas assistencialistas, para se atender as necessidade vitais e básicas dessas pessoas, pregando a segregação, por linhas transversas.

O entrave dos trabalhos de inclusão social das pessoas com deficiência, não reside na ausência de dispositivos legais que promovam essa garantia. Legislação protetiva tem-se em abundância, e do mais alto refinamento, digno dos países de primeiro mundo. O que falta, é integrar os tais mandamentos ao dia-a-dia da sociedade brasileira, transmudando o que hoje constitui obrigação, em satisfação de integrar um cidadão impedido de exercer sua cidadania plena, ao convívio social sadio e produtivo, sem que com isso se lhe esteja concedendo uma graça, por simpatia ou piedade, mas promovendo justiça.

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NOTAS DE RODAPÉ CONVERTIDAS

1 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(…)
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
(…)
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(…)
III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um (…)
§ 3º. O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:
(…)
II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
Art. 244. A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no artigo 227, § 2º.

2 Art. 36. A empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, na seguinte proporção:
I – até duzentos empregados, dois por cento;
II – de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;
III – de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ou
IV – mais de mil empregados, cinco por cento.
§ 1º A dispensa de empregado na condição estabelecida neste artigo, quando se tratar de contrato por prazo determinado, superior a noventa dias, e a dispensa imotivada, no contrato por prazo indeterminado, somente poderá ocorrer após a contratação de substituto em condições semelhantes.
§ 2º Considera-se pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada, legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS.
§ 3º Considera-se, também, pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função.
§ 4º A pessoa portadora de deficiência habilitada nos termos dos §§ 2º e 3º deste artigo poderá recorrer à intermediação de órgão integrante do sistema público de emprego, para fins de inclusão laboral na forma deste artigo.
§ 5º Compete ao Ministério do Trabalho e Emprego estabelecer sistemática de fiscalização, avaliação e controle das empresas, bem como instituir procedimentos e formulários que propiciem estatísticas sobre o número de empregados portadores de deficiência e de vagas preenchidas, para fins de acompanhamento do disposto no caput deste artigo.

3 INSTRUÇÃO NORMATIVA SIT Nº 20, DE 26 DE JANEIRO DE 2001
Dispõe sobre procedimentos a serem adotados pela Fiscalização do Trabalho no exercício da atividade de fiscalização do trabalho das pessoas portadoras de deficiência.
(…)
Art. 7º Não constitui relação de emprego o trabalho da pessoa portadora de deficiência realizado em oficina protegida de produção, desde que ausentes os elementos configuradores da relação de emprego, ou em oficina protegida terapêutica.
Art. 8º Considera-se oficina protegida de produção a unidade que observar as seguintes condições:
I – que suas atividades laborais sejam desenvolvidas mediante assistência de entidades públicas e beneficentes de assistência social;
II – que tenha por objetivo o desenvolvimento de programa de habilitação profissional, com currículos, etapas e diplomação, especificando o período de duração e suas respectivas fases de aprendizagem, dependentes de avaliações individuais realizadas por equipe multidisciplinar de saúde;
III – que as pessoas portadoras de deficiência participantes destas oficinas não integrem o quantitativo dos cargos previsto no art. 10 desta Instrução; e
IV – que o trabalho nelas desenvolvido seja obrigatoriamente remunerado.
Art. 9º Considera-se oficina protegida terapêutica a unidade assistida por entidade pública ou beneficente de assistência social e que tenha por objetivo a integração social, mediante atividades de adaptação e capacitação para o trabalho.
Art. 10. (…)
§ 1º Para efeito de aferição dos percentuais dispostos neste artigo, será considerado o número de empregados da totalidade dos estabelecimentos da empresa.
§ 2º Os trabalhadores a que se refere o caput poderão estar distribuídos nos diversos estabelecimentos da empresa ou centralizados em um deles.
§ 3º Cabe ao AFT verificar se a dispensa de empregado, na condição estabelecida neste artigo, foi suprida mediante a contratação de outra pessoa portadora de deficiência, nos termos do art. 36, § 1º do Decreto nº 3.298, de 1999.
§ 4º As frações de unidade, no cálculo de que trata o caput, darão lugar à contratação de um trabalhador.

4 Art. 2º. Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no "caput" deste artigo, os órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objeto desta lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
(…)
V – na área das edificações:
a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte.

5 “Esta Lei estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei n.º 7.853, de 24/10/89. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), institui a tutela jurisdicional de interesse coletivo ou difuso dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências.

BRASIL. Lei n.º 8.213, de 24/07/91. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.

BRASIL. Lei n.º 10.098, de 24/05/2001. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.

BRASIL. Decreto n.º 3.956, de 08/10/2001. Promulga a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as PPD’s.

BRASIL. Decreto n.º 3.298, de 20/12/99. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.

BRASIL. Decreto n.º 3.048, de 06/05/99. aprova o Regulamento da Previdência Social e dá outras providências.

BRASIL. Instrução Normativa n.º 20, de 26/01/2001, do TEM. Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pela Fiscalização do Trabalho no exercício da atividade de fiscalização do trabalho das PPD’s.

BRASIL. Resolução N.º 2.878, de 26/07/2001, do Banco Central do Brasil. Dispõe sobre procedimentos a serem observados pelas instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo BCB na contratação de operações e na prestação de serviços aos clientes e público em geral.

EUA. Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes – Resolução aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 09/12/75.

GENEBRA. Convenção n.º 111, da OIT, promulgada pelo Decreto n.º 62.150, de 19/01/1968. Proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.

GENEBRA. Recomendação n.º 111, da OIT, de 25/06/58, que suplementa a convenção de mesmo número, define discriminação, formula políticas e sua execução.

GENEBRA. Convenção n.º 159, da OIT, promulgada pelo Decreto n.º 129, de 22/05/1991. Trata sobre reabilitação profissional e emprego de pessoas deficientes. Legislação Relativa ao Trabalho de Pessoas Portadoras de Deficiência.

EUA – Resolução n.º 45, da ONU. Aprovada pela 68ª Assembléia Geral das Nações Unidas em 14/12/90. Trata da execução do Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes e a Década das Pessoas Deficientes.

EUA – Recomendação n.º 99, de 22/06/55, da ONU, relativa a reabilitação profissional das pessoas portadoras de deficiência.

EUA – Resolução 3.447, de 09/12/75, da ONU, sobre a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes.

EUA – Resolução n.º 2.896, da ONU, sobre a Declaração dos Direitos dos Retardados Mentais.

EUA – Recomendação n.º 168, de 20/06/83, da ONU, que suplementa a Convenção relativa à reabilitação profissional e emprego de 1983 e a Recomendação relativa a reabilitação profissional de 1955. Prevê a reabilitação profissional em áreas rurais e participação comunitária no processo de formulação de políticas específicas pelos empregados, empregadores e pelas PPD’s.

SALAMANCA – ESPANHA. A declaração de Salamanca sobre princípios, política e prática em educação especial, de 10/07/94.

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Direitos Humanos, cidadania, trabalho. Belém, 2004.

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HERKENHOFF FILHO, Helio Estellita. O preenchimento de vagas destinadas às pessoas portadoras de deficiência nas empresas privadas (art. 93 da Lei nº 8.213/91) . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 218, 9 fev. 2004. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4807. Acesso em: 22 março de 2004.

HUMENHUK, Hewerstton. O direito à saúde no Brasil e a teoria dos direitos fundamentais . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 227, 20 fev. 2004. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4839. Acesso em: 26 março de 2004.

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FONTOURA, Marlise Souza. Re: consulta/discussão de entendimento – PPD. Lista de Discussão Membros Gamma. Disponível em <membros@gamma.pgt.mpt.gov.br> em: 19/03/2003.

LIMA, Kleber Sangreman. Brasil Gênero e Raça – Livro. Disponível em <ncdot@bol.com.br>, em 04/04/2003.

 


Referência  Biográfica

Rita de Cássia Tenório Mendonça  –  Assessora do Ministério Público do Trabalho, lotada na Procuradoria Regional do Trabalho da 19ª Região/AL e integrante do Núcleo de Combate as Desigualdades nas Oportunidades de Trabalho em Alagoas.

