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A função social e o princípio da boa-fé objetiva nos contratos do novo código civil

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* Ramon Mateo Júnior              

             No dia 10 de janeiro de 2002 foi sancionada a lei nº 10.406 que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, diploma legal que entrará em vigor em 10 de janeiro de 2003. Por certo o novo estatuto do direito privado, que reúne em seus dispositivos o direito civil e o direito comercial legislado, trará em seu bojo várias alterações que serão assimiladas gradativamente por todos nós, os destinatários da lei.

             Sem a pretensão de abordar exaustivamente a matéria, gostaria de tecer algumas considerações sobre uma alteração, desde logo percebida na leitura do novo Código, que está no campo da teoria geral do contrato. Ela é de grande importância para as relações jurídicas de nossa atual sociedade. Estamos falando dos artigos 421 e 422, inseridos no capítulo que cuida das disposições gerais dos contratos.

             O artigo 421 determina que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, enquanto que o artigo 422 dispõe que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

             Diante dessas disposições legais, verificamos uma mudança na mens legem do Código novo em relação ao atual. A lei opera um avanço na concepção da finalidade da relação jurídica contratual. De fato, até hoje adotamos, nos contratos em geral, o denominado modelo liberal como sendo um inabalável paradigma, estabelecendo-se um dogma entre os operadores do direito em torno dos princípios da autonomia da vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e com observância à ordem pública e aos bons costumes.

            Essa concepção clássica do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora de direitos e obrigações, exige, para seu implemento, um Estado ausente, ou seja, apenas garantidor das regras do jogo, que seriam estipuladas pelos contratantes na livre manifestação de vontade – pacta sunt servanda – em sua mais pura idealização.

            Relembrando a visão de Pontes de Miranda, para quem a autonomia da vontade consistia no auto-regramento da vontade, a chamada autonomia da vontade é que permite que a pessoa, conhecendo o que se produzirá com seu ato, negocie ou não, tenha ou não o gestum que a vincule(1), podemos delimitar o campo que a doutrina tradicional nos permitia trabalhar. Se a vontade expressa não se chocasse com a ordem pública e os bons costumes, estabelecia verdadeira lei entre as partes. A regra particular assim criada não poderia ser violada, nem mesmo pelo Magistrado no julgamento da causa, ou seja, ressalvadas exceções decorrentes de situações absolutamente imprevisíveis (teoria da imprevisão) ou de onerosidade excessiva, devidamente comprovada (lesão), não seria possível ao Estado ingressar e modificar a vontade das partes.

            Não se pode negar que a circulação das riquezas, tão necessária para a vida em sociedade, exige esse respeito à vontade emitida, para a segurança dos contratantes, não só quanto ao estabelecimento do conteúdo do contrato (elaboração de suas cláusulas) mas também no que se refere a sua efetiva execução. O Estado apenas deveria concretizar uma garantia, impondo, no caso de inadimplemento, a sua força com a finalidade de compelir o devedor ao cumprimento de sua obrigação ou reparação de perdas e danos, sem maiores questionamentos.

            A liberdade de contratar impunha uma responsabilidade pelos compromissos assumidos. Não fosse assim, estaria em risco toda a segurança do edifício jurídico.

            Neste ponto, também destacamos a influência do Direito Canônico para a concepção do princípio da autonomia da vontade. Aquele pregava a sacralidade dos contratos, de modo que a palavra dada, a vontade manifestada a outra pessoa, era tida como sagrada e o seu descumprimento configurava o pecado.

            O ápice dessa teoria clássica do contrato será alcançado no apogeu do século XIX, quando se constrói a teoria do negócio jurídico, que foi exaustivamente ensinada nos cursos jurídicos por quase todo o período do século XX.

            Ocorre que a sociedade passou por modificações no curso da história e a nova realidade resultante desse fenômeno clamava pela realização de uma justiça mais distributiva que não era alcançada com a utilização da teoria clássica. O curso da história impunha uma evolução no modo de pensar o contrato; reclamava uma mudança principalmente tocante à formação do vínculo jurídico e na sua execução.

            A insatisfação era percebida exatamente porque a liberdade de contratar – âmago da autonomia da vontade – passou a ser uma simples falácia histórica, pois na prática sentia-se que nenhuma liberdade era exercida no momento de contratar, mormente em face da necessidade de ser praticado o ato, para a própria subsistência no meio social.

            Além da necessidade de submeter ao contrato, constata-se também, no curso do século XX, o aumento da quebra do equilíbrio sócio – econômico dos contratantes, como reflexo das desigualdades dos homens, principalmente no acesso aos bens da vida. Essas desigualdades são características próprias do capitalismo e é mais sentida nos países pobres onde praticamente se aniquilou a livre vontade no contraimento das obrigações.

            Em outras palavras, não somos tão livres para contratar como pensamos. Ao contrário, estamos direcionados para assumirmos obrigações em busca de uma vida melhor, como exigência de respeito e sucesso no meio social. Tudo programado pelo ideal consumerista que desde cedo ensinamos aos nossos filhos.

            Afinal de contas, um mercado lucrativo para os empresários – detentores do capital – exige, em contrapartida, a presença de ávidos consumidores. Com certeza, o capitalismo não teria a menor possibilidade de sobrevivência se todos pensássemos como São Francisco de Assis, que acolheu o desprendimento das coisas e bens materiais como um estilo de vida.

            Após o término da 1ª Guerra Mundial, abre-se o caminho para a discussão do contrato no início do século XX. Experimentando a sociedade um processo de aumento populacional a nível mundial, originaram-se novas espécies de relações jurídicas que foram massificadas ou receberam uma conotação coletiva.

            As correntes socialistas, bem como, as doutrinas sociais da Igreja Católica direcionam o pensamento no respeito aos direitos sociais, impondo a necessidade de reformas para elevação da dignidade do homem. Essa preocupação se dirige, principalmente, para aqueles que ficaram à margem dos benefícios sociais somente concedidos aos que poderiam comprá-los.

            Posteriormente, com o advento da 2ª Grande Guerra e suas nefastas conseqüências para a humanidade, são aprofundadas as necessidades em torno do respeito aos Direitos Humanos. Passou-se a exigir do Estado uma postura mais voltada ao social. No campo do direito privado encontramos o reflexo desse modo de pensar e, aos poucos, o interesse com os contratos não se limita ao individual, mas é ampliado em prol do social. É certo que essa alteração de postura não se dá de forma abrupta, mas paulatinamente; são transplantadas para o direito contratual as mesmas idéias que norteiam o direto administrativo na proteção do administrado em face da poderosa administração pública. A Igreja Católica reunida em concílio (Vaticano II) decide a sua opção pelos pobres, enriquecendo a luta em favor do social.

            Nos campos do chamado Direito Social, tais como educação, saúde, trabalho, lazer, consumo, segurança, previdência social, economia e outros, verificam que o interesse preponderante está na coletividade, para a formação de uma vida digna em sociedade. Ganha relevo o trabalho do operador do Direito, que deve apresentar essa preocupação, sob pena de não ser realizada boa distribuição de justiça.

            Desse modo, evolui a teoria contratual para acompanhar a formação do Estado Social, assim sentida por Luiz Neto Lôbo:

            …o Estado Liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado Social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais(2).

            Continua o jurista a desenvolver seu pensamento, afirmando que o grande golpe contra o Estado Liberal foi dado pelo reconhecimento dos direitos de terceira geração, quais sejam, os de natureza transindividual, protegendo-se interesses que ultrapassam os dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

            Esse momento de transformação é sentido pelo legislador pátrio que consigna expressamente no novo Código Civil, quando trata dos contratos, o respeito à função social e ao princípio da boa-fé, como normas de ordem pública (art. 422). Mas, efetivamente, o que significam essas mudanças para o dia a dia das inúmeras relações jurídicas que são praticadas?

            Para buscarmos a resposta a essa indagação, voltamos nossa atenção para o princípio da boa-fé. Nesse ponto, vale a pena destacar que não estamos falando da boa-fé subjetiva, bastante utilizada no direito das coisas, onde se exigia um estado psicológico (intenção) voltado à não provocação de dano ao próximo. Tanto que o oposto da boa-fé subjetiva seria a má-fé vista como a vontade de causar dano ao outro. Nessa ótica a boa-fé é analisada apenas com ausência de conhecimento sobre o ilícito do ato praticado, ou seja, era conceituada dentro do campo subjetivo.

            Ao estabelecer o princípio da boa-fé nas relações contratuais, a nova lei está implementando uma outra concepção sobre o instituto, à qual a doutrina passou a denominar de objetiva, porque a sua finalidade é impor aos contratantes uma conduta de acordo com os ideais de honestidade e lealdade, independentemente do subjetivismo do agente; em outras palavras, as partes contratuais devem agir conforme um modelo de conduta social, sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante. A antítese dessa espécie, não é a intenção de prejudicar, como na boa-fé subjetiva, mas a exteriorização de um comportamento improbo, egoísta ou reprovável, verificado sob a ótica da vida em harmonia dentro da comunidade. Consiste em ato violador de um dever anexo ao contrato.

            A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado.

            Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento

            Com efeito, a vida na sociedade capitalista nos ensina a sermos competidores, onde o contrato é mais uma arena dessa luta diária. A boa-fé objetiva, aliadas aos ideais do Estado Social, busca humanizar essa disputa, impondo aos contratante deveres anexos às disposições contratuais, onde não tem cabimento a postura de querer sempre levar vantagem.

            Estando a teoria geral dos contratos dotada do princípio da boa-fé objetiva, o magistrado passa a exercer um papel de fundamental importância, na exata medida em que participará da construção de uma nova noção do direito contratual como sendo um sistema aberto que pode evoluir e se completar, a cada momento, diante dos mais variados casos que podem surgir na vida social.

            Em outras palavras, se os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão, como na execução do contrato, os princípios da probidade e da boa-fé(3), o julgador sempre poderá corrigir a postura de qualquer um deles sempre que observar um desvio de conduta ou de finalidade. Ou ainda, se o contratante quiser se prevalecer de qualquer situação onde obtenha mais vantagem que aquela inicialmente esperada. Aliás, mesmo que não exista qualquer espécie de dano ou vantagem, entendemos que diante de uma regra de ordem pública, como o art. 422 do novo Código Civil, é proibida a postura não condizente com a boa-fé objetiva, impondo-se a correção pelo magistrado.

            Na concretização desses princípios o magistrado irá guiar-se pela retidão de caráter, honradez e honestidade, que expressam a probidade que todo cidadão deve portar no trato de seus negócios. São conceitos abstratos, mas neles se pode visualizar o que podemos chamar de mínimo ético, patamar onde o Juiz deve lastrear sua decisão.

            Não se pode confundir a adoção desse princípio da boa-fé, ora estudado, com a tradicional forma interpretação dos contratos. Nela se prega o dever de serem as cláusulas do contrato, quando obscuras, interpretada segundo a boa-fé. Porém, no princípio da boa-fé objetiva não há interpretação de cláusula ou disposição obscura do contrato, mas uma análise do comportamento das partes quando aos deveres que são anexos ou conexos ao vínculo jurídico estabelecido pelas partes.

            A visão do julgador não está na letra do negócio jurídico, mas nas atitudes dos contraentes. Opera-se uma reflexão acerca do comportamento das partes de forma que a prestação devida poderá se amoldar às características fáticas de cada caso concreto, sem que isso provoque incertezas no espírito dos contratantes, pois desde logo saberão que o proceder no curso do contrato não poderá se afastar dos ideais da honestidade e probidade.

            Dispositivo semelhante já vige na Alemanha no § 242 do BGB há muitos anos e ultimamente tem se consubstanciado em doutrina dominante, acolhendo-o como um princípio supremo e absoluto que domina todo o direito das obrigações e todas as relações obrigacionais em todos os seus aspectos e conteúdo.

            No nosso atual Código Civil, que já prepara a sua despedida, não há previsão legal para a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, de modo que essa matéria não foi tratada pelos tradicionais juristas pátrios. Somente nesta última década o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em matéria intitulada "A boa-fé na relação de consumo", publicada pela Revista de Direito do Consumidor, nº 14 (abril/junho de 1995), referiu-se ao artigo 131 do Código Comercial de 1850(4), para asseverar que este dispositivo sempre esteve como letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação pelos nossos Magistrados. Entendeu o Ministro Ruy Rosado que o princípio da boa-fé poderia ser dinamizado por nossos operadores do direito, há muito tempo, mesmo à míngua de texto legal específico. Porém, o apego à dogmática vigente não permitiu esse avanço. Cumpria-se o contrato como estipulado ainda que isso provocasse aversão em nosso senso de justiça.

            Cláudia Lima Marques, cuidando das relações contratuais no campo de consumo, afirma que – propõe a ciência do direito o renascimento ou a revitalização de um dos princípios gerais do direito há muito conhecido e sempre presente desde o movimento do direito natural: o princípio geral da boa-fé. Esse princípio ou novo mandamento (Gebot) obrigatório a todas as relações contratuais na sociedade moderna, e não só as relações de consumo(5).

            Havendo dispositivo expresso no novo Código, não resta dúvida que a matéria deverá ser enfrentada por nossos juristas. Estes não poderão simplesmente dizer que nada mudou alegando que a boa-fé sempre norteou nossas obrigações, entre outros argumentos. Citam-se duas razões que esvaziam esse argumento. A primeira consiste em que a boa-fé objetiva, como regra de comportamento das partes, nunca foi efetivada por nossos juízes. A segunda liga-se uma forte regra de interpretação que afirma não conter a lei palavras inúteis. Portanto, se o texto do novo Código contém essa regra (art. 422), que não havia no Código de 1916, é evidente que ela contém alguma finalidade.

            Em recente trabalho acadêmico explica, com muita felicidade, Alinne Arquertte Leite Novais:

            Assim uma dupla função é assumida pela boa-fé objetiva na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos e, 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos. Vale ressaltar que a essas duas funções elencadas por Cláudia Lima Marques, Judith Martins-Costa junta uma outra, a de cânone hermenêutico-integrativo.(6)

            Os deveres conexos nascem com o contrato na medida em que este se consubstancia em fonte de eventuais conflitos, os quais são evitados se a atuação dos contratantes estiver amparada pela boa-fé em suas relações, não só em face das regras do contratos, mas também diante da conduta social de cada uma das partes. Menciona a doutrina, como exemplo, os deveres de cuidado, previdência e segurança, o dever de comunicação e esclarecimento, o dever de informação, de prestação de contas, o respeito pelo nome do contratante, cuidado com o patrimônio do outro contratante, de sigilo e outros.

            O segundo aspecto mencionado na lição da Profª Alinne nos coloca perante a problemática da função social do contrato. O novo Código determina no artigo 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Na teoria tradicional a liberdade de contratar sempre estava limitada à ordem pública e aos bons costumes. É certo que esses limites se mantém na nova ordem do direito civil, mas agora a liberdade de contratar também deve ser exercida tendo em mira a função social do contrato, de modo que o instituto em análise deverá estar amoldado aos ideais do Estado Social, sob pena de não ser válido.

            A função limitadora do exercício dos direitos subjetivos expressa a obediência ao mandamento constitucional de que o contrato deve cumprir sua função social, como concepção de justiça que orienta a ordem econômica hoje disseminada em todos os ramos do direito. Portanto, o contrato não se presta apenas à mesquinha função de criar direitos e deveres para as partes individualmente consideradas; tem também o aspecto social que incrementa o seu engajamento na sociedade globalizada, atendendo a função social antes de qualquer coisa.

            E o que significa atender uma função social? A resposta a essa indagação somente pode ser construída tendo-se como orientação os ideais do Estado Social. Nele se recoloca o ser humano no centro da preocupação da Ciência Jurídica, tanto que a dignidade humana é hoje um dos princípios fundamentais de nossa Constituição.

            Desde a idealização do Estado Liberal, que propalava uma pseudoliberdade para todos, o direito passou ser usado como meio de dominação nas mãos das minorias (elite) que sempre tiveram o comando das decisões, ainda que amparadas pela força dos canhões. Como a maior preocupação dessas minorias, detentoras do poder econômico, era a manutenção do seu status, via-se com tristeza que a lei somente se preocupava com o patrimônio. A pessoa com seus problemas e suas necessidades nunca foi objeto de preocupação do legislador.

            Se olharmos a nossa sociedade, tal como edificada pelo Estado Liberal no último século, facilmente verificamos que a grande parte do povo está vivendo em absoluta miséria, passando fome em total pobreza. Mesmo em face dessa realidade vivenciada em cada esquina desta nação, o legislador nunca estabeleceu uma norma jurídica obrigando a partilha de bens para diminuição da miséria. Com isso a ordem jurídica demonstra que a lei não está preocupada com o homem, mas sim com patrimônio. Ainda como argumentação deste ponto de vista, lembremo-nos da situação do devedor a quem a lei impõe o dever de cumprir a obrigação a qualquer custo, mesmo que isso signifique a sua marginalização e o aumento do número de miseráveis.

            Assim, o contrato nada é, dentro do Estado Liberal, do que um mecanismo para o exercício dessa dominação, apesar de atrelado ao respeito à ordem pública e aos bons costumes.

            Todavia, na visão do Estado Social o contrato ganha nova roupagem, revestindo-se com a preocupação dirigida à dignidade humana e o social. Nessa nova ideologia não se pode admitir que, em nome da força obrigatória e princípio da liberdade de contratar, a dignidade humana seja colocada em segundo plano.

            O limite da função social e o princípio da boa-fé, agora consignados na teoria geral dos contratos, se completam para permitir uma visão mais humanista desse instituto que deixará de ser apenas um meio para obtenção de lucro.

            A efetivação desses mandamentos legais não fica restrita ao campo da ética, exigindo, igualmente, uma noção técnica – operativa que se especifica no dever do juiz de tornar real o mandamento de respeito à recíproca confiança, que incumbe às partes contratantes, não permitindo que o acordo de vontades atinja finalidade oposta ou divergente ao respeito da dignidade humana, desde o momento da contratação até a consumação do vínculo. Some-se a isso o reconhecimento dos deveres conexos cuja teleologia consiste na observância da função social.

            Ao regrar o comportamento das partes amparado pelo princípio da boa-fé objetiva, o magistrado deverá ter em mente a função social que o contrato exerce na atual sociedade globalizada, sendo certo que nessa perspectiva a leitura e a releitura da legislação social não bastam. É necessária uma reflexão vinculada ao predomínio do valor humano (dignidade humana), com todos os seus atributos, como resultante básica de qualquer anexo dever a ser imposto como regra de comportamento aos contratantes. Essa reflexão exige, com igual intensidade, um estudo mais aprofundado das questões sociais, filosóficas e econômicas.

            O Estado, como garantidor do direito à igualdade e do progresso da sociedade, deve interferir nas relações contratuais definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem(7).

            Em conclusão, afirmamos que com o advento do novo Código Civil, que traz em seu bojo a adoção expressa da função social e do princípio da boa-fé objetiva, consumou-se, nas relações intersubjetivas privadas, a proteção das pessoas envolvidas, mormente aquelas consideradas hipossuficientes para que não sejam, diante da inferioridade social – econômica ou cultural, submetidas a alguma armadilha contratual que as coloquem em desvantagem, exigindo dos contratantes, além disso, um comportamento transparente, digno, onde não prepondera a ganância lucrativa mas a dignidade das pessoas.

            Teremos maior segurança nos negócios jurídicos, fator hoje inexistente em razão da complexidade e instabilidade de nossa economia. Essa segurança reside no maior ideal de justiça social.

            Cabe agora aos operadores do direito a materialização dessas novas regras jurídicas, que vivificam e humanizam os contratos. A tarefa lhes exigirá muito estudo e reflexão sobre todas as características de cada caso concreto levado ao seu conhecimento.

BIBLIOGRAFIA

            AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de – A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, n° 14. São Paulo : Revista dos Tribunais, Abril/junho de 1995.

            AZEVEDO, Antonio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor – vol. 03. São Paulo : Revista dos Tribunais, set./dez. de 1992

            LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Forense, n° 722. Rio de Janeiro : Forense.

            _________. Dirigismo Contratual. Revista de Direito Civil, n° 52. São Paulo : Revista dos Tribunais.

            _________. O contrato – exigência e concepções atuais. São Paulo : Saraiva, 1986.

            MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – o novo regime das relações contratuais. Biblioteca de Direito do Consumidor, vol. 01 – 3ª Edição – São Paulo : RT, 1998.

            PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, tomo XXXVIII, 2ª Ed. – Borsoi, 1962.

            TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

Notas

            1.PONTES DE MIRANDA – Tratado de Direito Privado. Parte especial. 2 ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1962. t. XXXVIII, p. 39

            2.Contrato e mudança social. Revista Forense, nº 722 – Rio de Janeiro ; Forense, p. 42.

            3.Artigos 421 e 422 do novo Código Civil

            4.Diploma legal que também será revogado pelo novo Código Civil.

            5.Contratos no Código de Defesa do Consumidor – Ed. RT – São Paulo, 1998, p. 106.

            6.A teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor – ed. RT – São Paulo, 2001, p.78.