Repetição de Indébito. Confusão em torno do prazo pescricional trazida pela LC nº 118/05

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* Kiyoshi Harada 

A polivalente Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, que já comentamos em vários de seus aspectos, trouxe mais uma questão que está causando celeuma na doutrina especializada. Trata-se do art. 3º que confere efeito interpretativo ao inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), para consignar que a ‘extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei’.

Como afirmado pela doutrina quase unânime, na prática, o art. 3º da LC nº 118/05 estaria reduzindo o prazo prescricional para repetição de indébito, que seria de 10 (dez) anos, para 5 (cinco) anos.

O prazo de cinco anos para o ingresso em juízo com a ação de repetição conta-se a partir da data da extinção do crédito tributário (art. 168, I do CTN). E a extinção do crédito tributário, no lançamento por homologação, ocorre no momento da homologação dos atos praticados pelo contribuinte (§ 1º do art. 150 do CTN), ou, na omissão do fisco, cinco anos a partir da ocorrência do fato gerador, salvo casos de dolo, fraude ou simulação (§ 4º do art. 150 CTN).

Logo, esse prazo nem sempre é de dez anos. Basta o fisco agir com diligência, ao invés de ficar curtindo o ócio, à espera de providências legislativas tendentes a promover automática fiscalização e arrecadação tributária, para reduzir o prazo prescricional da ação de repetição, que poderá ser de seis anos, sete anos, oito anos etc., até dez anos. Afinal, nada existe no CTN que proíba o fisco de agir, homologando, prontamente, se for o caso, os pagamentos antecipados pelo contribuinte, antes do decurso do prazo de cinco anos.

A chamada ‘tese dos cinco anos mais cinco’, na realidade, resultante de simples e elementar interpretação conjugada dos arts. 165, I1 , 168, I2 e 150, § 4º3 do CTN, repousa na presumível inércia permanente do fisco em sua função de fiscalizar, preferindo a automática constituição do crédito tributário, por omissão, ao cabo de cinco anos, a contar do surgimento da obrigação tributária com a ocorrência do respectivo fato gerador.

Se a jurisprudência firmou a ‘tese dos cinco anos mais cinco’ é porque o fisco, despudoradamente, pretendeu emprestar uma interpretação distorcida aos dispositivos retromencionados que, pela sua clareza lapidar, dispensam maiores esforços do aplicador da lei. Não se trata de uma construção doutrinária ou jurisprudencial, mas de simples aplicação do direito proclamado com solar clareza.

Entretanto, o fisco acionou o astuto legislador que, por meio da chamada interpretação autêntica, tentou reduzir o prazo prescricional da ação de restituição do indébito, invariavelmente, para cinco anos, fixando o seu termo inicial para a data do pagamento antecipado, independentemente de sua homologação que resultaria na constituição do crédito tributário.

Ocorre que, a chamada interpretação autêntica não tem, nunca teve e jamais poderá ter o condão de alterar a interpretação dada pelo Poder Judiciário, detentor único da prerrogativa de aplicar a lei em última análise. A atividade preponderante do Legislativo é a de elaborar normas jurídicas gerais e abstratas para regular a convivência social. Não é sua função interpretar as leis que elabora. A do Executivo é executar as leis e administrar os negócios públicos, isto é, governar. O Judiciário não participa do processo legislativo, salvo em casos expressos na Constituição, mas é o Poder incumbido da aplicação definitiva das leis às hipóteses de conflitos de interesses visando sua composição. Daí a absoluta impossibilidade jurídica de derrogar o entendimento jurisprudencial, acerca de determinado dispositivo legal, pelo Poder Legislativo, por via de preceito interpretativo como o do dispositivo sob comento. No caso, repita-se, o Judiciário limitou-se a aplicar os dispositivos legais claros, incontroversos e de facilíssima compreensão, repelindo a amalucada interpretação dada pelo fisco.

Entretanto, o dispositivo sob comento permite uma segunda leitura. Pode-se entender que está alterando a redação do § 1º do art. 150 do CTN para os seguintes termos:

‘O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, independentemente de ulterior homologação do lançamento’.

Enfrentemos, pois essa alternativa, em tese passível de admissão pelo intérprete.

Examinada a questão sob esse enfoque, salta aos olhos a total absurdeza jurídica da disposição legal sob comento. Descabe falar em extinção de algo que não existe. Para que o crédito tributário exista como tal é preciso que seja ele previamente constituído pelo lançamento, que é privativo da autoridade administrativa tributária, nos precisos termos do art. 142 do CTN.

Permitir a restituição do que foi pago, antes do formal reconhecimento do fisco como crédito tributário seria instaurar o caos, a insegurança jurídica. Acabaria por flexibilizar o instituto do lançamento, que serve de marco divisor entre a decadência e prescrição. Mais do que isso, seria abolir do sistema jurídico-tributário a modalidade de lançamento por homologação que, ironicamente, o fisco dela vem se utilizando com intensidade cada vez maior, quer por atribuir o ônus da correta interpretação da confusa legislação tributária exclusivamente ao contribuinte, quer para se livrar dos cansativos trabalhos de calcular o montante do imposto devido e notificar o contribuinte para pagamento. Enfim, o fisco quer os benefícios da comodidade e da economia de custos que o lançamento por homologação lhe propicia, mas não quer a dilação do prazo prescricional para a ação de repetição de indébito que essa modalidade de lançamento provoca, na hipótese de omissão da administração tributária.

Por isso, o esperto legislador disfarçou o encurtamento do prazo de repetição do indébito, conferindo à norma do apontando art. 3º, o caráter interpretativo, no que foi infeliz e desastroso. Agiu como uma avestruz, que enterra a cabeça na areia para que ninguém o veja.

Em tese, é possível ao legislador derrogar a jurisprudência. A Emenda Passos Porto (EC nº 23/83), por exemplo, sepultou três teses de natureza constitucional proclamadas pela Corte Suprema. Da mesma forma, a legislação infraconstitucional pode alterar o dispositivo legal e com isso acarretar mudança de jurisprudência. Só que isso deve ser feito, acima de tudo com ética, e com respeito ao sistema jurídico vigente, alicerçado nos direitos e garantias fundamentais do contribuinte, sob pena de vulnerar o princípio da segurança jurídica, que se extrai do art. 5º da CF, que tem natureza pétrea, insusceptível de alteração por Emendas.

O princípio da segurança jurídica pressupõe normas jurídicas estáveis, regulares e previsíveis, porque conformadas com os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Carta Política em nível da cláusula pétrea. A previsibilidade de normas jurídicas futuras é inerente ao sistema de segurança jurídica. Normas casuísticas e imprevisíveis, ditadas por legisladores idiossincráticos, que surgem do nada, na calada da noite, com toda certeza, não se harmonizam com o sistema jurídico fundamentado na Constituição Federal, pelo contrário, são normas bastardas que devem ser repelidas e expurgadas do mundo jurídico.

A falta de lealdade do Estado para com seus cidadãos, que não mais conseguem pisar em solo firme, vem se acentuando de forma alarmante e perigosa. A mesma LC nº 118/05 enxertou o art. 185-A, já objeto de nossos comentários, instituindo a imediata indisponibilidade universal de bens e direitos do executado, por meio eletrônico, seguida de levantamento imediato do excesso que vier a ser constatado. Em outras palavras, prescreveu-se a aplicação prévia da pena capital a todo e qualquer acusado da prática de qualquer tipo de delito, seguida de imediata redução da pena aplicada, caso venha ser constatado, posteriormente, o excesso da penalidade aplicada. O art. 46 da Lei nº 10.833/03, que prescrevia a variação cambial dos investimentos no exterior como receita ou despesa financeira foi vetado pelo Executivo, porque no ano calendário de 2003 os computadores da Receita sinalizaram a variação cambial negativa. Agora, como esses mesmos computadores sinalizaram variação cambial positiva, o esperto legislador palaciano enxertou o art. 9º ao texto da Medida Provisória nº 232/04, que batizamos de ‘tsunami tributário’, prescrevendo a tributação da variação cambial dos investimentos no exterior, avaliados pelo método de equivalência patrimonial. Vale dizer, ressuscitou o antigo art. 46, vetado na época, porque não convinha ao governo, rompendo o necessário ponto de equilíbrio da lei. O art. 6º da Lei nº 11.051/04, também, já comentado anteriormente, a pretexto de explicitar o alcance da norma do caput do art. 40 da Lei nº 6.830/80, veio introduzir sorrateiramente o § 4º, dilatando o prazo de prescrição intercorrente, procurando driblar a jurisprudência dos tribunais. Vários outros exemplos de deslealdade legislativa poderiam ser citados.

O expediente aético e maroto, utilizado pelo ardiloso legislador na redação do art. 3º sob exame, um verdadeiro ato de improbidade legislativa, certamente, há de ser repelido pelo STJ, que já sinalizou no sentido da invalidade dessa norma afrontosa sob todos os aspectos ao sistema jurídico, alicerçado nos direitos e garantias fundamentais.

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Notas de rodapé convertidas

1. Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:
I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido.

2. Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos contados:
I – nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;

3. Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador, expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.


Referência  Biográfica

Kiyoshi Harada  –  Sócio da Harada Advogados Associados. Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Membro do Instituto do Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Sucumbência e honorários na intervenção de terceiro

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* Jomar Luiz Bellini 

INTRODUÇÃO    

            O artigo 34 do Código de Processo Civil deixa claro que reconvenção, oposição e ação declaratória incidental são ações, embora com particularidades e, por isso mesmo as submete a regra geral das custas processuais:

“Art. 34 . Aplicam-se à reconvenção, à oposição, à ação declaratória incidental e aos procedimentos de jurisdição voluntária, no que couber, as disposições constantes desta seção.”.

              Buscam, a reconvenção, oposição e ação declaratória incidental, a obtenção de bem jurídico autônomo, pois a pretensão tem identidade própria, que uma vez não sendo aceitas, justifica-se a condenação nas verbas sucumbenciais.

Reconvenção  

            A Reconvenção ocorre quando o réu propõe ação em face ao autor, na mesma ação em que está sendo demandado. Segundo Humberto Theodoro Júnior, a reconvenção não é simples resposta do réu, onde este pretende tão somente apresentar defesa, ao contrário da contestação, que é simples resistência à pretensão do autor, a reconvenção é um contra-ataque, uma verdadeira ação ajuizada pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), nos mesmos autos.[i]

              Não existe dúvida que a reconvenção é de fato uma ação, porém agregada ao pleito principal e embora uma vez residindo em juízo não se extingue tão – só com a extinção deste (CPC, art. 317).[ii]

Obrigatoriedade do Réu em apresentar a Reconvenção  

            Não há obrigatoriedade do réu em apresentar a reconvenção, já que seu “contra-ataque” pode ser reservado para uma ação autônoma a ser proposta por este contra o autor.  Assim, fica ao livre alvitre do réu em reconvir, embora seja apreciável sua atitude em face do princípio da economia processual. A reconvenção é apresentada ao mesmo tempo em que a contestação, só que em petição apartada (art. 299 do CPC).

              Admite a jurisprudência, todavia, a possibilidade da apresentação de contestação e reconvenção na mesma peça constituindo-se mera irregularidade, incapaz de motivar, por si só, a rejeição da reconvenção.[iii]

              Independentemente da forma apresentada a decisão da reconvenção só será proferida em uma sentença para ambas as ações.

Natureza Jurídica  

            Já que equiparada a uma ação, a reconvenção deve também preencher os requisitos processuais inerentes àquela para que possa ser intentada. Assim, há pressupostos e condições a serem preenchidos:  as partes têm que ser as mesmas, ou seja, só o réu poderá ajuizar a reconvenção, onde só o autor poderá ser o reconvindo; há de haver conexão entre as duas ações; a competência para o julgamento das ações tem que ser a mesma; e por fim, o rito das ações devem ser idênticos (ressaltando apenas que há vedação expressa do Código de Processo Civil quanto à reconvenção em ações propostas sob o rito sumaríssimo – art. 315, parágrafo 2º).

              Na reconvenção o réu, ao invés de manter-se na posição de quem resiste passivamente ao ataque, apenas alegando fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do autor, toma uma atitude agressiva, no sentido de fazer valer uma pretensão própria e autônoma contra este.

              A reconvenção não é simples resposta: é ação do réu contra o autor, é ataque do réu contra o autor. E o oferecimento de reconvenção pelo réu faz instaurar uma relação processual nova, distinta e paralela à que se fez inaugurar com a propositura da ação pelo autor em desfavor daquele réu. Tanto é uma ação distinta, que, no caso de, por algum motivo, ser extinta a relação processual inaugurada com o ajuizamento da ação, prossegue o juiz no julgamento da reconvenção.

              Sua finalidade não é somente, como pensam alguns, a de modificar ou excluir o pedido do autor, mas também a de possibilitar a reunião, em um único processo, da ação do réu e do autor, evitando-se sentenças contraditórias. É o que se dá no caso em que o autor pede a entrega da coisa e o réu reconvém pedindo o pagamento integral do preço. As duas pretensões podem ser julgadas procedentes, sendo que o veredicto dado ao pedido reconvencional não modifica nem exclui o pedido formulado inicialmente. [iv]

              Mesmo sendo a reconvenção uma ação, o reconvindo não será citado para apresentar resposta, mas será tão somente intimado na pessoa do seu procurador.

Prazo para apresentação da Reconvenção 

            A contestação e a reconvenção constituem forma de resposta do réu e são oferecidas no processo, simultaneamente, mas em peças distintas. É o que dispõe o art. 299, do Código de Processo Civil.

              Uma vez o prazo sendo 15 para a resposta esse é o prazo para a apresentação da reconvenção, como prescreve o artigo 297 do Código de Processo Civil. Por isso mesmo, a Fazenda ou o Ministério Público poderá utilizar-se da prerrogativa de prazo se quiser ajuizar reconvenção ou opor exceções.[v]

              De igual forma ocorrerá se houver mais de um Defensor consoante inteligência do artigo 191 do Código de Processo Civil, ou seja, o prazo será sempre em dobro.

Oposição  

            A oposição constitui-se numa das espécies de intervenção de terceiro, ou seja, ocorre quando alguém ingressa numa ação em que não seja parte.  A oposição se dá quando o terceiro intervém, espontaneamente, em processo alheio visando a defender o que é seu total ou parcialmente. Os opostos são litisconsortes não-unitários, com autonomia de procedimentos.

              A oposição não é atitude obrigatória do terceiro interveniente, neste caso chamado de opoente, que pode deixar para intentar ação autônoma no caso de ser prejudicado em face da decisão judicial a ser proferida na ação que demandam autor e réu. No entanto, e reverenciando também o princípio da economia processual, pouparia a pendência entre si e as partes daquela ação, se desde já se apresentasse à demanda. Não é necessário que a oposição aluda a toda questão que está sendo discutida entre autor e réu, bastando que se refira a apenas parte dele.

              Arruda Alvim ensina que a oposição se cristaliza numa ação bifronte. O opoente é autor de uma ação. Assim, deverá sua pretensão ser formulada de acordo com os requisitos para dedução de uma ação (art. 57); ou seja, devem ser preenchidos os pressupostos processuais e as condições da ação, e, observados os requisitos dos arts. 282 e 283, sem o que deverá ser a oposição indeferida. A oposição tem valor próprio e é este que deverá constar da petição inicial da mesma. [vi]

Natureza Jurídica  

            Constitui-se uma ação, onde o opoente ajuiza pretensão contrária aos opostos, ou seja, ao autor e ao réu ao mesmo tempo. Além disso, a pretensão também não é a mesma daquela primeira ação, tanto que o opoente litiga contra as duas partes, com o objetivo de excluir o pedido outrora formulado. Constitui uma espécie do gênero de intervenção de terceiro, sendo ação conexa, incidental à principal, o que não faz do opoente parte na relação principal.[vii] Por tal motivo a oposição é processada em autos apartados daquela primeira ação.

Prazo temporal para apresentação da oposição  

            Questão controvertida na doutrina é o limite no tempo para apresentação da oposição.