            7.TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999 – p. 204.

 


Referência  Biográfica

Ramon Mateo Júnior  –  Juiz de Direito no Estado de São Paulo

E-mail: ramateojr@msn.com

Lei nº 10.352/2001: introdução do § 3º ao art. 515 do Código de Processo Civil. Conflito normativo com as disposições concernentes ao recurso de apelação e a supressão do duplo grau de jurisdição

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*  Mathias Magalhães Silva –

            Recentíssimas alterações no sistema recursal pátrio foram introduzidas pela Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, que alterou dispositivos da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, referentes a recursos e ao reexame necessário.

            Das alterações, nos limitaremos em poucas linhas a dar atenção a uma das quais nos causou espécie, qual seja: o acréscimo de um 3º parágrafo ao artigo 515 do Código de Processo Civil, cuja redação passará (salvo modificação antes de sua entrada em vigor, cuja vacatio legis é de três meses) a ser a seguinte:

            "Art. 515

            § 3o Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento."(NR)

            O aludido parágrafo 3º enseja um conflito normativo, eis que revela-se às escancaras, totalmente antinômico ao caput do art. 515 a que se submete.

            Se a apelação devolve ao Tribunal competente, o conhecimento da matéria impugnada, e a instância origem sequer analisou, ainda que inicialmente o mérito da causa, impossível se mostra, por óbvio que é, a impugnação de questão meritória, inexistente no decisório.

            O malsinado parágrafo, indubitavelmente é norma supressora de instância julgadora.

            É princípio atinente aos recursos, o inconformismo da parte vencida com a decisão proferida pelo julgador, in casu, especificamente a sentença.

            O pedido dirigido ao Tribunal competente é o de nova decisão, de reforma ou anulação da sentença, ou seja, das questões nela apreciadas ou que ao menos o foram parcialmente, à guisa das disposições do parágrafo 1º do art. 515 e art. 516 do CPC.

            "Não pode o apelante impugnar senão aquilo que foi decidido na sentença; (…)." (RTJ 126/813)

            O parágrafo em questão, sem sombra de dúvidas, ampliou o efeito devolutivo do recurso de apelação, pois, além de permitir o pronunciamento pela Segunda Instância, de questão de mérito anteriormente não decidida, mesmo que o Apelante a postule em suas razões, viola as próprias disposições de seu caput, pois, não há matéria de mérito a ser impugnada, demais, sendo defeso ao recorrente a postulação de reforma do inexistente até então.

            O aludido dispositivo, além de afrontar ao seu caput, viola indubitavelmente o princípio do duplo grau de jurisdição, posto que subtrai do órgão julgador de primeira instância, a apreciação da questão de direito substancial, a quem fora inicialmente submetida a pronunciamento, nos termos da postulação da tutela jurisdicional.

            A questão da supressão de grau de jurisdição foi objeto de inúmeros julgados proferidos pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, destacando-se a resenha de autoria do Prof. Humberto Theodoro Júnior(1), sobre alguns acórdãos afetos ao tema:

            "Se o julgamento de primeiro grau se restringiu a questões preliminares, não pode o tribunal, por força da apelação, aprecie desde logo o mérito da causa, É que, na espécie, não houve sequer início do exame da questão de mérito. Julgá-la originariamente em segundo grau importaria abolir o duplo grau de jurisdição. A decisão do tribunal não poderá, pois, ir além do plano das preliminares" (STF, RE 71.515, 72.352, 73.716 e Ação Resc. 1.006, in RTJ, 60/207, 60/828, 62/535 e 86/71.

            Destarte, além de um conflito normativo entre o mencionado parágrafo 3º e o seu respectivo artigo, que merece correção, para se expurgar a contradição de normas de uma mesmo sistema, salta aos olhos a ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição, que, não obstante não previsto em texto expresso na atual Carta Maior, a doutrina ensina que tal princípio encontra-se ínsito no sistema constitucional, no postulado do devido processo legal.(2)

Notas

1. Curso de Processo Civil, Vol. I, 24ª ed., 1998., p. 565, nota 54.

2. José Frederico Marques, Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, 3ª ed., 1975, p. 78. 
 

 


Referência  Biográfica

MATHIAS MAGALHÃES SILVA, advogado em Campinas (SP), especializado em Direito Processual Civil.

mathiasmagalhaes@zipmail.com.br

As reformas no CPC : Lei nº 10.352/2001. O duplo grau de jurisdição

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* Josemar Dias Cerqueira –

           O Presidente da República sancionou duas leis no apagar das luzes de 2001, alterando sobremaneira o cotidiano dos operadores do direito, ambas com entrada em vigor 3(três) meses após sua publicação. Tratarei, apenas, das mudanças efetuadas no art. 475 do CPC, relativas ao duplo grau de jurisdição. Diz a lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001 :

            Art. 1o Os artigos da Lei n.º 5869, de 11 de janeiro de 1973, que instituiu o Código de Processo Civil, a seguir mencionados, passam a vigorar com as seguintes alterações:

            Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

            I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

            II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

            § 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

            § 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

            § 3o Também não se aplica o disposto neste art. quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.

            Não se submete mais ao crivo automático do Tribunal, a sentença que anular casamento (como previa o antigo art. 475,I do CPC). Andou bem a modificação, em assunto que já não tem a relevância de outrora. Já é forte, inclusive, a corrente doutrinária que entende que vários aspectos relacionados ao casamento devem ficar restritos a procedimentos administrativos, saindo da esfera judicial.

            Ampliou-se no art. 475,I do CPC o leque de sujeitos que, ao não lograram êxito na sua pretensão, têm direito à confirmação da sentença pela instância superior, independente de recurso. A medida serve mais para pacificar a jurisprudência, pois os beneficiários incluídos (DF, autarquias e fundações públicas) já eram detentores desta prerrogativa, pelo entendimento majoritário.

            No art. 475,II do CPC foi disciplinado o regramento da execução da dívida ativa da Fazenda Pública em relação ao duplo grau de jurisdição, surgindo interessante questão a ser dirimida na jurisprudência.

            Antes, não obtendo sucesso a Fazenda Pública, haveria o reexame necessário para confirmação(…que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública). Agora, se os embargos à execução forem julgados procedentes, teremos, obrigatoriamente, a revisão. Parece a mesma coisa mas, rigorosamente, não é.

            Primeiro, importante segmento da doutrina entende que o termo embargos à execução diz respeito, apenas, aos embargos do devedor (arts. 736/747 do CPC), não envolvendo, portanto, os embargos de terceiro (arts. 1046 e ss. do CPC). Uma decisão, por conseguinte, em embargos de terceiro, contra a Fazenda Pública, não sofreria o duplo grau. Note-se, entretanto, que no §2º do novo art. 475 do CPC, o texto menciona, expressamente, o termo embargos do devedor, o que sugere que a terminologia no inciso II tem sentido amplo. Em segundo lugar, já é largamente aceita, hodiernamente, a defesa do executado nos próprios autos da execução, via exceção de pré-executividade, por exemplo, e não via embargos à execução, inobstante a interpretação dada por outros ao art. 16,§ 3º da Lei 6830/80. Pela nova regra, se a Fazenda Pública é derrotada em processo de execução da dívida ativa, sem a necessidade de embargos à execução, não haveria necessidade de duplo grau de jurisdição.

            No tocante à remessa dos autos, o legislador retirou a menção à parte vencida(…haja ou não apelação voluntária da parte vencida..). Entendo despicienda a modificação. Antes, como hoje, inerte ou não a parte vencida, haveria remessa dos autos, quaisquer que fosse a conduta da parte vencedora.

            O legislador, de forma inovadora, relacionou quatro situações em que não teremos a aplicação da remessa por duplo grau:

            1. se a condenação ou direito controvertido for de valor certo não excedente a 60 salários mínimos;

            2. na procedência de embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor;

            3. se a sentença for fundada em jurisprudência do plenário do STF;

            4. se a sentença for fundada em súmula do STF ou do tribunal superior competente

            O primeiro caso diz respeito, basicamente, ao art. 475,I do CPC e o operador do direito deve observar que o quantum deve ser de valor certo, não superior a 60 salários mínimos. O termo valor certo deve ser entendido na esteira do art. 604 do CPC: não exige nada mais que o cálculo aritmético na sua apuração ou já está definido de forma líquida. A limitação a 60 salários mínimos é mais uma a ocupar o nosso cotidiano: 20 salários mínimos para procedimento sumário (art. 275,I do CPC), 40 salários mínimos nos juizados especiais (art. 3º da lei 9099/95)…

            Observe se que tanto não haverá duplo grau se o litígio envolver pedido menor do que 60 salários mínimos, como em pedido acima deste valor, desde que a condenação ou discussão, neste caso, fique situada dentro do teto cabalístico. Em síntese : o pedido pode ser maior do que 60 salários mínimos mas a parte litigiosa ficar dentro do limite ou a condenação se adstrir ao teto legal. Em ambos os casos não acontecerá o duplo grau.

            O segundo caso, incluído, provavelmente, para ressaltar a situação do art. 475,II do CPC, acaba por levantar certa contradição com a primeira parte do §2º do referido artigo.

            Imaginemos que a Fazenda Pública execute um suposto devedor pela quantia de 70 salários mínimos e que este oponha embargos a esta execução pelo valor total da dívida, sendo que a sentença reconheça a procedência parcial dos embargos, restringindo a dívida a 40 salários mínimos. Entendendo a sentença como condenatória, fato digno de embates doutrinários, enquadra-se na primeira parte do §2º (condenação, mesmo que parcial, de trinta salários mínimos, dentro do limite de 60 salários mínimos), ainda que a dívida executada, seja superior a 60 salários mínimos(exigência da segunda parte do §2º).

            A distribuição dos textos leva à interpretação de que o §2º consta de duas partes: uma para o inciso I e outra para o inciso II. Não foi feliz, porém, a redação dada ao dispositivo, sem mencionar que, ao explicitar embargos do devedor, não contemplou a hipótese de embargos de terceiro.

            O terceiro caso oferece mais espaço para discussões, pois o legislador empregou a expressão jurisprudência do plenário do STF. Não usou a terminologia jurisprudência dominante, ou mesmo decisões reiteradas. À letra fria da lei, embora não tenha sido esta, no meu entender, a intenção do legislador, se a sentença se fundamentar em uma única decisão do plenário do STF, não ensejaria o duplo grau de jurisdição, motivando, provavelmente, uma série de agravos, a abarrotar ainda mais nossos tribunais.

            O último caso trata de decisão sumulada do STF ou do Tribunal Superior competente. O termo competente não me parece um ter sido a melhor escolha. Sob a ótica técnica, os tribunais superiores a nível federal (STF ou STJ, por exemplo) são sempre competentes para avaliar, em casos específicos e em grau recursal, uma causa ocorrendo em uma pequena comarca de primeira instância. O legislador, provavelmente, quis referir ao tribunal superior imediato( Tribunal de Alçada ou da Justiça Estadual, por exemplo).

            São estes os comentários, em breve síntese, que entendi pertinentes às alterações efetivadas em tão importante artigo do nosso Código Processual Civil.


Referência  Biográfica

Josemar Dias Cerqueira – juiz de Direito em Brejões (BA)

E-mail: drjosemar@hotmail.com

Provas ilícitas lícitas?

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* Daniel Ustárroz –

Sumário: 1. Introdução 2. O direito à produção de prova e a persecução da verdade no processo. 2.1. O mundo dos fatos e o mundo jurídico. 2.2 Até que ponto o processo deve intentar buscar a verdade ? 2.3 O direito à prova. 2.4 O magistrado também pode determinar a realização de determinada prova. 3. A prova ilícita dentro do sistema jurídico brasileiro. 4. A importância do princípio da proporcionalidade. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

1. Introdução

            Reza o artigo 5º, LVI, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

            Muito embora a clareza do comando, vedando genérica e irrestritamente a utilização da prova obtida por meio ilícito em processo judicial, a questão ainda encontra-se longe de navegar em águas calmas, em face da diversidade de interpretações dos operadores. De um lado, encontraremos vozes inadmitindo a utilização da prova de origem ilegal, em sinal de respeito à literalidade da regra constitucional. No outro lado do pêndulo, entretanto, há quem afirme, em homenagem à interpretação teleológica e sistemática, que o dispositivo deva ser lido mais suavemente, harmonizando-se com outros princípios.

            Diante desse quadro, necessário tecer breves considerações a respeito do problema.

2. O direito à produção de prova e a persecução da verdade no processo.

            2.1 O mundo dos fatos e o mundo jurídico.

            Na vida, são observados diversos fatos, os quais naturalmente vão sucedendo-se. É o irmão mais velho que, vinte minutos antes de despertar os demais membros de sua família, sai em busca do leite fresco cada dia, é o pássaro que silva enquanto os alunos do maternal desenham, o pugilista que entra no ringue, o estelionatário que arma seu próximo golpe, enfim, tantas situações vivenciadas diuturnamente que permanecem distante do foro.

            Muitas dessas ações, corriqueiras, não guardam maior importância para o Direito. Outras, ao contrário, são atraídas para o mundo jurídico pelo homem, que busca melhor adaptar a vida social e, assim, oferecer maior tranqüilidade à comunidade. Esse fenômeno ocorre, por regra, através da criação de um sistema jurídico que trace condições abstratas para que fatos comuns da vida sejam chamados a integrar o laboratório do jurista. Uma vez interessando-se por determinados fatos, o homem cria normas, expressas ou não, que prescrevem, abstratamente, situações nas quais sua aplicação se torne possível.

            Prescreve a norma, por exemplo, que os parentes podem exigir de seus pares os alimentos que necessitem para garantir sua sobrevivência. Ciente da existência dessa regra, Eduardo, debilitado fisicamente e sem condições para o trabalho, decide acionar Roberto, irmão detentor de vultoso patrimônio, a fim de que este lhe alcance os alimentos devidos.

            Como se vê, o suporte fático (necessidade alimentar de Eduardo e possibilidade econômica de seu irmão Roberto), permite a incidência de uma norma (que diz que os parentes podem exigir uns dos outros os alimentos de que necessitem para subsistir). Havendo o fenômeno da incidência, há permissão para que o ordinário fato da vida possa entrar no mundo jurídico. Eduardo, outrossim, se confirmadas as premissas fáticas aventadas, terá um direito subjetivado, isto é, o direito de receber alimentos de seu irmão e, dessa forma, poderá exigir-lhe a prestação consistente na entrega de certa quantia, para garantir sua existência. E, para satisfazer sua pretensão (nascida da combinação entre a situação fática e a incidência da norma jurídica que delimitou o direito subjetivo), o irmão debilitado poderá utilizar-se, em caso de renitência de Roberto, de um remédio jurídico processual, apto a entregar-lhe o que lhe assiste por direito, no caso uma ação processual de alimentos.

            Exemplo bastante ilustrativo das diferenças entre os mundos do fato e do direito, bem como dos conceitos de suporte fático, regra jurídica, incidência e direito subjetivo, nos é dado por PONTES DE MIRANDA, quando diz: o ‘direito’ e o ‘dever’, concretamente, têm de ser um só, ou de sujeitos plurais, de modo que é princípio da Teoria Geral do Direito, vindo do conceito de direito, que duas pessoas separadamente não podem ter o mesmo direito. O ´direito´ é dotado, assim de individualidade, como eu, a minha filha mais velha, o marido de A. Estamos no plano dos individuais. Rege, pois, o princípio da individualidade dos direitos. Direito nasce, transforma-se e morre; por isso, pode transmitir-se, conservando a sua identidade. A regra jurídica tem tanto com isso como tem com a identidade da página 100 do exemplar deste livro, que o leitor está lendo, a máquina de impressão que baixou oito mil vezes sobre as folhas de papel. A página de papel foi o suporte fático, a chapa molhada de tinta é a regra jurídica; o contato é a incidência; a página impressa é o fato jurídico, que há de ser necessariamente algum fato que interesse às relações humanas. A página 100 tem a sua individualidade, quer se cogite dela como a página 100 dentre as oito mil páginas 100 que foram impressas, quer dela se cogite como a página 100 dentre as páginas deste exemplar. Todo direito subjetivo, como produto da incidência de regra jurídica, é limitação à esfera de atividade de outro, ou de outros possíveis sujeitos de direito (=outras pessoas) (1).

            Por tais razões que o direito subjetivo, que é conferido através da incidência da norma de direito objetivo, surge. Ele está bem delimitado pelo alcance da norma no suporte fático observado. Logo, para que seja judicialmente reconhecido um direito subjetivo, necessário oferecer ao juízo real dimensão da matéria fática posta à apreciação, a fim de que esse convença-se da existência das condições de incidência da norma que se busca aplicar no caso concreto. Nessa linha, vê-se a importância do estudo da prova, na medida em que esta visa convencer o magistrado das razões trazidas pelas partes em juízo para que seja declarado e ofertado o correspondente direito.

            2.2 Até que ponto o processo deve intentar buscar a verdade ?

            Há muito se discute se seria possível obter a verdade empírica através do processo, diante da falibilidade do homem e a inerente limitação da ciência. Nessa linha, se diz, com vigoroso respaldo de expertos de outras áreas (que não as jurídicas), que jamais poder-se-á encontrar aquilo que CARNELUTTI cunhou de verdade verdadeira, posto que um fato, que é único, jamais lograria ser percebido em toda sua inteireza, ou melhor, ainda que ele pudesse ser integralmente reconstruído em juízo, fatalmente poderia ser interpretado de diversas formas. CALAMANDREI traz exemplo muito significativo nesse particular. Figura, o mestre florentino, em outras palavras, a seguinte situação: Pablo e Vicente são contratados para pintar uma bela paisagem na serra gaúcha. Após alguns dias, finalizam seus trabalhos e apresentam as telas. Nestas, todavia, são observadas relevantes diferenças, pois, enquanto Vicente, que era impressionista, focalizara suas atenções no ímpar contraste de cores que vira, Pablo, admirador da técnica cubista, através dela, buscara exprimir o bucolismo da região. Como se vê, a partir de idêntico cenário, duas obras distintas foram confeccionadas. No entanto, por mais dessemelhanças que sejam observadas, ousará alguém acusá-los de não haver retratado fielmente aquela paisagem ?

            Por seguro que não. Eis o grande problema da avaliação das provas: o mesmo objeto pode ser interpretado de tantas maneiras quantos observadores houver. Nesse contexto, se pode concluir que, mesmo a mais inequívoca prova, pode ter seu aspecto inequívoco contestado, afinal o que parece induvidoso a alguém, pode não o parecer a outrem.

            É nessa medida que as partes se interessam pela produção de provas em juízo. Através delas, e, principalmente, de sua natural interpretação, aquelas buscam aclarar fatos controvertidos, aos efeitos de reconhecer, ou não, o indigitado direito material posto sob apreciação judicial. Nessa tarefa, valem-se, os contendores, de diversos trunfos, a fim de convencer o órgão judicante das razões que são trazidas aos autos, afinal de nada adianta simplesmente alegar, descompromissadamente.

            A importância de provar as alegações deduzidas é crucial em qualquer processo, seja ele de conhecimento, execução ou, até mesmo, cautelar, muito embora o modelo processual prescrito pelo ordenamento de 1973 propusesse a separação quase que completa entre o processo que visa conhecer e aquele que visa executar, sem embargo do terceiro gênero (dito cautelar) que proporcionaria às partes, uma vez evidenciado receio de dano grave e de difícil reparação, a segurança, mediante o afastamento da causa que ofertava risco de ineficácia do futuro provimento jurisdicional. Nesse contexto, o processo de cognição, regulado no primeiro livro do código, necessariamente deveria estabelecer (accertare) o direito de cada qual dos litigantes, pois, sem o bilhete de entrada (título executivo judicial ou extra), ninguém lograria adentrar no livro dois (processo de execução). Para se alcançar o bem da vida pretendido, deveriam os litigantes utilizar-se do processo de execução, aquele conhecido por, através do direito certificado previamente (título executivo), modificar os fatos da vida, entregando ao credor tudo aquilo que lhe é dado exigir.

            Dessa forma, não surpreende que o processo de cautela, espécie do gênero da tutela de urgência, fosse visto como algo absolutamente próprio, que deveria ser provocado mediante outra demanda, não se identificando com a causa principal. Existia, assim, um processo cautelar antes, durante ou mesmo após outro processo, de conhecimento ou de execução, obrigatoriamente.

            No entanto, mostrou a praxe forense que a rígida divisão preconizada pelo código poderia, por vezes, ser um grave entrave à efetividade do processo, afinal, para cada situação de urgência, uma demanda deveria ser deduzida. Outras vezes, foi observado que, a pretexto de evitar o perecimento do direito, a tutela cautelar findava por outorgar ao requerente o bem da vida que, de acordo com a orientação do código, somente lhe poderia ser entregue após cognição plenária. Em meio a tais situações, tormentosas para o ordenamento de então, surgiu o instituto da antecipação da tutela, disposto a harmonizar o emprego de medidas assecurativas e satisfativas, melhor distribuindo o ônus do tempo do processo. Atualmente, já não se duvida de que prováveis efeitos de eventual sentença futura possam ser adiantados em favor de uma parte. Tal fato contribui sobremaneira para o eficaz cumprimento da função jurisdicional (obrigação do Estado), dês que manejado com prudência.