              Segundo Humberto Theodoro Júnior, o limite temporal de admissibilidade da oposição é o trânsito em julgado da sentença da causa principal[viii]. (…). A propósito, observe-se que, diante dos limites subjetivos da res judicata (art. 472), nem mesmo o trânsito em julgado da decisão da causa principal, transcorrida sem a oposição, é empecilho a que o terceiro, que não figurou na relação processual, intente ação comum contra a parte vencedora para recuperar a posse do bem que a sentença lhe conferiu.[ix]

            Para Celso Barbi[x] e Hélio Tornaghi[xi] entendem que o limite máximo para a intervenção do opoente ocorre antes da publicação da sentença.

Forma de apresentação da oposição  

            Ressalte-se que nem sempre a oposição será proposta em forma de intervenção de terceiro, o que só ocorrerá quando a mesma for apresentada antes da audiência de instrução e julgamento (art. 59 do CPC), correndo juntamente com a ação, sendo inclusive, proferida uma só sentença. Mas quando proposta após o referido prazo será feita através de ação autônoma (art. 60 do CPC), processada sob o rito ordinário, sendo possível a suspensão do processo por prazo não inferior a 90 dias.

              Já que constitui ação, a oposição será sempre apresentada sob a forma de petição inicial, ficando os autos em apenso à ação principal se apresentada antes da audiência. Neste caso, como também se a oposição tiver sido oferecida em ação autônoma, será realizada a citação dos opoentes, ainda se o réu tiver sido considerado revel.

Procedimento da oposição  

            Após, a ação correrá pelo procedimento normal, incidindo todas as regras pertinentes a uma ação qualquer, vez que pode se dar a revelia dos opoentes; o reconhecimento do pedido por ambas as partes e conseqüentemente o julgamento antecipado da oposição; o julgamento de extinção do processo, como ou sem julgamento do mérito, etc.

              Arruda Alvim, diz que os pressupostos de admissibilidade da oposição são os seguintes: 1º litispendência do processo principal; 2º que a pretensão do opoente objetive a coisa ou o direito sobre que discutem autor e réu, mesmo que essa pretensão tenha causa petendi diversa da do autor, mas tanto basta que com ela tal pretensão seja incompatível, no sentido de que ambas não possam conviver juridicamente;(…)[xii]

              Hélio Tornaghi diz que a oposição é ação declaratória contra o autor e condenatória ou meramente declaratória contra o réu.[xiii] A sentença proferida na oposição, ao invés de corrigir erro anterior, irá evitá-lo. A oposição tem, como se disse, caráter prejudicial.[xiv]. Dado o vínculo entre a ação primitiva e a oposição, o juízo daquela é competente para dessa conhecer e para julgá-la.[xv]

Ação Declaratória Incidental  

            Pode ocorrer no caso do art. 5º do Código de Processo Civil, ou seja, no curso do processo, tornar-se litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.

              A ação declaratória incidental não é considerada como a constituição de um “mero incidente processual”, segundo se constata da doutrina dominante, como também não é confundida com a reconvenção, quando proposta pelo réu.

              Na ação declaratória incidental busca-se o mero pronunciamento declaratório da existência – ou não – de relação jurídica material, de forma que não poderá resultar, jamais, em pronunciamento relativo a ato processual.[xvi]

              Não se pretendeu com a ação declaratória incidental aumentar o âmbito da discussão do processo, mas sim de permitir um debate mais amplo entre as partes.

              Em sendo assim, alguns dos mais renomados doutrinadores, tais como, Pinto Ferreira;[xvii] Rangel Dinamarco,[xviii] Greco Filho,[xix] e Ari Ferreira de Queiroz,[xx] se referem de modo explícito à ação declaratória incidental como maneira formal de ampliar o âmbito do dispositivo da sentença.

              No entendimento de Pontes de Miranda, Ada Pellegrini Grinover, Alfredo Buzaid, entre outros, necessário é o requerimento de uma das partes, através de ação declaratória incidental em juízo competente em razão da matéria, para que assim se constitua o pressuposto indispensável para o julgamento da lide. Dessa forma se acolhe então a autoridade e eficácia de “coisa julgada”.

              Como faz coisa julgada a parte da sentença que julga o mérito da causa, ficam excluídos não só os motivos em que foram baseadas aquela decisão, bem como também as questões prejudiciais, definidas por Humberto Theodoro Júnior como aquelas que, relativas a outros estados ou relações jurídicas, se apresentem no processo como mero antecedente lógico da questão principal, embora pudessem ser, por si só, objeto de processo autônomo.

              Proposta uma ação, na qual a parte autora formula seu pedido, deparando-se o magistrado com tal ação e tendo determinado a citação do réu, torna-se litigiosa a coisa (art. 219, caput), se estabelecendo assim uma relação jurídica processual para o julgamento da lide.

Questão Prejudicial  

            Humberto Theodoro Júnior, diz que só há questão quando ocorre controvérsia sobre o referido antecedente lógico. Mas, para justificar a declaratória incidental, é preciso que a questão seja tal, que pudesse justificar hipoteticamente um outro processo, pois, só assim, se concebe o exercício do direito de ação, que se contém no pedido de declaração incidente.[xxi]

              Sendo assim, de maneira indireta, a questão prejudicial, devido ao seu tamanho grau de importância, terá que passar a ser considerado como integrante do mérito da causa, para ser considerada coisa julgada. Tal ocorrerá através da ação declaratória incidental.

Procedimento da Ação Declaratória Incidental 

            Se o pedido da questão a ser suscitada tiver sido formulado pelo réu, tal ação será intentada através da reconvenção; se for objetivo do autor, o prazo para a propositura da referida ação será o de 10 dias a contar da intimação da contestação em que tenha sido criada a controvérsia.

            Embora se constitua numa ação, a declaratória incidental não será processada em autos apartados, mas sim nos mesmos autos da ação principal. Ressalte-se, por oportuno, que a ação deverá ser proposta com a observância dos mesmos requisitos da petição inicial.

            Apresentada ao juiz e, se atendidos os requisitos de admissibilidade específicos e também os gerais (pressupostos processuais e condições da ação),[xxii] o juiz determinará para que seja dado conhecimento a parte contrária, não através de uma citação, mas por uma intimação (art. 234), realizada na pessoa do procurador. É a norma do art. 316 que a doutrina manda aplicar à declaratória incidental.

            Indeferindo a inicial onde é levantada a questão incidental, o recurso cabível é o de agravo de instrumento.

            Nesse sentido já se pronunciou o Tribunal de Justiça de São Paulo[xxiii], decidindo que ação declaratória incidental, como indicado, por sua própria designação, se insere no processo instaurado com a ação principal, não levando a um novo processo. Assim, seu indeferimento liminar constitui decisão interlocutória, na medida em que o processo não termina, mas prossegue com a ação principal. A circunstância de, erroneamente, ser a ação declaratória autuada em apenso não altera a natureza do pronunciamento judicial, não operando, portanto, a transformação da decisão interlocutória em sentença. Assim, o indeferimento liminar da ação declaratória enseja o recurso de agravo de instrumento e não o de apelação. Interposta apelação, depois de escoado o qüinqüídio para a interposição do agravo, não há lugar para aplicação do princípio da fungibilidade.

            A questão suscitada não sendo objeto da demanda, o julgador, apenas dela conhecerá, não cabendo ao mesmo sobre ela proferir decisão alguma. Em não ocorrendo decisão sobre a questão, ou seja, não se discutindo o mérito quanto ao ser ou não o autor herdeiro, não ocorrerá a eficácia da coisa julgada.

Legitimidade  

            Por fim, cabe aduzir que as partes da ação declaratória incidental devem ser as mesmas da ação principal, só sendo cabível se o juiz for competente para apreciá-la.

Procedimentos de Jurisdição Voluntária  

            São aqueles em que não há partes, nem litígios envolvidos, mas que, no entanto, para dar a eficácia merecida a determinados atos, os mesmos terão que ser, obrigatoriamente, apreciados pelo Poder Judiciário. Humberto Theodoro Júnior define jurisdição voluntária, como sendo aquela em que o juiz apenas realiza gestão pública em torno de interesses privados, como se dá nas nomeações de tutores, nas alienações de bens de incapazes, na extinção do usufruto ou do fideicomisso etc.[xxiv]

            Para Pontes de Miranda conceitua Jurisdição Voluntária como sendo os atos processuais que exigem mera homologação são os atos jurídicos das partes, ou em lugar das partes, que sejam regidos pelo direito material, porém cuja eficácia processual dependa de sentença, sendo essa simplesmente homologatória.[xxv]

Aplicação das sanções prevista no artigo 34, do CPC  

            Por serem equiparadas a verdadeiras ações, a reconvenção, a oposição, a ação declaratória incidental, e ainda os procedimentos de jurisdição voluntária estão sujeitos também, como qualquer ação, a todo o regramento disposto na seção III, do Capítulo II do Código de Processo Civil, referente às despesas processuais e multas.  

            Se não bastasse esse entendimento, o artigo 34 explicita prescrevendo que se aplicam à reconvenção, à oposição, à ação declaratória incidental e aos procedimentos de jurisdição voluntária, no que couber, a disposição constante desta seção. 

            O adiantamento das custas processuais, nos casos da jurisdição voluntária, é pacífico, uma vez que será adiantada pelo requerente e ao final será rateado por todos os interessados e da mesma forma o honorário advocatício.  

            Para Arruda Alvim, cabe, salientar que tanto a reconvenção como a oposição e ação declaratória incidental constituem ações diversas da ação proposta pelo autor, apesar de estarem contidas num mesmo procedimento. E, na medida em que consubstanciem pretensões com identidade própria, que não sejam acolhidas, justifica-se a condenação das custas. [xxvi]

              Via de regra, deve-se seguir as normas contidas na seção III. Nesse sentido, a sucumbência na reconvenção equivale à que ocorre na ação, e em sendo rejeitado o pedido por carência ou por improcedência, o reconvinte arcará com os honorários do advogado da parte reconvinda.

              O tribunal paranaense, já decidiu que a parte vencida na reconvenção deve arcar com todos os ônus da sucumbência, como está expresso no art. 34 do CPC, ainda que também tenha ficado vencida na ação. Cumpre-lhe, pois, pagar honorários relativos a uma e a outra.[xxvii]

              Diferente não será quando a sentença que decidir a oposição imporá as partes sucumbentes às sanções pertinentes no que se refere às despesas processuais e honorárias advocatícios.

              Nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária não se aplica a regra atinente a honorários advocatícios, salvo se tornarem contenciosas.[xxviii]

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[i] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição – pág. 385.

[ii] TJDF – AGI 19990020039415 – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Eduardo de Moraes Oliveira – DJU 12.04.2000 – p. 11.

[iii] TJSC – AC 96.009289-7 – SC – 4ª C.Cív. Rel. Des. Pedro Manoel Abreu – J. 30.06.1998.

[iv] Moacyr Amaral dos Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Saraiva, 1985, vol. II, p. 224.

[v] Nelson Nery Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição, RT, 2ª ed., pág. 48.

[vi] Arruda Alvin. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, p. 86

[vii] TRF 1ª R. – AG 01000488295 – BA – 3ª T. – Rel. Juiz Cândido Ribeiro – DJU 05.06.1998.

[viii] Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, v. I, p. 125.

[ix] Idem, p. 126.

[x] Comentários ao Código de Processo Civil, 1º edição, vol. 1,  t.II, nº355, pág. 314.

[xi] Comentários ao Código de Processo Civil, 1º edição, vol. 1,  pág. 242.

[xii] Idem, p. 87.

[xiii] Hélio Tornaghi. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 243.

[xiv] Idem, p. 240.

[xv] Idem, p. 243.

[xvi] TRT 9ª R. – RO 8.199/93 – 1ª T. – Ac. 11.167/94 – Rel. Juiz Iverson Manoel Rocha – DJPR 24.06.1994.

[xvii] Pinto Ferreira, Curso de Direito Processual Civil, p. 118.

[xviii] Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 308.

[xix] Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, v. 2, p. 151.

[xx] Ari Ferreira de Queiroz, Direito Processual Civil, p. 73 e 277.

[xxi] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição – pág. 398.

[xxii] Para João Batista Leite, os requisitos da declaratória incidental são: a) a existência de questão prejudicial autônoma; b) a ocorrência de controvérsia sobre a existência ou inexistência de relação jurídica; c) a existência de processo de cognição ampla; d) a competência absoluta do juiz; e) a identidade do tipo de procedimento para ambas as ações (a condicionante e a condicionada).

[xxiii] Ac. un. da 2ª Câm. do TJSP de 12.11.1991, no Ag. 162.304-1, rel. Des. Araújo Cintra; RJTJSP 135/307, apud Alexandre de Paula, op. cit., v. 1, p. 78.

[xxiv] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição, pág. 40.

[xxv] Tratado da ação rescisória, § 38, nº 4, p. 414.

[xxvi] Código de Processo Civil Comentado: São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1975, vol.II, pág. 249.

[xxvii] TAPR – AC 115.063-2 – 7ª C – Rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo – J. 30.03.1998.

[xxviii] TAMG – AC 0307722-5 – 1ª C.Cív. – Rel. Juiz Nepomuceno Silva – J. 27.06.2000; TJRJ – AC 6038/94 – (Reg. 200795) – Cód. 94.001.06038 – Rio de Janeiro – 1ª C.Cív. – Rel. Des. C. A. Menezes Direito – J. 07.03.1995; TJSP – AC 233.442-2 – São Paulo – Rel. Des. Paulo Shintate – J. 24.05.1994.

 


Referência  Biográfica

Jomar Luiz Bellini  –  Advogado e Contador; Professor de Direito Processual Civil e Teoria Geral do Processo da Faculdade de Direito de Itapetininga e de Direito Processual Civil, Internacional e Legislação Tributária na Universidade de Sorocaba Especialista em Comércio Exterior (FECAP-SP) e Direito Tributário (PUC-SP); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Mackenzie  e Doutorando em Direito Processual Civil na PUC-SP.

“A Constituição Patrimonial Privada”

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* Donata A. Campos de Barros

NOÇÃO DE CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

Uma abordagem da obra  A Constituição Patrimonial Privada, de Antonio Menezes Cordeiro. Coimbra : Almedina, 1998. 

Constituição formal e constituição material

A doutrina fala em Constituição em vários sentidos mas os dois mais significativos são: a constituição formal e a constituição material.

Para o autor, a constituição formal é “a fonte ou o conjunto de fontes identificáveis por possuírem uma determinada característica exterior, a que se convenciona, em determinado momento histórico, chamar constituição” (é o texto legal, aprovado com determinadas formalidades e que exige requisitos especiais para a sua modificação) e, o sentido material, “constituição é a fonte ou conjunto de fontes que estruturam e legitimam determinada ordem jurídica, instituindo o poder político e estabelecendo os direitos fundamentais dos particulares”. 

O autor funde os dois conceitos dizendo que o essencial da constituição material está contido na constituição formal e por isso passa a tratar somente como constituição os aspectos materiais essenciais, formalizados constitucionalmente. Explica ainda que não define constituição como conjunto de normas ou princípios porque norma é tarefa a ser realizada caso a caso, por meio da interpretação e constituição é fonte da qual o intérprete extrairá, mediante recursos e regras determinadas, as normas constitucionais.

·   Normas e princípios constitucionais

O autor explica que normas constitucionais são normas jurídicas que se extraem da Constituição e os Princípios constitucionais são os que podemos induzir da fonte constitucional, através da interpretação científica, da interpretação e da sistematização.

Segundo ele, a norma traduz um comando que verificadas as condições nela previstas, se dirige a determinado sujeito. Ela é extraída da fonte pela interpretação. Já o princípio induz-se de fontes e normas pela construção e sistematização científicas.

O autor explica que não pode haver normas jurídicas igualmente válidas e contraditórias num ordenamento jurídico, porém, pode haver e há princípios válidos e contraditórios, e a escolha de um deles para um caso concreto, dependerá de cuidadosa ponderação efetuada à luz de outros princípios e normas.

Ele dá como exemplo insanável uma norma que designasse, pela Constituição, que a Assembléia da República devesse ter 150 membros. Depois, seria acrescentada à essa mesma Constituição que o número de mebros deveria ser definido pelo Governo. Seria isso, então uma contradição insanável, pois somente uma das normas poderia ser válida.