            Retornando ao processo de conhecimento, no qual, por regra, são produzidas as provas mais relevantes – eis que visam acertar o direito discutido – verifica-se natural preocupação com a forma pela qual as partes podem ofertar ao juízo condições de um reto convencimento. Assim, com o fito de otimizar a prestação jurisdicional, o ordenamento, já de antemão, prescreve meios de provas para auxiliar o trabalho dos operadores. Mas não serão apenas as provas clássicas que auxiliarão o juízo a tomar a decisão mais segura, pois, é sabido, a persuasão racional dos magistrados encontrará guarida também em elementos outros, como todo o material obtido por meio moralmente legítimo e não contrário aos bons costumes, as presunções, as máximas da experiência, os indícios, bem como na própria argumentação jurídica dos contendores. Como ao juiz não é dado furtar-se de cumprir seu mister jurisdicional (non liquet), isto é, bem sentenciar os feitos que lhe são trazidos, as partes, convencidas das razões que lhes assistem e tendo interesse em alcançar sucesso na relação processual, utilizam-se de todos os expedientes que encontram a seu alcance, a fim de comprovar suas alegações. E nessa tarefa, por vezes, podem elas recorrer a meios teoricamente vedados pelo sistema. A palavra última, afinal, cabe ao magistrado da causa, que é quem conduz o processo de acordo com aquilo que julga de direito, valorando as provas da forma como lhe persuadem, e extirpando dos autos aquelas cuja origem ilícita não é justificada pelas circunstâncias concretas.

            Nesse ponto, cumpriria indagar: até que escala o processo deveria buscar a reconstrução da realidade, sem olvidar de preservar valores outros também garantidos pelo sistema ?

            Pois bem, evidente que o direito de descobrir a verdade (ou de aproximar-se dela) encontra limites traçados pelo próprio ordenamento. Este não permite o sacrifício de bens dignos de tutela em nome da afirmação categórica do direito de provar os fatos alegados que, na supostamente ensejariam o reconhecimento de quaisquer direitos. Nesse ponto, vale lembrar alguns problemas, tanto de ordem ética, bem como prática, a fim de que não sejam cometidos abusos em nome da prevalência irrestrita do direito de buscar reconstruir fatos pretéritos, sem a devida e esperada cautela.

            Sob a ótica utilitária, pode-se argumentar que a produção da prova demanda tempo (posto que ninguém requer, produz e analisa da noite para o dia o material juntado aos autos). Tampouco pode-se esquecer que outro pressuposto lógico do requerimento, produção e apreciação da prova no processo é o dispêndio de economia (o custo da movimentação da máquina judiciária, da produção do material probatório, honorários de expertos, etc). E como se sabe, o tempo não raro compromete toda eficácia do processo, desacreditando-o perante à comunidade. Os custos materiais, de sua parte, oneram, ainda mais, o já limitado orçamento estatal, isto quando não contribuem para entravar o livre acesso das pessoas à Justiça, as quais, mesmo litigando sob o pálio da assistência judiciária, não encontram meios de prover determinadas provas mais requintadas, que dependem de terceiros, como a perícia, por exemplo.

            De outra banda, também a concepção de que a verdade deveria ser buscada a qualquer preço encontra resistência na ética e na própria logicidade do sistema, afinal esse busca primordialmente afirmar direitos e somente por justificada exceção aceitaria sua agressão. Nesse panorama, conclui-se que de nada adiantaria, por exemplo, garantir a privacidade às pessoas, se, em qualquer litígio, pudesse ser apresentado um diário íntimo, para provar verossimilhança da argumentação jurídica desenvolvida em determinada lide. Do contrário, as garantias estabelecidas jamais lograriam libertar-se do mundo acadêmico e da letra dos textos para invadir a seara forense.

            Por tais razões, de ordem prática, ética e mesmo lógica, não é dado à qualquer litigante introduzir prova obtida por meio ilícito em qualquer processado, podendo-se dizer que o direito à prova encontra, sim, fronteiras definidas pelo sistema e não pode ser entendido como garantia absoluta, na medida em que coexiste com outras garantias que a repelem, uma vez verificadas determinadas circunstâncias concretas. Por decorrência, soa admissível a tese segundo a qual o processo, em certas hipóteses, arrefece seu ímpeto de perseguir a verdade a todo custo. A preocupação, na realidade, sempre existe, porém, em nome de valores outros, de igual ou superior hierarquia no sistema, optamos por preservar situações juridicamente protegidas de cegas investidas em nome da descoberta da verdade real. E essa conclusão é oportuna quando buscamos colocar o problema da vedação constitucional da prova ilícita. Efetivamente, bem examinada a questão, observaremos que a proibição da utilização de provas obtidas ilicitamente, não visa outro que proteger valores importantes do sistema, como a intimidade, a honra, enfim toda gama de direitos reconhecidos e inerentes aos cidadãos dos modernos Estados de Direito. Nessa linha, justo que o legislador sequer tolere as provas obtidas com violação de direito, eis que imbuído do escopo de prestigiar a democracia constitucional.

            Excepcionalmente, como dito, o processo rende-se e desiste de perquirir a verdade empírica, aos efeitos de assegurar a consecução de outros escopos (como o fortalecimento do Estado de Direito ou a célere composição da lide). No entanto, não é dado olvidar que a regra é a tentativa de aproximação do veredicto final àquele de direito mais justo, uma vez mais vizinho dos fatos ocorridos. Como exemplo dessa orientação, observamos, nos modernos ordenamentos, o fortalecimento do princípio da persuasão racional do juiz e o conseqüente dever de fundamentar decisões, a ilimitação dos meios de prova admitidos e a utilização de meios de cognição idênticos àqueles prezados por ciências afins, como a filosofia, psicologia, sociologia, etc (2). A restrição da prova legal e a conseqüente aceitação do livre convencimento não visa outro que aproximar a verdade processual da verdade estranha ao processo, que é buscada pelos mais diversos cientistas com seus diferentes métodos.

            Enfim, embora reconhecendo que a descoberta da verdade (em âmbito processual ou não) seja algo utópico, não nos parece possível afirmar que possa ser aceito um sistema jurídico desvinculado da idéia de alcançar a verdade. A questão é perceber até que ponto se justifica pretender a reconstrução dos fatos e estabelecer tais limites.

            2.3 O direito à prova.

            A Constituição Federal assegura a todas pessoas o direito de ir a juízo e apontar violações ou ameaças a seus direitos. Com efeito, diz o art. 5º, XXXV, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

            Entende-se tal dispositivo, na medida em que o Estado, no momento em que vedou a tutela de mão própria, chamou a si a responsabilidade pela resolução dos litígios ocorridos em seu seio. Conferiu, assim, às pessoas o direito de ir até juiz natural e declinar as razões que lhe embasam o pedido de reconhecimento e oferta de direito. Ao Estado, uma vez acionado, é criado o dever de prestar a jurisdição. No momento em que alguém, através de petição, dirige-se ao poder público, surge um direito subjetivo à uma sentença que avalie a relação processual posta (rechtsschutzanspruch). Embora não haja direito a uma sentença favorável, há um direito subjetivo assegurado, constante na garantia de apreciação da demanda.

            Todavia, se há de ter em mente que o direito que brota do texto constitucional, neste não se encerra. Com razão, de nada adiantaria que aos litigantes fosse assegurado o direito de ir à juízo, se, da mesma forma, não houvesse efetiva possibilidade de comprovar as alegações deduzidas e, assim, auxiliar no convencimento judicial (3). Os litigantes, em processo judicial, necessitam de meios para certificar os direitos de que se afirmam titulares. Do contrário, a garantia de petição seria apenas mais um direito meramente formal, encontrado em texto e sem nenhuma utilidade social.

            Nessa linha, o direito à produção de provas úteis ao deslinde da causa tem origem no próprio direito de ação e no de ampla defesa. Na momento em que a própria Constituição afirma que nenhuma lesão ou ameaça a direito será afastada do controle do poder judiciário, ela, ao mesmo tempo, assegura às pessoas meios para que possam, de maneira eficaz, trazer suas razões e prová-las perante o juízo competente. Eis o alcance do princípio da inafastabilidade, o qual encontra como corolário lógico, em seu seio, o direito à prova, seu irmão gêmeo. Uma parte tem o direito de provar os fatos constitutivos de seu direito, ao passo que à outra é assegurada a apresentação do material visando destruir os argumentos que dão suporte à causa ou criar exceções (4).

            Disso conclui-se que, como regra, podem as partes provar todos fatos que lhe possam ser úteis. Todavia, há exceções, criadas justamente para garantir a sobrevivência do sistema jurídico, o qual encontra nascedouro na inarredável garantia constitucional da dignidade da pessoa humana e no princípio da boa-fé nas relações intersubjetivas.

            2.4 O magistrado também pode determinar a realização de provas.

            De outra banda, é fato hoje pacífico que, sendo uma função do Estado de Direito ofertar jurisdição justa a todos litigantes, também o juiz poderá determinar de ofício provas a serem produzidas, com o fito de aclarar a relação jurídica em análise.

            O papel do magistrado nos estados modernos não se resume a observar passivamente a disputa travada entre as partes, sendo um mero expectador do desenvolvimento do contraditório entre os litigantes. Hoje, pode, ele, sim, participar ativamente do processo que visa convencer-lhe, valendo-se de meios que lhe ofertem maior segurança ao encerrar seu ofício jurisdicional. Esse fenômeno, aliás, não importa em violação a máxima que veda o proceder de ofício, posto que o objeto litigioso de qualquer processado é definido, a priori, pela formatação do pedido da inicial. Conservado, portanto, o princípio da demanda, que veda ao órgão judicial imiscuir-se no objeto litigioso, restando intocável o direito das partes de eleger as questões sobre as quais almejam discussão judicial.

            Nesse sentido, um dos expedientes mais utilizados pelos modernos ordenamentos é a faculdade dada ao magistrado de determinar provas a serem produzidas para esclarecer pontos obscuros. Isto ocorre porque é preocupação inerente ao estado de direito certificar a relação de direito material posta sob análise com a maior nitidez possível, para oferecer a jurisdição justa.

            Bem se sabe, no entanto, que, devido ao invencível acúmulo de serviço de nossos magistrados, muitos desses poderes conferidos não chegam a ser manejados, o que se compreende. Todavia, não nos podemos esquecer que há bons exemplos da salutar participação do magistrado na instrução do processo, como atesta, ilustrativamente, a ordem para realização de exame de dna em ações de investigação de paternidade (5).

            Quanto à crítica de que a iniciativa oficial para a produção de partes pode afetar a necessária neutralidade do julgador no caso concreto, parece-nos acertada a lição de JOSÉ ROBERTO BEDAQUE, para quem quando o juiz determina a realização de alguma prova, não tem condições de saber, de antemão, seu resultado. O aumento do poder instrutório do julgador, na verdade, não favorece qualquer das partes. Apenas proporciona apuração mais completa dos fatos, permitindo que as normas de direito material sejam aplicadas corretamente (6).

            De mais a mais, como dito, é tarefa exclusiva das partes delimitar a res in iudicium deducta, pela inicial e contestação. Nesse processo, diferentemente, não pode o magistrado intervir, sob pena de ferimento do princípio da demanda, corolário lógico do estado de direito. Nesse ponto, vigora o princípio do dispositivo, o qual, aliás, é uma regra fundamental do processo brasileiro, somente cedendo por justificada exceção.

            Dessa forma, justo concluir que, no momento em que o Estado comprometeu-se a oferecer a jurisdição a todos, vedando a autotutela, assumiu uma obrigação natural de bem resolver os litígios. Com esse norte, pode o magistrado também participar do jogo do contraditório e reclamar provas que julgar convenientes.

3. A prova ilícita dentro do sistema jurídico brasileiro.

            Feitas essas breves colocações, chega-se no problema que vem atormentando os operadores do direito, qual seja a utilização da prova obtida mediante comportamento ilícito. Estaria ela vedada, à luz do dogma constitucional ? Se a resposta for negativa, em que hipóteses poderíamos recorrer a esse expediente ? Qual o grau de eficácia do comando ? Essas são apenas algumas das questões postas diariamente no cotidiano forense. E como se era de esperar, em face da delicadeza da questão, não há, ainda, jurisprudência firme, embora seja notada uma tendência pela vedação completa da utilização daquela prova.

            O Direito é imenso sistema normativo, composto por regras e princípios. Nenhuma regra, ou mesmo princípio, por mais importante que seja, pode ser entendida por si própria e distante das demais. Muito ao contrário, a interpretação de qualquer comando sempre deverá levar em conta todos os outros comandos prescritos pelo sistema, pena de grave subversão da ordem jurídica.

            Nessa medida, o sistema tem a função precípua de dar unidade e coesão ao ordenamento jurídico, eis que ele engloba a totalidade de regras e princípios colhidos em todos textos e práticas nacionais. Vale a lição de NORBERTO BOBBIO, que entende por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si (7).

            Com razão, de nada adiantaria seguir à risca a interpretação literal de regras (ou princípios) encontradas aqui ou acolá, se, dessa prática, obtivéssemos um resultado incoerente com o próprio sistema. Ao assim proceder, estaríamos prestigiando irracionalmente uma regra (ou princípio), ao preço do sacrifício de toda unidade de um sistema de hierarquia infinitamente maior. Se entendêssemos o Direito como uma série de normas que valem por si próprias (e que, portanto, nenhuma relação entre si guardam), transmitiríamos, em última análise, a insegurança jurídica a todos. Dessa forma, conclui-se que, para salvaguardar o sistema, muitas vezes seremos obrigados a sacrificar regras e mesmo restringir a aplicação de princípios. Ou melhor: necessitaremos dar uma interpretação às regras e aos aludidos princípios mais consentânea com os fins do ordenamento no qual se inserem, harmonizando-os com o sistema.

            Para bem ilustrar esse aparente conflito, figuremos o exemplo da garantia do contraditório e da inafastabilidade de lesão ou ameaça a direito do controle do Judiciário (ambos inerentes ao Estado de Direito e assegurados constitucionalmente). Muitas vezes, para a efetivação de um, o outro, momentaneamente, tem sua aplicação mitigada. Vale exemplificar: Jayme, após longos anos de noivado, tem um inesperado filho com Clarissa. Ciente da situação, rompe a relação pública que com ela mantinha. Nove meses se passam e, uma vez nascido Breno, Clarissa decide, representando o bebê, cobrar do genitor uma quantia capaz de, ademais de auxiliar no pagamento das despesas de parto, também garantir a manutenção do rebento durante a menoridade. Ao despachar a petição inicial, o magistrado deparar-se-á com dois princípios garantidos pela Constituição: o que prevê que o menor deverá ter sua existência garantida e, de outro lado, o princípio que assegura a Jayme o direito de ser ouvido antes de ter contra si uma decisão judicial. Qual das soluções tomar: ofertar, desde logo, alimentos a Breno ou esperar, para que, uma vez efetivada a citação, Jayme também possa intentar convencer o juízo ? A solução não parece ser complicada.

            Como se vê, no exemplo trazido, em momento algum, Jayme, (que tinha a garantia constitucional de ser ouvido – e, assim, trazer sua versão dos fatos, convencendo o juízo) interferiu na ação proposta contra si por seu filho – pelo menos até o momento em que o juiz ordenou o pagamento mensal de pensão. À todas luzes, o princípio do contraditório não foi respeitado em toda sua extensão (que significaria que em todas as circunstâncias as pessoas têm o direito de participar em todas as fases do processo). Ao contrário, no caso, a bilateralidade da audiência somente perfectibilizar-se-ia em momento ulterior, quando Jayme, já citado e pagando a quantia mensal, oferecesse sua contestação, sem embargo de eventual insurgência contra a decisão liminar.

            Todavia, a momentânea postecipação do contraditório estava plenamente autorizada e ninguém duvida de seu acerto. Com efeito, não seria justo que nosso querido rebento (que, como qualquer criança, tem despesas e pouca condição de sobreviver por seus próprios meios) necessitasse aguardar o natural e inevitável lapso de tempo decorrente da citação de seu pai (através de mandado por oficial de justiça e o retorno aos autos), o prazo para contestação, mais o período em que os autos restariam conclusos com o juiz, a decisão deste e, enfim, a efetivação da medida, para lograr alcançar o bem da vida buscado. Se, ao interpretar o direito ao contraditório, concluíssemos que Jayme efetivamente tinha direito de ser ouvido antes de ter seu patrimônio atacado por ordem judicial, quantos outros princípios de igual envergadura não estaríamos inarredavelmente agredindo ?

            De tudo, resulta que, muito embora todas normas encontrem-se a viger, esse fato não indica que, tão-somente por essa razão, elas devam ser inteiramente respeitadas em todos os casos concretos, mesmo porque seria impossível. A desconsideração do Direito como um sistema complexo implica, em última análise, na impossibilidade de ofertar coerência e unidade ao próprio Direito. Nesse sentido, as provas ilícitas, enquanto integrantes do sistema, não podem assumir facetas alheias a todo conjunto imaginado.

            Os princípios, como se viu, estão sempre em permanente conflito. Mesmo devendo ser respeitados na maior escala possível, também eles sujeitam-se às contingências do caso concreto analisado. Por isso, e não raro, devemos restringir a aplicação de um princípio, se de sua obediência contrariarmos outros tantos (de igual envergadura e de maior valor na situação concreta). Com isto, pode-se afirmar que nenhum princípio, por mais importante que seja, pode existir por si apenas, senão necessita conviver com outros tantos, também integrantes do sistema jurídico. Não é à toa que se diz que os princípios estão em rota de permanente colisão e que devem ser valorados, para que se descubra qual deva preponderar.

            De tão relevante é o tema da ilicitude da prova, afirma-se que, em qualquer grau de jurisdição, possa ela ser declarada, e independente do pedido do interessado. Em outras palavras, não há que se falar em preclusão da prova ilícita (8).

            Todavia, muito embora a clareza do texto constitucional referente ao emprego das provas ilícitas, temos que a expressão legislativa utilizada no comando não deva ser interpretada por sua literalidade, sob pena de grave subversão do sistema (9). Embora reze o art. 5º, LVI, que sejam inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, estas nem sempre estão vedadas no processo. Para bem compreender o alcance da norma, urge perquirir seu escopo e sua função dentro do processo.

            Pois bem, ao que tudo indica, o legislador constituinte, que teve sua infância e juventude marcada pelo regime de exceção que governou o país por duas décadas, guardou indisfarçável receio dos métodos utilizados em referido período, o qual se imortalizou na história nacional mais pelo desrespeito aos direitos individuais do que por suas eventuais conquistas (10). Temendo novas violações, através do comando constitucional, buscou o legislador colocar freios aos impulsos arbitrários daqueles que ainda não se haviam acostumado a conviver em sociedade democrática. Serviria, a norma, para prevenir o cometimento de novos ataques aos valores essenciais do Estado de Direito (proteção da pessoa humana na maior escala possível) e punir, com rigor, as investidas ilícitas contra direitos de terceiros.

            Como bem observa BARBOSA MOREIRA, explica-se tal opção, em grande parte, por circunstâncias históricas. A Constituição foi elaborada logo após notável mudança política. Extinguira-se, recentemente, o regime autoritário que dominara o País e sob o qual eram muito freqüentes as violações de direitos fundamentais, sem exclusão dos proclamados na própria Carta da República então em vigor, como a inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Ninguém podia considerar-se imune a diligências policiais arbitrárias ou ao grampeamento de aparelhos telefônicos. Quis-se prevenir a recaída nesse gênero de violências. É mister reconhecer que, naquele momento histórico, não teria sido fácil conter a reação contra o passado próximo nos lindes de uma prudente moderação. Se puxarmos um pêndulo com demasiada energia em certo sentido e assim o mantemos por largo tempo, quando seja liberado ele, fatalmente, se moverá com força equivalente no sentido oposto (11).

            O escólio do mestre carioca já indicava problemas que vivenciaríamos anos mais tarde. Efetivamente, foi-se de um lado extremo, no qual eram utilizadas em larga escala as provas obtidas por meios ofensivos aos direitos, para o outro, no qual, a pretexto de preservar os direitos conquistados após brava caminhada, encontra-se a vedação ampla e irrestrita à utilização daquelas conseguidas através de violação ao mais discutível direito individual, nem que para isso seja preciso, até mesmo, santificar o egoísmo em detrimento da boa-fé.

            É bom que se estabeleça, vez por todas, que a idéia de vedar a utilização da prova ilícita no processo busca precipuamente varrer a malícia e a deslealdade. Se, na conduta do agente, não se confirmam tais premissas, por seguro a prova poderá ser acolhida, visto que o dispositivo está impedido de incidir. Dessa forma, a correspondência ao filho drogadicto enviada pelo traficante e violada pela mãe é prova boa, assim como a condução do indigitado pai para o exame de dna. Nessas ações, não há qualquer deslealdade, malícia, má-fé,… Muito ao contrário, essas pessoas agem movidas pelos mais nobres sentimentos.