No entanto, a Constituição consagra, lado a lado, os princípios da igualdade e da propriedade privada, que pode ser entendido como contraditório. Contudo os dois princípios são considerados válidos, prevendo a própria Constituição várias formas de harmonização entre eles.

Diz o autor, que um sistema jurídico logicamente acabado, mesmo que somente um esboço, só pode ser conseguido recorrendo-se a normas e princípios.

·   Normas preceptivas e normas programáticas

A distinção entre elas é o que, para o autor, tem maior importância para o conceito de constituição patrimonial privada:

a)     preceptivas são normas de aplicação imediata;

b)     programáticas são as normas de aplicação diferida (procrastinada ou retardada) e mediata (depende de outra coisa) pois implicam a elaboração de outras regras capazes de as tornar exeqüíveis e efetivar sua vigência. As normas programáticas dirigem-se ao legislador ordinário e não dão lugar a direitos subjetivos.

O autor cita Grisafulli, ao dizer que as normas programáticas estão próximas dos princípios gerais do Direito, dos quais são, muitas vezes meras explicitações, embora sejam, para todos os efeitos, verdadeiras normas jurídicas.

·   O direito patrimonial privado

Cordeiro considera privado o Direito que regula situações da vida social, cujos sujeitos são desprovidos de poderes de autoridade. Ele distingue Direito Público de Direito Privado usando o critério subjetivo-material isto é, o Estado pode atuar como sujeito de situações privadas, bastando para isso que não esteja revestido de ius imperii (direito soberano). Nesse caso, a sua conduta é regida pelo Direito Privado.

No Direito Privado, distingue-se o Direito Patrimonial do Direito não Patrimonial.

O Direito Patrimonial Privado regula situações de conteúdo econômico e suscetíveis de avaliação pecuniária, ao contrário do Direito Privado não Patrimonial que regula situações que, não tendo conteúdo econômico, não são avaliáveis pecuniariamente.

Cordeiro cita Paulo Cunha, ao afirmar que a suscetibilidade da avaliação pecuniária obedece a critérios empíricos e extra-jurídicos pois uma situação terá natureza econômica quando seja como tal reconhecida pelo sentir geral da sociedade em que o caso concreto esteja acontecendo. Por isso, não existe um critério uniforme de avaliação pecuniária: a natureza patrimonial tem de ser aferida de acordo com as concepções dominantes em cada tipo de sociedade.

O autor chama de propriedade privada, os direitos subjetivos de natureza patrimonial.

Em sentido técnico-jurídico, propriedade designa o direito real cuja regulamentação consta dos artigos do Código Civil. Num sentido amplo, o termo traduz os diversos direitos de conteúdo patrimonial.

·   Noções de Constituição Patrimonial Privada: a sua Natureza Interdisciplinar

Ele aproxima as noções de Constituição e de Direito Patrimonial Privado e propõe o conceito de Constituição Patrimonial Privada que será: ”o conjunto sistematizado de normas e princípios dirigidos à regulamentação de situações jurídicas privadas de conteúdo econômico e que constam de determinada Constituição”. 

     Metodologia e Fontes

Quanto à Metodologia, pergunta-se qual a maneira de ordenar o material que integra a constituição patrimonial privada. O autor responde que uma das maneiras seria a de isolar da Constituição tudo o que sobre patrimônio fosse encontrado.

Um método por ele preferido seria partir das normas constitucionais que expressamente se dirigissem ao estatuto patrimonial privado e, a partir delas, extrapolar a constituição patrimonial. Recorrer-se-ia às restantes normas e princípios, na medida em que fosse necessário a integração, a orientação e a complementação do que ele chama de material recolhido.

A sistematização do material recolhido seria feita do seguinte modo:

NIVEL PRECEPTIVO (imediato):

Na área formal

–   fontes da normas patrimoniais

–   interpretação das fontes patrimoniais

–   estrutura da norma patrimonial

–   aplicação e sanções das normas patrimoniais.

Na área substancial

–   conteúdo da norma patrimonial

NÍVEL PROGRAMÁTICO

Na área substancial

–   conteúdo programático da norma patrimonial

·   Disposições constitucionais patrimoniais

O autor menciona, como exemplo, os preceitos constitucionais que mais têm relevância para o direito patrimonial privado, como o Direito de Propriedade Privada, Setores de Propriedade dos Meios de Produção, Iniciativa Privada.  Outros seriam Tarefas Fundamentais do Estado, Princípio da Igualdade, Garantias e condições de efetivação e Organização Econômica.

O autor menciona vários antecedentes históricos da Constituição Portuguesa até chegar nos dias de hoje, para justificar sua proposição.

NÍVEL PRECEPTIVO (aplicação imediata) – ÁREA FORMAL

Fontes do Direito Patrimonial

·   Segundo Cordeiro, a Constituição Portuguesa só pode ajudar indiretamente porque remete os termos do direito do direito è propriedade privada e a sua transmissão por vida ou por morte para a própria Constituição.

·   Quanto ao Princípio da Igualdade, o autor conclui que a situação patrimonial das pessoas só pode ser afetada por ato genérico ou seja, por ato perante o qual todos os cidadãos nacionais ( e nos casos previstos em norma também os estrangeiros e apátridas) se apresentem como iguais. Isso quer dizer que ou o ato atinge a todos como iguais ou será inconstitucional.

·   Quanto aos costumes, somente o Estado pode produzir atos genéricos desse tipo, pelo que, as fontes do direito material deverão estar compreendidas na noção de lei material, que deve ser entendida como disposição genérica proveniente de órgão estadual competente.

·   A Interpretação da Lei Patrimonial

A constituição não contém expressamente quaisquer regras de interpretação de fontes em geral ou da lei em especial. No entanto, as regras de interpretação constam de normas jurídicas em sentido próprio pois, nos casos concretos, a resolução se à luz de determinadas normas, que são as normas aplicáveis e é justamente a interpretação que permite descortinar quais são essas normas, as chamadas aplicáveis e as interpretativas.

Nesse ponto, o autor entende que as regras de interpretação devem estar inseridas no sistema de fontes em cuja ordem jurídica se integrem. 

A constituição patrimonial prescreve, como fontes do direito patrimonial, diplomas não inferiores a leis, decretos-leis ou decretos-regionais, concluindo-se, assim, que a interpretação patrimonial não pode constar de regras inferiores e, assim, entende-se que somente as leis federais podem dispor sobre a interpretação das fontes patrimoniais.

·   Estrutura do comando patrimonial

O comando abstrato se compõe de previsão e estatuição.

–   previsão quando descreve determinado evento, prevendo a sua eventual ocorrência;

–   estatuição associa à verificação dessa ocorrência certos efeitos em termos do dever ser. A descrição da ocorrência prevista ou dos efeitos estatísticos pode ser feita de 3 formas:

1)     descrição casuística de eventos – são os comandos concretos, ou seja, perde-se a natureza de norma por falta de generalidade;

2)     descrição de categorias conceituais abstratas – são normas jurídicas comuns;

3)     descrição tipológica de eventos , pela indicação dos seus traços específicos – é a tipicidade normativa.

A exigência de generalidade (porque a lei material é fonte de direito patrimonial)  exclui a regulamentação mediante descrições casuísticas.

Ao contrário do que acontece na matéria patrimonial, a Constituição ordena a estrutura das normas de outros ramos do direito. Assim, a tipicidade é obrigatória no Direito Penal ou Tributário, por exemplo

·    A Aplicação da norma patrimonial: as Sanções

São normatizadas pelo Código Civil, nos campos de aplicação do tempo e do espaço. Usando do mesmo raciocínio quanto às normas da interpretação, o autor entende que as disposições em vigor só podem ser alteradas, no tocante ao direito patrimonial, por leis federais. Ele diz ser este um princípio geral implícito na constituição patrimonial.

NÍVEL PRECEPTIVO (imediato): ÁREA SUBSTANCIAL

·   O Controle da norma patrimonial

Aqui o autor fala do ponto de partida da constituição patrimonial que é o preceito: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação econômica ou condição social”.

Este é um princípio fundamental do direito com especial incidência no campo patrimonial ou seja, todos devem ter iguais direitos patrimoniais.

·    A propriedade privada

A Constituição garante a todos o direito à propriedade privada, e a sua transmissão em vida ou por morte. O sentido exato desse preceito está de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 17.

O autor diz que o direito de propriedade privada, tal como resulta da constituição patrimonial, é um direito econômico, conferido por igual a todos os cidadãos e em termos de não poder ser arbitrariamente afetado. A determinação do seu âmbito é feita por exclusão de partes, razão que leva o autor a abordar outros tipos de propriedade.

Quanto ao setor público, o autor o define como sendo composto pelos bens e pelas unidade de produção coletivizados sob diversos modos sociais de gestão e explicita, nos termos da Constituição, quais são os bens e meios de produção que devem estar, obrigatoriamente, na titularidade do Estado e sob alguma forma de gestão, inclusive o setor cooperativo e seus princípios.

NÍVEL PROGRAMÁTICO (mediato)

·    Normas e Princípios Programáticos

Sobre este assunto, o autor diz que é nos Princípios Fundamentais que reside o sentido do desenvolvimento do nível programático constitucional, podendo-se dividi-los em dois grupos que se respeitam:

1)     O problema da transição para o socialismo

2)     A questão da apropriação de riquezas.

Sobre esses grupos,  o autor diz que estão evidentemente interligados mas que mesmo assim não consegue precisar juridicamente o que seja socialismo, deixando para a Ciência Política proceder à tal análise. Ele diz que o princípio programático essencial em matéria patrimonial é a apropriação coletiva dos principais meios de produção, devendo o Estado socializá-los.

Quanto à indenizações, o autor fala que a coletivização de bens e meios de produção é feita normalmente em detrimento do setor privado, mas que a Constituição preceitua “justa indenização”, para manter um equilíbrio patrimonial entre os diversos setores e não na pura e simples privação do direito de propriedade privada, até porque a constituição Portuguesa tem natureza de direito econômico e não de direito fundamental, na acepção liberal.

Quanto ao que o Autor chama de Plano e Circuitos Comerciais, diz que uma economia de mercado, dominada pela apropriação privada dos bens produtivos, funciona automaticamente de acordo com leis econômicas cuja autonomização de deve sobretudo aos trabalhos realizados pelos economistas liberais.

No que tange à posse útil e a propriedade social, o autor entende que não são inteligíveis as duas noções separadamente, embora as explique assim, por exclusão de partes:

–     a posse útil não é a gestão

–     a posse útil não é a propriedade

–     a posse útil não é a posse em sentido técnico real e

–     a posse útil não é um usufruto  ou um domínio útil de tipo enfitêutico.

O que o autor diz é que a posse útil designa o direito que os trabalhadores das unidades de autogestão têm de exercer sobre os meios e bens nelas integrados os poderes necessários à sua exploração. Diz ainda ele, que trata-s e de um novo tipo de direito patrimonial, mas que incompreensível fora do âmbito da autogestão.

·     PERFIL E SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

No nível preceptivo, a área formal da constituição patrimonial implica,  como fontes únicas, a lei, o decreto-lei e o decreto regional, sem prejuízo de uma parte reservada à leis federais.

As normas patrimoniais privadas podem estatuir com recurso a conceitos abstratos ou mediante previsões típicas, competindo a sua aplicação aos tribunais.

No nível programático, a propriedade privada é delimitada no seu âmbito, pelos dispositivos constitucionais que prevêem a integração da riqueza mais significativa da sociedade, através da coletivização em geral e da reforma agrária em especial, para junto com o governo, atingir a meta que é a propriedade social.

·   Sentido da Constituição Patrimonial Privada

Ela consagra com precisão um setor reservado à atividade econômica dos particulares, tratado pelo direito Privado, não podendo haver ingerências extra-jurídicas, nem atuações estaduais autoritárias sem prejuízo das exceções constitucionais. No interior do setor reservado ao Direito Privado deve imperar a igualdade, no sentido lato do termo.

O sentido último da constituição patrimonial privada é preservar a esfera dos particulares da ingerência arbitrária do poder público, através do direito Privado.

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[i] Cordeiro, Antonio Menezes. A Constituição Patrimonial Privada. Coimbra : Almedina, 1998. 


 

Referência  Biográfica

Donata A. Campos de Barros – Professora Universitária, mestranda e secretária geral da Ouvidoria Pública da    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Direitos autorais na Internet: uma questão cultural

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* Rodrigo Guimarães Colares 

           Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte Norte-Americana, já afirmou que "a informação deve ser livre como o ar", ao se referir a todas obras que se encontram no domínio público e que podem ser livremente reproduzidas, sem que haja necessidade de autorização prévia de qualquer pessoa.

            Na época, o eminente magistrado decidia acerca de um caso em que se discutia sobre obras que não atendiam ao requisito mínimo de "criação do espírito" como fator de proteção jurídica sob o direito de autor, tal qual a simples narração de fatos.

            O exato sentido em que esse critério de proteção será adotado varia de um país para outro, e muitas vezes a previsão é consolidada pelas leis e o entendimento é expresso pelos tribunais, a cada caso.

            Em países cujo sistema legal segue o common law, como os Estados Unidos da América, basta a obra não ser cópia de algo anterior. Já em países como o Brasil, que seguem a tradição do direito civil, a obra deve realmente ser considerada como algo original, que traduza o pensamento, o estilo ou qualquer sinal distintivo de autoria da pessoa que a fez.

            Em comum, os dois sistemas guardam o fato de que a qualquer obra autoral será concedida a respectiva proteção jurídica, sem necessidade de qualquer formalidade de registro perante um órgão, entendimento que está previsto desde 1886 pela Convenção de Berna, e que foi repetido ao longo dos anos por diversos outros tratados internacionais, como os elaborados pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

            Na legislação brasileira – mais especificamente na Lei nº 9.610/98, de direitos autorais, existem algumas hipóteses em que são permitidas a utilização de uma obra por qualquer pessoa, sem que isso implique em ilegalidade. Podemos dividi-las em duas categorias: elementos que não são objeto de proteção pelos direitos autorais, como textos de leis, tratados, convenções internacionais e decisões judiciais; e as exceções ao direito de autor, como a reprodução de pequenos trechos de uma obra, para uso privado do copista, sem o intuito de lucro.

            Se o juiz norte-americano tivesse decidido caso análogo sob as leis brasileiras, provavelmente ele estaria restrito a afirmar que apenas não seriam protegidas as informações de uso comum, tais como calendários, agendas ou cadastros, ou ainda simples constatações de fatos.

            De resto, são protegidas todas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, desde o convencional papel até o ambiente cibernético criado pela grande rede de computadores.

Internet e o fim da cultura anarquista

            Ocorre que muitas empresas pontocom, que se estabeleceram na Internet, estão utilizando material de terceiros sem qualquer permissão e, o que é pior, em boa parte das vezes suprimindo o nome do verdadeiro autor.

            Primeiro, é importante que tenhamos em mente o fato de que a lei existente e aplicável no território nacional será igualmente aplicável no ciberespaço. O tempo em que as condutas ilegais perpetradas pela Internet mantinham-se impunes já se foi, e muitos estão sentindo na pele tais impactos, por bem ou por mal.

            Há alguns anos, desde meados de 2001, depois do boom da economia digital, ao tempo em que a poeira da euforia se assentou, decretou-se o fim da cultura anarquista na arquitetura eletrônica global. Os vetores empresariais passaram a reger a nova economia, e aqueles que se mostraram alheios a este fato tiveram sua sepultura selada.

            Segundo, é imprescindível entendermos que a grande maioria das obras postas na rede mundial, como músicas, programas de computador, textos, e outras, têm proteção do direito autoral e seus conexos, e não pertencem ao domínio público.

            Assim, para qualquer forma de utilização que não consista em exceção legal, é necessário haver prévia anuência do titular de seus direitos. Ainda, ao se tratar de textos e outras obras autorais, a citação do nome do autor se demonstra imprescindível, e sua supressão caracteriza explícito dano moral, fazendo jus à respectiva indenização.

            As empresas e os usuários estão cada vez mais atentos aos ciberdireitos, ou direitos do mundo virtual, e têm procurado sua proteção por meio de atitudes preventivas como a análise jurídica de seus websites e de demais produtos e serviços de informática. Muitas vezes, quando essas precauções não bastam, recorrem-se aos tribunais para fazê-los valer.