            Situação radicalmente inversa seria observada se, ao invés da mãe e do cônjuge, fossem, as provas, produzidas por terceiros (polícias por exemplo). Nesse caso, a regra da vedação à prova ilícita incidiria com toda força, diante da diversidade dos interesses e valores envolvidos, nada justificando aquela lesão à esfera de outras pessoas.

            Para bem situar a emblemática questão, necessário recorrer a métodos de interpretação que possibilitem a resolução desses conflitos, traduzidos pela eterna batalha dos princípios por sua sobrevivência.

4.A importância do princípio da proporcionalidade.

            Quiçá o maior aliado na resolução desses problemas seja o chamado princípio da proporcionalidade (verhaeltnissmaessigkeitprinzip), utilizado originariamente no direito administrativo tedesco, em meados do século XIX, e que, com o tempo, adquiriu status constitucional, sendo incorporado à Lei Fundamental de 1949 daquela República Ocidental. Os mentores daquele que hoje é um princípio aceito pela ampla maioria dos doutrinadores constataram, na época, que, por vezes, a aplicação estrita e literal de um comando legal, embora plenamente válido e eficaz, poderia ensejar um efeito contrário ao próprio Estado de Direito previsto pelo sistema de determinado país, de modo que se concluiu que a norma (genérica e abstrata) incidindo em determinados casos concretos poderia acarretar conseqüência negativa para a ordem estabelecida naquela nação. Destarte, tornou-se imperioso criar um mecanismo racional, capaz de outorgar a devida segurança jurídica à sociedade, isto é, um meio que garantisse que a norma somente fosse observada caso cumprisse com sua missão e se aliasse aos escopos do sistema. A aplicação de normas, então, deveria harmonizar-se com o sistema no qual elas estão insertas. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade visava, originariamente, regular o poder de polícia do Estado, ofertando maior segurança jurídica aos particulares.

            Eis a forma pela qual foi imaginado o princípio da proporcionalidade, cuja função precípua é justamente garantir o Estado de Direito em toda sua plenitude, vedando a aplicação de normas desarrazoadas quando em confronto com o sistema vigente. Nada mais acertado, afinal não há, em realidade, nenhum direito absoluto (12), capaz de sobrepor-se sobre todos os demais. Assim, e partindo desse pressuposto (o de que os direitos fundamentais encontram-se não raro em rota de colisão), a doutrina germânica também admitiu que nenhuma norma poderia ser entendida distante do contexto no qual se insere, devendo ter sua aplicação restringida na medida em que afrontasse disposições outras de maior envergadura ou não cumprisse com seus objetivos originários.

            Partindo dessas premissas, como assevera o ilustre maestro da Universidade de Munique, HEINRICH SCHOLLER (13), a jurisprudência acabou por desenvolver o conteúdo do princípio da proporcionalidade em três níveis: a lei, para corresponder ao princípio da reserva da lei proporcional, deverá ser simultaneamente adequada (geeignet), necessária (notwendig) e razoável (angemessen). Os requisitos da adequação e da necessidade significam, em primeira linha, que o objetivo almejado pelo legislador ou pela administração, assim como o meio utilizado para tanto, deverão ser, como tais, admitidos, isto é, que possam ser utilizados. Para além disso, o meio utilizado deverá ser adequado e necessário.

            Estabelece-se, assim, um nítido confronto entre os meios utilizados para lograr o resultado pretendido. Em última análise, o juízo, para estabelecer a pertinência da aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto, deveria cotejar analiticamente os direitos envolvidos no litígio, estabelecendo qual deles deva preponderar sob as circunstâncias peculiares da relação apreciada, nada impedindo que, em outra feita, o direito cá preterido, diante de novas condições fáticas, paire sobre aquele ora privilegiado. Tudo irá depender da avaliação de se o meio utilizado para a obtenção do escopo almejado mostrava-se adequado, necessário e razoável. Por vezes, um princípio terá sua aplicação maximizada. Noutras, sua observância poderá ser, até mesmo, postecipada, sem que nenhuma subversão ao sistema seja visualizada nesse fato corriqueiro.

            A correlação entre os meios e os fins serviu de base para a criação da teoria dos degraus (Stufentheorie), hoje adotada pelo Tribunal Federal Alemão. De acordo com ela, os direitos encontram-se hierarquizados. Por isso, as exigências para a restrição de um direito crescem à medida em que esse assume posição de maior relevo no cenário jurídico. Decorre, em última análise, maior rigor para restringir a aplicação daqueles princípios mais importantes dentro do sistema, exigindo, da situação fática, manifesto contorno de urgência e necessidade.

            Para ilustrar a nobre função princípio da proporcionalidade, figuremos um exemplo bastante usual nos corredores do Foro: Gustavo, manejando seu corsa, é abordado por policiais, em razão de apresentar indícios de consumo de álcool. Muito embora tenha negado-se a utilizar-se do bafômetro, os polícias o portam até hospital próximo, no qual é obrigado a doar alguns mililitros de sangue para análise. Sobrevém resultado, deixando inconteste que nossa personagem consumira duas vezes mais a quantidade de álcool tolerada pela legislação. Passados alguns meses, o caso assume conotação judicial, na medida em que o sempre combativo promotor de justiça da comarca o denuncia pela suposta prática do delito de direção perigosa e, em instrução, defende a validade da prova coligida naquele hospital. Poderíamos aceitá-la ? Vênia deferida de entendimento diverso, jamais o nobre magistrado da causa poderia ter a prova como boa, aos efeitos de embasar sentença penal condenatória, na medida em que o meio pelo qual ela fora obtida violara tantos outros direitos assegurados à nossa personagem – justamente pelo mesmo ordenamento que proíbe particulares de trafegar alcoolizados. Note-se que, no caso, para bem colocar o princípio da proporcionalidade, deveríamos cotejar os interesses envolvidos no litígio. De um lado, poderíamos argumentar que existe o interesse público, materializado pela obrigação de evitar que mais vidas sejam ceifadas em razão de condutas culposas no trânsito. Todavia, no outro lado da balança, existiriam outras garantias individuais, dentre as quais aquela que confere a todos cidadãos o direito de dispor do próprio corpo conforme sua vontade (e que, poder-se-ia dizer, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana). Ao que nos parece, o fim aqui não estaria a justificar os meios empregados, visto que, do contrário, praticamente chancelaríamos o arbítrio. Nunca é demais lembrar que uma das funções da vedação da prova ilícita é justamente instigar pessoas menos acostumadas à vida em democracia a pensar duas ou mais vezes antes de investir contra os direitos de terceiros. Nesse caso, uma vez aceita a prova produzida, provavelmente os senhores que portaram Gustavo até o hospital sentir-se-iam capazes de repetir o feito em outras oportunidades, e, quiçá, até mesmo aumentar seu espectro de atuação conduzindo motoristas que não houvessem ingerido qualquer substância proibida até nosocômio vizinho.

            Mas não convém resumir o raciocínio à idéia de que nenhuma pessoa, sob qualquer circunstância, sempre poderá dispor livremente de seu corpo. Como dito, o escopo da aplicação do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, acima materializado no direito de dispor do corpo para contestar aquela ordem, pode assumir outras formas, como logo veremos.

            Efetivamente, situação inversa ocorreria se, em meio a processo promovido por Renata, de quatro anos de idade, a fim de investigar sua paternidade, Mathias, indigitado pai, recebesse ordem judicial para doar alguma quantidade de sangue (ou fios de cabelo) para confrontação de dna’s. Pergunta-se: poderia o varão alegar garantias constitucionais em seu favor a fim de eximir-se do mandado, de tal sorte que a criança fosse obrigada a satisfazer-se tão-somente com a famigerada paternidade presumida? Novamente, rogando vênia aos defensores de opinião contrária – por ora sob guarida do entendimento de escassa maioria do Supremo Tribunal Federal – aqui a matéria assumiria feições outras. Já não estaria em jogo o interesse do particular de negar-se a cumprir as mais bizarras ordens de policiais, dispondo livremente de sua liberdade. Aqui, a questão seria definir qual interesse deva ceder: aquele do indigitado pai preservar sua integridade física, eximindo-se do dever de oferecer alguns fios de cabelo ou mililitros de sangue, ou aquele da criança em descobrir sua real, e não fictícia, identidade. Ora, nesse caso, jamais poderia nosso querido amigo desobrigar-se da ordem, pois, ao fim e ao cabo, o interesse da pessoa em descobrir sua verdadeira (e não presumida) identidade representa o princípio da dignidade da pessoa humana e o ato intentado por Mathias, uma grave afronta a sua aplicação. Esse interesse da criança – e de todos os homens – jamais poderia ceder em nome de uma egoísta e literal interpretação de outra garantia, afinal, como bem assinalou o Min. Carlos Velloso, não há no mundo interesse maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico (14).

            Dessa narrativa, conclui-se que, quando tratamos de princípios, estejam eles positivados ou não, não poderemos a priori determinar qual solução será a ideal para um caso futuro, na medida em que somente da análise de suas particularidades, lograremos evidenciar quais as medidas que efetivarão os ditames de um legítimo Estado de Direito. Gustavo pôde esquivar-se da ordem de dirigir-se até hospital próximo para verificar sua condição física, isto porque, do outro lado do pêndulo, havia um remoto interesse de oferecer segurança no tráfego. Nada impediria, entretanto, que Gustavo respondesse pelas conseqüências de seu ato, mediante presunções que emanassem de sua conduta. Mathias, de seu turno, jamais poderia evitar sua estada na clínica, vez que, na outra ponta da relação, estaria outra pessoa, buscando, com muito custo, ter, enfim, sua paternidade definida juridicamente, através da certeza científica. A presunção de ebriedade, no primeiro exemplo, poderia satisfazer o sistema, restabelecendo a tranqüilidade social. Já no segundo caso, a mera presunção de paternidade, ao contrário, representaria sensação de desassossego para toda a comunidade, na medida em que sequer o direito de conhecer a própria identidade pessoal seria chancelado. Nesta última hipótese, pode-se afirmar que o sistema já não permitiria a resolução do litígio mediante o artifício de uma presunção. Tratam-se de duas condutas idênticas (negar-se a ir até clínica) que, diante das condições concretas, importam em conseqüências distintas.

 

5. Conclusões.

            Pelo fio do exposto, força é concluir que, na medida em que a garantia da vedação da prova ilícita (hoje erigida a ordem constitucional), encontra-se dentro de um sistema maior, também ela deve ser interpretada de modo que permita a perfeita realização desse. O Estado, ao vedar a autotutela entre os particulares, comprometeu-se a oferecer jurisdição eficaz e deve garantir meios para que os direitos materiais alegados possam ser certificados, afinal também é sua preocupação bem cumprir o ofício jurisdicional.

            De nada adianta fechar os olhos para aquilo que há do outro lado da balança no justo momento em que nos deparamos com uma prova prima facie contrária ao ordenamento. Convém lembrar que, somente através do cotejo da situação fática concreta, se poderá dizer quais provas devem ou não ser aceitas em determinado processado. É bem verdade que, como regra, a prova obtida por meio ilícito está vedada, pois o ideal, em qualquer processo, é encontrar meios de provas lícitos a comprovar as alegações, de modo que aquela ilícita não necessite constar nos autos. Dessa forma, cumprirá aos operadores justificar com todo zelo as exceções que exijam a restrição da garantia. E, aos efeitos de garantir a harmonia, de todo razoável a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual, em última análise, permite uma solução satisfatória para as questões apresentadas, preservando o Estado de Direito em seus aspectos mais relevantes.

            Nessa linha, ainda é de se referir que, dado os valores que comumente estão envolvidos no juízo criminal, neste a admissão da prova ilícita deve se dar com o máximo de temperamento, mormente quando utilizada pela acusação. De outra banda, tampouco é possível afirmar que a prova ilegal possa ser sempre utilizada quando em benefício do réu, muito embora, por vezes e justificada exceção, também deva ser considerada. Como dito, é necessário medir as conseqüências da aceitação e ponderar todos os valores envolvidos na lide.

            Em suma, não se pode dizer que a regra contida no art.5º, LVI, CF, que prevê a vedação da utilização da prova obtida por meios ilícitos, seja absoluta. Ela deve ser entendida com temperamento e, sob circunstâncias excepcionais, deve ceder, em homenagem à própria sobrevivência do sistema jurídico nacional. Assim, parece evidente que, para a perfectibilização desse comando, deveremos confiar em nossos magistrados, a fim de que esses não cometam atos de puro arbítrio – o qual é justamente combatido pelo princípio da proporcionalidade. As decisões, nessa medida, deverão ser cautelosamente fundamentadas, expondo todos os motivos que influenciem o convencimento pela aceitação da prova prima facie proibida, aos fins de prestigiar o Estado de Direito. A segurança jurídica, então, brotará da uniformização da jurisprudência, mediante a elaboração de critérios objetivos e abstratos para análise e valoração da aludida prova.

6. Bibliografia:

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            ___ O princípio dispositivo no pensamento de Mauro Cappelletti. Revista da Ajuris, 46/97.

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            Taruffo, Michele. La Prova dei Fatti Giuridici. Milano: Giuffrè, 1992;

Notas

            1. Tratado das Ações, v.1, p.55.

            2. Muito embora o contexto em que a verdade seja buscada relativize sobremaneira a idéia da existência de uma ‘verdade’, na medida em que admitimos que a falibilidade humana, a natureza e mesmo a tecnologia não logram representar com exatidão o acontecimento passado, força é reconhecer que não apenas no processo senão em qualquer área do pensamento humano a tarefa segue assaz complicada e de nada adianta diferenciar uma possível verdade processual de outra capaz de ser compreendida com maior exatidão por terceiros alheios a lide. Nesse sentido, vale transcrever lição de TARUFFO sobre o tema: non bisogna tuttavia pensare che da questa radicale relativizzazione del problema della verità processuale (come anche delle altre verità) derivi necessariamente la dissoluzione della possibilità di parlare sensatamente di accertamento della verità dei fatti all’interno del processo (La Prova dei fatti giuridici, p.57)

            3. Nessa linha, já advertia JHERING, lembrado pelo Professor CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA, que o direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito, é o próprio direito. O que não se traduz em realidade, o que está apenas na lei, apenas no papel, é um direito meramente aparente, nada mais do que palavras vazias´.

            4. Lembra CARLOS LESSONA, que, de regra, ´el que quiere hacer valer un derecho, debe probar sencillamente los hechos que, según la relación normal, engendran el derecho y reclaman la aplicación del precepto-regla; el que contradice el derecho, debe probar los hechos anormales que impiden su existencia y hacen aplicable el precepto-excepción. In Teoria General de la Prueba en Derecho Civil, p.133, Instituto Editorial Reus, 1957.

            5. Como ilustra a seguinte ementa: "Prova. Exame de DNA. Desistência não comprovada. A realização de exame de DNA independe de expresso requerimento da parte, podendo ser deferida de ofício pelo Juízo." (TJMG – AG 000.187.901-4/00 – 3ª C.Cív. – Rel. Des. Aloysio Nogueira – J. 15.02.2001)

            6. A Garantia da Amplitude de Produção Probatória, In Garantias Constitucionais do Processo Civil, p.181

            7. In Teoria do Ordenamento Jurídica, 5ª edição, Editora UnB, p.71.

            8. Assim, o seguinte escólio: "Penal. Habeas-corpus. Denúncia. Quebra de sigilo bancário. Prova ilícita. Invalidade. A denúncia oferecida exclusivamente com fundamento em provas obtidas por força de quebra de sigilo bancário, sem a prévia autorização judicial, é desprovida de vitalidade jurídica, porquanto baseado em prova ilícita. Sendo a prova realizada sem a prévia autorização da autoridade judiciária competente, é desprovida de qualquer eficácia, eivada de nulidade absoluta e insusceptível de ser sanada por força da preclusão. Habeas-corpus concedido." Rel. Min. Vicente Leal, HC 9838/SP.

            9. Tanto assim que o próprio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento, no sentido de que, havendo outras provas para embasar a decisão judicial, que não apenas as ilícitas, o magistrado deverá considerá-las, como atesta a seguinte ementa: " HC. Constitucional. Processual Penal. Prova ilícita. O conjunto probatório precisa ser analisado organicamente. A prova ilícita, sem dúvida, é vedada pelo Direito e não pode fundamentar restrição ao exercício do direito de liberdade. Em havendo, contudo, outros elementos, sem vício jurídico, legal a decisão do juiz que os considerou para explicitar a decisão." Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, HC 9128/RO.

            10. Sobre o tema, assim se manifestou o insigne Min. Vicente Leal, quando do julgamento do ROMS 8.327-MG: O direito constitucional-penal inscrito na Carta Política de 1988 e concebido num período de reconquista das franquias democráticas consagra os princípios do amplo direito de defesa, do devido processo legal, do contraditório e da inadmissibilidade da prova ilícita (CF, art. 5º, LIV, LV e LVI).

            11. A Constituição e as Provas Ilicitamente Adquiridas. In Revista da Ajuris, 68/13.

            12. E essa constatação é irrefutável, na medida em que o próprio direito à vida dentro do sistema jurídico brasileiro sofre restrições. Vide, por exemplo, a possibilidade de aborto quando a gestação decorre de estupro ou implica risco à vida da mãe, ou mesmo as excludentes da legítima defesa e do estado de necessidade, assim como a pena de morte garantida constitucionalmente em casos de guerra.

            13. O princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da Alemanha. In Revista Direito Público, 2/97.

            14. Trecho do voto vencido, proferido no julgamento do HC 71.373-4 – RS, STF, Pleno, em 10.11.1994. Nesse particular, não se ignora a possibilidade levantada pela doutrina, de reconhecimento da formosa figura da paternidade sócio-afetiva. Apenas é trazido o exemplo da paternidade biológica, que depende de perícia, para ilustrar a necessária tutela que o sentimento do filho deva encontrar, preponderando sobre o egoísmo da parte disposta a inviabilizar o imprescindível exame. A discussão, aliás, encontra-se viva mais do que nunca, principalmente em virtude do ainda inintelegível caso Glória Trevi, no qual foi ordenada a apreensão da placenta para realização de exame. Quer-nos parecer que, in casu, não foi em nome do interesse da criança que a perícia foi procedida, indicando, em princípio e ao contrário do exemplo trazido, a ocorrência de uma prova ilícita.

 


Referência  Biográfica

Daniel Ustárroz – Advogado, mestrando em Direito pela UFRGS

 

E-mail: ustarroz@terra.com.br

Da intermediação de mão-de-obra por cooperativa e a fraude aos direitos trabalhistas

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* Luiz Salvador  –

          A busca da redução dos custos da produção para obter maior competitividade no mercado hoje globalizado (aí, incluída a redução dos gastos com os salários e com os encargos sociais e trabalhistas), tem motivado a que muitas empresas (mesmo as de grande porte, sejam nacionais, multinacionais e até mesmo o Poder Público – mormente Prefeituras), se utilizem de cooperativas de trabalho para obter mão de obra barata para a execução dos serviços necessários, essenciais ao atingimento das finalidades empresariais e onde o trabalhador locado presta trabalho pessoal, subordinado, participando integrativamente do processo produtivo empresarial.

         A utilização desse sistema de contratação de pessoal locado, mesmo através de cooperativa, visa reduzir custos operacionais, pois que sabido que o trabalhador assim contratado não recebe o mesmo salário e vantagens assegurados aos demais empregados admitidos diretamente pela empresa beneficiária desses serviços então intermediados. Com isso, a empresa tomadora dos serviços locados, obtém uma vantagem econômica de imediato, reduzindo-lhe os custos de produção, mas impondo ao trabalhador um prejuízo econômico atual, já que fazendo trabalho igual, recebe menos pelo mesmo serviço.

         O vertiginoso crescimento desse tipo de intermediação de mão de obra locada por intermédio de cooperativa teve início a partir da inclusão do parágrafo único no art. 442 da CLT (que trata da questão do Contrato Individual do trabalho), quando reafirma inexistir vínculo de emprego, quer entre os associados e a cooperativa, quer entre a cooperativa e o tomador dos serviços, regra esta já existente no art. 90 da própria Lei nº5.764/71, que define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, quando estabelece: "Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados".

         A intenção do legislador, foi portanto, apenas afirmar que também não existe vínculo de emprego entre uma real cooperativa com seus tomadores. Nada mais que isso!

         Apesar disso, a mentalidade de busca do "jeitinho", conhecido como "à brasileira", aproveitou-se de um dispositivo legal disciplinador de um outro regramento, contrário e não permissivo, para utilizá-lo, como se permissivo fosse, de nova forma legal de intermediação de mão de obra. Esta mesma prática tão conhecida de má aplicação distorcida da lei, também tem sido utilizada da mesma maneira no exame da Lei 6.019/74, que, apesar de vedar a intermediação da mão de obra fora das hipóteses previstas em seu art. 2º, quando define que trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física a uma empresa, para atender a necessidade transitória de substituição do seu pessoal Regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de serviços, para incrementar o mercado da oferta de um gigantesco contingente de mão de obra, desempregada e barata, estabelecendo na prática uma desigualdade salarial odiosa entre os admitidos diretamente e os contratados pelo sistema de intermediação, a exemplo do que já ocorre com as conhecidas empresas locadoras de mão de obra existentes no País.

         Diante dessa nova realidade de mercado, nossos Tribunais Trabalhistas, examinando, a realidade dessas contratações e por entender existirem fraudes aos direitos trabalhistas, têm declarado a nulidade dessas intermediações, assegurando-se aos trabalhadores então locados os mesmos direitos dos trabalhadores então admitidos diretamente, com suporte no direito de igualdade do art. 5º (caput) da CF, como também no disposto no art. 12, letra "a" da Lei 6.019/74, que assegura aos trabalhadores locados o direito ao recebimento da mesma remuneração equivalente à percebida pelos empregados da empresa tomadora.

         Na verdade, o parágrafo único do art. 442 da CLT não autorizou a intermediação de mão de obra por cooperativa, apenas cuidou de disciplinar o trabalho sem vínculo empregatício de associados de cooperativa, desde que atendidas finalidades legais da cooperativa previstas nos artigos 3º e 4º da Lei 5.764/71, dispondo que a caracterização de uma sociedade cooperativa se dá pela prestação direta de serviços aos associados, sem o objetivo de lucro. Portanto, quando uma cooperativa é criada, não para prestar serviços aos associados, mas para locar mão de obra, visando lucro, há na verdade um desvio de finalidade, já que a cooperativa visa primordialmente o bem comum dos sócios-cooperados.

          Assim, a cooperativa, que deixando de cumprir essa finalidade, para simplesmente arregimentar pseudos sócios para prestação de serviços a terceiros, como se mercadorias ou bens de serviços fossem, transforma-se numa nítida locadora de mão de obra. E, portanto, ao divorciar-se flagrantemente de sua própria razão de existir (desvio de finalidade), cabe inclusive ao Poder Público, diante da violação contumaz das disposições legais, intervir na cooperativa, como prevê a própria Lei 5.764/71 (Lei das Cooperativas), em seu art. art. 93.

         No Estado do Paraná, por exemplo, a Procuradoria do Trabalho da 9ª Região, através da CODIN (Coordenadoria de Defesa dos Interesses Individuais Indisponíveis e Interesses Difusos e Coletivos) está promovendo diversos procedimentos investigatórios sobre denúncias de irregularidades no fornecimento de mão de obra por cooperativas de trabalho, tendo proposto 12 acões civis públicas, sendo que uma delas inclusive já foi julgada pela 4ª Turma do TRT-PR, RO 06026/98, AC. 000599/99 em que é Relator o Juiz Dirceu Pinto Junior, conclui: " apurados os fatos, constatou-se a veracidade das alegações (…) e a burla a todo o sistema legal de proteção ao trabalho (…), determinando-se que a empresa tomadora dos serviços se abstanha de se utilizar de mão de obra intermediada pela cooperativa". Não deferiu a decisão citada o pleito de reconhecimento do vínculo empregatício de cada um dos empregados agenciados em razão de entender faltar à Procuradoria legitimidade processual para postular direitos individuais homogêneos, como a anotação de CTPS, por exemplo, cabendo, assim, a cada trabalhador que se sentir lesado, utilizar de seu direito constitucional de ação e ajuizar a correspondente reclamação trabalhista.

          Não tendo a cooperativa em realidade a natureza de intermediar mão de obra, a decisão judicial referida ao confirmar a sentença de primeiro grau que reconheceu a ilegalidade desse tipo de intermediação, acabou por na prática restabelecer o império da lei, do direito, afastando discriminação salarial odiosa imposta aos trabalhadores então agenciados, que não recebem os mesmos direitos e garantias dos demais empregados admitidos diretamente pelo usuários dos serviços.

 


Referência  Biográfica

Luiz Salvador – Advogado trabalhista no Paraná, diretor para assuntos legislativos da ABRAT, integrante do corpo técnico do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar)

E-mail: defesatrab@uol.com.br

Contrato temporário e jornada flexível de trabalho (Lei 9601/98)

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* Alexandre Nery de Oliveira –

No ensejo de provocar o debate, arrisco-me a algumas opiniões sobre o contrato temporário de trabalho e sobre a jornada de trabalho flexível, conforme instituídos pela Lei 9.601, de 21.01.98.

Procedo à minha análise artigo por artigo, tanto mais porque apenas contém a lei dez artigos, sendo que três são fórmulas de vigência, evitando adentrar em questões de fiscalização dos preceitos da lei e do próprio sucesso de seus objetivos, dada a experiência estrangeira que conduz a igual conclusão de que caminharemos para época em que analisaremos mais contratos temporários do que indeterminados no tempo.

 
– Artigo 1º:

O art. 1º estabelece, em síntese, a possibilidade da instituição de contratos temporários especiais (distintos daqueles previstos nos parágrafos do art. 443 e ss. da CLT), por meio de convenções e acordos coletivos de trabalho, sem as garantias ou exigências fixadas nos art. 443, § 2º, 451, 479 e 480 da CLT.

De início cabe lembrar que o art. 617/CLT foi esquecido pelo legislador, mas, em se tratando de novas admissões e não em alteração dos contratos vigentes, não me parece possível que os acordos coletivos autorizativos possam ser instituídos pelos empregados da própria empresa, por falta de interesse material na admissão de terceiros, havendo, assim, que considerar-se a restrição a haver, em tais casos, convenções e acordos coletivos válidos apenas quando firmados com sindicatos obreiros.

Embora o caput do artigo 1º, a meu ver, não contenha inconstitucionalidade direta, as convenções e acordos nele baseados podem inserir norma involuntariamente inconstitucional se não fixarem qualquer cláusula distintiva dos contratos temporários, ou seja, se permitirem que os contratos temporários tenham como única distinção com os demais contratos em certas empresas ou categorias o fator tempo de duração, sem justificativas para tais limitações que conduzem à retirada de direitos gerais. Com isto, embora afastado o parágrafo 2º do artigo 443, entendo que as convenções e acordos coletivos que permitirem o contrato temporário devem indicar precisamente as situações em que possível sua adoção, sob pena de permitindo a vigência de contratos de trabalho distintos para situações laborais idênticas acarretar a nulidade dos ajustes temporários por quebra da regra da isonomia contida nos arts. 5º, I, e 7º, XXXI, da CF/88. Por isso, embora a norma do art. 1º, caput, não contenha inconstitucionalidade, conduz à celebração de ajustes que podem ferir a Carta Magna, em não sendo dispostas cláusulas distintivas dos contratos indeterminados e os contratos temporários, havendo que se notar que a justificativa de mero acréscimo no número de trabalhadores não é suficiente a impedir a mácula de inconstitucionalidade porque não insere elemento distintor entre o trabalhador admitido sob uma ou outra modalidade, como ocorre em contratos determinados firmados com apoio no parágrafo 2º do art. 443/CLT. Outra inconstitucionalide pode decorrer da indevida permissão ou ocorrência de dois tipos de contrato determinado na mesma empresa (embora, logicamente, muito dificilmente os empresários irão esquecer contratos firmados com base no art. 443/CLT se firmados os compromissos para contratos temporários da Lei 9.601/98), sendo assim análise que resultaria no exame de direito individual, caso a caso, para eventual decreto de nulidade com base também nos preceitos do art. 5º, I, e 7º, XXXI, da Constituição Federal.

Não vislumbro afronta direta à Constituição por parte do parágrafo 1º do art. 1º, eis que apenas se exige a adoção de cláusulas fixadoras de indenização por rescisão antecipada e multa pelo descumprimento, sendo igualmente a inconstitucionalidade eventual decorrente do exame de casos concretos por afronta à isonomia, no concernente à indenização prevista. No entanto, há que se ter em conta que a lei, inclusive pela impossibilidade decorrente da hierarquia das normas, não afeta a aplicação da indenização compensatória prevista no art. 10, I, do ADCT/CF/88, em regulamentação transitória da indenização prevista no art. 7º, I, da CF/88, sempre que a rescisão antecipada do contrato de trabalho temporário decorrer de dispensa arbitrária ou sem justa causa do trabalhador, dado que a previsão de termo certo para a ruptura, se afasta tal incidência, não impede que ruptura anômala não esteja protegida pela norma constitucional invocada, ainda que haja sido retirada pela Lei 9.601/98 a incidência de indenização similar (mas não idêntica) prevista nos arts. 479 e 480 da CLT, que, em face à indenização compensatória de índole constitucional deve ser considerada como indenização adicional e não mais regular para os contratos por prazo certo rompidos antes do termo estipulado.

O parágrafo 2º do art. 1º, por sua vez, ao retirar a aplicabilidade do art. 451/CLT parece instituir repudiável contrato temporário permanente, eis que permite a renovação indeterminada dos contratos temporários, sem qualquer conversão em contratos indeterminados; no entanto, persistiu intocado o art. 452/CLT que define como contrato por prazo indeterminado aquele que decorre da sucessão de contratos temporários num período determinado de seis meses, acarretando, assim, por aplicação do indicado dispositivo consolidado, a lógica de que nenhum contrato temporário poderá vigir sob as condições da Lei 9.601/98 por mais de seis meses, eis que automaticamente, verificada tal vigência, convertido em contrato por prazo indeterminado. Não há no parágrafo 2º do art. 1º inconstitucionalidades, eis que apenas permitiu mais de uma prorrogação dos contratos temporários, cabendo, repita-se, observar-se o limite temporal máximo de seis meses fixado no art. 452/CLT, ainda aplicável para os mesmos.

O parágrafo 3º do art. 1º foi vetado pelo Presidente da República, não merecendo por ora análise.

O parágrafo 4º do art. 1º, embora constitucional, cria parâmetro de interpretação que deverá ser considerado pela jurisprudência. Se era certo para os Tribunais do Trabalho que as estabilidades provisórias não se estendiam aos contratos por prazo certo, agora cria o legislador a regra de aplicabilidade das estabilidades no tempo certo da duração de tais temporários contratos, ainda que não regidos pela Lei 9.601/98, por inaceitável que os institutos estabilitários passem a ter interpretação diversa apenas porque certos contratos por prazo certo foram firmados com base na CLT enquanto outros o foram com base no novo diploma legal, dado não haver motivo justificador, agora, para aplicações distintas. A jurisprudência trabalhista, pois, decerto caminhará no sentido de estender a regra do parágrafo 4º do art. 1º da Lei 9.601/98 aos demais contratos temporários, para garantir a estabilidade provisória de certos trabalhadores no curso certo de duração de tais contratos de trabalho por prazo determinado.

– Artigo 2º:

O art. 2º reduz por dezoito meses, a partir de 22.01.98, data da publicação da lei, as alíquotas de contribuições sociais e do FGTS.

Não vislumbro inconstitucionalidade no inciso I do art. 2º, eis que ao reduzir as alíquotas das contribuições destinadas ao SESI, SESC, SEST, SENAI, SENAC, SENAT, SEBRAE, INCRA, salário-educação e seguro acidentário de trabalho não feriu a norma do art. 149 c/c arts. 146 e 150 da CF/88, que exigiria lei complementar apenas se houvesse nova exigência tributária ou majoração das alíquotas de tais contribuições sociais, e tanto mais porque o art. 149 apenas determina a observância dos arts. 146, III, 150, I e III, e 195, § 6º, da CF/88, permitindo, assim, anomalamente, a instituição de tratamento desigual entre contribuintes, eis que prevista apenas no art. 150, II, da Constituição, logicamente como elemento incentivador de certas políticas governamentais, como pretende ser no campo de implemento de postos de trabalho a Lei 9.601/98, sob pena em ser distinção que afronta aos princípios de administração pública inseridos no art. 37 da CF.

Com relação ao FGTS, a análise passa pela conceituação do FGTS como direito do trabalhador ou como contribuição social. Se é certo que a jurisprudência trabalhista ainda tem entendido o FGTS como contribuição social, a tanto inclusive aplicando os institutos prescricionais trintenários, há campo para a análise sob o enfoque de direito laboral por força do art. 7º da Constituição Federal, corrente a que me filio. Havendo a consideração do FGTS como contribuição social não haverá inconstitucionalidade alguma na redução da alíquota pela mesma interpretação concernente às demais contribuições sociais elencadas no inc. I do art. 2º da Lei 9.601/98, eis que, em sendo contribuição social, e assim possuindo natureza tributária ou parafiscal, o salário do trabalhador seria apenas o indicativo da base de cálculo da alíquota fixada. Contudo, como vislumbro no FGTS verdadeiro direito do trabalhador por conta do art. 7º, III, da CF/88, sob o conceito de verba alimentar futura, apenas tornada indisponível ao trabalhador, em regras gerais, para o fim de preservar a destinação de garantia do tempo de serviço em caso de ruptura do pacto laboral (apesar de todas as deturpações verificadas na gestão dos recursos fundiários), a presente análise deriva para tal campo interpretativo. Se é certo que a garantia a contratos determinados e indeterminados permitem consagrar variação nas alíquotas, e assim logicamente do fundo constituído em conta-vinculada particularmente considerada, tal decorreria então não haver inconstitucionalidade na existência de alíquotas diferenciadas, se não quando invocada a análise de afronta a direito individual concreto por quebra de isonomia entre contratos por prazo certo na mesma empresa ou categoria profissional. Contudo, nesta análise do FGTS como direito individual indisponibilizado sob certas condições, há que se considerar que a legislação fundiária generalizou a alíquota de 8% (oito por cento) tanto para contratos indeterminados como para contratos por prazo determinado, passando a existir discriminativo indevido na Lei 9.601/98 com aqueles regidos pela Lei 8.036/90, que persiste válida e intocada na questão da alíquota de contratos determinados, gerando-se indevida quebra da isonomia decorrente das normas gerais legais e, assim, acarretando, por tal fundamento, a inconstitucionalidade do inc. II do art. 2º da Lei 9.601/98, ante afronta ao art. 5º, I, da Constituição. Ou seja, a inconstitucionalidade do inc. II do art. 2º da Lei 9.601/98 decorre da conceituação do FGTS como direito do trabalhador, caso em que positiva, ou como mera contribuição social parafiscal, caso em que inexistente afronta à norma constitucional.

– Artigo 3º:

O art. 3º fixa o número de trabalhadores que podem ser contratados temporariamente no âmbito de cada empresa.

O art. 3º não contém inconstitucionalidades, eis que possível ao legislador limitar as contratações temporárias inclusive para prestigiar os contratos por prazo indeterminado, fruto de maior tranquilidade social e paz familiar, dado que o trabalhador passa a não ser conceituado como "ex-desempregado temporário". No entanto, a norma contém requisitos de difícil fiscalização, além de não ter exigido qualquer cláusula de segurança para os contratados permanentemente não terem contratos rescindidos para dar margem a alterações dos percentuais estipulados.

– Artigo 4º:

O art. 4º adota medidas que visam permitir à Fiscalização do Trabalho atuar, assim como estabelece normas restritivas para a adoção, vindo condições de interesse notadamente governamental no concernente à adimplência com a Previdência e com o FGTS, este grande financiador do setor habitacional e de outras atividades ditas sociais.

Não se vislumbram inconstitucionalidade na instituição de requisitos formais de âmbito administrativo para a instituição e manutenção de tais contratos temporários de trabalho, inclusive quando pretendem exatamente permitir a difícil atuação da Fiscalização do Trabalho.

– Artigo 5º:

O art. 5º estabelece incentivos sociais às empresas que aumentarem os respectivos quadros de pessoal.

Não há também inconstitucionalidade na referida norma por conter cláusula programática de implemento de políticas sociais governamentais, embora, no campo de tais prerrogativas, não tendo sido estabelecida ressalva às ampliações de quadro funcional obtidas a partir de contratos temporários, ser possível o questionamento por empresários que hajam regularmente, à margem de contratos temporários, igualmente ampliado seus quadros a preferência para si também na obtenção de recursos junto aos órgãos federais de fomento, especialmente o BNDES.

– Artigo 6º:

O art. 6º alterou em definitivo o art. 59 da CLT, modificando o parágrafo 2º e fazendo acrescido o parágrafo 3º, que estabelecem a possibilidade dos denominados "bancos de horas", em que compensações de jornada são permitidas, por via de acordo ou convenção coletivas, em período considerado de 120 dias, sem a correspondente contraprestação das horas executadas, observado o limite de dez horas diárias e, no período de 120 dias à soma das jornadas semanais de trabalho, ou seja, desde que as horas trabalhadas não ultrapassem 44 horas vezes quantas semanas haja perdurada a compensação, até o máximo de 120 dias.

O dispositivo legal pretende amparo na regra do inciso XIII do art. 7º da Constituição Federal. No entanto, tenho dúvidas se os critérios matemáticos podem ultrapassar as discussões jurídicas envolvendo a análise dos inc. XIII, XIV e XXVI do art. 7º da CF/88, eis que não vislumbro distinção entre o limite diário de jornada de oito horas e o limite semanal de 44 horas de jornada laboral, por conta da Constituição, a impedir que ajustes coletivos possam adentrar na compensação de horários com base em um ou outro parâmetro.

Com a devida vênia, a considerar-se inatingível o limite de 44 horas semanais, como se justificaria , então, não considerar também o limite de 8 horas diárias previsto no inc. XIII do art. 7º constitucional? Onde a Constituição indicou que o limite de 44 horas semanais é que deveria servir para tais cálculos compensatórios? E fez mesmo isto em caso de acordo ou CCT? Há atividades que têm peculiaridades, como a dos trabalhadores marítimos, que, chegando no limite da jornada (seja diária, seja semanal), não podem (nem devem) ser lançados ao mar pelo empregador porque estaria extrapolando os limites de oito horas diárias ou de 44 horas semanais previstos na Constituição, mesmo havendo norma coletiva regulamentadora da compensação de jornada. No trabalho em plataformas marítimas, por exemplo, o empregado não pode ficar ao final de cada dia (e às vezes nem ao final de cada semana) retornando ao continente, como se trabalhasse logo ali na esquina.

Neste sentido, a atuação sindical, penso eu, deve ser respeitada para fixar os critérios especiais do trabalho, ainda que estipulando aparente condição desfavorável ao obreiro, porque tem que se acreditar que sua representação sindical atuou no sentido de contraprestação salarial para tanto. Não pensar assim e estará a Justiça do Trabalho a renegar a atuação sindical, tutelando-a ou substituindo-se à mesma…

Acredito que o legislador constituinte, quando inseriu a norma de reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho pensou exatamente na dinâmica e especificidade das relações laborais, permitindo que normas diversas das fixadas em geral para o trabalhador fossem acordadas, inclusive porque, não fosse assim, a atuação sindical, neste particular, seria nenhuma, eis que tudo o que fora fixado na CF/88 apenas ensejaria regulamentações infraconstitucionais pelo Estado, sejam leis, decretos ou meras portarias do Ministério do Trabalho… Pensemos numa norma coletiva que estipulasse o regime de trabalho fixado por semana, com semanais integrais de descanso – que limite seria adotado? Acho que é ora da Justiça do Trabalho incentivar a absoluta validade das normas coletivas, inclusive por questão de segurança das partes contratantes – um pacto coletivo vigora ao longo de décadas, sem nenhum questionamento, e de repente passa-se a declarar sua inconstitucionalidade, como se o inc. XXVI do art. 7º da CF/88 não prevalecesse? Para que o mesmo, então, senão para admitir a abertura de exceções aos regramentos gerais estipulados inclusive pela própria Constituição? Se a norma coletiva ficou caduca, não mais serve à realidade, cabe aos sindicatos modificá-la – não à Justiça. Amanhã, para evitar desemprego, um sindicato aceita, para manter os quadros ativos das empresas, a redução do percentual de horas extras de 50% para outro menor percentual – declararíamos igualmente inconstitucional a norma coletiva, embora isto pudesse então causar desemprego em massa? Porque, vejam, nem todos os incisos do art. 7º tem o famigerado "salvo" ou "mediante" acordo ou convenção coletiva de trabalho – os que não os tem, então, seriam normas vedadas à discussão sindical?

Por tais aspectos, não vislumbro inconstitucionalidade no art. 6º da Lei 9.601/98, quanto à nova redação dada ao art. 59 da CLT, por conforme ao contido no art. 7º, XIII, XIV e XXVI da CF/88, sempre, logicamente, que preservados os casos concretos de situações idênticas tratadas em disparidade, porque então a afronta seria em face do art. 5º, I, c/c art. 7º, XXXII, da Constituição.

– Artigo 7º:

O art. 7º fixa a multa por descumprimento patronal às exigências legais para adoção de contratos temporários, não havendo inconstitucionalidade na instituição da pena administrativa respectiva.

– Artigo 8º:

O art. 8º estabelece o prazo de regulamentação da Lei, pelo Poder Executivo Federal, o que já ocorreu através do Decreto 2.490, de 04.02.98 (DOU. de 05.02.98).

– Artigo 9º:

Apenas fixa a data de vigência da Lei 9.601/98 a partir da publicação.

– Artigo 10:

Revoga as disposições em contrário.

Aqui, um parêntese para o problema da Lei 6.019, de 03.01.74, que igualmente trata de trabalho temporário em empresas urbanas. Tenho, contudo, não ter sido atingida pela Lei 9601/98, eis que a Lei 6.019/74 regulamente diverso contrato temporário, para suprir necessidades emergenciais, mas tendo os empregados destinados a suprir tais ocorrências contratos de trabalho permanente com as respectivas empregadoras, na verdade as empreas de trabalho temporário e não as clientes empresas necessitadas de tal implemento de mão-de-obra em situações ocasionais. Por conta disso, entendo não ter sido afetada a vigência da Lei 6.019/74, embora dificilmente haja incentivos à contratação na forma nela prevista, ante possibilidade agora de contratos temporários diretos entre a empresa necessitada e o trabalhador, havendo prévia permissão por conta de acordo ou convenção coletiva, com cláusulas mais benéficas que aquelas previstas na Lei 6.019/74, que basicamente declarava a existência do vínculo empregatício não entre o trabalhador e a empresa cliente, mas entre aquele e a empresa intermediadora da mão-de-obra, com que mantinha vínculo permanente para prestação de labor temporário em empresas diversas.

Com isto, aguardo as críticas, para aprimoramento do estudo.
 


Referência  Biográfica

Alexandre Nery de Oliveira – Juiz do Trabalho na 1ª Vara do Trabalho de Brasília (DF), professor de Direito do Trabalho, pós-graduado em Teoria da Constituição

E-mail: anery@solar.com.br

Home-page: usr.solar.com.br/~anery

Do direito do trabalhador à equiparação salarial

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* Luiz Salvador

        Qualquer trabalhador que preste serviço igual a de um outro de idêntica função um mesmo empregador, na mesma localidade, tem direito a recebimento de salário igual, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade. Este é o regramento do direito à equiparação salarial assegurado pelo art. 461 da CLT. Assim, temos verificado no dia a dia, que alguns empregadores pagam por um mesmo trabalho realizado um valor maior para uns e outros valores menores para outros empregados, apenas utilizando-se do enquadramento de um como de uma função e o outro de outra função, apesar de realizarem ambos serviços de igual valor.

         Às vezes um funcionário que tenha a CTPS anotada como menos graduado, por exemplo, "ajudante", na verdade talvez até realize exatamente os mesmos serviços que um outro e que tenha a CTPs anotada, como se tivesse função mais graduada. No direito do trabalho não interessa muito qual o nome da função que veio a ser anotada na CTPS do empregado, porque o que prevalece é o contrato-realidade, ou seja, não interessando o mero nome da função então consignada, mas o que o empregado faz na realidade do dia a dia. Se comprovado que o serviço prestado era de igual valor, idêntica a função, apesar de ter CTPS anotada com o nome de outra função, tratando-se de um mesmo empregador e numa mesma localidade, tem o trabalhador prejudicado direito ao recebimento de salário igual, com base no que assegura o art. 461 da CLT.

         Para que o trabalhador possa discutir na Justiça do Trabalho o salário igual ao percebido pelo paradigma que indicar, há que se observar para caracterização da equiparação salarial pretendida, além do trabalho de igual valor, ao mesmo empregador, na mesma localidade, também outros requisitos que são: Igual produtividade e a mesma perfeição técnica entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não seja superior a dois anos.

           A jurisprudência já consolidou o entendimento de que o termo "mesma localidade", significa no mesmo município. Assim, se um trabalhador trabalhar em igualdade de condições que um outro de um outro município, como Pontal, por exemplo, já não tem direito a pleitear equiparação, porque os municípios da prestação dos serviços não é o da mesma localidade. Também o entendimento do que venha a ser "tempo de serviço não superior a dois anos", durante muito tempo entendia-se que um trabalhador que possuísse, por exemplo, dois anos em uma empresa e apesar de fazer trabalho igual a um outro com cinco ou mais anos de empresa, não poderia pleitear direito a salário igual, com base no direito à equiparação salarial. Todavia, a jurisprudência predominante de nossos Tribunais já pacificou o entendimento de que os dois anos a que se refere o § 1º do art. 461 da CLT, não é dois anos na empresa, mas dois anos numa função onde possa estar discutindo o direito à equiparação.

           Assim, é plenamente possível um empregado pleitear na Justiça do Trabalho as diferenças salariais então existentes em decorrência de equiparação salarial com outro empregado que apesar de possuir mais de dois anos de empresa, na mesma função trabalhada com igualdade, não tenha tempo superior a dois anos, como já decidiu o TRT-PR, com a seguinte ementa:

          " EQUIPARAÇÃO SALARIAL. DIFERENÇA DE TEMPO DE SERVIÇO NÃO SUPERIOR A DOIS ANOS. Já pacificou-se o entendimento que, "para efeito de equiparação de salários, em caso de trabalho igual, conta-se o tempo de serviço na função, e não no emprego" (Súmulas 135/TST e 202 do E. STF). Como se faz, no entanto, para contar esses dois anos, se o paradigma completa dois anos de serviço na função e nesse mesmo dia o reclamante inicia a prestação de idêntica atividade? A solução está na Lei 810, de 06/09/49, aplicável ao direito do trabalho por força do parágrafo único do art. 8º da CLT, que no art. 1º "Considera ano o período de doze meses contados do dia do início ao dia e mês correspondentes do ano seguinte". Ora, se o paradigma não detinha tempo de serviço superior a "dois anos exatos" na função tem o obreiro direito à equiparação salarial". (TRT-PR-RO 7.643/95 – Ac. 2ª T 9.264/96 – Rel. Juiz Luiz Eduardo Gunther – DJPr. 10/05/96).

 


Referência  Biográfica

LUIZ SALVADOR, advogado trabalhista no Paraná, diretor para assuntos legislativos da ABRAT, integrante do corpo técnico do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).

defesatrab@uol.com.br

Sociedades limitadas no novo código civil. Alguns pontos insustentáveis ou no mínimo polêmicos.

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* Syllas Tozzini e Renato Berger

 

O novo Código Civil (Lei 10.406/02) possui uma parte dedicada às empresas, na qual se encontra a regulamentação das sociedades em geral e dos tipos societários específicos, inclusive as sociedades limitadas. No presente trabalho serão indicados alguns pontos que consideramos insustentáveis ou no mínimo polêmicos na nova disciplina das sociedades limitadas.

A matéria é de extrema relevância porque no Brasil organizam-se sob a forma de sociedade limitada praticamente todas as empresas de pequeno e médio porte, além de diversas empresas de grande porte, joint ventures e muitas empresas com participação de investidores estrangeiros. Todas serão diretamente afetadas quando o novo Código Civil entrar em vigor no início de 2003.

Causa preocupação o fato de que quase nada foi escrito ou discutido sobre o tema, tanto no âmbito da doutrina jurídica quanto na mídia. Isso porque talvez contava-se com a possibilidade de veto presidencial ao capítulo das limitadas no Código Civil, valendo lembrar que um anteprojeto separado de alteração da lei das limitadas tramitava paralelamente no Congresso. Talvez porque o foco das atenções voltou-se para as matérias tidas como tradicionais do direito civil. Seja qual for o motivo, não há mais como adiar o debate sobre o regime das limitadas no novo Código Civil. Os pontos apresentados a seguir podem ser um bom começo.

Regras aplicáveis nos casos de omissão do capítulo próprio das limitadas

A questão das normas que devem reger as limitadas quando o capítulo próprio do Código Civil for omisso decorre do art. 1.053, assim redigido: "A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples. Parágrafo único: O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima".

A forma de organização do artigo (regras separadas no caput e no parágrafo único) poderia gerar a dúvida de que, mesmo havendo previsão de regência supletiva pela lei das sociedades anônimas, ainda assim valeriam de alguma forma as normas da sociedade simples. Entendemos contudo que tal interpretação seria equivocada. A regra que parecia obrigatória no caput do artigo na verdade não é, posto que imediatamente flexibilizada no parágrafo único com a possibilidade de estipulação diversa no contrato social.

Tanto o caput quanto o parágrafo único do art. 1.053 dispõem sobre exatamente a mesma matéria, não podendo conviver as duas regras em uma única sociedade. O que existe é apenas uma diferença na forma de redação dos dispositivos. O caput utiliza a linguagem das omissões no capítulo das limitadas, enquanto que o parágrafo único menciona diretamente a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima. Nos dois casos, entretanto, trata-se de quais serão as normas supletivas aplicáveis nas hipóteses de omissão das normas principais. Assim, parece-nos que a escolha das normas da sociedade anônima para suprir as omissões do capítulo das limitadas afasta inteiramente a aplicação das normas da sociedade simples.

A forma de organização do artigo e sua redação podem ter uma explicação histórica. O texto original do projeto de alteração do Código Civil, elaborado na década de 70, não tinha o parágrafo único. Portanto, existia apenas a regra estipulando a aplicação das normas da sociedade simples em caso de omissão. O parágrafo único foi incluído posteriormente exatamente para oferecer a opção de escolha pelas normas da sociedade anônima, o que reforça nossos argumentos aqui apresentados.

A definição desse posicionamento é fundamental. Inicialmente porque parece bem mais adequado que as omissões nas limitadas sejam supridas pela lei das sociedades anônimas do que pelo capítulo das sociedades simples. As sociedades limitadas possuem muito mais pontos de afinidade com as sociedade anônimas do que com as sociedades simples. Vários institutos e estruturas aparecem igualmente nas limitadas e nas anônimas, como por exemplo assembléia de sócios e conselho fiscal, inclusive com regras similares. Somente o fato de que a responsabilidade dos sócios nas sociedades simples é ilimitada, enquanto que nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas tal responsabilidade é limitada, já torna nítida a diversidade dos regimes jurídicos.

Além dos motivos citados no parágrafo anterior, várias situações não seriam razoáveis do ponto de vista societário caso fossem aplicadas as normas da sociedade simples às sociedades limitadas. Se não fosse possível escolher contratualmente a aplicação supletiva das normas da sociedade anônima, podemos imaginar que as empresas que normalmente utilizariam a forma de sociedade limitada passariam a adotar a forma de sociedade anônima só para evitar o regime supletivo da sociedade simples.

Possibilidade de pessoa jurídica atuar como administrador em sociedade limitada

O art. 1.060 do novo Código Civil aponta que a administração da sociedade limitada compete a uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato separado. Neste artigo não é feita qualquer especificação quanto à necessidade do administrador ser pessoa física. A regra é diferente por exemplo daquela encontrada no art. 997, que dispõe expressamente sobre a indicação das pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade simples.

É certo que ao regular a investidura de administradores designados em ato separado, o art. 1.062 exige a qualificação de seu estado civil, residência e outros elementos que indicam tratar-se de pessoa física. Isso não impediria, em tese, que uma pessoa jurídica fosse nomeada para administrar a sociedade no próprio contrato social. Todos os atos de gestão que dependessem do administrador pessoa jurídica seriam conduzidos de acordo com o critério de representação do administrador (nos termos de seu estatuto ou contrato social), valendo a assinatura dos seus representantes como em qualquer ato onde a pessoa jurídica obriga-se validamente.

Apesar de aparentemente não haver impedimento legal, a questão da administração ser exercida por pessoas jurídicas gera diversas controvérsias. A primeira reação da maioria dos envolvidos com esses assuntos provavelmente seria afirmar sua impossibilidade. Do ponto de vista prático, mais relevante ainda será o posicionamento adotado pelas Juntas Comerciais, que permitirão ou não o registro de contrato social com designação de administrador pessoa jurídica. A publicação do novo Código Civil é um bom momento para ser retomado esse debate, que andou um pouco esquecido porque todos se acostumaram com o regime anterior onde a pessoa jurídica sempre delegava seus poderes de administração a uma pessoa física.

Responsabilidade ilimitada após exclusão de sócio não pode valer para limitadas

Ao tratar da exclusão de sócio minoritário em sociedade limitada, o novo Código Civil menciona no art. 1.086 que também deverá ser observado o disposto em seu art. 1.032. Ocorre que a aplicação do art. 1.032 significaria uma ruptura direta com os princípios básicos que regem as sociedades limitadas.

No art. 1.032 é contemplada a responsabilidade pessoal do sócio excluído pelas obrigações sociais anteriores, que subsistiria até 2 anos após a exclusão ou, ainda, pelas obrigações sociais posteriores caso não seja averbada a resolução parcial da sociedade referente à exclusão do sócio.

Ora, os sócios de uma limitada somente são responsáveis pela integralização do capital da sociedade, tal como previsto no art. 1.052. Exceto em circunstâncias excepcionais onde se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os sócios, como regra, não respondem pelas obrigações da sociedade. Seria absurdo imaginar que o sócio de uma limitada passasse a responder pelas obrigações sociais quando fosse excluído da sociedade.

A título de esclarecimento, o art. 1.032 faz parte do capítulo da sociedade simples, sendo que sua suposta aplicação às limitadas decorreria da referência feita no art. 1.086, este sim integrante do capítulo das sociedades limitadas. O artigo somente faz sentido nas sociedades simples porque nelas a responsabilidade dos sócios é ilimitada. Como visto acima, mais uma vez mostra-se incompatível o regime jurídico desses dois tipos societários.

Não há como explicar que exista dispositivo na lei dispondo sobre a responsabilidade do sócio excluído pelas dívidas de uma sociedade limitada. Tal dispositivo não pode ser conciliado com o art. 1.052, que repete a já consagrada regra de responsabilidade limitada dos sócios. Diante desse conflito, entendemos que para as sociedades limitadas não pode prevalecer o disposto no art. 1.032.

Responsabilidade por passivo descoberto também não pode valer para limitadas

Assim como no item anterior, entendemos que também não pode prevalecer com relação às sociedades limitadas o disposto no art. 1.103, inciso V. O dispositivo aparece na seção que regula a liquidação das sociedades, constituindo em princípio matéria de aplicação genérica para qualquer tipo societário.

Novamente o problema se refere ao princípio básico de limitação da responsabilidade dos sócios. Nos termos do artigo comentado, o liquidante da sociedade deveria exigir não só a integralização do capital, mas também outras quantias necessárias para cobrir eventual insuficiência do ativo frente ao passivo.

A exigência de quantias adicionais eqüivale a estender a responsabilidade dos sócios além dos limites do art. 1.052, que conforme indicado acima apresenta a regra fundamental de que os sócios de sociedade limitada não respondem pessoalmente pelas dívidas sociais.

É realmente difícil entender como questões como essa não foram objeto de maior cuidado, passando desapercebidas no processo legislativo e sendo ignoradas na hora de possíveis vetos presidenciais. Uma coisa porém é certa. Cabe ao intérprete da lei identificar para qual tipo societário a regra pode ser aplicada, o que certamente não é o caso das sociedades limitadas. 
 


Referências  Biográficas

SYLLAS TOZZINI, advogado em São Paulo, sócio do escritório Tozzini Freire, Teixeira e Silva Advogados

RENATO BERGER, advogado em São Paulo (SP).

berger@tozzini.com.br

Considerações iniciais

A prorrogação do contrato de locação por tempo determinado também abrange o contrato de fiança?

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* Humberto Fernandes de Moura

1. Da introdução a polêmica

            A polêmica a ser retratada por este artigo reside na possibilidade da prorrogação do contrato de locação se estender ao contrato de fiança (sem a anuência do fiador) que garante a locação, ou seja, a questão é saber quais devem ser os efeitos prorrogação da locação perante no contrato de fiança.

            Com efeito, a ligação entre os contratos ocorrerá na possibilidade prevista pela Lei 8.245/91, em seu art. 39, vejamos: "Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.

2. Da polêmica

            2.1. Prorrogação dos contratos – natureza jurídica

            No Direito Romano, havia a figura da relocatio tacita que Pontes de Miranda colacionando o posicionamnto Windscheid assinalava que era novo contrato, ou seja, uma renovação do contrato de locação. Porém, com o Direito Prussiano, aparece a figura da prolongação tácita, nesta, ao contrário da relocatio, o contrato inicial continuava a ser fonte de direitos e obrigações (1).

            A opção pela nomenclatura, em certos casos, confunde termos renovação e prorrogação, normalmente por imprecisão técnica (2).

            Ao contrário do Direito Romano, no Direito Brasileiro prevalece a idéia da prolongação tácita, ou seja, há a prorrogação e não a renovação do contrato.

            Dessa forma, é necessário mencionar as forma de prorrogação, por isso, é bastante colacionar o entendimento de Pontes de Miranda:

            "A prorrogação pode ser: a) por declaração de vontade em palavras, como se os contraentes assinam contrato de prorrogação, ou há cláusula de prorrogação; b) por declaração de vontade em conduta, como se os contraentes, que alugaram um ao outro as residências, não providenciaram, antes da terminação simultânea ou próxima do contrato, para a mudança dos números dos telefones, nem deram aviso ao correio, nem aos amigos; c) por declaração de vontade mediante silêncio, como se o locatário telegrafa ao locador, que está fora do país, dizendo-lhe que " ficará com a casa, se ele (locador) não a quiser para morar, vindo para o Brasil", e acrescenta "interpretarei o seu silêncio como assentimento" (êsse locatário tem de provar que o locador recebeu o telegrama); d) por declaração de vontade presumida por lei (declaração de vontade a que a lei atribui determinado conteúdo: quero continuar […] ); e) por limitação legislativa à liberdade de contratar, dita, aqui, prorrogação ex lege […]" (3). (sem grifo no original)

            Pontes de Miranda ainda ressalta que:

            "Discute-se se a continuação é fato ou declaração de vontade. A questão é tanto mais delicada quanto a afirmação de não se poder alegar o erro e a de se exigir a capacidade para se celebrar o negócio, leva a argumentos a favor de uma e de outra opinião. Mas é sem razão negar-se que se trata de declaração de vontade, – é atitude do locatário, que se deve tomar por lei, como de determinado conteúdo (dita praesumptio iuris et de iure). O que a lei faz é "assentar", em regra geral a vontade sem ir até o ponto de "presumir", iuris et de iure, que o locatário seja capaz, ou que a atitude satisfaça as outra exigências a que estão subordinadas as declarações de vontade (4)."

            A prorrogação de que trata a Lei do Inquilinato em seus art. 46 §1º está inserida no caso "d", ou seja, há a declaração de vontade presumida em lei, na qual, tacitamente, locador e locatário estabelecem um acordo de vontades, pelo qual, há a presunção iure et de iure da prolongação, no tempo, da relação obrigacional (5).

            Porém, na ocorrência da prorrogação, ou seja, no dia seguinte àquele do fim do prazo previamente estipulado, o locatário deve atender aos requisitos de capacidade inerentes a qualquer negócio jurídico (6).

            Com efeito, para a ocorrência da prorrogação, deverá haver o atendimento de pressupostos positivos e negativos, sendo que, a continuação do uso locativo, sendo-o permanente, ou seja, não de forma ocasional, atende ao pressuposto positivo.

            Contudo o pressuposto negativo, segundo Pontes de Miranda diz respeito à "não declaração contrária da vontade do locador" (7).

            Com efeito, em caso de prorrogação o contrato de locação passa a viger de acordo com o reservado à locações por prazo indeterminado. Ou seja, o que era disposto no contrato original continua vigendo, porém, não no que diz respeito a cláusula prazo, que é essencial ao contrato de locação que, agora, por força da prorrogação, passa a ser por tempo indeterminado.

            2.2.Da extensão do contrato de fiança em caso de prorrogação da locação

            Quando do estudo da prorrogação dos contratos, soube-se que quando da sua ocorrência há a declaração de vontade por parte do locatário e do locador, ou seja, mesmo que tacitamente, as partes do contrato de locação dispõem sobre a continuação ou não do vínculo locatício. A questão é saber qual a influência dessa declaração quanto ao contrato e fiança, visto que, este poderá estar coligado externamente ao contrato de locação, garantindo o adimplemento pelo devedor.

            Pontes de Miranda defende que a continuação da garantia dependerá do que dispôs o contrato, visto que, se houver cláusula que determine a garantia até a entrega das chaves, esta prevalecerá quando da prorrogação do contrato.

            Com efeito, à época da edição do referido livro não havia a atual Lei 8.245/91 que, em seu art. 39, dispõe que: "Salvo disposição contratual em contrário, a garantia estipulada vai até a entrega das chaves."

            Dessa forma, já que a referida cláusula agora vem, de forma subsidiária, disposta em lei, é de se assegurar que o entendimento de Pontes de Miranda seria no sentido de que a garantia persistiria quando da prorrogação do contrato de locação. Este ponto de vista, porém, é o que me disponho a contestar.

            Primeiramente, o entendimento atual referendado pelo Superior Tribunal de Justiça vêm em linha contrária ao entendimento do Grande Mestre, persistindo, porém em grande parte do Judiciário da 2ª instância, máxime o TJDFT.

            O objeto do presente trabalho por sua vez é ressaltar o entendimento diverso do de defende Pontes de Miranda e os que o seguem, fortalecendo o que vem aplicando o STJ e ressaltando algumas outras concepções.

            2.1.1. Da interpretação restritiva do art. 39 da lei 8.245/91

            Como todo contrato benéfico, interpreta-se a fiança restritivamente, não comportando extensão objetiva (de re ad rem), como no caso de ser dada a uma parte da dívida, e pretender-se abranger outra parte, nem extensão subjetiva (de persona ad personam), como na hipótese da dívida ser novada; nem extensão temporal (de tempore ad tempus), pois se for dada por termo certo, não é legítimo que o credor sustente a cobertura de obrigações posteriores ao vencimento dele, nem protrair o compromisso do fiador, ainda que ocorra o vencimento antecipado da obrigação afiançada, em razão da insolvência ou da falência do devedor (8).

            Assim, se a prorrogação do contrato de locação prolongar seus efeitos ao contrato de fiança, haverá a extensão temporal da caução vedada pela interpretação restritiva do art. 39 da Lei 8.245/91, ordenada pelo art. 1493 do Código Civil, no que dispõe: "Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel" (9).

            Dessa forma, em locações por prazo determinado, o mencionado artigo deve ter interpretação segundo a orientação de que a fiança deve ter interpretação restritiva, com isso, limitando-se a garantia ao prazo contratual da locação.

            Realmente, nesse caso, a regra de que o acessório segue o destino do principal deve ter plena eficácia, então, se há prazo disposto para o contrato de locação, este deve ser o prazo do contrato de fiança.

            O entendimento de que o acessório deve seguir o principal quanto ao prazo por este disposto inicialmente prevalece em razão da interpretação restritiva quanto ao contrato de fiança.

            Carlos Maximiliano ressalta que: "Optava-se pela exegese restritiva, quando a fórmula era ampla em excesso, uma linguagem imprecisa fazia compreender no texto mais do que planejaram incluir no mesmo potius dixit quam voluit – disse mais do que pretendeu exprimir (10)"

            Com isso, a garantia ao contrato de locação por prazo determinado deve se limitar ao prazo contratual, a despeito do que dispõe o art. 39 da Lei 8.245/91, que determina a garantia até a entrega das chaves. Pois, a obrigação acessória deve ter como limite o possível valor da obrigação principal, quando em casos de contratos de trato sucessivo, porém, dentro do prazo inicialmente estipulado.

            Dessa forma, busca-se, com essa interpretação, o conteúdo verdadeiro e o alcance ideal para a norma da Lei do Inquilinato quanto a garantia estipulada. Assim, se o Código Civil estipula que a fiança deve ser interpretada restritivamente, ela não pode ter seus efeitos estendidos por prazo superior ao anteriormente contratado no momento da pactuação da locação.

            Como atesta Carlos Maximiliano: "Nas palavras, não está a lei e, sim, o arcabouço que envolve o espírito, o princípio nuclear, todo o conteúdo da norma" (11).

            Não se deve, por outro lado, confundir tal impossibilidade de extensão temporal do contrato de fiança a possibilidade de que haja fianças ilimitadas e limitadas. Ou seja, a diferença está no fato daquela não abranger todos os acessórios da obrigação principal, já esta, não contêm nenhum tipo de restrição.

            Normalmente, a fiança ilimitada está presente nos contratos de locação, abordando todas as dívidas do afiançado (12). Porém, há, nesse caso, a abrangência de todos os acessórios da obrigação, contudo, essa abrangência deve estar restrita ao prazo contratual inicialmente disposto na locação.

            Com efeito, essa interpretação restritiva vem atender ao princípio expresso no código civil em seu artigo 1.090, de que aquele que se obriga gratuitamente deve ser privilegiado pela interpretação estrita do negócio jurídico. Esse entendimento deve prevalecer, quando mais, nos contratos de fiança tão necessários a locação.

            Onerar-lhe, por prazo superior ao inicialmente disposto ao contrato principal, sem a devida anuência do fiador é agir contrariamente a própria natureza da fiança, a qual, beneficia a maior segurança aos negócios jurídicos, pois, garante o adimplemnto pelo devedor, sempre de forma desinteressada.

            Ou seja, se o contrato de locação era, inicialmente, por prazo determinado, deve ser por esse prazo a vigência da fiança, impedindo, pois, que se valha de intenção meramente excessiva da norma da Lei de locações.

            Além do mais, como a fiança é contrato gratuito, normalmente desinteressado, possivelmente ajustado por motivos alheios ao contrato de locação em si, quando da ocorrência da prorrogação do contrato, se buscada novamente a vontade do fiador em continuar afiançando (e.g. se a amizade entre fiador e devedor persistir), esta provavelmente perdurará.

            Não obstante a necessária interpretação restritiva do art. 39 da Lei 8.245/91, que veda a estipulação de fiança por prazo superior ao inicialmente disposto do contrato de locação, é de suma importância atestar que essa declaração de vontade, mesmo que de maneira tácita, entre locador e locatário modificam substancialmente o contrato de locação, o que, sem dúvida, reflete no contrato de fiança.

            Dessa forma, se se entender pela manutenção do contrato de fiança, esta dependerá, necessariamente, da anuência do fiador. Com efeito, por ser a prorrogação espécie de alteração do contrato de locação, visto que, modifica-lhe a cláusula relativa ao prazo, esta alteração do contrato principal atinge em cheio o contrato acessório.

            Afinal, o contrato de fiança assume como sua a cláusula do contrato principal que diz respeito ao prazo determinado.

            A diferença, como se demonstrará, está em que essa alteração do contrato pela continuidade do contrato locatício original, por disposição expressa, se dá de maneira tácita, porém, a alteração do contrato de fiança, em caso de sua prorrogação, deverá ocorrer pela forma escrita, como veremos.

            2.1.3. Da natureza da alteração

            Segundo Pontes de Miranda, a importância da alteração da cláusula contratual será considerada, tendo-se por base a "vontade dos figurantes e a significação econômico- jurídica da alteração (13)".

            Ainda segundo Pontes de Miranda:

            "O problema dos negócios jurídicos que concernem a relações jurídicas já existentes [ o contrato de locação prorrogado] tem de considerar que ou (a) atingem a identidade da relação jurídica, portanto que a extinguem (e.g., distrato e remissão de dívida); ou (b) extinguem a relação jurídica existente e criam outra, ligada (novação), ou não, à anterior; ou (c) alteram a relação jurídica sem a extinguir (= sem lhe apagar a identidade), a) inserindo-se, ou b) não inserindo-se no que antes se estabelecia" (14). [sem grifo no original].

            O mais importante é o que concerne a estipulação da forma dessa alteração (15):"Se ao negócio jurídico se exige determinada forma (e.g., escrita, instrumento público), as alterações (a), (b), (c) somente se podem fazer com o respeito da regra jurídica sobre a forma, no que se fez exigida a forma (16)

            Dessa forma, para ocorrer a continuidade da fiança, não há a mera adjecção (17). Em outras palavras, segundo Pontes de Miranda há a mera adjecção, quando não há alteração substancial do negócio jurídico, ou seja, "é pacto que tira e põe, mas deixa intacto o que estava.".

            Não é o que acontece em caso de prorrogação da locação, pois, a alteração que é decorrente de vontade dos contratantes, modifica o prazo do contrato, ou seja, nesse caso, há a inserção da vontade dos figurantes com a intenção de modificar o prazo do contrato, porém, sem extinguí-lo.

            Há alteração, ou seja, inserção da vontade, por declaração tácita dos contratantes, na medida em que o contrato de locação deixa de ser por prazo determinado para que seja indeterminado.

            Por outro lado, não se concebe a possibilidade de manifestação tácita da vontade de afiançar (18). Ou seja, a fiança, para continuar, precisa da manifestação escrita, expressa de vontade.

            Em outras palavras, o contrato de locação passa a reger pelas disposições atinentes aos contratos por prazo indeterminado, porém, por ser a locação de contrato consensual, essa inserção independe da forma escrita, porém, isso não cabe quanto à análise do contrato de fiança, pois, legalmente, começa a gerar efeitos somente quando pactuado expressamente.

            Ou seja, quando há inserção de vontade no que diz respeito a modificação de novas cláusulas contratuais, estas deverão observar as regras formais atinentes aos contratos, desnecessária no caso da locação, pois, contrato consensual, porém essencial ao caso da fiança que exige a forma escrita.

            Afinal, se a extensão temporal do contrato de locação também prorrogar, de maneira tácita, o contrato de fiança, o fiador será onerado significativamente, pois, sua obrigação transmudará e passará a ser por termo indeterminado, cabendo-lhe a exoneração apenas por meio de sentença judicial.

            Há, portanto, um agravamento da situação do fiador que, antes definindo sua garantia por termo certo, desonerar-se-ia ao fim do prazo contratado. Agora, por efeito dessa pretensa prorrogação, haveria a necessidade de ajuizamento de ação própria. Isto de forma alguma está de acordo com o princípio da boa-fé (item. 1.5.2) que deve reger os contratos, quando mais, em contratos unilaterais que visam garantir o adimplemento pelo devedor principal, como é o caso da fiança.

            Por isso, essa oneração, necessariamente, deve contar com o consentimento do fiador, pois, há a alteração da situação contratual, em cláusula essencial, qual seja, o prazo do contrato de locação, do qual a fiança é acessório.

            Porém, o contrato de fiança nunca permanecerá sem a anuência do fiador, pois, como já fora vislumbrado, a fiança não pode ser prestada de maneira tácita, exigindo, pois, a forma escrita.

            Nota-se, pelo o fora exposto, que em caso de prorrogação do contrato de fiança, esta deve ser consentida pelo fiador, e acima de tudo, há de ser pactuada expressamente.

            Não obstante isso, o próprio Superior Tribunal de Justiça reforça a idéia de que, em havendo qualquer alteração do contrato de locação, pela qual se acresça obrigações ao fiador, esta alteração fará o fiador desonerado da obrigação.

            2.1.2. Da Súmula do Superior Tribunal de Justiça

            Dispõe a Súmula 214 do STJ:"O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu" (19).

            Os precedentes que fizeram eclodir a Súmula 214, alguns deles em anexo, vieram no sentido de evitar que o fiador fosse onerado em sua situação sem a devida anuência, ao ponto de resguardar a atitude benéfica, em princípio, que move a ação do fiador.

            Com isso, com o desenvolvimento da exegese, a referida súmula veio evitar que o fiador seja onerado, sem a sua anuência, quando da prorrogação do contrato de locação. A continuidade da fiança, por extensão da interpretação da Súmula, então, dependerá do efetivo consentimento do fiador.

            Dessa forma, visa evitar o acréscimo de obrigações ao contrato de fiança, deteminando-lhe a eficácia apenas enquanto dure o prazo de locação primeiramente estipulado.

            É evidente que na prorrogação do contrato de locação, há, sem dúvida alguma, aditamento do contrato de locação, pois, via manifestação tácita de locador e locatário, o contrato, antes por tempo indeterminado passa a ser por tempo indeterminado. Esse aditamento, para que surta efeito em relação ao fiador, deve ser por este consentido, ao ponto de que se evite a incidência da retromencionada Súmula 214.

            Em outras palavras, não paira dúvidas de que há acordo de vontades entre locador e locatário para que o contrato de locação original continue a surtir efeitos no mundo jurídico. Porém, este acordo de vontades deve gerar efeitos tão somente no contrato de locação, com efeito, esse acordo adita o contrato principal, modificando-lhe a cláusula relativa ao prazo.

            Aditar é adicionar, por isso, é obvio que há a alteração do contrato de locação com vistas a ocorrência da prolongação da relação locatícia, ou seja, adiciona-se a característica, qual seja, o prazo indeterminado.

            Porém, esse prolongamento somente poderá atingir o contrato de fiança, quando da anuência expressa e por escrito pelo fiador da nova situação – prolongamento da relação locatícia. Tudo isso devido a melhor exegese da Súmula ora colacionada.

            Além do mais, tendo em vista esta orientação está de acordo com a nova jurisprudência daquela Corte Superior.

            Vejamos:

            "LOCAÇÃO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA A DISPOSITIVOS DO CC. AUSÊNCIA DEPREQUESTIONAMENTO. FIANÇA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO SEM ANUÊNCIA DOS FIADORES. IMPOSSIBILIDADE.

            – O recurso especial, fundado na alegação de afronta a preceito de lei federal – CF, art. 105, III, a -, tem como pressuposto de admissibilidade a circunstância de haver a questão jurídica que da norma exsurge sido objeto de debate no julgamento recorrido.

            – Ressente-se deste requisito a hipótese em que não consta do acórdão recorrido qualquer discussão sobre tema de direito federal e, por outro lado, não houve a oportuna oposição de embargos de declaração, adequados para oprequestionamento da matéria.

            – A jurisprudência assentada nesta Corte construiu o pensamento de que, devendo ser o contrato de fiança interpretado restritivamente, não se pode admitir a responsabilização do fiador por encargos locatícios acrescidos ao pactuado originalmente sem a sua anuência, ainda que exista cláusula estendendo sua obrigação até a entrega das chaves.

            Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão provido" (20).[Sem grifo no original)

            Vale atentar para essa parte final do acórdão, a qual ressalta que a prorrogação do contrato de locação gera uma acréscimo obrigacional àquele inicialmente garantido, quando da pactuação originária.

            CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA.

            PRORROGAÇÃO DO CONTRATO SEM ANUÊNCIA DOS FIADORES. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 214/STJ. MULTA CONTRATUAL. REDUÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE.

            – A jurisprudência assentada nesta Corte construiu o pensamento de que, devendo ser o contrato de fiança interpretado restritivamente, não se pode admitir a responsabilização do fiador por encargos locatícios decorrentes de h5h7 contrato de locação prorrogado sem a sua anuência, ainda que exista cláusula estendendo sua obrigação até a entrega das chaves.

            – Consoante iterativos julgados desse Tribunal, as disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor não são aplicáveis ao contrato de locação predial urbana, que se regula por legislação própria – Lei 8.245/91, descabendo, na espécie, a redução da multa contratualmente pactuada de 20% para 2%.

            – Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão, provido" (21).

            EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. LOCAÇÃO. FIANÇA. PRORROGAÇÃO DE CONTRATO SEM A ANUÊNCIA DOS FIADORES. CLÁUSULAS CONTRATUAIS. EXONERAÇÃO. POSSIBILIDADE.

            1. É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o contrato acessório de fiança deve ser interpretado de forma restritiva e benéfica, vale dizer, a responsabilidade do fiador fica delimitada a encargos do pacto locatício originariamente estabelecido.

            2. A prorrogação do contrato sem a anuência dos fiadores não os vincula, sendo irrelevante, acrescente-se, a existência de cláusula de duração da responsabilidade do fiador até a efetiva entrega das chaves, bem como aquela que pretenda afastar a disposição inserta no artigo 1.500 do Código Civil.

            3. Precedentes.

            4. "Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado." (Súmula do STJ, Enunciado nº 168).

            5. Embargos rejeitados" (22).

            Veja que a jurisprudência vai no sentido de acatar integralmente a hipótese retratada na presente monografia, ressalta-se o caráter gratuito da fiança e sem dúvida decisões como essas delimitam corretamente a extensão do contrato acessório em relação ao principal. No caso em análise, a fiança, por certo deve se estender até o fim do prazo inicialmente estipulado. È importante salientar, que mesmo sendo um contrato acessório, a fiança ainda possui certa independência, para reafirmar esse entendimento, deve-se, então, colacionar o que fora assegurado por Serpa Lopes citando H. de Page:

            "A fiança obedece rigorosamente à regra legal de que o acessório segue o principal. Entretanto, como magnificamente ressaltou H. DE PAGE (23) não há uma dependência absoluta, pois nela se observa a presença de uma certa zona de independência, um certo núcleo de autonomia, embora gravitando em torna de uma relação principal. Assim, a fiança pode não coincidir em todos os pontos com a obrigação principal, só encontrando um limite instransponível a essa autonomia: é o de não exceder em onerosidade ou ao valor do contrato principal (24)." [Sem grifo no original]

            Por certo a fiança segue o contrato principal, porém, essa regra deve ter eficácia, tão somente, pelo prazo inicialmente disposto para a obrigação principal. È o que mais uma vez se comprova com o entendimento do STJ, vejamos:

            "RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. CONTRATO PRORROGADO POR TEMPO

            INDETERMINADO. FIANÇA. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. ART. 1500 DO CODIGO CC.

            – A JURISPRUDENCIA DA CORTE VEM SE FIRMANDO NO SENTIDO DE NÃO SE ADMITIR INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA AO CONTRATO DE FIANÇA DE OBRIGAÇÕES RESULTANTES DE ADITAMENTO CONTRATUAL SEM A SUA ANUENCIA OU PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE LOCAÇÃO POR TEMPO INDETERMINADO, AINDA QUE SE CONSIGNE QUE A RESPONSABILIDADE DO FIADOR PERMANEÇA ATE A ENTREGA EFETIVA DAS CHAVES DO IMOVEL.

            – RECURSO CONHECIDO, MAS IMPROVIDO" (25).

            Com efeito, o fiador somente pode se obrigar pelo valor da obrigação contratual ou, no máximo, por aquilo que esta venha a ser (26). Em outras palavras, a fiança poderá abranger todos os acessórios da dívida, porém, essa garantia perdurará pelo prazo inicialmete disposto pelo contrato de locação, pois, de acordo com a melhor exegese do art. 39 da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91). M. I. Carvalho Mendonça ressalta que "A fiança não transcende os limites da obrigação principal, mas abrange todos os acessórios da dívida" (27).

            Ou seja, sem razão Pontes de Miranda em afirmar que o prazo da fiança pode ser superior ao da obrigação principal (28), pois, como ressalta M.I. Carvalho Mendonça: "A regra é que o fiador não pode assumir obrigações mais onerosas do que o afiançado – "nec plus in acessione esse potest in principalli re", mesmo quando obtenha favores que o devedor não obtivera, mesmo tratando-se de fiança solidária (29).

            O mesmo Pontes de Miranda, de forma contraditória, ressalta que: "A ampliação da obrigação afiançada, ou garantida realmente, só é eficaz contra o fiador ou para apanhar a garantia real, se houve consentimento do fiador ou de quem teria de outorgar o direito real de garantia (30).

            No mesmo sentido, ressalta: "A fiança não pode garantir mais do que é o importe da dívida, ou do que ele será. O que é preciso é que não vá além do que o devedor teria de prestar: porque se pudesse ir, o plus estaria na função de objeto de outro negócio jurídico" (31).

            Ou seja, longe de menosprezar o entendimento do Grande Mestre, mas, eveidencia-se a contradição de posicionamentos, pois, quando se fala especificamente do contrato de fiança, o Grande Doutrinador Pontes de Miranda ressalta que a garantia não pode ser ampliada, mas, em outro momento de sua obra defende que seu prazo pode ser a maior do que a obrigação principal. Há sem dúvida uma contradição que deve ser sanada a favor do fiador.

            1.4. Das conclusões finais

            A interpretação restritiva do art. 39 da Lei 8.245/91, pois, o termo "até a entrega das chaves" diz respeito tão somente ao prazo ajustado no contrato de locação, pois, de forma alguma, a obrigação acessória deve superar até mesmo o possível valor da principal;

            Como a prorrogação do contrato é conseqüência do efeito que a lei dirige a manifestação tácita de locador e locatário de que haverá a continuidade da locação, esta persiste, porém, a fiança, por vedação expressa, não pode ser pactuada tacitamente.

            Da mesma forma, por ser a prorrogação da locação modalidade de alteração contratual, visto que, modifica o contrato de prazo determinado para indeterminado, acrescendo, substancialmente, as obrigações do fiador, deste deve ser buscada a vontade em anuir com a prolongação dos efeitos da fiança.

            O acréscimo em obrigações pode ser vislumbrado pela maior dificuldade que enfrentará o fiador em conseguir a sua exoneração, uma vez, que em caso de contrato de prazo determinado, a garantia cessa quando alcançado o termo final. Diferentemente, nos contratos por prazo indeterminado, nos quais, o fiador deverá perseguir judicialmente a declaração de exonerado, consumindo-lhe tempo e dinheiro.

            Da mesma forma, por ser o a prorrogação do contrato de locação alteração substancial do contrato de locação, modificando-lhe o prazo, esta modificação deverá seguir as normas de direito civil quanto a forma. No contrato de locação inexiste obrigação, visto que, consensual, porém, a obrigação da forma escrita persiste para o contrato de fiança. Por isso, a continuidade dos efeitos da fiança quando da prorrogação do contrato de locação, além do próprio consentimento do fiador, este somente gerará obrigações se observar a forma escrita.

            Sabiamente, o Superior Tribunal de Justiça em recentíssima decisão Resp 331593 compartilha de nosso entendimento, veja os comentários colacionados pelo próprio STJ, visto que o acórdão ainda não fora publicado.

            "Fiador de imóvel só responde até o momento de extinção do contrato por tempo determinado

            Quando o contrato de locação é por tempo determinado, a obrigação dos fiadores não pode ser estendida até a entrega das chaves do imóvel. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão unânime, reconheceu que Claudio Bellocchi e sua esposa só respondem pela fiança até a data em que expirou o contrato, e não até a efetiva devolução do imóvel.

            A Valor Corretora de Câmbio, Títulos e Valores Mobiliários alugou da Icasa Indústria Cerâmica Andradense S.A. um imóvel na Avenida Joaquim Floriano, na capital paulista, em 6 de março de 1996, com prazo de 12 meses, a contar do dia 24 do mesmo mês. O casal Bellocchi foi o fiador. Como a Valor, que se encontra em liquidação judicial, deixou de pagar os aluguéis de abril a julho de 1997, além de uma taxa de condomínio, a Icasa ajuizou ação de despejo, simultaneamente à cobrança.

            O casal buscou a Justiça para que fosse declarada a inexistência da obrigação decorrente do contrato de fiança, tendo em vista o término do prazo inicial da locação (que se deu em 23 de março de 1997) e o fato de o contrato prever que a prorrogação da locação dependeria de um novo contrato, o que não ocorreu.
Na primeira instância, o juiz excluiu a Valor da causa, pois não teria legitimidade para responder pela ação e, quanto à fiança, julgou dever ser aplicado o artigo 39 da Lei do Inquilinato (8245/91), que estabelece que qualquer garantia da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel; contudo, determinou a extinção da fiança a partir de agosto de 1997 devido à liquidação da Valor, a inquilina. Os fiadores apelaram e o Segundo Tribunal de Alçada Civilde São Paulo afastou a extinção em relação à Valor, mantendo a decisão quanto à fiança.
Bellocchi e a esposa recorreram, então, ao STJ, argumentando que não mais respondem pela fiança em virtude do término do contrato originário, que foi, sem sua anuência, tacitamente prorrogado por tempo indeterminado, e que, em razão da interpretação restritiva que se deve dar à fiança, não se pode aplicar o artigo 30 da Lei do Inquilinato.
O ministro Fernando Gonçalves, relator do recurso no STJ, deu razão ao casal, pois não pode, em casos em que o contrato original era por tempo limitado, prevalecer esse artigo da lei obrigando os fiadores até a entrega das chaves do imóvel, notadamente quando a prorrogação do contrato se deu tacitamente, sem a expressa concordância. Com esse entendimento, a Turma modificou a decisão da Justiça paulista para fixar que Bellocchi e sua esposa não respondem pela fiança desde 23 de março de 1997, data em que expirou o contrato de locação originário" (32).

            Com isso, buscou-se aclarar os embates em torno da continuidade ou não do contrato de fiança em caso de prorrogação do contrato de locação. Dessa forma, vislumbra-se que o contrato de fiança perdurará apenas e, tão somente, se consentido expressamente pelo fiador. Regra essa, mais condizente com o caráter gratuito da fiança.

 

Notas

            1. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito predial. ob. cit. p. 297.

            2. Ibidem.

            3. Ibidem.

            4. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito predial. ob. cit. p. 298.

            5. Idem. p. 305.

            6. Idem p.312.

            7. Idem. p. 313.

            8. LOPES, Miguel Maria de Serpa Lopes. ob. cit. 472.

            9. Lei 8.245/91. Art. 39.

            10. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18 ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.198

            11. Idem. p. 199

            12. VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. ob. cit. p. 299.

            13. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, vol. 23. São Paulo: Borsoi, 1963. p.68.

            14. Ibidem.

            15. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, vol. 23. ob. cit. p. 69.

            16. Ibidem.

            17. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, vol. 23. ob. cit. p. 69

            18. Idem. p.146

            19. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 214. Brasília: Diário da Justiça, 02/10/1998. p. 250.

            20. Resp 297442/RJ ; Rel: Min. Vicente Leal. Data da decisão 06/09/2001. Órgão julgador – sexta turma. DJ Data:01/10/2001 P:00258

            21. RESP 299154/MG ; RECURSO ESPECIAL (2001/0002638-9) Fonte DJ DATA:15/10/2001 PG:00308 Relator(a) Min. VICENTE LEAL Data da Decisão 25/09/2001 Orgão Julgador T6 – SEXTA TURMA

            22. ERESP 255392/GO ; EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO ESPECIAL (2001/0001534-4) Fonte DJ DATA:17/09/2001 PG:00107 Relator(a) Min. HAMILTON CARVALHIDO Data da Decisão 09/05/2001 Orgão Julgador S3 – TERCEIRA SEÇÃO

            23. Apud LOPES, Miguel Maria de Serpa. ob. cit. p. 463.

            24. LOPES, Miguel Maria de Serpa. ob. cit. p. 463

            25. RESP 108661/SP ; RECURSO ESPECIAL (1996/0059938-6) Fonte DJ DATA:07/04/1997 PG:11149 RDR VOL.:00009 PG:00387 Relator(a) Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106) Data da Decisão 18/02/1997 Orgão Julgador T5 – QUINTA TURMA

            26. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito predial. op. cit. p. 96

            27. MENDONÇA, M.I. Carvalho. Contratos no direito civil brasileiro. Tomo II. 4ª ed. Posta em dia pelo juiz José de Aguair Dias. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1957. p. 418.

            28. Pontes de Miranda. Tratado de direito predial. ob. cit. p. 62

            29. MENDONÇA, M.I. Carvalho. ob. cit. p. 419.

            30. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, vol. 23. ob. cit. p. 68.

            31. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, vol. 44. ob. cit. p. 96.

              32. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. http//:www.stj.gov.br. 05/11/2001. 
 


Referência  Biográfica

HUMBERTO FERNANDES DE MOURA  –   Procurador Federal em exercício

hufer@pop.solar.com.br

Tutela antecipada no despejo por falta de pagamento

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* Alex Sandro Ribeiro

            Tem-se ventilado, em doutrina e julgados esparsos, que também em ação de despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança de aluguéis, tem cabência o deferimento do pedido de antecipação parcial dos efeitos da tutela, determinando-se o despejo compulsório, mormente quando o inquilino cingir-se a contestar o "quantum debeatur", sem se valer da faculdade que lhe confere o artigo 62, inciso II, da Lei n. 8.245/91.

            A questão certamente não é pacífica, conquanto não se veja muitos julgados a respeito. Por sua aparente jovialidade, é que se tem discutido a respeito, não havendo entendimento uníssono.

            De efeito, não se inferindo da contestação qualquer fundamento plausível a improceder o pedido do locador, nem mesmo purga da mora se efetivou, afigura-se que manter o inquilino na posse do imóvel, até que haja decisão definitiva do processo, sem honrar com a necessária contraparcela, redundará em fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Mais que isso, tem-se, inegavelmente, que a objeção do locatário cinge-se apenas a abuso de direito de defesa e manifesto propósito protelatório, porque não purgou a mora e encontra-se há tempos sem efetuar os pagamentos, daí pretender-se apenas continuar na posse do imóvel sem que haja qualquer garantia de recebimento.

            Assim, parecem estar presentes todos os requisitos insculpidos no artigo 273 da Lei Instrumental Civil, de molde a autorizar a antecipação parcial dos efeitos da tutela, para decretar o despejo do inquilino, executando-se provisoriamente a Decisão nos termos do § 3º do artigo 273 em comento. Vejamos, pois, da viabilidade e possibilidade do pleito:

            Insta acentuar que, qualquer que seja a ação objetivando a retomada do imóvel, processar-se-á como despejo. Com as modificações introduzidas pela Lei Inquilinária, as ações de despejo terão o rito ordinário, cabendo-lhes a concessão liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: o descumprimento do mútuo acordo; o disposto no inciso II do art. 47, havendo prova escrita da rescisão do contrato de trabalho ou sendo ela demonstrada em audiência prévia; o término do prazo da locação para temporada, tendo sido proposta a ação de despejo em até trinta dias após o vencimento do contrato; a morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação, de acordo com o referido no inciso I do art. 11, permanecendo no imóvel pessoas não autorizadas por lei; a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário.

            Nesses casos, faculta a lei a possibilidade de se conceder liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel.

            Certamente, estes não são os únicos casos de urgência e extrema necessidade da retomada do imóvel. Casos estão aí, em que o locatário, deveras hipossuficiente, vê no locativo a única fonte de renda e esperança de sobrevivência, própria e não raro de toda a sua família. Desde o momento em que o locatário interrompe os pagamentos, há grandes riscos de perecimento do senhorio. Se, de um lado, o titular do direito e senhor da coisa imóvel, está na iminência do perecimento pela impossibilidade de exercer irrestritamente o seu direito; de outro, há o inquilino usufruindo graciosamente da coisa alheia.

            A situação beira as raias do absurdo, portanto. Apegar-se à letra fria da lei, cerrando os olhos para a realidade da vida, é ignorar que atrás dos nomes das partes rotulados na capa dos autos há pessoas, orgânicas e físicas, que sofrem e se angustiam, clamando diuturnamente pela célere prestação da tutela jurisdicional.

            Como resolver o impasse? Como, através dos instrumentos legais, atentar-se para os fins sociais que a lei se destina e evitar que a pessoa, titular de direito indisputável, venha perecer ante a inércia e a procrastinação da parte ex-adversa? Somente a tutela antecipada afigura-se lenitivo suficiente para esta enfermidade jurídica.

            Relevante instrumento posto à disposição do jurisdicionado, veio a lume a antecipação dos efeitos da tutela, como corolário de uma das principais preocupações dos processualistas e da necessidade da Justiça, qual a celeridade da marcha processual. Justiça tardia equivale à injustiça. Tardando ou prolongando demasiadamente a prestação jurisdicional, inegável que maiores serão os sofrimentos, as angústias e os prejuízos das partes. Inelutável, ainda, o descrédito do Poder Judiciário perante todos que dele se valem ou se valeram objetivando a apreciação da lesão ou da ameaça a direito.

            Sensível a isso e de algum modo visando acelerar o resultado final do processo e a efetivação da tutela jurisdicional, o legislador indígena estabeleceu a nova redação do art. 273 da Lei de ritos. Instituiu a antecipação, total ou parcial, dos efeitos da tutela. Através deste instituto, atendidos os pressupostos estabelecidos pelo dispositivo referido, possibilita-se à parte-autora obter decisão da espécie, o concedendo antecipadamente, inicialmente.

            Anote-se, ademais, há situação em que, para salvaguardar os direitos do autor, que provavelmente tem menos chance de sucumbir na ação, inegável que poderá sacrificar o direito do réu. Diga-se sacrifício apenas tendo-se em mira a situação de, concedida ab initio a tutela e executada em seguida, venha a mesma ao depois ser modifica ou revogada, quando então não se poderá retornar a situação ao seu status quo. A irreversibilidade no caso ora explicitado, tem seu fundamento: salvaguarda dos interesses maiores. (1)

            Citemos-se, apenas exemplificativamente, dois venerandos Arestos, um acolhendo (2) e outro indeferindo (3). Em São Paulo, há o Enunciado 31 do Centro de Estudos e Debates do E. Segundo Tribunal de Alçada Civil vaticinando, in verbis: "É incabível nas ações de despejo, a antecipação da tutela de que trata o art. 273 do Código de Processo Civil, na sua nova redação".

            Na doutrina, confira-se Geraldo B. Simões, em artigo veiculado no Diário Comercial, argumentando que o § 2º, do artigo 64 da Lei Inquilinária dispõe que, ocorrendo o despejo, ainda que reformada a decisão concessiva da liminar, não retorna o inqiuilino ao prédio, tendo que se submeter à reparação dos danos, quer pêra caução quer pelo que demonstrar em ação de indenização.

            De outra banda, pontifica Nagib Slaibi Filho, que: "Plausível, assim, embora não possa o inquilino retornar ao prédio, que, em lide privada, com caução estabelecida, ainda que nas hipóteses que a lei do inquilinato tenha restringido a liminar de despejo, deva o juiz, em decisão fundamentada, atento aos requisitos do aludido art. 273, conceder a antecipação da tutela" (Comentário à Nova Lei do Inquilinato. 9ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996 p. 386).

            Esta conclusão da Corte paulista competente para apreciar e julgar a matéria, às evidências, não é súmula e não espelha de per si a posição prevalente em tal Augusta Casa de Justiça. Ademais, não se tem notícia dos fundamentos que lhe dão arrimo.

            São de uníssona acolhida em nosso ordenamento jurídico, como decorrência e corolário lógico do comando constitucional, as regras o devido processo legal. Como exceção a esse princípio, em determinadas situações, a lei processual admite a concessão de liminares inaudita altera pars. Expressamente, o instituto criado pelo artigo 273, da Lei Processual Civil, não menciona a possibilidade de concessão liminar, antes da citação. Em se cuidando da antecipação da tutela, somente no artigo 461 é que se vislumbra essa possibilidade A antecipação da tutela, antes da citação, será viável somente em casos que, por sua especialidade, exijam do julgador uma tal providência.

            Sabidamente, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional poderá ser deferida pelo Magistrado sempre que presentes os requisitos discriminados em lei. Esta é a dicção do artigo 273 do Código de Processo Civil, quando exige que a parte demonstre, através de prova inequívoca, a verossimilhança da alegação apta a autorizar sua concessão, assim como o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. O mesmo ocorre, no que concerne à obrigação de fazer, ante o que preconiza o artigo 461 do mesmo diploma, ao eleger o requisito da relevância do fundamento da demanda e o fundado receio de ineficácia do provimento final.

            Ainda que possível, em casos excepcionais, o deferimento liminar da tutela antecipada, não se dispensa o preenchimento dos requisitos legais, assim a "prova inequívoca", a "verossimilhança da alegação", o "fundado receio de dano irreparável", o "abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu", ademais da verificação da existência de "perigo de irreversibilidade do provimento antecipado", tudo em despacho fundamentado de modo claro e preciso.

            A prática tem-nos demonstrado que, não rara é a situação quando, versando ação de despejo por falta de pagamento, cumulada ou não com cobrança, devidamente citado o inquilino deixa de se valer da faculdade de purgar a mora e apresenta defesa evidentemente protelatória.

            Fá-lo apenas para permanecer mais tempo no imóvel, sem pagar qualquer contraprestação. Ocupa graciosamente a coisa alheia. Quando ao menos há uma garantia e possibilidade de percepção dos alugueres vencidos, menos mal é a situação do senhorio e credor; pior quando sequer garantia locacional há. Quando então, além de nada receber, ainda ficará o proprietário, ou simplesmente locador, sem receber qualquer numerário e ainda obstado de locar o imóvel, na esperança de perceber do novo inquilino os valores devidos pela locação.

            Em casos que tais, cremos não haja qualquer fundamento jurídico apto a obstar a pretensão antecipatória da tutela.

            Isso porque, haverá prova documental do vínculo locacional e situação que inelutavelmente se assemelha à verdade (não se mostra irrazoável ponderar que a pretensão do inquilino é meramente procrastinatória: a prática demonstra isso). Acresça-se ainda que, permanecendo o inquilino no imóvel, sem qualquer garantia da locação e sem que haja o necessário pagamento do aluguel, até que haja decisão definitiva, imensuráveis e irreparáveis se tornarão os prejuízos do Autor, cuja Sentença certamente o favorecerá mas não retornará a situação jurídica inteiramente ao status quo (faltará a recomposição do patrimônio lesado do autor).

            E mais. Não se mostra plausível discutir se há ou não abuso de direito de defesa do inquilino ou manifesto intento protelatório que, ao ser citado, apresenta defesa com argumentos que sequer de longe serviriam para refutar o direito ostentado pelo locador e nem mesmo emenda a mora. Certamente, abusa do constitucional direito à ampla defesa. O princípio constitucional é norma diretiva, não se presta para albergar toda e qualquer situação; não está aí para dar guarida a pretensões atentatórias à dignidade da Justiça e ao direito claramente ostentado pela parte.

            Por tudo isso, não parece haver a menor óbice.

            Mas há mais. Não obstante o já exposto, resta observar a verificação da existência de "perigo de irreversibilidade do provimento antecipado", provavelmente o único empecilho à tese ora esposada.

            A corrente negativista observa que, no despejo, as conseqüências de fato da compulsória desocupação do imóvel são imutáveis, embora indenizáveis os danos que o locatário vier a sofrer, caso o locador resulte vencido na demanda. De certo modo, ela reconhece a sua fragilidade, ao observar que eventuais danos causados ao inquilino serão integralmente suportados pelo locador. Contudo, a possibilidade de reparação pecuniária não se apresenta suficiente à tutela, porque a lei não cogitou de indenização, mas de reversão.

            Se declarado o despejo initio litis, tal poderá ser executado provisoriamente, observando ao disposto nos incisos II e III do artigo 588 do Código de Processo Civil, i. é., far-se-á do mesmo modo que a definitiva, porém não abrangendo os atos que importem alienação do domínio, nem permite, sem caução idônea, o levantamento de depósito em dinheiro; e, fica sem efeito, sobrevindo sentença que modifique ou anule a que foi objeto da execução, restituindo-se as coisas no estado anterior, sendo que, aqui, se a sentença provisoriamente executada for modificada ou anulada apenas em parte, somente nessa parte ficará sem efeito a execução.

            Como alternativa, ainda, pode-se ladear a solução dada à sentença que decretar o despejo. Fixará, ela, o valor da caução para o caso de ser executada provisoriamente, não inferior a doze e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução. A Nova Lei do Inquilinato autoriza a execução provisória da sentença que julga procedente ação de despejo por falta de pagamento, desde que, oferecida caução pelo locador, a quem é assegurado dar em garantia o próprio imóvel retomado, ex vi do disposto nos artigos 63 e 64 da Lei Inquilinária.

            A execução provisória da sentença prolatada em ação de despejo por falta de pagamento, por força do disposto nos artigos 9º, III, 63, § 4º e 64 da Lei 8.245/91, deve ser antecedida da necessária caução, pena de violação à expressa previsão desta norma legal, salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9°. Sobrevindo a reforma da sentença ou da decisão que concedeu liminarmente o despejo, o valor da caução reverterá em favor do réu, como indenização mínima das perdas e danos, podendo este reclamar, em ação própria, a diferença pelo que a exceder.

            Logo, a teor do art. 64, § 2º da Lei 8.245/91, reformada a sentença que decreta o despejo, aproveita ao locatário o direito de levantar a caução, a título de indenização pela indevida desocupação do imóvel. Que se faça o mesmo, em caso de execução da tutela antecipada, acaso ulteriormente modificada a decisão inicial; mas, nunca, se objetem a antecipação dos efeitos da tutela para deferir o decreto expulsório no começo do procedimento ordinário da ação de despejo por falta de pagamento.

            Como se vê, nem mesmo interpretação rigorosa dos dispositivos processuais mostra-se bastante a ensejar impossibilidade do deferimento da tutela em comento. Executando provisoriamente a decisão, não se objetivará transferência de domínio, antes apenas a imissão na posse direta da coisa locada; também, às claras, não se pretenderá levantamento de quantia depositada. Quanto à modificação ulterior da Sentença, ou até mesmo da decisão interlocutória que deferiu a tutela antecipada (Como se sabe, a tutela antecipada tem caráter eminentemente provisório, posto que pode ser modificada a qualquer tempo. Nesse sentido: Elza Spanó Teixeira in Código de processo civil – comentários e jurisprudência. São Paulo: LTr, 1998, p. 123), cremos não haja muita possibilidade de acontecer, pois se houvesse então não estariam preenchidos os requisitos necessários à concessão da tutela.

            Por cautela, prudência e razoabilidade, que também são corolário da Justiça, nada impede exija o Magistrado caução idônea, tal como ocorre no § 4º, do artigo 63, da Lei n. 8.245/91. Com isso, confirmar-se-ão ainda mais as possibilidades de deferimento da antecipação parcial dos efeitos da tutela.

            Para a total viabilidade da concessão da tutela antecipada, portanto, basta seja dada caução pelo locador, que até pode ser diversa de dinheiro, como a própria coisa objeto da locação, que ficará em hipoteca judiciária, dês que provado o domínio do locador sobre ela.

 

Notas

            1. como exemplo, citemos o caso do paciente que demande o seu plano de saúde para cobrir despesa de operação emergencial do coração, cuja necessidade é atual e se não o fizer o falecimento é certo. Negou-se o convênio ao pagamento, fundado em contrato que claramente, por expressa opção do autor, não cobriria tal despesa. Em sede de antecipação da tutela, o juiz determina a realização da cirurgia às expensas do plano de saúde. No final, improcede a ação e a tutela concedida, certamente é irreparável. Mas a irreversibilidade pautou-se no sacrifício de um bem menor (dinheiro do convênio) em face de um bem maior (vida do conveniado).

            2. RJTAMG 64/77

              3. Agravo de Instrumento 1970/98, Reg. 22/09/98, fls. 20453/20460, v. u.; Des. Mauro Nogueira, j. 30/06/98. Partes: Luzes Shop Magazine Ltda. – Combracenter Shopping Centers S/A.


Referência  Biográfica

ALEX SANDRO RIBEIRO, advogado em São Paulo (SP). 

alexsribeiro@hotmail.com