Direitos autorais e as Cortes de Justiça brasileiras

            A Justiça brasileira, por sua vez, em muitos casos tem apresentado resultados surpreendentes, demonstrando o processo de atualização pelo qual nossos juizes têm passado, estando aptos a dirimir algumas questões oriundas dos mares de bits, mas às vezes pecando na aplicação direta da legislação existente.

            Em 10 de dezembro de 2003, o Juiz Luiz Sérgio Silveira Cerqueira, do IV Juizado Especial Cível do Recife, decidiu um caso sobre reprodução não autorizada e supressão de autoria de um texto na Internet.

            A empresa, conhecida como Hiway Internet Provider (ou CM Informática Ltda.), copiou um artigo científico, sem a autorização prévia e expressa do titular, Rodrigo Guimarães Colares (também autor deste artigo), e publicou-o em seu website (www.hiway.com.br), tendo, ainda, retirado o nome do verdadeiro autor do texto, expressamente creditando a propriedade e a feitura do texto para si, como se fosse uma notícia.

            Notícias podem ser consideradas apenas textos ou narrações que constatam fatos, de simples percepção ao homem médio. Quaisquer outros que, de alguma forma, necessitaram de habilidades ou do conhecimento específico do autor para serem produzidos, gozarão de proteção jurídica do direito autoral. Em apenas uma leva, causou danos patrimoniais e morais.

            Na verdade, o texto tratava-se de um estudo jurídico sobre a troca de arquivos na Internet, que fora anteriormente publicado em grandes portais, como Consultor Jurídico, InfoGuerra, Terra, e em jornais de alto renome, como o Jornal do Commércio de Pernambuco. Sempre com a chancela de seu autor e a devida citação de autoria, o que conferia legalidade à conduta dos publicadores.

            O Juiz Silveira Cerqueira condenou a empresa ré a pagar R$2.000,00 (dois mil reais) ao autor, a título de danos morais, por não ter registrado o nome do autor no artigo científico. Apesar de sermos da opinião de que o valor foi por demais baixo, pois o potencial ofensivo da conduta é deveras alto (na lei penal, punível com 2 a 4 anos de reclusão e multa), sem dúvida alguma, trata-se de um avanço para o Direito da Informática no Brasil.

            Todavia, o magistrado cometeu grave erro ao sentenciar no que tange o dano patrimonial. Decidiu que o autor, caso quisesse ver seu direito patrimonial sobre o artigo protegido, deveria ter inserido no material disponível na Internet "mensagem evidenciando a necessidade do pagamento de direitos autorais no caso de uso e reprodução das informações". Sob este argumento, tratou que o autor teria agido com culpa concorrente na publicação de seu artigo sem sua expressa autorização.

            Ora, tal assertiva se demonstra surreal à luz do ordenamento jurídico nacional e internacional, visto que a própria Constituição da República, em seu art. 5º, inc. XXVII, explicitamente prevê que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.

            Além disso, a Lei de Direitos Autorais, em seu art. 29, inc. I, dispõe que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como sua reprodução parcial ou integral.

            Para que haja ocorrência de dano patrimonial ao autor não é necessário que este tenha feito qualquer espécie de "reserva" de direitos, pois a legislação brasileira prevê o contrário, que deve haver autorização expressa do autor para que haja qualquer forma de utilização de sua obra por terceiros.

            Interpretar de maneira contrária, como decidiu o juiz pernambucano, de modo a imputar ao autor a responsabilidade de expressamente consignar em sua obra a necessidade de sua prévia autorização expressa para seu uso ou reprodução, é decidir contra legem, desprezando a letra da lei. É ferir entendimentos internacionais contidos na Convenção de Berna sobre Propriedade Intelectual de 1886 e colidir frontalmente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e com a Lei de Direitos Autorais de 1998.

            Decidir nesse sentido, em outras palavras, é abandonar todas as conquistas que os autores de obras intelectuais tiveram ao longo dos dois últimos séculos, quando não se encontravam à disposição do cidadão comum mecanismos legais de proteção à sua criação que pudessem garantir a devida contraprestação pelo trabalho desenvolvido, voltando à barbarie jurídica.

            O Brasil, juntamente com diversos outros países em todo o mundo, adotou o sistema do Droit d’Auteur, de influência preponderantemente francesa. No idioma anglo-saxão, os direitos de autor receberam o nome de copyrights, ou "direitos de cópia", porque estes são exatamente o pilar de sustentação de todos os outros direitos de exploração econômica da obra autoral.

            O que se viu na decisão proferida em processo que este autor promoveu contra empresa usurpadora de seus direitos foi algo teratológico, do qual, neste ponto específico, nada deve ser aproveitado para a posteridade dos estudos de direitos autorais, a não ser para a prevenção de atitudes que caminhem no mesmo sentido.

Considerações finais e reflexos econômicos

            Sob certo aspecto, a sentença proferida pelo magistrado pernambucano denota a percepção da importância da figura do autor em relação à sua propriedade intelectual, sem, contudo, corretamente quantificar seu valor.

            No que concerne às considerações sobre os direitos patrimoniais, o entendimento jurisprudencial brasileiro não deve rumar no caminho que deu o juiz pernambucano ao caso que decidiu. A eficaz proteção aos direitos autorais no ambiente digital depende de três fatores: tecnologia, direito e cultura. Uma sentença que despreze a transparência normativa estimula a cultura de desrespeito à ordem estabelecida, tornando inócua qualquer tentativa de proteção por meios tecnológicos complementares.

            A reiterada inobservância de preceitos básicos de proteção à propriedade intelectual pelo Estado, da forma como se constatou, pode ocasionar em sério risco de sofrermos retaliações internacionais, que poderiam acarretar em abalos catastróficos na nossa indústria de propriedade intelectual, que, aos poucos, tenta aparecer para o cenário mundial.

            Além de causar explícita lesão aos direitos de autor, isso poderia implicar na criação de barreiras alfandegárias que impediriam a transferência viável de royaties ao Brasil, além de sérias desvantagens nas negociações em blocos econômicos, num mercado de propriedade intelectual que movimenta bilhões de dólares todos os anos.

            No estágio em que nos encontramos, rumo a liderar o bloco da América Latina em suas negociações para planejamento da ALCA, não podemos ser vistos como desrespeitadores de tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual, principalmente no que se refere aos entendimentos firmados pela OMPI e pela OMC, quando não houver algum aspecto de suprema importância social que justifique. É uma questão não apenas de fiel atenção à Justiça, mas de sobrevivência política no mercado econômico.

            Há possibilidades de flexibilização dos direitos de autor (copyleft), como as trazidas pelas licenças públicas gerais disponibilizadas por entidades como a Creative Commons, em que se permite livre uso, cópia e distribuição de obras, sob expressa autorização de seu titular.

            Essa capacidade do autor de dispor de alguns direitos e tornar sua criação algo de livre distribuição é importantíssima e imprescindível a um desenvolvimento sustentável de democratização da informação, do conhecimento e da tecnologia para países como o Brasil.

            É uma alternativa legal que possibilita o livre uso de informações, estudos e até softwares, mas que é unicamente uma questão cultural, a ser adotada ou não pelo titular da obra. Afinal, "a informação deve ser livre como o ar", já prolatou o juiz norte-americano, contanto que respeitados os limites da legalidade.

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Referências

            Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School – http://cyber.law.harvard.edu

            COLARES, Rodrigo Guimarães. A troca de arquivos na Internet em um Brasil pós-Napster, in Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em http://conjur.uol.com.br/textos/21725/

            Creative Commons – http://creativecommons.org

            LEMOS, Ronaldo. Como o ar – quem é dono da informação na Internet? in KAMINSKI, Omar (Coord.). Internet Legal: o Direito na Tecnologia da Informação. Curitiba: Juruá, 2003. p. 229-230.

            World Intellectual Property Organization (WIPO) – http://www.wipo.org

 


Referência  Biográfica

Rodrigo Guimarães Colares  –  Advogado em Recife (PE); Integrante de Martorelli Advogados; Professor de Direito na pós-graduação em Gestão do Comércio Eletrônico da FAFIRE Business School (agregada à UFPE) e Diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI)