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DANOS MATERIAIS: Desvio de dinheiro gera indenização

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DECISÃO:  * TJ-MG  –   A 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou um assistente financeiro a ressarcir a uma empresa de consultoria, na qual trabalhou por 2 anos, por ter desviado dinheiro em benefício próprio. O funcionário terá que restituir a empregadora a quantia de R$11.430, a título de danos materiais.

Segundo os autos, o assistente administrativo e financeiro era funcionário de confiança da empresa de consultoria e para o cumprimento de suas funções tinha acesso à senha bancária da empresa e, via internet, dentro de suas atribuições, pagava contas da firma e do sócio majoritário.

Ele trabalhou na empresa entre 29 de janeiro de 2002 a 3 de outubro de 2003, quando pediu demissão. Após seu pedido de demissão ter sido aceito, descobriu-se que o mesmo fez várias transações on line, através de um banco, do qual a empresa era cliente, desviou dinheiro para sua conta corrente e pagamentos de despesas pessoais, sem autorização da empregadora.

Conforme depoimento de uma ex-funcionária da empresa, ficou claro que o assistente financeiro detinha a senha de acesso ao banco, não precisando de autorização de qualquer espécie para efetuar as transações bancárias.

Configurada a conduta ilícita, o relator do recurso, desembargador Tarcísio Martins Costa, condenou o empregado a ressarcir à empresa a quantia de R$11.430.

A empresa de consultoria pediu indenização por dano moral, porém não demonstrou que a prática ilícita teria, de alguma forma, lesionado sua imagem e conceito empresarial, como entendeu o magistrado.

O relator negou o pedido de dano moral por considerar que “ainda que se reconheça que o funcionário tenha desviado quantia da empresa para sua conta pessoal, alterando a destinação dada aos valores retirados para pagamento de contas da empresa, não havendo ofensa ao bom nome ou reputação da mesma, não há dano moral a ser reparado, já que este consiste em lesão a um interesse que visa a satisfação de um bem imaterial, contido nos direitos à personalidade ou nos atributos da pessoa, física ou jurídica”.

Os desembargadores José Antônio Braga e Generoso Lima acompanharam o voto do relator.

FONTE:  TJ-MG, 19 de novembro de 2007.

A pretensa arrogância dos juízes

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*Luiz Guilherme Marques

O Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) divulgou, em 17/11/2007, um texto da jornalista ALINE PINHEIRO intitulado Deusa da corte – O juiz é superior a qualquer ser material, diz juíza.

Em determinado ponto da reportagem é transcrito um trecho da sentença da juíza:

"A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material. A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia.

Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores.

Nenhuma coerção de fora pode alcançar sua interioridade com bastante força para violar esse reduto íntimo e inviolável que reside dentro dele.

Destarte, com a liberdade e a proporcional responsabilidade que é conferida ao Magistrado pelo Direito posto, passa esse Juízo a fundamentar o seu julgado."

Em face da conotação pejorativa do artigo e de comentários ridicularizadores de muitos leitores do Consultor Jurídico, penso ser conveniente fazer algumas ponderações.

Como se verifica pelo final da própria sentença, foi dada em audiência. Quem milita diariamente no foro sabe que as sentenças dadas em audiência nem sempre são primores de perfeição, para não se dizer o contrário, devido a uma série de fatores…

Não há como saber se quem digitou a sentença foi fiel ao ditado da juíza. Caso tenha ela ditado exatamente as palavras que aparecem na sentença, não se sabe se sua intenção era realmente colocar-se acima das demais pessoas em todos os sentidos ou apenas na especialidade da sua profissão de julgadora ou até se as palavras foram empregadas com toda a propriedade…

Essencialmente, somos todos iguais, não havendo ninguém formado de material superior aos demais. Mas, considerada cada pessoa dentro da sua especialidade profissional, cada um de nós é mais capacitado dentro daquela profissão do que as pessoas leigas.

Assim, um atleta profissional de futebol é melhor na sua profissão do que a massa enorme de praticantes amadores daquele esporte, sem sombra de dúvida. O agricultor sabe das atividades do campo muito mais do que qualquer um de nós que exercemos afazeres citadinos. E assim por diante.

Cada um, dentro da sua especialidade, é importantíssimo, respeitabilíssimo, valiosíssimo para o meio social. Assim também o juiz, dentro do seu trabalho de julgar.

O que não é justo é querer utilizar-se as expressões da sentença como pretexto para execração da magistrada e, indiretamente, enxovalhamento de todo o Judiciário.

É útil analisar-se a atuação dos servidores públicos (dentre os quais os membros do Judiciário, Executivo e Legislativo), mas sempre dentro dos limites do bom senso, para não se transformar em ridicularia e ofensas chulas.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

*Luiz Guilherme Marques:  Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG).

Site: www.artnet.com.br/~lgm

Liberdade e Autonomia

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Atahualpa Fernandez ÓÆ e Athus Fernandez[1]  

O choque entre liberdade e outros valores humanos “consensuados” tem levado a alguns dos mais recentes conflitos entre os membros de nossa espécie. O que deve ser preferível quando dois ou mais valores de nosso mundo ilustrado terminam por chocar? O direito próprio a fazer e dizer o que eu queira ou do próximo a que se respeitem suas crenças e desejos? Primar a liberdade pode conduzir a situações de conflito generalizado, inclusive mais além do que possa levantar o problema em si mesmo, porque resulta muito fácil explorar da forma mais demagógica os sentimentos de agravo daqueles que se vêem agredidos e/ou ofendidos. Isso sucedeu com os desenhos, que caricaturavam ao Islã , mas de maneira muito menos sangrenta que a que se utilizou em alguns países árabes para poder chamar à guerra santa contra os agressores da religiosidade mussulmana.

Restringir a  liberdade é um caminho direto para evitar tais problemas. Mas o remédio é ainda pior que a doença. Se as azas da sociedade livre se recortam, é o próprio sentido de nossa civilização que se fragiliza. Por outro lado, a ausência de restrições levaria seguramente a uma intolerável (para não dizer inviável) forma de convivência social. A conclusão mais imediata é bastante óbvia, e assim tem sido para muitos desde há muito tempo: não existe propriamente liberdade sem, por exemplo, igualdade, nem igualdade sem liberdade. E parece ser igualmente importante ter presente que isto é válido não somente como postulado abstrato, como objetivo ideal e/ou final, senão também em cada um dos momentos ou etapas de um longo percurso histórico : concreto e real no sentido da conquista efetiva de todos os valores e virtudes   ilustradas. Se é tanto mais livre na medida em que se é igual – e viceversa -, em uma comunidade fraterna e solidária.

O problema, portanto, parece estar em definir o sentido, as dimensões, o alcance e os limites desse valor tão apreciado: a liberdade. É o que trateremos de fazer a seguir. 

 A liberdade como pressuposto do atuar moral do homem 

O problema da liberdade pode ser analisado de duas formas: como um problema metafísico (contemplar a liberdade como algo interior à pessoa humana) e como um problema social (acentuar a liberdade exterior da pessoa). Estas duas formas de analisar o problema da liberdade se correspondem com a distinção feita por Isaiah Berlin entre a liberdade de  aquilo que exerce qualquer tipo de coação, e a liberdade para seguir os objetivos que se desejam, e esta distinção há levado a famosa distinção entre liberdade negativa (libertad de…) e liberdade positiva (libertad para…).

Os partidários da liberdade negativa a concebem em termos de ausência de coerção e é livre, neste sentido, quem atúa sem que seja obstaculizada ou impedida sua atuação pelos demais, mas sem que esta noção de liberdade imponha uma maneira concreta de atuar. Os partidários da liberdade  positiva a concebem mais bem como uma autonomia do indivíduo, dono de si mesmo, mas consciente também dos deveres de racionalidade e moralidade que lhe impõe esta autonomia. Em todo caso, ambas as concepções se referem ao âmbito do político-social,  quer dizer, à liberdade exterior. Voltaremos de imediato sobre este ponto.

Pois bem, ao falar da liberdade humana podemos distinguir três tipos básicos da mesma:

1.                 Liberdade sociológica: é o sentido originário de liberdade; se refere, na antigüidade grega e romana, a que o indivíduo não se acha na condição de escravo, enquanto que, na atualidade, alude à autonomia de que goza o indivíduo frente à sociedade, e se refere à libertade política ou civil, garantida pelos direitos e liberdades que amparam ao cidadão nas sociedades democráticas. 

2.                 Liberdade psicológica: é a capacidade que possui o indivíduo, "dono de si mesmo", de não sentir-se obrigado a atuar a instâncias de uma motivação mais forte. 

3.                 Liberdade moral: é a capacidade do homem de decidir-se a atuar de acordo com a razão sem deixar-se dominar pelos impulsos e as inclinações espontâneas da sensibilidade. 

Afirmar que o homem é livre significa em primeiro lugar que há nele um princípio ou capacidade fundamental de tomar em suas mãos seu próprio obrar, de forma que este possa chamar-se verdaderamente "seu", "meu". Este princípio de liberdade inerente a todo homem era o que os antigos chamavam "liberum arbitrium", que significa a liberdade de eleição. Esta liberdade indica que a pessoa, ainda que siga ligada e submetida ao mundo, não está totalmente determinada pelas forças deterministas da natureza, nem completamente submetida à tirania de um Estado, da sociedade ou dos demais, senão que co-determina essencial e concretamente seu próprio obrar.

 Positivamente esta liberdade indica la capacidade de obrar sabendo o que se faz e por que se faz. Neste sentido a liberdade é o estado do homem que, tanto se obra bem como se obra mal, se decide após uma reflexão, com conhecimento de causa; é o homem que sabe o que quer e por que o quer, e que não obra mais que em conformidade com as razões que aprova.

Outra forma de entender a liberdade é concebê-la como autopossessão. Neste caso, refere-se àquele estado do homem que em grande medida se liberou das alienações e determinismos em seu próprio obrar, de modo que seu obrar pode chamar-se verdadeiramente livre. Positivamente se considera livre o indivíduo que possui a si mesmo e determina por si as linhas de sua própria existência, sob o único peso de suas opções pessoais e meditadas. É difícil afirmar que a liberdade como autopossessão está alguma vez realizada por completo. O desenvolvimento da liberdade é descontínuo e nunca é uma possessão definitiva e acabada: existe somente em virtude de uma conquista comprometida e incômoda. 

Liberdade humana e a moral 

O comportamento moral somente é do homem, enquanto que sobre sua própria natureza cria uma "segunda natureza" da qual forma parte sua atividade moral. O homem não pode desenvolver sua vida de modo espontâneo através dos traços instintivos estabelecidos de antemão pela espécie. Por que o homem há de criar-se, mediante atos e hábitos, uma segunda natureza, a natureza moral? Simplesmente porque a atividade moral lhe vem exigida ao homem por sua própria e peculiar estrutura bio-psicológica.

Nos animais se dá sempre um ajustamento perfeito ao meio ambiente, pois sua resposta a uma determinada situação estimulante é unívoca e em princípio perfeitamente ajustada, dado que se limita a repetir uma forma de comportamento que se lhe transmitiu por herança da espécie. Em consequência, o animal carece de liberdade, de iniciativa e de história. O animal realiza sua vida em ajuste aos ditados da espécie, sem possibilidade de equivocar-se, sem o dramatismo da inseguridade de não acertar na eleição tomada, porque, simplesmente, não pode eleger. Portanto, o animal é a-moral, não é capaz de uma vida ética.

O homem, em câmbio, está caracterizado pela contigência e o desamparo, pois não possui instintos seguros; se encontra arrojado ou instalado em um entorno que ele mesmo há de transformar e adaptar às suas necessidades e desejos; mas esta adaptação ao entorno se realiza através de uma rede de vínculos e interações.

O homem se encontra necessariamente aberto à realidade do entorno, que se lhe apresenta como mundo ou campo de possibilidades; mas o ajustamento ao mesmo não lhe é dado pelo simples funcionamento de seu mecanismo instintivo: o próprio homem é quem há de criar, ao longo de sua vida, os diversos âmbitos de interação (as respostas) com a situação que lhe convida à atividade criadora.

Em definitivo, no homem, dada a complicação e constituição ontogenética de seu organismo (nomeadamente de sua estrutura e funcionamento cognitivo), o ajustamento das respostas à determinadas situações estimulantes não se realiza em todos os casos por si mesmo e, por conseguinte, o organismo humano fica em suspenso e o homem livre deles. Estas estruturas bio-psíquicas exigem a aparição da inteligência no homem, já que, para subsistir inclusive biologicamente, necessita "fazer-se cargo" da situação, haver-se com as coisas do mundo e consigo mesmo, como "realidade" e não meramente como estímulos.

O homem é constitutivamente um ser moral : não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de uma vida essencialmente sócio-cultural.. E esse fato tem lugar com o momento do surgimento do homem como ser racional, histórico e social. A partir de seu agrupamento nas coletividades primitivas ou pré-históricas, e do nascimento de sua autoconsciência inicial, o homem começa a comportar-se de acordo com as regras que regem la coletividade.

Não se pode falar de "fato moral" senão a partir do momento em que o homem tem experiência de sua própria capacidade de decidir, de forma autônoma, o significado e a direção de seu “ir-se fazendo” a si mesmo moralmente na vida. Daí que sua autoexperiência moral se lhe apresente ligada à liberdade pessoal  e o valor moral; não existe liberdade sem referência aos valores; não se pode falar de valores sem o pressuposto da liberdade.

A vida moral tem como objetivo a construção e constituição da pessoas, sua liberação progressiva e indefinida. Através da vida moral, o indivíduo realiza uma série de rupturas com os condicionamentos , as restrições e as solicitações tanto exteriores como interiores (liberdade-de) e a autorealização de si mesmo em conformidade com o projeto de sua vocação pessoal (liberdade-para). Voltaremos a isso mais adiante.

              A primeira saída, a que está ao alcance de todos os homens, é ajustar o comportamento às normas ou regras do grupo social a que pertence, seguir as regras do jogo de ser e conducir-se como homem em sociedade. O refúgio na segurança das normas é algo que o homem faz espontâneamente, demonstrando uma forte predisposição para seguir regras: as pessoas querem obedecer a regras e querem que as outras também o façam; elas sentem culpa quando deixam de fazê-lo e raiva quando isto ocorre com os demais. Talvez por essa razão se lhe há definido como “o animal que segue regras”. As regras morais são básicas no sentido de que estão vinculadas com a manutenção da ajuda mútua, a verdade, a cooperação, o altruísmo, a justiça nas relações humanas, etc. As regras morais próprias constituem o padrão com que avaliamos os comportamentos, a liberdade e as consequências de qualquer atividade humana.

E porque somos o resultado de um complicado processo que combina os programas ontogenéticos cognitivos do organismo com uma enorme quantidade de estímulos procedentes de um entorno essencialmente ético-social, ou seja, do ambiente sócio-cultural em que movemos nossa existência no tempo e no espaço, disso se segue que: 

  1. o mundo histórico-cultural e a sociedade nos fazem; e isto desde um aspecto positivo: nos brindam um grande leque de possibilidades reais para poder fazer nossas pré-ferências, e também um aspecto negativo: nos impedem ou cerceiam outras possibilidades; e 
  1.  ainda que é certo que todo homem tem aptidão e possibilidades para conduzir uma vida moral, não cabe dúvida que o conteúdo real da autocriação moral de sua própria personalidade tem que ser construído livremente por cada homem a partir de uma grande desigualdade de oportunidades. 

A liberdade e as libertades 

Note-se que a liberdade deve diferenciar-se das libertades. A idéia de liberdade remete a um direito moral, que possuem individualmente todos os indivíduos, de não ser coagidos em sua ação. As liberdades são os direitos de fazer X ou Y ou Z, donde X, Y e Z são classes de ações, não ações concretas: liberdade de expressão, de associação, de presunção de inocência, etc. O grande argumento tradicional a favor da liberdade é a existência da responsabilidade moral, pela mesma razão que "dever" implica "poder" (Kant). Todo mundo está de acordo em que somente se o homem é livre é também moralmente responsável de seus atos. Às vezes, contudo, se conclui a partir daqui que, posto que o homem não seja livre, tampouco é moralmente responsável.

Essa, aliás, parece ser o fundamento e a razão pela qual a  sociedade mantém que um indivíduo é responsável de certas ações mas não de outras. O alcance de nossas responsabilidades está definido pelo alcance de nossa liberdade, isto é, pelo alcance de nosso controle volitivo. O fato de que um bêbado vomite em público será castigado, mas vomitar após um golpe de calor intenso será excusável. Um acidente de tráfego devido a uma velocidade excessiva será castigado, mas um acidente causado por um ataque cardíaco de um condutor será excusado. As expressões sujas lançadas em público com raiva serão castigadas, mas as mesmas obscenidades pronunciadas involuntariamente por um indivíduo com dano cerebral poderiam excusar-se. O dano corporal infringido em um assalto será castigado, mas o dano corporal infringido por um indivíduo em crise que ataca a uma criança será excusado. (Goldberg).

A sociedade traça uma distinção legal e moral entre as consequências de ações que se presumem sob o livre controle volitivo do indivíduo e as que se pressupõe fora de dito controle[2]. Normalmente se supõe que a embriaguez, velocidade e agressão estão sob o controle volitivo e por conseguinte são evitáveis e puníveis. Pelo contrário, se reconhece que os efeitos das crises, tics, alucinações e ataques ao coração, por exemplo, não podem ser controlados pelo indivíduo no momento em que sucedem e, portanto, não serão puníveis pela lei.

Por outro lado, a liberdade ou o controle volitivo implica mais que o conhecimento consciente. Implica a capacidade de antecipar as consequências de uma ação própria, a capacidade de decidir se deveria ou não levar-se a cabo a ação e a capacidade de eleger entre ação e inação. Um indivíduo com um tipo específico de dano cerebral e uma desgraçada vítima de uma ataque ao coração podem ser completamente conscientes do que lhes está sucedendo, mas não podem controlá-lo (e parece ser que em um nível cognitivo a capacidade de comportamento volitivo livre depende da integridade funcional dos lobos frontais do cérebro, proclamados como a sede definitiva da moralidade: a capacidade de contenção depende em particular do córtex orbitofrontal – Goldberg)[3].

Trata-se, na realidade, de uma tese determinista típica; sem embargo, supondo que o determinismo fosse verdadeiro, parece que pouca gente, ou ninguém, defenderia o argumento por uma anulação universal da responsabilidade moral (e jurídica). Isto mostra que responsabilidade moral e liberdade pertencem a distintas ordens de coisas , muito embora devam ser concebidas em conjunto: a primeira é uma questão moral e apela à natureza humana propriamente dita (se o homem é ou não é livre; isto é, se exerce ou não o controle volitivo de suas ações) e aos vínculos sociais relacionais[4] que regem entre humanos, e a segunda, por ser um conceito público construído socialmente, é uma questão que somente existe dentro de um grupo e não no contexto de um indivíduo: é um valor moral que exigimos às pessoas de nosso entorno e que existe somente ali donde há mais de um indivíduo que se regem por regras comuns de convivência ético-social.    

A raiz da liberdade pessoal 

A liberdade se manifesta e se realiza no atuar do ser humano. E este se desenvolve a luz do conhecimento objetivo, que reconhece o sentido e o valor das coisas. Isto se verifica de maneira especial no nível da ratio, quer dizer, da inteligência discursiva que expressa a natureza das coisas. O homem não pode subtrair-se à aparição dos significados e dos valores éticos; isto é, a pessoa não pode esquivar a necessidade de obrar humanamente e de realizar uma opção entre diversos valores limitados que se assomam à consciência objetiva.

Sem embargo, a liberdade não pode ser considerada exclusivamente como uma propriedade do obrar humano. Sua verdadeira raiz radica na (neuronal) subjetividade do homem, no fato de que a pessoa existe de um modo distinto de como existe qualquer outro ser. O homem como in-divíduo (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos, que significa “indiviso”), como pessoa (em sentido ontológico-relacional, situado no tempo e no espaço, em sua história e em sua natureza; como o originário sujeito de liberdade e portanto de responsabilidade, capaz de altruísmo e de egoísmo e, por isso, titular de dignidade e de culpa), quer dizer,  como  o conjunto de relações em que se encontra e para o qual  está “desenhado”[5] para estabelecer , não existe somente como ratio, senão também como lumen naturale: distância das coisas, que permite reconhecê-las com certa objetividade e expressá-las em forma discursiva.

É o próprio ser da pessoa, não reduzível às coisas materiais, o que permite dizer que são as coisas e captar seu valor. Tanto no conhecer como no obrar livre tem sua raiz esta existência própria da pessoa. E o modo específico de existir se reconhece em seu modo próprio de obrar. A mera "impressão" de obrar com liberdade não é necessariamente critério de garantia de efetiva liberdade. Esta não é objeto de introspecção nem pertence exclusivamente à ordem do sentimento.

 Por outro lado, a liberdade humana concreta não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de obrar que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo; da mesma forma, também os valores e as normas de conduta têm um carácter necessariamente interpessoal. (Atahualpa Fernandez).

Daí a razão pela qual E. Levinas – para quem a ética é a philosophia prima – adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro[6]. E não é apenas o fato de que “todos nós precisarmos” do outro; trabalhos recentes mostram que precisamos interagir com os outros; precisamos dar e receber; precisamos pertencer ( Baumeister e Leary; Brown et. al.; Habermas). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. John Donne também tinha razão: precisamos dos outros para nos completar. Somos uma espécie ultra-social, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros. O apego e os relacionamentos  podem nos provocar dor. Como disse um personagem de Sartre: “O inferno são os outros”. Mas o paraíso também. (Haidt; Atahualpa Fernandez).

Não existe, portanto, uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. O signo e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. Portanto, a dimensão ética é a quintessência da liberdade. Em sua mais íntima essência a liberdade está sob a chamada e a mirada do outro e é capacidade de responder ao outro. Desde o momento em que o outro aparece como outro, nasce também a dimensão ética.

E aqui talvez seja razoável intercalar um parêntese para lembrar que, sobre este aspecto, nos filiamos à doutrina que tende a conceber a dignidade a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, coexistencial) da dignidade é de suma trancendência para calibrar o sentido e o alcance atual da ética e do direito que encontram nela (na dignidade) seus princípios fundantes[7].

Nesse particular sentido, toda liberdade autêntica, enquanto orientada constitutivamente até o reconhecimento do outro no mundo, se expressará necessariamente em normas éticas. O conflito pode surgir quando o reconhecimento do outro chega a identificar-se com um código concreto de preceitos e normas, que não são mais que a expressão histórica e particular do reconhecimento. Dito de outro modo, a vocação autêntica da liberdade está em reconhecer ao outro como legítimo outro em qualquer contexto cultural e em qualquer nível de "civilização", através de todos os câmbios e alterações que se realizam. As normas de conduta concretas, se não se acomodam oportunamente às exigências que vão aparecendo, pode ser um impedimento real ou uma traição à liberdade. 

Liberdade e práxis 

Dizer que o homem é livre é dizer que nele há capacidade de tomar em suas mãos seu próprio obrar. Somos nós quem tem que eleger e decidir nosso destino, partindo já de uma bagagem inata dada e sob a orientação do conhecimento, de nossa razão e de nossas emoções. O conhecimento nos abre um amplo campo de possibilidades e objetivos que cada um de nós deve por em prática de acordo com seu modo peculiar de ser e suas circunstâncias.

Na afirmação e realização dessas possibilidades concretas, que são minhas possibilidades ou fins, eu realizo minha existência. Assim, a liberdade me permite eleger e decidir sobre as possibilidades que se abrem a minha existência e sobre mim mesmo, porque cada eleição que eu realizo supõe um compromisso sobre mim mesmo, já que o eu se põe e se configura em cada uma de minhas eleições, acrescentando ou limitando minha própria liberdade ou minhas possibilidades. Eleger livremente implica a liberação de tudo aquilo que escraviza a liberdade; ser livre é ir liberando-se pouco a pouco daquelas amarras que não me permitem ter um domínio ou controle sobre mim mesmo.

 Poder determinar minha própria existência, sem a pressão externa ou interna, para conseguir ser plenamente eu mesmo, sob a guia de minhas opções pessoais meditadas.  Neste sentido, a liberdade como poder de dominação sobre o próprio obrar é o motor fundamental da liberação. Mas a liberdade não é um fim para si mesmo, senão que tende à comunicação com os demais no mundo. Nossa liberdade, enquanto orientada constitutivamente até o outro e para o mundo, se expressa necessariamente no reconhecimento recíproco e na promoção do outro.

 Desde esta perspectiva, o interesse humano pela verdadeira liberdade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da dignidade humana, em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do reconhecimento do “outro” como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Este convite nos leva ao entendimento de que a mera existência de outros seres humanos impõe-nos obrigações morais iniludíveis e proporciona assim uma justificação existencial para uma ética essencialmente humanitária.

Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária, em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pelo “outro” o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre legítima e igual. Com efeito, a responsabilidade para com o próximo, que emana de sua mera existencia, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, da liberdade e da dignidade humana. 

A dimensão política da liberdade: indivíduo, existência e motivações  

Assim que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. Sem embargo, a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade e da igualdade[8].

E isso é assim porque, se bem pensado, na vida social tudo é possível: o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do “indivíduo”  para todos os efeitos do trâmite social, sua  desumanização total por via de redução  do sujeito a mero  instrumentum vocale, segundo a célebre formulação do direito romano ( ou  “instrumento animado”, para usar a expressão de Aristóteles).

Para existir como indivíduo separado e autônomo é, pois, e ao menos, necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento, senão como um fim em si mesmo – aliás, dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e  “moderno”, mas que está repetindo o mesmo que sustentaram  todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos, quer dizer, como instrumentos ( “vocais”  ou  “animados”).

Ora, a liberdade é o contrário da escravidão[9]: é livre quem não pode ser arbitrariamente interferido por outros; não é livre neste sentido (republicano) quem, podendo ser interferido por outros, não se vê interferido de fato (por pura causalidade, por desinteresse temporário ou por ter um “amo” pouco rigoroso, etc.). De acordo com esta concepção, é possível que a não-interferência de que desfruto seja extremamente insegura e que eu seja um indivíduo relativamente privado de poder: desfruto dessa não-interferência só pela muito contingente razão de que, ainda estando rodeado de agentes que me dominam – agentes com um poder de interferência arbitrária –, acontece que lhes sou simpático e me deixam em paz; ou acontece que sou muito capaz de me congraçar com eles e apaziguá-los cada vez que vêm mal dispostos até mim; ou acontece que sou arteiro, e me cuido para me manter afastado deles quando ameaça tormenta etc. Nesse mundo, o preço de minha liberdade não é a vigilância perene, senão a perene discrição (Pettit).

Por outro lado, não está minguado em sua liberdade, nessa mesma acepção da palavra, quem se vê interferido por outros de maneiras que não são arbitrárias. A liberdade republicana, a diferença da liberdade liberal, puramente negativa, é um conceito disposicional: sou livre quando não estou sob a mão ou potestade de ninguém, quando ninguém poderá – faça de fato  ou não – interferir a seu arbítrio em meus planos de vida. Por conseguinte, desfrutar dessa não-dominação é estar em uma posição tal, que ninguém tem poder de interferência arbitrária sobre mim, sendo esta a medida de meu poder: que os agentes poderosos acima mencionados a tomem com relação à minha individualidade e que, por essa razão, eu não necessite ser o bastante servil com eles, nem o bastante arteiro para me manter afastado. Nada disso importa se eu desfruto realmente da não-dominação de maneira segura (e não condicionada a alguma das contingências antes indicadas); se realmente me beneficio do poder recíproco ou da prevenção (normativa) requeridos para evitar e resistir à dominação.     

Agora, como há diferentes concepções de liberdade negativa e positiva, parece oportuno dar-se conta do sentido preciso que tem aqui esta distinção. Pois bem, como dito antes, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo (A. Sen). Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. 

E uma vez que esta concepção de liberdade positiva não é, por si só, suficiente (pensemos, por exemplo , nos enfermos,  nos anciãos e nos incapacitados em geral que não disfrutam da capacidade de se abastecer a si mesmos, ainda que tenham oportunidades), uma adequada concepção de liberdade obriga ir mais além, não só da liberdade negativa, senão também da positiva: se necessita de um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que , em igual medida, garanta-lhe plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente  do próprio  Estado, mas também de todos os demais agentes sociais[10].

Logo, segundo a perspectiva aqui adotada, o indivíduo não carece de liberdade, senão ao contrário se promove sua liberdade, quando outros livres podem interferir em sua vida de maneiras não arbitrárias. Em particular, há interferência sem perda alguma de liberdade quando a interferência não é arbitrária e não representa uma forma de dominação: quando está controlada pelos interesses e as opiniões dos afetados e é requerida para servir a esses interesses de maneira conforme a essas opiniões (Pettit); ou seja, quando o artefato institucional e normativo é manufaturado e utilizado para expressar nossas intuições e nossas emoções morais (as inatas e as culturalmente modeladas), aumentando significativamente nossa capacidade para competir com êxito na complexidade de nosso estilo de vida social e político.

O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual  uma das partes  se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço.

 Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão  direitos  constitutivos  do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que  habilitam  publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres  e autônomos. Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência.

Mas bem sabemos que não nos molestam as interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos aqui mencionados. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa – para seguirmos no exemplo dado –, não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas.

Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como “não interferência arbitrária”, ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente  do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais.

Esta restrição legal (como não interferência arbitrária e própria da liberdade republicana) característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.

Em resumo, o desenho de meu caráter, a formação de minha identidade individual ao largo do tempo, a constituição de minha existência separada e autônoma, acontece pela via da mútua interferência não-arbitrária entre livres e, por essa mesma razão, pressupõe minha liberdade (assim, que uma interferência de A em B é arbitrária quer dizer que A pode restringir a seu arbítrio o conjunto de oportunidades de B, sem tomar para nada em conta os juízos, as preferências ou os interesses críticos de B; há pois uma desigualdade radical entre A e B, sendo a autoridade ou o poder de A sobre B incontestável ou indisputável;  ao contrário, a interferência não-arbitrária pressupõe uma parigualdade de base entre A e B).

Mas não apenas isto; minha existência separada e autônoma, o ser eu “in-divíduo”, não só é o possível resultado do impacto que determinada vida social produz em meu programa de desenvolvimento ontogenético cognitivo. Não é que agora nos limitemos a dizer, com especular oposição à formulária sentença da Vulgata, que o indivíduo se constitui “depois do início e no transcurso do século”. É que a formação de existências separadas e autônomas não é coisa de sim ou não: sim a partir de determinado ponto que, depois do início, alcança-se inelutavelmente no transcurso do século; não, antes desse ponto.

A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma, é coisa muito mais complexa, processual e de grau que isso. E como a caracterização da identidade individual ao largo do tempo é uma empresa filosófica particularmente árdua, que já derramou rios de tinta durante os últimos anos – e seguramente nos levaria a derrocar outro tanto –, limitar-nos-emos a dizer  aqui que temos bons motivos para supor no essencial correta a afirmação de que temos, como se diz agora, talvez com pouca fortuna, “eus múltiplos”, extendidos no tempo e no espaço.

Significa dizer que também eu sou vários eus, à hora de decidir e me comportar. Meus diversos  módulos ou centros de decisão se alternam entre si ou entram em franco conflito, impondo-se uns aos outros ou chegando a um consenso, segundo as circunstâncias : a mente, lembra Haidt, é uma confederação de módulos capazes de trabalhar independentemente e até mesmo com objetivos opostos. O fumante quer conscientemente deixar de fumar, mas por outro lado não quer e, em efeito, não o deixa. Quero manter a calma, mas me descontrolo e digo ou faço coisas que não queria fazer e das que logo me arrependo. Decido levantar-me às sete da manhã e ponho o despertador a essa hora, mas, quando toca, não me levanto, senão que o paro, me dou meia volta e sigo dormindo. Há dias em que, ao olhar-me no espelho, me sinto bem, animado e em alguma medida bonito, enquanto que em outros dias me sinto feio, cabisbaixo e mal comigo mesmo.

De fato, nossas ações e nossos sentimentos estão controlados por nosso encéfalo, que não é um sistema desenhado de um modo unitário, senão o resultado da superposição sucessiva de “cérebros” distintos em diversas etapas de nossa história evolutiva, abarcando uma multiplicidade de subsistemas inventados pela evolução em épocas distintas para responder a retos diferentes das circunstâncias atuais. Cada um deles capta aspectos diferentes da realidade, tem suas próprias metas e segue estratégias distintas. Ainda que interconectados e intercomunicados, nem sempre atuam ao uníssono.

Em geral, se dá a divisão do trabalho e somente um deles é responsável de certos assuntos, mas às vezes se interferem uns com outros e tomam decisões contraditórias. A assimilação de programas culturais distintos e às vezes incompatíveis é outra fonte de conflitos. Também aqui nosso eu – inclusive referido a um indivíduo determinado – se manifesta como um leque de eus distintos, produtos de outras tantas estruturas encefálicas e módulos mentais diferentes e só parcialmente integrados. Em síntese, nossa vida mental é um ruidoso parlamento em que as facções (ou módulos) competem incessantemente entre si (Pinker) ou, para usar as palavras de Dennett, nossa mente abriga uma multidão de versões concorrentes da realidade que competem pelo controle: “Os conteúdos mentais se tornam conscientes… vencendo competições contra outros conteúdos mentais para dominar o controle do comportamento”.

Uma mente ricamente estruturada que permite a existência de complicadas negociações no interior da cabeça, e nas quais um módulo pode subverter os desígnios funestos de qualquer outro e impor nossos melhores desejos, pressupõe, desde logo, que a seleção natural não é um marionetista que move diretamente os fios de nosso comportamento, senão somente que atua  desenhando o gerador do comportamento: a dotação de mecanismos capazes de processar as informações orientadas a metas adaptativas.

E porque a natureza não dita o que devemos ser, aceitar ou como devemos viver a vida, a felicidade e a virtude nada têm que ver com aquilo para cuja realização nos desenhou a seleção natural no entorno ancestral: tanto a felicidade como a virtude ficam para que nós as determinemos, enquanto indivíduos que têm alguma capacidade (alguma margem de manobra) para construir vidas que transcendam a “tirania dos replicantes egoístas”(quer dizer, de transcender as inclinações geneticamente herdadas): podemos anular ou reprimí-las em favor de inclinações “mais altas”; podemos, inclusive, “imaginar formas de cultivar e alimentar deliberadamente um altruísmo puro e desinteressado, algo que não ocorre na natureza (isto é, no estado de natureza hobbesiano) e não ocorreu antes na história do mundo…”(Dawkins).

Daí que o verdadeiro caráter surge de um poço muito mais profundo que a religião, a biologia ou outro fator isolado. É o resultado de um processo que combina a internalização dos princípios morais de uma sociedade, um complicado programa ontogenético cognitivo e nossas intuições e emoções morais (as inatas e as culturalmente modeladas), aumentado por aqueles desejos, preferências e crenças escolhidas pessoalmente pelo indivíduo, o suficientemente fortes para resistir às provas das adversidades próprias de qualquer existência finita. Esses fatores encaixam entre si no que denominamos integridade, literalmente o “eu integrado”, pelo que as decisões pessoais se sentem boas e verdadeiras. O caráter é, por sua vez, a fonte duradoura da virtude: e por não ser o produto de uma obediência à autoridade, cumpre por si mesmo a autoconstituição de uma individualidade livre, autônoma e separada, e excita admiração dos demais.

Nas palavras de António Damasio, apesar da biologia e a cultura determinarem muitas vezes o nosso raciocínio, direta ou indiretamente, e parecerem limitar o exercício da liberdade individual, temos de admitir que os seres humanos contam com  alguma  margem para essa liberdade, para querer e executar ações que podem ir contra a aparente determinação da biologia e da cultura. Algumas atitudes humanas sublimes advêm da rejeição do que a biologia ou a cultura impelem os indivíduos a fazer. Essas atitudes são a firmação de um novo nível de existência em que é possível inventar novos artefatos e criar modos mais justos de viver[11].

Isto implica admitir que, muito embora nossas mentes não sejam sistemas cognitivos ideais ou ótimos, os indivíduos podem tratar – porque têm essa capacidade, mais ou menos limitada – de se regular e se criticar a si mesmos ou, para dizê-lo com um giro kantiano, autolegislar-se: somos criaturas complexas que, a despeito de sofrermos constantemente da desagradável sensação que provoca manter pontos de vista incompatíveis entre si, desfrutamos do desejo de consistência interna e nos esforçamos por manter certa coerência de pensamento e atitudes (Blackmore).

 Nesse sentido, é de sobra conhecido que, para Aristóteles, por exemplo, a existência separada e autônoma, a formação do indivíduo, quer dizer, de seu caráter, é um logro ético de primeira ordem e no qual intervém por muito o próprio indivíduo, que se automodela e se faz a si próprio, à medida que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, integrando mais ou menos harmonicamente seus distintos “eus” (ou módulos), fazendo-se mais e mais encrático: somente dele pode dizer-se que é  “uno e indivisível”,  ou seja , indivíduo[12].

Em câmbio, o homem acrático, incontinente ou perverso, “não é uno, senão múltiple, e no mesmo dia é outra pessoa e inconstante” (Ética Eudemia, 1240b). Ignorante de si mesmo, o Akratés – aquele que viola o silogismo prático e ignora os mecanismos causais que, operando dentro dele, colapsam sua vontade – é, segundo a célebre definição aristotélica, quem atua contra seu melhor juízo, ou seja, quem, havendo decidido conscientemente um curso de ação como o melhor ou mais conveniente para ele, é incapaz de levá-lo a cabo, pois é débil de vontade e incapaz de impor suas próprias decisões deliberadas a seus impulsos e compulsões[13]. Isso leva ao homem vicioso, desesperado da debilidade de sua vontade , a enfrentar a si mesmo, pois ao estar dissociados seus desejos e seus sentimentos,  torna  possível  “ que um homem seja  seu próprio inimigo” (Ética Eudemia, 1240b).

Entendida assim, a liberdade exige, antes de tudo, um indivíduo enkrático que, por dizê-lo com o apóstolo dos gentiles, conhece-se muito bem a si mesmo, que entende o que faz e faz o que verdadeiramente lhe parece virtuoso e justo; isto é, de um indivíduo que, afrontando de forma virtuosa os adversos retos racionais, os problemas emocionais, os fatores ou resíduos de irracionalidade e as eventuais constrições informativas exteriores desenhadas para perturbar a realização de suas firmes convicções, desejos e juízos, não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez.

Por isso para Aristóteles – e para a maioria dos filósofos antigos – há uma simetria entre o modo como tratamos a nós mesmos e o modo como tratamos aos demais: “A disposição que um tem para consigo, tem-na também para o amigo” (Ética Nicómaco, 1171b). Nossa existência separada e autônoma se constrói no mútuo relacionamento entre sujeitos livres e intencionais, sendo que esse relacionamento inclui a automodelação do próprio caráter. Não se pode entender de outro modo a concepção aristotélica da virtude e da amizade: a  amizade ( o ato de compartir a vida)  se dá entre livres que buscam a virtude ou excelência, a formação  de um bom caráter, modelando-se mutuamente e, assim, automodelando-se (Domènech ; Guariglia).

Essa, aliás, a razão pela qual para a ética antiga não só a amizade desempenha um papel político de primeira ordem, senão que as relações do indivíduo consigo mesmo estão construídas também “politicamente”. A declaração aristotélica, segundo a qual a alma domina – e deve dominar – ao corpo despoticamente, e a inteligência, governar aos apetites republicanamente (Política, 1254b), é mais que uma simples metáfora. Ou não é menos metafórica que a famosa afirmação, no livro I da Política, de acordo com a qual, na vida doméstica, o cabeça de família deve tratar aos escravos despoticamente, mandar aos filhos monarquicamente e governar republicanamente a mulher. Tendemos hoje a ver essas declarações como puras metáforas, porque o pensamento liberal do século XIX – não há liberalismo propriamente dito antes do XIX – nos acostumou a ver a esfera privada como uma esfera completamente  despolitizada, isto é, como uma esfera na qual não se dão  relações de poder de nenhum tipo.

Mas é precisamente isso o que está agora de novo em disputa: que a relação entre o marido e a mulher, entre o empregador e o empregado, entre as instituições bancárias de crédito e os clientes, entre o magnata oligopolista e os inermes consumidores; o que está agora de novo em disputa é que tudo isso sejam relações puramente privadas em sentido liberal, quer dizer, vazias de poder e, portanto, apolíticas, insuscetíveis de transformação e intervenção política.

Com efeito, muitos dos âmbitos em que os indivíduos desenvolvem boa parte de sua vida social (empresas, bairros, famílias) estão submetidos a relações de autoridade que abarcam aspectos fundamentais de sua existência. Assim, por exemplo, os proprietários dos meios de produção, com frequência tomam decisões ou impõe regras que alcançam não somente aos próprios processos de trabalho, senão que têm que ver com os modos de vida dos trabalhadores e, sobretudo, das trabalhadoras (indumentárias, decisões reprodutivas, formas de socialidade, etc.).

Daí porque as versões mais igualitárias e mais participativas do republicanismo desconfiam de um sistema de produção que alimenta a venalidade e o egoísmo; criticam o férreo limite liberal entre o público e o privado e defendem que os princípios republicanos (igualdade de poder, autogoverno) não se limitem à esfera pública, senão que também devem alcançar a casa ou a fábrica; desenham propostas institucionais que limitem uma desigualdade que entendem incompatível com o sentimento cívico e a justiça material; e se mostram confiadas nas possibilidades cívicas e cooperativas de uma natureza humana que estimam maculadas pelo moderno capitalismo de corte liberal[14].

O republicanismo distingue, claro está, a esfera privada da pública (afinal, ele inventou a institucionalização dessa distinção e forjou os primeiros instrumentos jurídicos para  defendê-la  e promovê-la)[15], mas não admite que a esfera privada esteja livre de política; nem sequer, como já vimos , a mais íntima e privada das esferas: a do autogoverno psíquico.

E aqui parece residir, em seu sentido mais radical, o significado mais profundo da celebríssima sentença de Aristóteles, trivializada até tornar-se quase que incompreensível: que o homem é um “animal político” quer dizer que todas as suas relações sociais – incluídas as relações consigo próprio – são potencialmente políticas, são relações de poder, de autoridade, de governo. Quer dizer que o homem é um animal social, que só socialmente se constitui como indivíduo separado e autônomo, e que a vida social – parte da qual é a vida intrapsíquica – está prenhada de assimetrias e desigualdades, de relações de poder.

Pela mesma razão, quando Aristóteles observa que a inteligência  deve governar  “politicamente” – republicanamente – ao desejo e às paixões, está dizendo  que não deve interferir arbitrariamente nelas, que deve prestar-lhes a devida atenção e ter em conta seus reclamos. Daí a outra grande definição aristotélica de homem: “sem inteligência e sem reflexão e sem disposição ética não há eleição. (…) a eleição é ou inteligência desejosa ou desejo inteligente, e tal princípio é o homem” (Ética Nicómaco, 1139 a-b). A idéia kantiana da “autolegislação” do homem moral – com todas as suas enormes diferenças respeito da aristotélica – implica também a idéia de um governo não arbitrário das próprias preferências.

A liberdade política de governar e ser governado, a liberdade – “política”  também – de governar a própria vida, são condições necessárias da  individualidade e do autocontrole volitivo, isto é, de um existir separado e autônomo[16]. Se parece razoável supor que podemos dispor conscientemente sobre nossas vidas ao menos em alguns aspectos, a garantia da liberdade (política) para controlar nossa mente, nossos desejos e nossas ações (isto é, nosso livre-arbítrio) tenderá a incrementar a formação da própria individualidade e, conseqüentemente, de nosso caráter virtuoso;  se permitimos que sejam os demais quem  controlem tudo, desperdiçaremos  a  oportunidade de ser nós mesmos e de atuar segundo nossas melhores preferências e desejos  (Csikszentmihalyi).

Por conseguinte, parece razoável supor que já não mais  resulta lícito e tolerável tentar compreender a liberdade humana por outro meio que não seja a da consideração de duas questões fundamentais: 

a)      a primeira –  porque a cultura é produto da mente humana-, que não se pode esperar explorar os caminhos da explicação do sentido e das dimensões da liberdade humana sem  ter uma visão de conjunto das pessoas e da sociedade, isto é, sem ter um desenho indicativo da natureza  dos indivíduos e das diferenças ( não indefinidas e ilimitadas, registre-se) que os estímulos provenientes da vida social  provoca neles e vice-versa  ; e 

b)      a segunda , é que tampouco se pode ter uma visão global das pessoas e da   sociedade se não adotamos um desenho da sua  constituição cognitiva, um desenho do que é estar psicologicamente equipado como seres humanos livres e autônomos (na realidade, quanto melhor entendermos a natureza humana melhor podemos educar e formar cidadãos livres e virtuosos). 

Em resumo, nenhum filósofo consciente das implicações práticas que sua atividade provoca, quase cotidianamente, no espaço público, quero dizer, nenhum filósofo  intelectualmente honrado, e que queira propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), pode desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a do status do humano no reino da natureza (do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social).

Dizendo de outro modo, as autênticas ameaças à liberdade não são metafísicas, senão políticas e sociais. À medida que vamos conhecendo as condições que tornam possíveis a tomada de decisões nos seres humanos, deveremos desenhar e acordar sistemas jurídicos e de governo que não sejam reféns de falsos mitos sobre nossa natureza, mas antes que estejam fundamentados por uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade : um conjunto institucional e normativo realista, potencialmente unificado com o lugar que ocupamos na natureza, isto é,  a partir do estabelecimento de vínculos adequados com a natureza humana.

NOTAS

Ó Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico , Curitiba: Ed. Juruá, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, No prelo (2007).

[1] Acadêmico de Direito/Unaerp e Bolsista no Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

[2] A lei assume que o ser humano tem uma capacidade geral para a eleição racional. Devido a isso, uma exculpação legal requer a demonstração de uma falta de capacidade racional, de controle volitivo ou da existência de uma causa externa compulsiva. Segundo Morse  a nova neurociência pode fazer que se dê um melhor ajuste respeito de quem e em que circunstâncias goza dessa capacidade geral de juízo racional, muito embora este autor assegure que isso em nenhum caso virá a supor um câmbio substancial nas leis. Crer outra coisa constituiria o que ele chama de “erro psicolegal”, que consiste em intentar criar uma nova excusa cada vez que se “descobre” ums nova síndrome capaz de afetar a conduta.Pode-se fazer algunas ressalvas às idéias de Morse. Pese a que afirma que a falta de capacidade racional ou controle volitivo suficiente é a  pedra toque da possível exculpação, o autor reconhece que não existe uma definição do conceito de racionalidade que seja adotada e aceita de forma incontroversa nas diversas disciplinas que fazem uso do mesmo tais como a filosofia, a psicologia ou a economia. No caso da psicopatia, por exemplo, a crescente literatura neste campo ( Blair; Mitchell & Blair) mostra que, pese a que os sujeitos psicopáticos pontuam dentro da normalidade em diferentes testes desenhados para medir as capacidades cognitivas superiores, tais sujeitos não processam os estímulos aversivos do mesmo modo que o comum das pessoas e têm grande dificuldade para sentir empatia. Quer dizer, que não dispõem dos mesmos mecanismos de controle dos impulsos. Deste modo temos que, por um lado, os psicopatas que cometem delitos são tratados como o resto dos delinquentes ao não ter sua capacidade racional diminuída, enquanto que, ao mesmo tempo, existem evidências de que ditos psicopatas não podem levar a cabo o controle de seus impulsos de forma similar às pessoas consideradas como “normais”.

[3] Daí que a relação entre dano no lobo frontal e criminalidade seja particularmente intrigante e complexa. De fato, a conexão entre disfunção do lobo frontal e comportamento antisocial levanta importantes questões jurídicas e legais. Já sabemos, por exemplo, que o dano nos lobos frontais provoca o deterioro da intuição, do controle do impulso e da capacidade de previsão, que com frequência conduzem a comportamento socialmente inaceitável. E isto é particularmente certo quando o dano afeta a superfície orbital dos lobos frontais (Goldberg). Aliás, para Goldberg, um novo constructo legal de “incapacidade para guiar o comportamento próprio pese a disponibilidade do conhecimento requerido” pode ser necessário para tratar e disciplinar juridicamente a relação peculiar entre a disfunção do lobo frontal e a potencialidade para comportamento criminoso. Os estudos de transtornos do lobo frontal reúnem sob o mesmo foco a neuropsicologia, a ética e o direito. A medida que os operadores do direito se ilustrem mais sobre o funcionamento do cérebro, a “defesa baseada no lobo frontal” pode surgir como uma estratégia legal junto à “defesa por alienação mental”.

[4] Sobre a natureza e as características desses vínculos sociais relacionais cfr. Fiske e Atahualpa Fernandez .

[5]Uma observação necessária : no que cabe, ao usarmos o termo “desenho” ao longo deste artigo não nos referimos a qualquer tipo de postura “criacionista” ou de “desenho inteligente”, senão, e sempre, a algo desenhado pela seleção natural. De fato, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (Dawkins e Dennett).

[6] Neste particular, estamos firmemente convencidos de que a bondade moral é algo real (sobre o que podemos estabelecer premissas certas e não somente considerações contingentes e contextuais de corte relativista) e de que a moralidade reside precisamente no fato de que se tenha em conta aos demais: a bondade requer reconhecer de forma apropriada ao outro; do mesmo modo, a maldade inclui uma classe de egoísmo  que nos leva a tratar aos demais inadequadamente, a ignorar seus interesses ou a tratar-lhes como meros instrumentos– talvez  essa tenha sido a razão pela qual  Elie Wiesel chegou a afirmar que “o oposto do amor não é o ódio, senão a indiferença ante os sofrimentos alheios”. Nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros : a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a, e se vê afetada por,  os demais seres humanos (cfr. de Waal , para quem não somente a empatia é a forma original e pré-linguística de vinculação interindividual, como também a capacidade humana para atuar corretamente e não com maldade todo o tempo – isto é, a moralidade humana- tem suas origens evolutivas – ao menos em algumas ocasiões, mas sempre em um continuum  respeito ao comportamento não humano – em emoções que compartimos com outros animais: em respostas involuntárias – não elegidas e pré-racionais – e psicológicas óbvias – e portanto observáveis – ante as circunstâncias dos demais). Note-se que, para de Waal, a moralidade, mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizada na socialidade dos mamíferos (ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito, nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e autoreflexão, segundo de Waal , seja uma característica singularmente humana). Daí que, para de Waal, embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais ( que não surgem a partir de máximas derivadas independentemente, senão que nascem da “interiorização” de nossas interações com os demais – isto é, de que a interação social há de estar na raíz do raciocínio moral), nos há dotado da estrutura psicológica , as tendências e as habilidades necessárias para desenvolver uma bússula interna ( configurada por nosso entorno social, na qual as emoções precedem a racionalidade e constituem a força que impulsa a realização de juízos morais) que tenha em conta os interesses da comunidade em seu conjunto capaz de guiar-nos na tomada de decisões vitais; aqui reside a essência da moralidade humana, cujo domínio (moral) da ação consiste em ajudar ou (não) causar dano aos demais. Resumindo: nossos sistemas morais reforçam algo que é em si parte de nossa herança; não estão transformando radicalmente o comportamento humano: simplesmente, potenciam capacidades pré-existentes, isto é, tem seu assento último nos mecanismos mais primitivos de nosso cérebro (os mecanismos das emoções que dão a satisfação do dever cumprido, a alegria pelo êxito de alguém querido, a felicidade de amar e cooperar, etc.). Em outro sentido (embora resulte praticamente impossível separar a emoção da cognição nos processos de tomada de decisões morais), situando a essência da moralidade na capacidade humana para o autogoverno normativo e o controle intencional em um nível mais profundo que o acompanha – ou, nas palavras de Kant, na capacidade de “autonomia” (característica dos seres humanos e provavelmente única, e que exige um certo nível de autoconsciência: ser consciente das bases que conformam e justificam nossas crenças e desejos ou, o que é o mesmo, a habilidade para formar juízos sobre o que devemos fazer , atuar em consequência e considerar-nos responsáveis de nossas ações) – , cfr. Korsgaard.

[7] E não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da dignidade está estritamente vinculada com a noção de natureza humana, a qual, por sua vez, é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da igual “dignidade” humana. Depois, parece oportuno observar que a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive  muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí  que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal. 

[8] Note-se que desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça  ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular sentido,  tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner). Mas, como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva  ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não  haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e  parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens  sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente,  ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições (Dworkin). Nas palavras de Zeki e Goodenough: “For instance, in a literal sense, human equality is a myth. Variation ensures that each of us has our own package of strengths and weaknesses. Neither of us has the ability to paint respectably, write good detective fiction, compose songs or play sweeper for even a middling kind of football team. Yet, as a legal matter, the democratic societies in which we live treat us as the equal of those who can do these things. This equality myth is a key element in the maintenance of a particularly admirable kind of social order, a counterfactual that pays dividends in fairness and stability. Proving the law wrong in its declared assumptions may not actually affect the utility of those assumptions (p.e. Goodenough)”.

[9] O mundo mediterrâneo antigo descobriu a liberdade republicana por contraste radical, se assim pode dizer-se; porque chegou a fundar sua civilização, como nenhuma outra antes, durante e depois, na existência institucionalizada de um imenso contingente de escravos. Também para a liberdade política, pois, vale o demolidor aforismo de Walter Benjamin: “todo documento de cultura é, ao tempo, um documento de barbárie”.

[10] Claro que esta concepção relativa à obrigação do Estado só é possível se tomamos como premissa uma idéia de direito fundamentada, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos  nós mesmos quem, ao conceber o direito como uma estratégia adaptativa, outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados nem por atos particulares, nem pela lei e tampouco em função de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao nos conceber baixo uma moral de respeito recíproco e universal. Não há, pois, direito que não seja outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. E isto implica uma nova concepção do Estado, segundo a qual este não pode ser concebido como Estado mínimo com obrigações puramente de proteção, senão que tem de ter uma função positiva: a de prover as bases mínimas de uma vida respeitável. Hoje podemos ver que a visão do Estado do século XVIII, que trata de manter em nossos tempos o liberalismo, é a conseqüência de uma moral fragmentada que, por sua vez, foi a ideologia da burguesia. Fixou-se na  ficção de que todos ( egoistas por natureza) podem prover para si mesmos os meios necessários a sua existência e se fecharam os olhos ao fato de que a  hipertrofia dos lados perversos do vínculo de proporcionalidade ( cuja conseqüência é a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos),  rompe todos os vínculos comunitários e de igualdade , criando ( com o monopólio do reconhecimento da autoridade) um poder que restringe , não assegura e não promove a liberdade (plena) dos indivíduos. (Atahualpa Fernandez). 

[11] Em determinadas circunstâncias, porém, a libertação dos condicionantes biológicos e culturais pode ser também um sinal de demência e alimentar as idéias e os atos de um louco (Damasio)

[12] Contudo, para Aristóteles – e isto marca a diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância -, ser enkratés é uma condição necessária para ser livre e feliz, mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo (precisamente para satisfazer o imperativo do oráculo, por se conhecer a si próprio), a “força interior” (uma possível tradução de  enkratéia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos, em uma palavra : a capacidade de superar os obstáculos internos, é imprescindível para ser feliz e livre ( no sentido de que nenhum obstáculo interno frusta sua vontade e que, para os estóicos, corresponde à ataraxia : uma disposição de ânimo cujo logro é uma tarefa individual e que permite alcançar o equilíbrio emocional graças à diminuição das paixões e desejos e a fortaleza frente à adversidade) , mas também o é um entorno que não levante diques externos à realização da firme vontade do enkratés ( palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo; desse adjetivo deriva o substantivo enkratéia, verossimilmente um neologismo socrático –Jaeger).Com efeito, a consideração das constrições externas e a idéia de que o virtuoso não pode ser incondicionalmente feliz , faz de Aristóteles um teórico do indivíduo e da  polis mais realista que Platão – seu mestre e em relação ao qual Aristóteles guardou respeito e admiração muito tempo depois de sua morte (Guariglia).

[13] Advirta-se, neste particular, a inutilidade de fingir de entrada hipóteses tais como a de um estrato inconsciente ou subconsciente responsável da violação do silogismo prático: o homem  acrático ( de Akrasía, incontinência ou debilidade da vontade) é perfeitamente consciente de que suas razões para atuar em um sentido ou em outro tal  e como realmente atua  não  são suas melhores razões ainda quando sejam razões das quais está ao tanto. Destarte, é perfeitamente possível fazer uma suposição (não trivial) de contradições na mente do  akratés sem necessidade de que a descrição da mesma seja inconsciente.  

[14] No mais, é muito provável que a idéia foucaulniana dos  “micropoderes” possa  encontrar  aqui, na crítica da despolitização liberal da sociedade civil, uma via de fértil relaboração.

[15] Não fará falta recordar a tachante distinção entre direito civil privado e direito público na tradição jurídica romana. Mas acaso não seja  demais refrescar a  memória sobre a origem etmológica  de  “privado”  e  “público”: publicus  vem de  populus , de  “povo”;  privatus, de   privare, isto é , de privar, de separar ( e ainda de roubar).

[16] Dito seja de passo que, para Aristóteles, dessa liberdade carecem os desfarrapados, os miseráveis e, em geral, os despossuídos e os empregados em ofícios  “aviltantes”. Que os pobres deveriam estar excluídos do governo porque não podem governar-se a si mesmos, por carecer, pois, de virtude, é uma idéia recorrente em Aristóteles, e o fundamento normativo de sua – relativamente moderada – hostilidade à democracia, que ele, como todos os escritores antigos e modernos até bem entrado o século XIX (Kant incluído), consideraram como governo potencialmente despótico dos  pobres livres ( recordemos que, para Aristóteles,  “democracia” significa propriamente governo dos pobres, não governo da  maioria, por muito que a maioria estivesse, de fato, constituída pelos pobres livres – Política,1290a)(Domènech). Sobre liberdade republicana e sua diferença com relação a liberdade liberal: Pettit; Overero et al.; Skinner; Sandel;  Atahualpa Fernandez. Para o estudo de uma teoria sobre a liberdade (e sua correspondente relação com a responsabilidade) aplicada tanto aos aspectos psicológicos da pessoa livre e a vontade livre como às vertentes políticas na teoria do Estado livre e da Constituição livre, cfr., por todos, Pettit. Já sobre a a liberdade ( e sua contraposição com o problema do determinismo) a partir de um enfoque cognitivo e envolucionista, cfr. Dennett; Rose. 

REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS

Atahualpa Fernandez*:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

*Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico , Curitiba: Ed. Juruá, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, No prelo (2007).

Athus Fernandez: Acadêmico de Direito/Unaerp e Bolsista no Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

 

 


 

 

 


O testamento e a Lei 11.441/07

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* Felícia Ayako Harada

Testamento é ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual, alguém, nos termos da lei, dispõe no todo ou em parte, de seu patrimônio para depois de sua morte, ou determina providências de caráter pessoal ou familiar.

É ato personalíssimo, no sentido em que somente pode ser efetuado pelo testador isoladamente, dado que afasta sua realização por representante legal ou convencional. É unilateral, pois é ato único do testador.

O testamento é negócio gratuito, porquanto o testador não visa, emtroca, de sua liberalidade feita “causa mortis”, a nenhuma vantagem correspectiva.

É ato solene, pois depende de forma prescrita em lei para a sua validade.

O testamento é revogável, e, essa característica é da essência de seu conceito, pois, pela concessão de ilimitada prerrogativa de revogar o ato de última vontade, assegura o legislador, a quem testa, a mais ampla liberdade.

Cuida o Novo Código Civil, dentro do Direito das Sucessões, da sucessão testamentária, nos termos:

“Art. 1857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.

§ 1º. A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.

§ 2º. São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.”

Como se deduz, o testador não pode incluir no testamento a legítima dos herdeiros necessários, pois, só é disponível a metade de seu patrimônio.

Suponhamos um casal com filhos, sob o regime da comunhão universal de bens, que queiram fazer um testamento. Em primeiro lugar, cada um deverá fazer o seu testamento. Não podem os dois num único ato dispor em testamento os seus bens. Cada um só pode dispor da metade da sua meação. Do total do patrimônio do casal, 100%, cada um tem a sua meação, isto é, 50%, e, como tem filhos, só podem dispor em testamento da metade de 50%, quer seja, 25% do total.

O objeto do testamento pode ser de caráter pessoal, e, não somente de caráter patrimonial. Por exemplo: reconhecimento de filho, nomeação de tutor para filho menor, determinação sobre funeral, etc.

Para que o testador tenha capacidade para testar será preciso inteligência, vontade, ou seja, discernimento, compreensão do que representa o ato e manifestação exata do que pretende. Os menores de dezesseis anos não podem testar e nem os desprovidos de discernimento, por estarem impossibilitados de emitir vontade livre, abrangendo, inclusive os que não estiverem em seu juízo perfeito.

Os testamentos podem ser: ordinários, especiais e o codicilo.

O testamento será ordinário se puder ser adotado por qualquer pessoa capaz e em qualquer condições. Subdivide-se em público, cerrado e o particular.

Testamento público – é por instrumento público, lavrado por tabelião em seu livro de notas, lido em voz alta ao testador e as duas testemunhas, sendo, em seguida, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.

Testamento cerrado – é o escrito em caráter sigiloso, feito e assinado pelo testador ou por alguém a seu rogo, completado por instrumento de aprovação pelo tabelião na presença de duas testemunhas idôneas. O auto de aprovação é lido na presença das testemunhas e do testador e assinado por estes e pelo tabelião. Chama-se cerrado, por que o tabelião colocará o auto de aprovação juntamente com a cédula testamentária num só invólucro, que será por ele cerrado e cosido com cinco pontos de retrós, segundo praxe do cartório, lacrando-se o testamento nos pontos de costura. Depois de aprovado e cerrado será entregue ao testador, anotando o tabelião em seu livro de notas o lugar, dia, mês e ano em que o testamento foi aprovado e entregue. Falecido o testador, o testamento será apresentado ao juiz.

Testamento particular – é o escrito e assinado pelo próprio testador e lido em voz alta perante três testemunhas idôneas que também o assinam. Exige-se para este testamento redação e assinatura de próprio punho do testador, não se admitindo assinatura a rogo; intervenção de três testemunhas que deverão presenciar o ato e após a leitura pelo testador perante as três testemunhas, que logo em seguida o assinarão. Morto o testador, publicar-se-á em juízo o testamento, com citação dos herdeiros legítimos.

Os testamentos especiais são o marítimo, o aeronáutico e o militar. O marítimo, é o permitido àquele que se encontra em viagem, a bordo de navio nacional mercante ou de guerra, e que receie morrer na viagem; o aeronáutico, da mesma forma, é o permitido àquele que se encontra em viagem , a bordo de aeronave militar ou comercial e o militar, para militares e demais pessoas a serviço das Forças Armadas, dentro do País ou fora dele.

Finalmente, temos o chamado codicilo, que é ato de disposição de última vontade em que o seu autor determina providências de seu enterro, faz esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, nomeia ou substitui testamenteiros, ordena despesas de sufrágio de sua alma, e, é pouco usual. Requer a mesma capacidade para testar e se parece, guardadas algumas peculiaridades, com o testamento particular.

Fazer testamento é uma medida sábia, necessária nos dias atuais? Há, realmente, alguns casos em que o testamento é a melhor solução. Porém, ao longo destes anos, tenho chegado à conclusão, que a antecipação da sucessão por testamento tem sido causa de inúmeros conflitos familiares. Observe-se ainda, que, ao contrário, do que muitos pensam ao fazer o testamento, não se evita a abertura de inventário, e, conseqüentemente, o imposto é devido da mesma forma. Frise-se, com testamento, há necessidade de abrir o inventário e pagar o imposto de transmissão “causa mortis”, além da necessidade de se processar a abertura do testamento.

O que todos devem observar, é que com o advento da lei 11.441/2007, que permite o inventário e partilha administrativa, isto é, por escritura pública, a existência do testamento é causa impeditiva para se beneficiar dessa lei.

Dispõe o art. 1º da lei supra citada :

Art. 1º. Os arts. 982 e 983 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.

Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do

ato notarial.”(NR)

“Art. 983. O processo de inventário e partilha deve ser aberto dentro de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subseqüentes, podendo o juiz prorrogar tais prazos, de ofício ou a requerimento de parte.

Parágrafo único. (Revogado).”(NR)

Anteriormente, todo e qualquer inventário e partilha, com ou sem testamento, com incapazes ou sem incapazes, necessariamente deveriam se processar judicialmente.

Com a nova modificação, se não houver testamento e todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha podem ser feitos por escritura pública. As partes deverão estar acompanhadas por seus advogados ou, se for o caso, por um advogado comum a todos, cuja qualificação e assinatura devem constar do ato notarial.

A rápida solução em casos de inventário e partilha, onde todos são capazes e maiores, evita futuros conflitos. Vários donos de um bem ou de vários bens, provavelmente, comA demora, em se definir a parte de cada um dos donos de um bem ou vários bens, acaba por minar o bom relacionamento entre eles. E lógico que, se cada um recebe logo o que é seu poderá administrá-lo como quiser, o que evita uma série de conflitos. Se todos estão de acordo, nada mais justo que recebam rapidamente o que é seu por direito, desafogando, assim o Judiciário que poderá melhor se preocupar com situações conflituosas. Penso até que, neste particular, as pessoas capazes que são herdeiras e, se porventura, estiverem em quase conflito, com a nova sistemática pensarão bastante antes de ingressar com a partilha judicial, pois, estão cientes que a tutela jurisdicional é demorada e custosa.

Como vimos a existência do testamento impede o inventário e partilha administrativa, mas, por outro lado, algumas situações justificam a sua existência.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

FELICIA AYAKO HARADA:   Sócia fundadora da Harada Advogados Associados. Juíza arbitral pela Câmara do Mercosul. Membro do Instituto de Direito Comparado Brasil-Japão-IDCBJ e do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos-Cepejur.

Odontologia e Responsabilidade Civil

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Neri Tadeu Camara Souza   

Em todo o Brasil aumentam as situações em que os pacientes, nos mais diversos ramos do atendimento em saúde, sentindo-se prejudicados, por ocasião de um tratamento, buscam a via judicial para ressarcirem-se de um dano que julgam ter sofrido. Isto acontece também na Odontologia sendo o cirurgião-dentista alvo de processos judiciais, no terreno da responsabilidade civil, para que indenize o paciente de uma lesão, patrimonial ou extra-patrimonial, da qual ele julga ser vítima em virtude de um tratamento odontológico. Cabe pois uma análise, que busca ser sistemática, do enfoque que é dado, em nosso  ordenamento jurídico, ao ser avaliada, por nossos tribunais, a situação do cirurgião-dentista frente à necessidade de ressarcir, ou não, um paciente de eventual dano que tenha sofrido em conseqüência da sua atuação profissional.  

Para se responsabilizar juridicamente um cirurgião-dentista por um fato danoso a um paciente, deve-se concluir pela presença dos três elementos caracterizadores da responsabilidade civil, a saber: conduta (culposa), dano e nexo de causalidade, acrescidos de um quarto pressuposto, obviamente, o ato lesante. Não há como se atribuir o evento danoso à conduta do cirurgião-dentista se em instante algum este agiu com imprudência, imperícia ou negligência ao atender o paciente, realizando corretamente os procedimentos os quais se propunha executar. Não se configura, portanto, nestes casos, um dever de reparar prejuízos, por parte do profissional, tanto na esfera patrimonial, como moral. 

Ao paciente de atendimento odontológico cabe o ônus de comprovar que o cirurgião-dentista, pelo seu proceder ou pela técnica empregada, deu azo aos danos sofridos, pois a odontologia é uma atividade que, na sua relação contratual de prestação de serviços odontológicos aos pacientes, tem, como regra geral, por objeto destes contratos obrigações de meios e não de resultado. Ausente, pois, esta prova não há como se responsabilizar civilmente o profissional desta área, se este, inclusive, conseguir demonstrar, em juízo, que agiu de acordo com os procedimentos técnicos recomendados para o caso. Não se demonstrando que um dano ocorrido com o paciente tenha decorrido da falta de diligência – ausência da prova de culpa – no trato com o paciente, não há porque se responsabilizar, nos tribunais, o cirurgião-dentista pela lesão porventura sofrida pelo mesmo. Trazemos da escola norte-americana, tradicional e experiente no tema, o conceito de culpa, segundo Charles Wendell Carnahan: “The concept of fault is keyed to a breach of duty owed to the injured party” (THE DENTIST AND LAW. Saint Louis: The C. V. Mosby Company, 1955, p.55), em tradução do autor: ”O conceito de culpa é entendido como uma violação de um direito pertencente ao lesado”.  Complementamos com o conceito de culpa de René Savatier, mestre da responsabilidade civil mundial, que nos ensina: “La faute est l’inexécution d’um devoir que l’agent pouvait connaitre et observer” (TRAITÉ DE LA RESPONSABILITÉ CIVILEEM DROIT FRANÇAIS – Civil, Administratif, Professionel, Procédural. Tome I, 12. ed., Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1951, p. 5), em tradução do autor: “A culpa é o descumprimento de um dever que o agente podia conhecer e observar”. Portanto, para prosperar juridicamente uma ação de indenização por danos materiais e morais, decorrentes da má prestação de serviço odontológico, há que restar comprovado que o demandante foi submetido a procedimento odontológico em que o cirurgião-dentista não tenha cumprido a contento com o contratado com o paciente em decorrência de um comportamento culposo. Porém, inexistirá obrigação de indenizar quando o cirurgião-dentista no exercício de sua função não teve uma conduta culposa, ou seja, não atuou com imperícia, imprudência ou negligência. Sobre estas nos ensina Rodrigo Mendes Delgado: “A imprudência ocorre quando uma pessoa deveria tomar certos cuidados mas não os toma (…) A imperícia ocorre quando uma pessoa, devendo observar certas regras técnicas para o desempenho de determinada profissão ou arte, não as observa (…) A negligência é uma resultante da inobservância, por parte do agente, de regras de procedimento ou de condutas” (O VALOR DO DANO MORAL – Como chegar até ele. 2.ed., Leme – SP: J. H. Mizuno Editora, 2004, p.62-63). Portanto, a imprudência é um agir precipitado, açodado, uma falta de prudência no atuar, é uma atitude comissiva; a imperícia é uma inabilidade técnica, uma falta de perícia na atuação do médico – é um despreparo profissional; a negligência trata-se de uma indolência no atuar, a manifestação de uma preguiça psíquica, uma falta de diligência no agir, é um ato omissivo. Restando, porém, improvado que foi executado, pelo cirurgião-dentista, um procedimento inadequado descaberá o dever de indenizar. Assim, pois, se o tratamento odontológico foi consentâneo com o que o quadro odontológico, apresentado pelo paciente, exigia não há do que inculpar o profissional. 

Também a ausência de nexo causal entre o ato deste e o dano ao paciente exime de ser responsabilizado este profissional da odontologia. Se faz, sempre, imperiosa a demonstração do nexo causal entre a ação ou omissão e o dano suportado pela vítima. Se inexistir nexo causal – relação de causa e efeito – entre os alegados danos sofridos e a conduta imputada ao cirurgião-dentista queda improvado que a ação do profissional foi a responsável pelo prejuízo experimentado pelo paciente, eximindo-se assim, este profissional, em juízo, da responsabilidade de ressarcir o prejuízo. O que é ilustrado pelo escólio de Antonio Lindbergh C. Montenegro: “Nexo causal é a relação de causa e efeito entre a ação, ou omissão, e o dano.

Se inexiste tal relação o ato ilícito não gera responsabilidade, vale dizer, obrigação de indenizar” (RESPONSABILIDADE CIVIL. 2.ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1996, p.22). 

Havendo culpa no agir do cirurgião-dentista este pode vir a ser responsabilizado, judicialmente, pelos danos sofridos por um paciente. Estes danos podem ser tanto materiais como morais. O dano material será afastado frente à ausência de demonstração, nos autos, através de documentação idônea, da existência do mesmo. Os danos materiais necessitam da comprovação, pois ditos danos não se sujeitam a presunções nem se caracterizam por mera hipótese, pois resultam da efetiva lesão aos bens ou interesses patrimoniais. O dano moral, por sua vez pode, até, ficar caracterizado, tão só pela presença de um dano estético ou pela existência de um abalo psicológico sofrido. 

Relativamente a seus clientes, a obrigação do cirurgião-dentista não é, porém, sempre de meios, como ocorre em certas especialidades odontológicas. Exemplifique-se, como sendo especialidade cujo objeto contratual é uma obrigação de meios, com o atendimento profissional em Endodontia pois nos casos de tratamento endodôntico a obrigação do odontólogo é de meios, já que o serviço prestado pelo cirurgião-dentista não é vinculado especificamente ao resultado, e sim ao emprego de todos os elementos disponíveis indicados tecnicamente para alcançar a cura. A culpa do profissional surge da inobservância dos cuidados necessários, ou seja, na sua conduta – no seu agir profissional, a teor do prescrito no artigo nº951 (“O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização, devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”) do Código Civil brasileiro e no artigo nº186 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”) do mesmo Código. Mas, determinadas especialidades da prática odontológica se caracterizam por ter como objeto da relação contratual com o paciente uma obrigação de resultado. Pode-se, ademais, admitir, com prévia análise das circunstâncias do caso concreto, que os contratos de prestação de serviços odontológicos contêm, implícita, uma cláusula de incolumidade do paciente, consubstanciada no dever de cumprimento do tratamento necessário – adequado – sem causar o agravamento da situação ostentada pelo cliente.  

Portanto, o contrato de prestação de serviços odontológicos constitui-se numa obrigação de meios, ou, em certas ocasiões da atividade profissional odontológica, dependendo do caso, de resultado. E, porque estamos tratando de um contrato, também porque em sede de uma relação de consumo, se deve transcrever o que nos ensina Oscar Ivan Prux: “O contrato e todo o conteúdo da manifestação de vontade que lhe é pertinente, encontram seus limites mais próximos na lei, mas devem respeitar também os demais princípios que integram o direito como um todo, de modo a apresentarem-se como instrumentos aptos a seus fins ideais” (RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL LIBERAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p.136). E, da lei, ou seja, do ordenamento jurídico transcrevemos de nosso Código Civil, até por ir ao encontro do que diz Oscar Prux, o artigo nº422, verbis: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”. E, nada mais adequado que estabelecer legalmente a necessidade da presença da boa-fé na vontade – no atuar – dos contratantes pois esta visa proteger as expectativas legítimas, dos mesmos, no contrato. Por esclarecedor, adicionamos o ensinamento sobre o aspecto contratual da relação do cirurgião-dentista com o paciente, de Ida T. P. Calvielli: “Assim a obrigação contratual do cirurgião-dentista compreende, fundamentalmente, a realização do serviço convencionado (e que consiste no seu plano de tratamento) que poderá ser considerada cumprida, em determinados casos, se o profissional agiu com zelo e diligência (obrigação de meio). Em outros somente o resultado desobrigará o profissional” (Responsabilidade Profissional do Cirurgião Dentista, in: COMPÊNDIO DE ODONTOLOGIA LEGAL.  Moacyr da Silva (Coordenador), Rio de Janeiro: Editora MEDSI, 1997, p.402-03). E, enfatizamos o que diz ainda Ida Calivielli: “A obrigação contratual do cirurgião-dentista, portanto, compreende o dever de executar o serviço convencionado obedecendo à adequação técnica e científica” (op.cit., p.404). Mas certo é que demonstrado que os sofrimentos físicos e morais padecidos por um paciente após tratamento odontológico a que for submetido decorreram de imperícia, negligência ou imprudência do profissional, ficará caracterizado o dever deste de indenizar o mal causado, eis que presente o elemento integrador da responsabilidade civil, a culpa, no seu agir. Fica, com a presença da culpa, patente o inadimplemento contratual do cirurgião-dentista em sua obrigação de meios, para com o paciente, cujo objeto jurídico caracteriza-se pelo correto proceder no atendimento a este, ou seja, atuar com diligência, perícia e prudência, dentro dos conhecimentos atualizados da profissão odontológica indicados para aquele local e momento. 

Se caracteriza, também, este contrato, entre o cirurgião-dentista e o seu paciente, por ser uma relação de consumo a que se estabelece entre ambos. Mas, mesmo sendo uma relação de consumo, a responsabilidade deste profissional, no exercício de sua atividade, é uma responsabilidade subjetiva (Teoria da Culpa). E, em termos de responsabilidade civil, frise-se aqui os quatro elementos, pressupostos da responsabilidade subjetiva, com o ensinamento de Rogério Marrone de Castro Sampaio: “Quatro são, portanto, os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva ou clássica:

1.  Ação ou omissão (comportamento humano).

2.   Culpa ou dolo do agente.

3.   Relação de causalidade.

4.  Dano experimentado pela vítima” (DIREITO CIVIL – Responsabilidade Civil – Série Fundamentos Jurídicos. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p.29). Em sede de relação de consumo, portanto sob a égide do CDC – Código de Defesa do Consumidor (Lei nº8.078, de 11 de setembro de 1990) e mais especificamente em seu artigo nº14, no parágrafo 4º (“A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa), que o afirma explicitamente, há que se provar a culpa do profissional liberal. E, profissional liberal que é, aí está situado o cirurgião-dentista, em termos de se comprovar a sua responsabilização, em nosso ordenamento jurídico. Assim uma prova técnica processualmente não efetivada – não realizada, ou através desta, em sendo realizada, não quedar comprovada a culpa do profissional, exurge desta situação nos autos a inexistência de um dever para o cirurgião-dentista de indenizar o paciente por eventual dano que este, porventura, tenha sofrido em seu tratamento. Concluindo uma prova pericial que houve erro no planejamento e execução do plano de tratamento odontológico, não se pautando a atuação do cirurgião-dentista dentro dos referenciais técnicos  e, conseqüentemente, o tratamento executado não atingindo um resultado satisfatório, impõe-se o dever do odontólogo indenizar o paciente pelos danos – prejuízos – que este infausto tratamento tenha causado. A prova pericial do erro do profissional em odontologia, quando há debate jurídico sobre o mesmo, é mandatória, face ao caráter especializado da avaliação de um suposto dano necessária para o deslinde da lide jurídica. A jurisprudência, emanada dos tribunais pátrios, reiteradamente tem afirmado que a regra esculpida em nosso Código de Processo Civil, no seu artigo nº130 (“Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”) não pode significar prejuízo às partes. É válido lembrar, em termos de instrução processual, que se um réu pretende fazer prova oral, ou por qualquer outro meio admitido em direito, para comprovar que o serviço odontológico foi realizado por outro profissional, com autonomia em relação ao agravante, a realização desta prova é indispensável, sob pena de claro cerceamento de defesa. Esta prova se faz necessária para descaracterizar a responsabilidade civil do cirurgião-dentista pelo fato de terceiro (pois pode ser outro cirurgião-dentista, agindo com autonomia profissional, o que executou o serviço odontológico) que vem inserida em nosso direito positivo, no Código Civil brasileiro, em seu artigo 932, no inciso III, verbis: “São também responsáveis pela reparação civil: (…)

III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;”, podendo levar o cirurgião-dentista a ser responsabilizado, em juízo, pelos danos causados ao paciente por outrem. Enfatize-se, aqui, a responsabilidade civil do cirurgião-dentista pelo fato de terceiro, nos termos deste artigo nº932, inciso III, de nosso Código Civil, no que tange aos seus auxiliares nos serviços odontológicos. Ele tem responsabilidade tanto in eligendo, ou seja, tem o dever de escolher bem aqueles que vão lhe auxiliar na sua azáfama diária junto aos pacientes, como também tem responsabilidade in vigilando, qual seja, a de supervisionar, vigiar e fiscalizar a atividade dos mesmos. Qualquer prejuízo causado a um paciente por seus auxiliares o cirurgião-dentista poderá ter que ressarcir, em termos de responsabilidade civil, os prejuízos sofridos por este.  

Quedando comprovado, portanto, que não houve um agir dentro da “lex artis”, estado atual da ciência odontológica para aquele momento, exurge daí a obrigatoriedade do cirurgião-dentista ressarcir o paciente dos danos sofridos. Não só danos materiais, como também os danos morais e os danos estéticos, quando ocorrerem. Os dois últimos serão estabelecidos pelos julgadores, nas decisões, dentro dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Assim, se houverem danos decorrentes de defeito na prestação de serviços odontológicos, por um ato lesante do cirurgião-dentista, comprovando, pois, a prova pericial  que o serviço prestado ao paciente foi defeituoso, e ficando demonstrada também a culpa no agir do profissional, evidencia-se como necessária a responsabilização do cirurgião-dentista pelos danos sofridos pelo paciente. Estando presentes os quatro elementos, que compõe a responsabilidade subjetiva (teoria do dano), a saber, ato lesivo, dano, nexo causal e culpa ao agir, fica estreme de dúvidas que é necessário que o profissional tenha que ressarcir o paciente dos prejuízos decorrentes do seu serviço imperfeito. Entendemos, pois, que podem ocorrer danos materiais para o paciente, em decorrência de um serviço odontológico mal executado, e que é possível também a existência de danos morais. O arbitramento, tarefa sensível, pelo julgador, da indenização por estes danos morais deve ser moderado e eqüitativo, atento às circunstâncias de cada caso, evitando que se converta a dor em instrumento de lucro (de lucro capiendo), levando-se, porém, sempre em consideração as dores, a vergonha, o constrangimento suportados pelo autor da ação judicial, inclusive verificando-se o quanto estes se prolonguem no tempo, em face de um erro técnico no atendimento odontológico. 

Ilustre-se o que foi exposto com a avaliação da prestação de um serviço em prótese dentária, encarada pela doutrina e jurisprudência pátrias, como  obrigação de resultado, na relação contratual que se estabelece entre o profissional e o seu paciente na área da Odontologia. Se mal executado, este serviço, como numa situação em que seja utilizado pelo profissional na confecção da prótese  material de qualidade inferior, isto implicará na devolução do valor cobrado, ou seja, ressarcimento dos danos materiais, podendo caracterizar-se, até, a necessidade da indenização por danos morais ao paciente. Aqui estamos vendo configurar-se a responsabilidade civil pelo fato da coisa, na responsabilização do agir do cirurgião-dentista, prevista em nosso Código Civil brasileiro, numa interpretação extensiva, quando da subsunção da conduta deste profissional, por nossos julgadores, no artigo nº938 do Código Civil brasileiro, que diz: “Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”.  Na análise da conduta do odontólogo, verifica-se, inclusive, que, assim procedendo – execução de serviço com material inadequado – pode-se atribuir a este uma conduta negligente. O procedimento odontológico de colocação de prótese dentária, diante da finalidade para a qual é destinado, tem merecido tratamento pelo nosso ordenamento jurídico como uma obrigação de resultado. Este é o caso de um serviço odontológico de confecção de uma prótese com posterior colocação no paciente. A responsabilidade decorrente do fato do serviço implica na reexecução por conta do prestador do serviço, ou restituição da quantia paga, em caso de insucesso no tratamento. Nos ensina Rui Stocco: “Aliás essa obrigação de resultado mais se evidencia quando se cuide de tratamento dentário que envolva a colocação de prótese, restauração, limpeza etc., voltadas para o aspecto estético e higiênico” (RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL, 4.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 267). 

Cabe aqui a visão da doutrina do Direito do que sejam obrigações de meios e obrigações de resultado. Veja-se o que bem esclarece Marcelo Leal de Lima Oliveira: “Foi Demogue – nota do autor: jurista francês René Demogue que em 1925 divulgou a classificação das obrigações contratuais em obrigações de meios e obrigações de resultado – o primeiro a fazer a distinção entre obrigações de meio e de resultado. Para ele, há uma obrigação de meio quando a própria prestação nada mais exige do devedor além de, pura e simplesmente, empregar determinados meios sem se importar com os resultados.

Nas obrigações de resultado, o devedor se obriga a realizar um fato determinado, a atingir certo objetivo” (RESPONSABILIDADE CIVIL ODONTOLÓGICA. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p.71-72). Diz mais: “Nas obrigações de meio, portanto, o objeto mediato do direito de crédito não é o resultado primário pretendido pelo credor, mas sim uma atividade do devedor buscando satisfazer este interesse primário” (op.cit., p.72). E, o mesmo Marcelo Oliveira complementa: “Assim, pode-se afirmar que as obrigações de resultado são aquelas em que, além do esforço necessário, o devedor se obriga a atingir determinado resultado útil de sua atividade. (…)

As obrigações de meio, por sua vez, são aquelas em que o devedor se obriga a utilizar-se de suas habilidade técnicas e capacidade pessoal para a realização de determinado fim, não estando, contudo, sua obrigação vinculada ao resultado final desta atividade” (op.cit., p.72-73).  Ainda sobre as obrigações de meios e de resultado, transcrevemos o ensinamento de Suzana Lisboa Lumertz, Paulo Roberto Rukatti Lumertz e Marcelo Lisboa Lumertz: “Na obrigação de meio o cirurgião-dentista se obriga a “prestar serviço”, devendo agir com diligência e cuidado no sentido de atingir a finalidade do tratamento proposto. Não se obriga  ao resultado. A prestação consiste somente no “fazer”, com técnica recomendada, atenção e conhecimento dos avanços científicos, através de constante atualização. Deve, ainda, expor ao paciente os riscos e possíveis intercorrências do procedimento” (RESPONSABILIDADE JURÍDICA DO CIRURGIÃO-DENTISTA. Porto Alegre: Edições Renascença, 1998, p.19). 

As provas sendo consistentes, inclusive a  pericial, o pedido do paciente autor de uma ação judicial, portanto, procedente no todo, ou em parte, surge para o cirurgião-dentista o dever de ressarcir o dano que tiver causado. Como bem nos ensina Hans Kelsen: “Quer dizer: ele não só é obrigado a não causar a outrem qualquer prejuízo com a sua conduta mas ainda, no caso de, com essa sua conduta, ter causado um prejuízo a outrem, a indenizar esse prejuízo” (TEORIA PURA DO DIREITO, 6. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.139). E, este dever do cirurgião-dentista de indenizar decorre do surgimento deste direito subjetivo de ser ressarcido que tem o paciente. Para a satisfação deste direito o paciente pode até levar à apreciação do poder judiciário a sua pretensão de ser ressarcido dos prejuízos que eventualmente tenha sofrido. Pretensão esta sobre a qual também nos esclarece Hans Kelsen: “Por isto apenas existe uma “pretensão” como ato juridicamente eficaz quando exista um direito subjetivo em sentido técnico, quer dizer, o poder jurídico de um indivíduo de fazer valer, através de uma ação o não-cumprimento de um dever jurídico em face dele existente” (op.cit., p.151). Tudo isto muito bem expressado, em nosso Código Civil, no teor do artigo nº189, in limine, verbis: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão (…)”. E, causar um prejuízo a um paciente significa violar um direito seu – patrimonial ou extrapatrimonial.  

O caso fortuito e a força maior, como na responsabilidade civil em geral, eximem o profissional de ser responsabilizado pelos danos porventura sofridos pelo paciente como bem diz o artigo n°393 do Código Civil pátrio, verbis: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Também a culpa exclusiva do paciente exime o profissional como a jurisprudência e a doutrina brasileiras já deixaram bem estabelecido. Além disso o Código Civil brasileiro ainda prevê, em seu artigo de nº944 (“A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”) que na determinação do “quantum debeatur” seja levado em consideração o grau de culpa do agente lesante, na determinação do valor pecuniário que este vai ter de pagar ao prejudicado em termos de responsabilidade civil. 

A realidade atual nos tribunais brasileiros, dedução extraída da análise da doutrina e da jurisprudência brasileiras faz sobressair deste contexto uma tendência dos tribunais de, no caso concreto, em situações jurídicas da postulação de ressarcimento de prejuízos causados por cirurgião-dentista ao paciente, analisarem as circunstâncias peculiares de cada tratamento odontológico, para  só assim optar entre considerar a obrigação, no que se refere àquela pela qual o cirurgião-dentista se comprometeu com o seu paciente, como sendo de meios ou de resultado. Este parece ser o entendimento jurisprudencial e doutrinário. Em certas especialidades, portanto, os tribunais brasileiros, é válido dizer, despegam-se da interpretação de que a obrigação do cirurgião-dentista seja de meios e aceitam tratar, em termos jurídicos, e dentro do processo judicial, que a mesma seja uma obrigação de resultado, com a evidente implicação legal, no campo processual, de ocasionar o que é ditado pela doutrina pátria: a inversão do ônus da prova. Em conseqüência desta inversão do ônus de fazer prova no processo, passa a ser atribuição, quando em juízo, do cirurgião-dentista eximir-se, através do devido conjunto probatório, de ter atuado com negligência, imprudência ou imperícia, comprovando nos autos que o eventual insucesso no tratamento odontológico, se existente, deveu-se ao caso fortuito (casus), força maior (vis major), ou mesmo culpa exclusiva do paciente.  

Consegue-se, no entretanto, identificar quais especialidades da Odontologia são aceitas, como tendo por objeto contratual, via de regra, uma obrigação de resultado. Para isto, valemo-nos da listagem oficial de especialidades expressa na Resolução n°63/2005 (Aprova a Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia), do CFO – Conselho Federal de Odontologia   (publicada no Diário Oficial da União, Seção I, página 104, em 19/04/2005), que no artigo de nº39 faz saber que as especialidades integrantes do exercício profissional da Odontologia são: “a) Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Faciais; b) Dentística Restauradora; c) Disfunção Têmporo-Mandibular e Dor Oro-Facial; d) Endodontia; e) Estomatologia; f) Radiologia Odontológica e Imaginologia; g) Implantodontia; h) Odontologia legal; i) Odontologia do Trabalho; j) Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais; l) Odontogeriatria; m) Odontopediatria; n) Ortodontia; o) Ortopedia Funcional dos Maxilares; p) Patologia Bucal; q) Periodontia; r) Prótese Buco-Maxilo-Facial; s) Prótese Dentária; e, t) Saúde Coletiva”, e só é possível o registro – a inscrição – como especialista no Conselho Federal de Odontologia nas referidas especialidades. As especialidades de Implantodontia e, também é admitido, Prótese Dentária, estão entre aquelas que apresentam-se como especialidades regidas na relação contratual, de prestação de serviços odontológicos, por uma obrigação de resultado, ainda que não se exclua a aleatoriedade nestes tratamentos, mesmo que numa  pequena proporção, e portanto, sendo aceita a possibilidade de não se obter ao final do tratamento o objetivo terapêutico perseguido pelo cirurgião-dentista, e esperado pelo paciente. A aleatoriedade – a álea – que, sempre, vai ter a possibilidade de se inserir na evolução dos tratamentos odontológicos, é devida à possível imprevisibilidade dos fenômenos biológicos das estruturas orgânicas, que são o campo de atuação do cirurgião-dentista. Além destas especialidades descritas como tendo uma obrigação de resultado, com as devidas ressalvas feitas, podemos citar como colocadas situando-se entre as especialidades cujo objeto jurídico do contrato de serviços odontológicos afigura-se, predominantemente, como sendo uma obrigação de resultado estas: Dentística Restauradora, Odontologia em Saúde Coletiva, Odontologia Legal, Patologia Bucal, e Radiologia. E, tendo como seu objeto contratual, preferencialmente – conceitualmente – uma obrigação de meios estas: Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Faciais, Endodontia, Odontopediatria, Periodontia, Ortodontia, Prótese Buco-Maxilo-Facial, Estomatologia, Disfunção Têmporo-Mandibular e Dor Oro-Facial, Odontologia do Trabalho, Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, Odontogeriatria e Ortopedia Funcional dos Maxilares. 

Assim, emerge do exposto que a tendência dos julgadores em nosso país, mesmo respeitando, e levando em consideração, na avaliação da lide, a inclusão em um ou outro grupo, no que tange à qualidade da obrigação contratual (de meios ou de resultado) que se estabelece entre o cirurgião dentista e o paciente, é avaliar as características do caso concreto, como sói acontecer nas lides jurídicas, ao manejar processualmente as postulações judiciais de ressarcimento, pelos pacientes, em termos de insucesso em tratamentos odontológicos.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

NERI TADEU CAMARA SOUZA: advogado e médico direito da saúde.  Autor do livro: Responsabilidade Civil e Penal do Médico – 2ª edição – 2006 – LZN Editora – Campinas – SP – Site: lzn.com.br – E-mail: resp@via-rs.net

 

Investigação de paternidade e alimentos desde a concepção

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* Maria Berenice Dias

Na ação de investigação de paternidade, mesmo inexistindo vínculo pré-constituído da relação de parentesco, por salutar construção jurisprudencial, passou-se a conceder alimentos provisórios. Havendo indícios de prova do vínculo da parentalidade, desde a data em que o juiz despacha a petição inicial. Caso contrário, os alimentos são fixados quando do resultado positivo do exame de DNA ou da recusa o réu em se submeter à perícia.

Depois de algumas vacilações, a Justiça, atentando à natureza declaratória da demanda, deu mais um significativo passo ao emprestar efeito retroativo aos alimentos fixados na sentença, de reconhecimento da paternidade. Invocando dispositivo da Lei de Alimentos (art. 13, § 2º). A matéria restou sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 227): Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.

A solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta às posturas procrastinatórias do réu, que usava expedientes protelatórios e recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação. Como a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente a partir da sentença ou do julgamento do recurso que acolhia a ação, livrava-se o réu, durante anos ou décadas, do encargo alimentar.

Porém, pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem todos os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. A mãe tem de submeter-se a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas, ainda que feito pelo SUS. É preciso dar efetividade ao princípio da paternidade responsável, que a Constituição procurou realçar quando elegeu como prioridade absoluta a proteção integral a crianças e adolescentes (CF, art. 227). O simples fato de o genitor não assumir a responsabilidade parental não pode desonerá-lo. Assim, os alimentos são devidos desde o momento que o filho é gerado.

Claro que a alegação do réu sempre será de que desconhecia a gravidez, não sabia do seu nascimento e sequer tomara conhecimento da sua existência, e que só veio, a saber, do filho quando citado para a ação de investigatória. No entanto, não logrando comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser-lhe imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que foi informado ser o pai do autor. 

Outro fundamento a ser utilizado pelo réu, para livrar-se do pagamento dos alimentos com efeito retroativo, será que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. Mas desde que surgiu o exame do DNA, que dispõe de índice de certeza quase absoluto, não há mais como alegar dúvida sobre a verdade biológica.

Nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. Esta é a orientação que já vem despontando na doutrina e agora aflorou na jurisprudência (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Maria Berenice Dias:  Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice Presidente Nacional do IBDFAM

 

 


 

O papel da Empresa no Sistema Econômico Capitalista do Brasil

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* Sérgio Gabriel

Subsídios para compreensão do ciclo do desenvolvimento econômico

 

1. Introdução 

 

A discussão da liberdade de produção nasce da escolha do modelo econômico adotado. Embora existam vários modelos dispersos pelo mundo, dois em especial centralizam a maior parte das economias: o capitalismo e o socialismo. 

Nesse particular, nota-se a emergência singular da ordem constitucional econômica por excelência, reduzida às normas legais gerais por escrito, pressuposto fundamental das relações de propriedade na sociedade industrial. 

Pinto Ferreira[1] confirma essa colocação, ao dispor que: 

“(…) no mundo atual há dois sistemas básicos que orientam a organização da vida econômica. O sistema capitalista é o primeiro, fundamentado na propriedade privada de bens de produção, na livre concorrência, na iniciativa privada, funcionando de um modo geral nos Estados que não se orientam pelo tipo de economia coletivizada. O outro sistema é o socialista, fundamentado na propriedade coletiva dos meios de produção, implantado na URSS e na China, e durante muito tempo no Leste europeu”. 

A livre iniciativa tem seu surgimento na doutrina liberal e ganha espaço com o que se denominou de Estado Mínimo, como nos ensina Fábio Nusdeo[2], ao afirmar que:  

“(…) entre os anos 20 e 30 do século passado, ganha terreno no mundo ocidental, a chamada social-democracia ou intervencionismo, enquanto na Europa oriental e em algumas nações asiáticas ensaiava-se o regime de índole coletivista-estatal. Já a última década do mesmo século assiste a um refluir das soluções socializantes de diversas vertentes, com o remontar da maré liberalista, voltada a conter o Estado dentro de limites mais acanhados, ao que se tem chamado de Estado Mínimo. Privatização, liberalização e desregulamentação têm-se constituído em balizas fundamentais no plano interno, com a globalização, querendo significar a livre circulação internacional de produtos e fatores, a complementá-las no plano internacional”. 

Mas é pela análise da constituição brasileira que se verifica estar superada a discussão entre socialismo e capitalismo, pois ao evoluir para um sistema liberal com princípios sociais, o Estado Democrático de Direito deve conduzir o modelo econômico, para garantir a participação de todos na economia-livre iniciativa. 

Embora o modelo adotado pela Constituição Federal seja o capitalismo, como afirmou André Ramos Tavares[3], verifica-se uma inclinação socialista: 

“(…) fundamento da própria República Federativa e, concomitantemente, da ordem econômica, a livre iniciativa revela a adoção política da forma de produção capitalista, como meio legítimo de que se podem valer os agentes sociais no Direito brasileiro”. 

Assim sendo, é de se acrescentar que esse capitalismo brasileiro tem vertentes e características sociais, a partir de uma variação desse mesmo regime econômico. 

Nesse sentido, Lafayete Josué Petter[4] diz que: 

“(…) superada a dicotomia socialismo-capitalismo na sintética expressão Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), evoluiu-se para um modelo de sociedade liberal e, ao mesmo tempo, social, onde a economia de mercado não tem mais os contornos absolutistas que a identificavam nos primórdios do capitalismo, mas deve estar pautada em vigilante atitude estatal no sentido de preservar a própria liberdade de iniciativa”. 

2. Conceito de livre iniciativa 

O princípio da livre iniciativa pressupõe a possibilidade de qualquer um exercer livremente atividade econômica. Nesse sentido, Eros Roberto Grau[5] afirma que: 

“(…) livre iniciativa é termo de conceito extremamente amplo. Não obstante, a inserção da expressão no art. 170, caput, tem conduzido à conclusão, restrita, de que toda a livre iniciativa se esgota na liberdade econômica ou de iniciativa econômica”. 

A liberdade de iniciativa transfere das mãos do Estado para o particular –  empresas em geral, o direito do exercício de determinada atividade econômica, desde que não se compreenda dentro daquelas enumeradas no artigo 173 da Constituição Federal:

 “(…) ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. 

Logo, a livre iniciativa permite a livre exploração de atividade empresarial, desde que não reservadas ao Estado (art. 173, CF), independentemente de autorização do mesmo Estado, conforme determina o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, ao proclamar que: 

“é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. 

A partir dessa análise, José Afonso da Silva[6] proclama que: 

“a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato”.  

Tal liberdade é que assegura o dinamismo exigido pelo sistema econômico capitalista, outorgando, aos particulares, o poder de produção, dando verdadeira eficácia ao direito de propriedade, razão pela qual, agora se compreende melhor a sua evolução. Nesse sentido, Lafayete Josué Petter[7] afirma que: 

“(…) o princípio da liberdade de iniciativa econômica constitui a marca e o aspecto dinâmico do modo de produção capitalista. Consiste no poder reconhecido aos particulares de desenvolverem uma atividade econômica”. 

Alguns doutrinadores[8] vão buscar a origem da livre iniciativa na evolução do conceito de liberdade, porém, quanto ao que se pretende neste estudo, resta apenas a necessidade de compreendê-la a partir da livre concorrência que deflui da liberdade de produção. 

3. Diferença entre livre iniciativa e livre concorrência 

A livre concorrência, outro princípio da ordem econômica, nasce da necessidade de se garantir a livre iniciativa das empresas, impedindo que se permitam atos de concentração de mercado redundantes, na criação de um poder econômico capaz de inviabilizar a permanência de outras empresas no mercado ou de impedir a entrada de novas.  

A partir do momento que o Estado adotou a liberdade de mercado, resta a ele, enquanto agente regulador, fiscalizador e interventor, oferecer totais condições para que o exercício da atividade econômica empresarial seja feito dentro de limites que permitam uma saudável competição, desaguando em melhores condições sociais, seja pela maior produção de riquezas (produtos ou serviços), seja por oferta de novos empregos diretos e indiretos, pela melhoria na qualidade de produtos e serviços em oferta, ou pela redução de preços em razão da alta competitividade de mercado e finalmente, geração de rendas. 

É por essa razão que o Brasil, ao adotar o regime econômico capitalista, o fez com certas variações, imbricando para um modelo econômico-social, que vem garantindo aqui, em parte, pela própria defesa da concorrência. Essa defesa da concorrência se justifica como manutenção da empresa no mercado – garantia da livre iniciativa, em razão da possibilidade de abuso de poder econômico ou de atos de concentração de mercado, e nessa análise, Lafayete Josué Petter[9] afirma que:  

“(…) no mercado, por outro lado, verifica-se que em muitos segmentos há a ocorrência do fenômeno da concentração do poder econômico, que fica, por assim dizer, assenhorado nas mãos de uns poucos, com ofensa à livre iniciativa, invocando a necessidade de tutela e intervenção do Estado, sob pena de aquela, literalmente, sucumbir. Então, ao contrário do que poderia se imaginar, a intervenção do Estado no domínio econômico (CF, art. 174), muito antes de limitar a iniciativa e a liberdade do particular, tem por fim, mesmo, preservá-la”. 

4. Amplitude da livre iniciativa 

Quando se fala da livre iniciativa, está-se falando da exploração dos meios privados de produção (empresa privada) em um modelo econômico que garante, entre outros direitos – os sociais. Por essa razão, o legislador constituinte assentou a ordem econômica na valorização do trabalho na existência digna, na justiça social, na proteção da soberania nacional, na defesa do consumidor, na defesa do meio ambiente, na redução das desigualdades regionais e sociais, na busca do pleno emprego e no tratamento favorecido para micro e pequenas empresas.  

Ora, se de um lado a exploração da atividade empresarial deve respeitar todos esses princípios sociais, a livre iniciativa deve ser interpretada em seu sentido amplo, pois, além de princípio econômico é também princípio social. E nesse ponto José Afonso da Silva[10] também fala do caráter social, ao dizer que: 

“(…) a evolução das relações de produção e a necessidade de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, bem como o mau uso dessa liberdade e a falácia da ‘harmonia natural dos interesses’ do Estado liberal, fizeram surgir mecanismos de condicionamento da iniciativa privada, em busca da realização de justiça social, de sorte que o texto supratranscrito do art. 170, parágrafo único, sujeito aos ditames da lei, há de ser entendido no contexto de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo”. 

Veja que o legislador, ao impor a livre iniciativa, o fez no sentido econômico, proclamando o sistema econômico capitalista como regente da economia brasileira, mas, pela variação que se imprimiu no modelo econômico, é de se perceber que tais princípios e em especial o da livre iniciativa, possui característica marcantemente social, ao proclamar uma liberdade a qual permite a qualquer cidadão a participação nos meios de produção – exercício de atividade empresarial.  Esse tipo de variação nos grandes modelos econômicos é possível, como afirma André Ramos Tavares[11], ao dizer que: 

“os sistemas econômicos são modelos amplos, que podem apresentar, por isso mesmo, uma série de variações nas formas concretas adotadas em sua implementação prática”. 

Tanto é que a mesma livre iniciativa que garante micros e pequenos empresários no mercado, o faz de forma a criar oportunidades e não como forma exclusiva de fomentar o desenvolvimento econômico. Note-se que, nessa ótica, a característica econômica do princípio se tornou vertente secundária, apresentando-se como fator essencial-primário, o social, na oferta de oportunidades ao cidadão.  

Então, falar em livre iniciativa é muito mais que afirmar em exploração privada dos meios de produção, é estabelecer liberdade de empresa como fator essencial do modelo econômico adotado, é garantir também, oportunidades de exercício de atividade econômica a qualquer um. 

Porém, é indispensável que se analise a grandeza do princípio da livre iniciativa, pois, além de mero princípio balizador da ordem econômica, é também um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – (…); II – (…); III – (…); IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…). Ou seja, a livre iniciativa é muito mais que fundamento econômico e social, pois, como já afirmado, é também um dos fins da estrutura política brasileira. 

Não é por outra razão que Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[12] afirmam que: 

“(…) erigida à condição de fundamento da ordem econômica e simultaneamente princípio constitucional fundamental (CF, art. 1º, IV, in fine), a livre iniciativa talvez constitua uma das mais importantes normas de nosso ordenamento constitucional”. 

Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[13], se referindo à livre iniciativa, acrescentam ainda que: 

“(…) aplicada à realidade social que pretende ordenar, a regra indica a liberdade de iniciativa econômica em sentido amplo. Em outras palavras, não se limita à iniciativa privada, mas abrange também a iniciativa cooperativa ou associativa (arts. 5º, XVII e XVIII, e 174, parágrafos 3º e 4º), a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública (arts. 173, 177 e 192, II)” 

Nesse mesmo sentido, André Ramos Tavares[14] diz que: 

“(…) a liberdade de iniciativa garantida constitucionalmente não se restringe à liberdade de iniciativa econômica, sendo esta apenas uma de suas dimensões. A livre iniciativa de que fala a Constituição há de ser, realmente, entendida em seu sentido amplo, compreendendo não apenas a liberdade econômica, ou liberdade de desenvolvimento de empresa, mas englobando e assumindo todas as demais formas de organização econômicas, individuais ou coletivas, como a cooperativa (art. 5º, XVIII, e art. 174, parágrafos 3º e 4º) e a iniciativa pública (arts. 173, 1777 e 192, II)”. 

5. Limitações à livre iniciativa 

Embora o sistema econômico tenha adotado a liberdade de mercado como fator essencial do modelo econômico, é de se asseverar que essa liberdade está regida por limitações que se classificam em legais e funcionais. Impõe-se, aqui, a necessidade de se lembrar que essa classificação, como qualquer outra, é realizada por meio de considerável relativismo, haja vista que normalmente o critério utilizado para classificação pertence ao pesquisador, não existindo um método único que possa norteá-las e torná-las absolutas. Logo, justifica-se que foi feita apenas com fins metodológicos e didáticos, para amparar o desenvolvimento do presente estudo.  

Do ponto de vista legal, a livre iniciativa possui duas limitações: o monopólio legal e a necessidade prévia de autorização: 

a)      monopólio: poder-se-ia classificar os monopólios de três formas: legal – quando devidamente determinado pela lei, no caso do Brasil, pela lei maior (177, CF); natural – quando em decorrência natural de mercado restar apenas uma única empresa operando em determinado segmento, sem que a sua atuação tenha ocorrido para esse resultado; forçado – quando pela ação de uma empresa por intermédio de abuso de poder econômico tenha provocado a saída das demais empresas concorrentes em determinado segmento de mercado. O monopólio natural não configura ato anticoncorrencial, mas mera decorrência de determinado segmento mercadológico. O monopólio forçado só ocorre se houver abuso de poder econômico o que configura ato anticoncorrencial e aviltante do princípio da livre concorrência. Já o monopólio legal vem determinado na Constituição Federal pelo artigo 176, que determina que: 

“(…) as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”. 

Já o artigo 177 estabelece que: 

“(…) constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluídos; II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”.

 Logo, nos casos enumerados pelo art. 177 da CF, a livre iniciativa deixa de ser aplicada, constituindo monopólio legal da União, o exercício de tais atividades econômicas;  

b) autorização prévia – outra situação que limita o exercício de atividade econômica é a necessidade prévia de autorização estatal. Nesse caso, conclui-se que efetivamente se está diante de situação típica de limitação, já que o monopólio parece mais uma hipótese de proibição. O parágrafo único do art. 170 da CF dispõe que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”, portanto, são empresas dependentes de autorização para funcionamento. Para funcionamento, exigem necessidade prévia de autorização: 

b.1) pesquisa e a lavra de recursos minerais – tal objeto só pode ser praticado na forma de concessão de serviço público e requer autorização prévia do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (parágrafo 1º do art. 176 da CF, art. 97 do Decreto nº 62.394/68);

 b.2) sociedades constituídas com capital estrangeiro – para se constituir sociedade no Brasil com capital parcial ou totalmente estrangeiro, é necessária autorização prévia do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, consoante determina o Decreto nº 3.444/2000, Decreto-Lei nº 2.627/40 e Instrução Normativa nº 81/99 do Departamento Nacional de Registro do Comércio-DNRC;

 b.3) Instituições financeiras e assemelhadas – as instituições financeiras e assemelhadas, consideradas estas últimas as caixas econômicas; bancos comerciais; bancos múltiplos; bancos de desenvolvimento; bancos de investimento; sociedades de crédito, financiamento e investimento; sociedades corretoras de câmbio e de títulos e valores mobiliários; sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários; sociedade de crédito imobiliário; sociedade de arrendamento mercantil e cooperativas de crédito, dependerão de autorização prévia do Banco Central do Brasil (Instrução Normativa nº 32/91 do DNRC e Leis nº 4.595/64, 4.728/65 e 5.764/71); 

 b.4) Sociedades de investimentos – as empresas que apliquem capital em carteiras diversificadas de títulos ou valores mobiliários e de administração de fundos em condomínio, dependerão de autorização prévia da Comissão de Valores Mobiliários – CVM (art. 49 da Lei nº 4.728/65 e Lei nº 6.385/66);

 b.5) Cooperativas – as cooperativas em geral, exceto as cooperativas de crédito que se inserem no mesmo tratamento dado às instituições financeiras, dependerão de autorização prévia das Juntas Comerciais, por delegação do Poder Executivo Federal (art. 17 da Lei nº 5.764/71);

 b.6) Sociedades anônimas de capital aberto – as sociedades anônimas de capital aberto, ou de subscrição pública de capital, deverão requerer autorização prévia da Comissão de Valores Mobiliários-CVM para funcionamento (art. 82 da Lei nº 6.404/76);

 b.7) Estatais – as empresas estatais, consideradas estas como as constituídas integralmente com capital público – empresas públicas ou parcialmente com capital público – sociedades de economia mista, dependerão de autorização prévia do Congresso Nacional (art. 37, XIX, CF);  

 b.8) Transporte aéreo – as empresas de transporte aéreo dependem de prévia autorização do Ministério de Aeronáutica (atualmente Ministério da Defesa) (Lei nº 7.565/86);

 b.9) Telecomunicações e radiodifusão – as empresas que explorem  objeto de telecomunicações ou radiodifusão dependerão de prévia autorização da Secretaria Nacional de Comunicações (art. 38 da Lei nº 4.117/62);

 b.10) Atividades autorizadas por Agências Reguladoras – as atividades disciplinadas por agências reguladoras específicas dependerão de prévia autorização da respectiva agência (legislação específica de criação da agência).   

Com isso, poderia se afirmar que da forma como está colocado dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da livre iniciativa não é absoluto, pois permite proibição e submete o exercente à autorização, em várias situações. Porém, Eros Roberto Grau[15] acrescenta que: 

“(…) o que mais importa considerar, de toda sorte, é o fato de que, em sua concreção em regras atinentes à liberdade de iniciativa econômica, o princípio, historicamente, desde o Decreto d’Allarde, jamais foi consignado em termos absolutos”.   

De qualquer sorte, não se pode dizer que essa necessidade de autorização estatal tenha minimizado a livre iniciativa ou autorizado a intervenção estatal a partir dela, tratando-se apenas de exercício regulador do Estado a partir, tão-somente, de autorização legislativa, assim colocado por André Ramos Tavares[16] 

“(…) o postulado da livre iniciativa, portanto, tem uma conotação normativa positivada, significando a liberdade garantida a qualquer cidadão, e uma outra conotação que assume viés negativo, impondo a não-intervenção estatal, que só pode se configurar mediante atividade legislativa que, acrescente-se, há de respeitar os demais postulados constitucionais e não poderá anular ou inutilizar o conceito mínimo de livre iniciativa”. 

Já do ponto de vista funcional, a livre iniciativa possui uma limitação imposta ao próprio Estado, regrando a sua participação direta no mercado, no exercício de atividade econômica, conforme determina o artigo 173 da CF, ao disciplinar que: 

 ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” restando, ao Estado, além da exceção capitulada, a prestação de serviços públicos por imperativos do art. 175 da CF “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. 

Enfim, adotou-se o pensamento de André Ramos Tavares[17], que afirma: 

“(…) a liberdade privada em dedicar-se a uma determinada atividade econômica significa tão-somente liberdade de desenvolvimento dessa atividade no quadro estabelecido pelo Poder Público, dentro dos limites normativamente impostos a essa liberdade. Este é o motivo pelo qual se pode afirmar validamente que a liberdade de iniciativa se exerce dentro dos parâmetros em que há de ser reconhecida, fazendo-se compreender, no texto constitucional, a abertura para a criação de restrições por via da lei, desde que plausíveis e compatíveis com o interesse público”.  

6. A necessidade de conservação da empresa na economia nacional 

O fato de se colocar a empresa no principal eixo do ciclo econômico capitalista – o da produção, resultou o entendimento do porquê o Brasil adotou o princípio da preservação da empresa como fator de desenvolvimento econômico. Embora tal princípio não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, é de se verificar tratar-se de um princípio geral não positivado, como bem afirma Eros Roberto Grau[18]: 

“(…) além desses, outros, definidos como princípios gerais não positivados – isto é, não expressamente enunciados em normas constitucionais explícitas – são descobertos na ordem econômica da Constituição de 1988. Aí, particularmente, aqueles aos quais dão concreção às regras contidas nos arts. 7º e 201 e 202 do texto constitucional”. 

Posteriormente à Constituição Federal, mas ao ver do autor deste trabalho, com base no texto constitucional, o legislador viria a adotar expressamente o princípio da preservação da empresa na Lei nº 11.101/05 – Lei de Recuperação de Empresas, ao proclamar em seu artigo 47 que afirma: 

“(…) a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.  

O Senador Ramez Tebet[19] – Relator do Projeto de Lei nº 71/2003 que resultou na mencionada lei, ao elaborar seu parecer, assim se posicionou sobre a adoção do princípio da preservação da empresa: 

Preservação da empresa: em razão de sua função social, a empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País. Além disso, a extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico representado pelos chamados intangíveis como: nome, ponto comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores, know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre outros”. 

Fábio Nusdeo[20], ao analisar as causas do subdesenvolvimento econômico já apontava que: 

“(…) são inúmeras e, evidentemente, variam de um para outro país, mas alguns traços comuns podem ser destacados:

(…);

d) alta participação do setor primário da economia na formação da renda. O setor secundário (indústria) é atrofiado e o terciário inflado, devido ao grande contingente de serviços de reduzida ou nula produtividade, a configurar não tanto uma atividade produtiva mas mais um desemprego disfarçado; (…)”.  

E adiante, acrescenta como exemplo de desenvolvimento econômico os ciclos induzidos ao exemplificar que: 

“(…) os ciclos da economia colonial brasileira são exemplos de crescimento induzido. O café também começou como um ciclo colonial enquanto percorreu o Vale do Paraíba. A seguir, transformou-se numa atividade condutora do desenvolvimento”[21] 

Assim, é claro que a empresa goza hoje de uma posição de destaque no cenário econômico nacional, razão pela qual, a livre iniciativa ganha sua concretude, na medida em que a atividade empresarial no Brasil seja preservada por meio da aplicação plena dos princípios da preservação da empresa e da livre concorrência. 

7. Livre iniciativa e relação de consumo 

Quem melhor coteja a livre iniciativa com a relação de consumo é Rizzatto Nunes[22], que afirma que: 

“(…) é verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p.ex. do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado são proibidos; e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor”. 

Claro está que a proteção ao consumidor se faz por um sistema formado não só pelo Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, mas também, pela Lei de Defesa da Concorrência – Lei nº 8.884/94. Para integrar esse conjunto de leis ordinárias e atribuir a ele um caráter de sistema, necessária se faz a indicação de um norte a ser seguido e de harmonização de seus elementos, o que nasce a partir do texto constitucional. 

Nesse sentido, José Marcelo Martins Proença[23], ao comentar o caso envolvendo a Nestlé e a Garoto (marcas de chocolate), afirmou que:

“(…) a rumorosa e acertada decisão proferida pelo CADE no caso ‘Nestlé – Garoto’ expressa uma verdade até então pouco revelada: os consumidores brasileiros não são defendidos tão-somente pelo seu Código, mas por outros sistemas legislativos também voltados para a função primordial de defender os hipossuficientes consumidores”. 

8. Conclusão 

Como se verificou neste estudo preliminar sobre os princípios da ordem econômica, em especial por meio da análise do princípio da livre iniciativa, é de se verificar que o sistema econômico brasileiro garante um papel de destaque à empresa, no cenário econômico, haja vista que o desenvolvimento econômico do país, em termos de atividade econômica é dependente do resultado do exercício da atividade empresarial.   

Ao analisar-se o ciclo econômico capitalista e vislumbrar-se o seu funcionamento assentado nos eixos da produção, do trabalho, da renda e do consumo, forçoso é se inferir que o início de seu ciclo está vinculado ao exercício da atividade empresarial que passa a ter relevante expressão para o desenvolvimento econômico do país. Assim sendo, Lafayete Josué Petter[24] diz que: 

“(…) a liberdade de iniciativa econômica é mesmo substrato da realidade econômica da empresa, a qual se tem projetado em diversos ângulos da normatividade jurídica e constitui um dos suportes fundamentais do processo de desenvolvimento”. 

O sistema econômico capitalista pressupõe interferência mínima por parte do Estado, porém, desnecessário afirmar que o universo macroeconômico é a somatória dos universos microeconômicos. O planejamento macroeconômico, assim visto, estudado e aplicado, é universalmente aceito como ferramenta de promoção e desenvolvimento social, condição esta que, em última instância, é a que interessa ao Estado, como agente que aponta as diretivas às empresas na qualidade de principais agentes econômicos que compõem o mercado no ambiente de liberalismo econômico, para promoção do bem-estar social, e que, em função da atual realidade econômica, fundada nos princípios neoliberais, forçoso é reconhecer que não é possível intervenção em grau zero na economia e que, por força da própria semântica, qualquer lei significa em si o germe da intervenção do Estado sobre as liberdades individuais, in casu, a de iniciativa e de concorrência – sempre no sentido de proteção do mercado.   

9. Bibliografia 

ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999. 

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005. 

NUSDEO, Fábio. Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed., São Paulo: RT, 2005. 

PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: RT, 2005. 

PINTO FERREIRA. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. 

PROENÇA, José Marcelo Martins. Consumidor ganhou no caso ‘Nestlé – Garoto’. Disponível em http://www.saraivajur.com.br. Acesso em 26-05-2006. 

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004.  

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996. 

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003.  

 


 

NOTAS

[1] Curso de Direito Constitucional, p. 577.

[2] Curso de Economia, Introdução ao Direito Econômico, p. 211.

[3] Direito Constitucional Econômico, p. 247.

[4] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 162.

[5] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 200.

[6] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 725.

[7] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 164.

[8] Dentre eles destacam-se: Lafayete Josué Petter, Fábio Nusdeo e Sérgio Varella Bruna.

[9] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 161.

[10] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 726.

[11] Direito Constitucional Econômico, p. 33.

[12] Curso de Direito Constitucional, p. 348.

[13] Curso de Direito Constitucional, p. 348.

[14] Direito Constitucional Econômico, p. 247. 

[15] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 205.

[16] Direito Constitucional Econômico, p. 248.

[17] Direito Constitucional Econômico, p. 252.

[18] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 195.

[19] Extraído do Parecer do Relator que seguiu anexo ao PLC nº 71/2003 para votação no Senado Federal.

[20] Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico, p. 352.

[21] Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico, p. 366.

[22] Curso de Direito do Consumidor, p. 55.

[23] Artigo intitulado Consumidor ganhou no caso “Nestlé – Garoto”. Disponível em: www.saraivajur, Acesso em: 26-maio-2006.

[24] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 166.

 


 

RFFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

SERGIO GABRIEL:   Administrador de Empresas e Advogado; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos; Pós-graduado em Administração pela FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado; Coordenador do curso de Administração da USF – Universidade São Francisco; Professor de Direito Empresarial e Tributário da USF – Universidade São Francisco; Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul; Membro da Comissão de Direitos Autorais da UNICSUL; Professor da INTERFASES – Escola de Prática Jurídica de São Paulo; Professor do EXORD – Curso Preparatório; Professor convidado da ESA/OAB – Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil; Co-autor do livro “Temas Relevantes do Direito”, SP: Lúmen Editora, 2001; Co-autor do livro “Dano Moral e sua Quantificação”, RS: Editora Plenum, 2004; Co-autor do livro “Exame de Ordem comentado e anotado”, SP: Apta Edições, 2005; Co-autor do livro “Exames de OAB”, SP: DPJ Editora, 2005; Autor do livro “Direito Empresarial” da coleção Lições de Direito, SP: DPJ Editora, 2006. Texto adaptado em 14/08/2007 da dissertação de mestrado do autor defendida junto a UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos.


Jurado Privilegiado: Os membros do Tribunal do Júri também gozam do foro privilegiado

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*Edson Pereira Belo da Silva

01. Considerações iniciais. 

     O tema proposto não tem precedente jurisprudencial ou doutrinário, segundo revelou nossas pesquisas. Talvez sequer tenha algo escrito nesse sentido. Mas caso isso realmente se confirme, acreditamos que a razão primordial deve-se ao fato de que jamais um dos membros que compõe o egrégio Conselho de Sentença, em pleno exercício da função de Juiz do fato, ter sido autor de um delito.   

     Não temos dúvida alguma que toda a comunidade jurídica que cultua e até busca resgatar a ampliação da competência do Tribunal Popular gostaria de conhecer um caso prático, como, por exemplo: (i) “jurado agride física e verbalmente réu, sem justo motivo e no curso do julgamento, acusado de violentar e matar crianças”; “jurado agride fisicamente um dos seus colegas, no exercício da função, após intensa discussão sobre futebol”; (iii) e “júri é corrompido, financeiramente, para absolver réu”. 

     Tantos outros exemplos, hipotéticos, poderiam ser dados apenas para justificar o foro por prerrogativa da função, caso o magistrado popular, no desempenho do seu mister, fosse o sujeito ativo de uma infração penal. No entanto, o fato de não ter-se encontrado precedente nesse sentido – o que seria negativo para a instituição Júri – só reforça ainda mais o pensamento democrático de que os membros do Conselho de Sentença são mesmos dignos da função constitucional que exercem. 

     O Júri, eventualmente, pode decidir de forma contraria as provas dos autos (artigo 593, inciso III, alínea “d”, do CPP), até porque inexiste instituição jurídica que não cometa os seus erros ou pecados; (1) todavia, tem sabido os membros do Júri observar, através dos tempos, o direito de defesa do acusado (garantia da plenitude de defesa), ouvindo-o atentamente por meio do seu defensor, o qual também sempre gozou de prestígio perante os magistrados popular.

     Muitas são as qualidades do Júri que quase não se percebe no juiz togado. Mas as duas principais delas são: a experiência de vida e o julgamento de consciência. O magistrado togado julga o réu como réu, pois ele carrega em sua alma a essência da superioridade estatal, deixando bem claro nos autos que o julgador em tudo se distingue do infrator acusado; ao passo que o juiz popular vê o réu como o semelhante que sofre uma acusação (um mortal igual a ele), decidindo, assim, a sua liberdade conscientemente. O julgador técnico está a uma lua de distância da realidade em que viveu e vivi, encastelado em seu gabinete e condomínio, distante, por vezes, até de si mesmo; enquanto que magistrado leigo convive com realidade brasileira, de modo que ele sente e sofre na pele todos os problemas sociais. 

     Aliás, ultimamente, é a magistratura togada quem tem freqüentado o “noticiário policial”, tendo em conta as inúmeras denúncias graves propostas pelo Ministério Público nas Justiças Federal e estadual. (1-A)    

     A autoridade do Júri – que se sobrepõe, inquestionavelmente, a do juiz togado – advêm do texto constitucional, notadamente do parágrafo único, do seu artigo 1.º, onde o respectivo legislador deixou assentado: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Na realidade, a “teria na prática é outra coisa”.  

     É que o exercício do poder de julgar, de decidir os objetos jurídicos mais relevantes da vida em sociedade, paulatinamente, veio sendo retirado da competência do povo e passado para a competência do julgador técnico, sem que o dono do poder (o povo) fosse ao menos consultado, cabendo-lhe atualmente e apenas, julgar os crimes dolos contra a vida e os conexos (artigos 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da CF, e 78, inciso I, do CPP). 

     Para quem no passado julgou as causas cíveis e penais, os crimes de imprensa (Júri de Imprensa) e os contra a economia popular (Júri de Economia Popular), (2) restou aos juízes tidos como leigos o julgamento dos delitos mencionado acima, apesar da magistratura togada, na sua quase unanimidade, ainda reclamar a supressão do Tribunal Popular. 

     Com se vê, o dono do poder de mandante passou a mandatário, subserviente daquele que legitimamente não o representa: o juiz togado. Daí, portanto, não ser possível, na prática, dizer que o povo está representado no Poder Judiciário, sobremaneira quando ele tem sido afastado quase que integralmente de tal Poder. 

     Destarte, mesmo com todas essas adversidades – que poderia ser tachada de “golpismo” – a instituição do Júri Popular sobrevive bravamente.  

02. Garantia do foro por prerrogativa da função. 

     O primeiro fundamento legal para a existência do Tribunal Popular, conforme visto acima, é o artigo 1.º, parágrafo único, da Carta da República, que assevera ser o povo o dono de todo o poder, nos termos da referida Constituição. Mais adiante, o legislador constituinte, dentro do Título “Dos Direitos e das Garantias Fundamentais”, artigo 5.º, inciso XXXVIII, reconheceu a Instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei. Esses são os dois momentos substancias do Júri dentro da Lei Maior.  

     Julgar mais ou menos delitos, inclusive os seus representantes infratores, é uma questão que cabe única e exclusivamente ao povo decidir – detentor de todo Poder – e não aos juízes togados ou aos parlamentares que aprovam leis na madrugada quando a grande maioria da sociedade está repousando. 

     Exercendo diretamente o seu poder de julgar o próximo, como juiz natural de todas as causas que é indistintamente (por que todo poder lhe pertence), o povo toma assento na Tribuna do Júri como autêntico magistrado para dizer o direito. E o diz com sua consciência de quem julga melhor do que juiz togado. 

     Nessa linha de pensamento, entende-se que ao povo – juízes dos juízes – devem ser dadas todas as honrarias, dentre elas o foro por prerrogativa da função para o caso de vir praticar delito no exercício da função de julgador popular, consoante tentamos exemplifica no item 01 deste simplório artigo. Mas isso seria até desnecessário, porque o povo não pode pedir aquilo que ela já tem: “todo o poder”. Logo, o foro por prerrogativa da função lhe pertence, naturalmente ou por razoabilidade. 

     O sistema como posto, protege os representantes do povo e os agentes políticos, (3) mas não resguarda o dono do poder no seu pleno exercício de juiz popular. Vale dizer, que o patrão (o povo), representado na figura dos membros do Júri, se vier a cometer um delito no curso de julgamento que aprecia, irá ser julgado pelo juiz singular. Por sua vez, se o seu empregado (o juiz técnico) for o sujeito ativo de uma infração penal será ele julgado pelo Tribunal togado. 

     Eis aí uma questão surrealista: “quem pode o menos, pode o mais”; “quem pode o mais, não pode o menos”. E ainda ensinam que vivemos numa democracia plena. Voltemos, então, a enfatizar: “a teoria na pratica é outra coisa”. 

     Em não sendo relevante os sobreditos argumentos para os críticos do Direito, lembremos que o Tribunal do Júri é um órgão do Poder Judiciário dos Estados, assim como o Juiz de Direito o é, constando tal instituição nas Constituições dos Estados, “verbis gratia”, São Paulo (artigo 54, inciso III), Rio de Janeiro (artigo 151, inciso III), Minas Gerais (artigo 112), Rio Grande do Sul (artigo 91, inciso IV), Paraná (artigo 93, inciso III). (4) 

     A primeira vista, parece que os membros do Júri não é um órgão dos Tribunais de Justiça dos Estados por não constar essa circunstância dos respectivos textos constitucionais; porém, não há como dissociar o Tribunal Popular dos jurados. Aquele não subsiste sem estes. Se o Júri é um órgão dos Tribunais estaduais, consoante exemplificado, de igual forma, os seus membros gozam de tal status, isto é, o jurado integrante do Conselho de Sentença também é um órgão das Cortes de Justiça dos Estados. 

     Vê-se, nesse passo, que as Constituições Estaduais em referência foram além da própria Carta Federal (artigo 92), à qual foi omissa ao deixar de enumerar o Tribunal do Júri como um dos órgãos do Poder Judiciário. (5) O legislador constituinte, com isso, deixou transparecer que àquela instituição popular – revestida de garantia constitucional – não exerce função jurisdicional, ao passo que o Conselho Nacional de Justiça (cuja função é basicamente disciplinar e não jurisdicional, artigo 103-B, § 4.º, da CF) não padece dessa mesma omissão enumerativa teratológica. 

     É manifesto o contra-senso do legislador: o Tribunal Popular (juízes leigos), onde o povo exerce diretamente todo seu poder, não consta na Constituição Federal como órgão do Poder Judiciário; enquanto que os demais órgãos judiciais enumerados no artigo 92, os quais servem ao povo, foram devidamente lembrados. Nem mesmo na Lei Orgânica Nacional da Magistratura (LC n.º 35/75) cuidou o legislador de inserir o Júri como órgão do Judiciário Nacional.  

     Apesar dessa grave inobservância legislativa ao dono de todo o poder, não se retira dele o direito ao foro por prerrogativa da função no efetivo exercício da magistratura popular, sobretudo quando a Lei Processual Penal, em seu artigo 438, equipara os juízes do fato com os magistrados togados, no tocante a responsabilidade por crimes praticados contra Administração em geral (por exemplo, artigos 316, 317, §§ 1.º e 2.º, e 319, do Código Penal).  

     Assevera Guilherme de Souza Nucci, ao cotejar o citado dispositivo da norma processual penal, que a “equiparação aos juízes togados é mais um fator que demonstra pertencer o Tribunal do Júri ao Poder Judiciário, já que seus integrantes leigos, assim como os juízes de direito, respondem por crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral”. (6) 

     Também comentando o artigo 438, do Código de Processo Penal, Eduardo Espínola Filho lecionava que os deveres e a responsabilidade dos jurados equiparam-se aos dos juízes, “cujas funções exercem no caso particular, os jurados tem as mesmas responsabilidades destes, quanto ao desempenho fiel, correto honesto da sua importante função”. (7)  

     Oportuno assinalar, ainda, o festejado pensamento de Magarinos Torres, (8) sobre essa mesma questão, quando ainda vigia o revogado Decreto-Lei n.º 167 de 5 de janeiro de 1938 (primeira lei do júri): “O que a nova lei acrescentou às disposições gerais vigentes, foi apenas a equiparação, que nestas era implícita, dos jurados aos magistrados de ofício”.

      A responsabilidade dos integrantes do Conselho de Sentença, conforme visto, equipara-se ao do juiz presidente do Júri. Por sua vez, o magistrado popular não julga somente questões de fato, segundo tem pregado torrencialmente doutrina e a jurisprudência; muito pelo contrário, o membro do Júri é Juiz do fato e de Direito, isso porque ele julga também matéria de direito, por exemplo, ao votar os inúmeros quesitos relativos às teses de “legítima defesa” e “inexigibilidade de conduta diversa”, valendo ressaltar que essa última tese é uma construção doutrinária e jurisprudencial.       

     Outro sinal de igualdade entre o magistrado togado e o juiz popular nos é dado pelo artigo 295, incisos VI e X, do Código de Processo Penal, o qual dispõe que ambos os julgadores só serão recolhidos em “quartel ou em prisão especial” quando presos provisoriamente. Tal disposição legal, sob a nossa ótica, deixa assente que os juízes que compõem o Júri (o togado e os leigos) possuem os mesmos direitos em caso de prisão cautelar. 

     Nota-se, assim, modestamente, que são sólidos os fundamentos expendidos no sentido de que ao membro da magistratura popular, no pleno exercício da função, é garantido o foro por prerrogativa da função quando ele for autor de delito, como também é uma prerrogativa (artigo 96, inciso III, da CF) do juiz presidente do Conselho de Sentença, exercendo ou não a sua função. 

     Sustentar essa tese pode levar, eventualmente, a comunidade jurídica interpretar que estar-se na contramão daquilo que a sociedade – a voz das ruas ou a opinião pública notadamente – há muito tempo vem reclamando: o fim do que se apelidou de “foro privilegiado” para determinadas autoridades. Certamente, parece ser esse o melhor destino para o foro especial.  

     Destarte, em homenagem ao espírito democrático ainda pouco perceptível no sistema jurídico pátrio, acredita-se que melhor seria submeter todos os servidores do povo e os agentes políticos acusados da prática delitiva ao crivo do egrégio Tribunal do Júri, conforme ocorre nos Estados Unidos da América por força do artigo III, Seção 2, número 3, e da VI Emenda Constitucional. (9)     

     Ocorre, no entanto, que até chegar esse ansioso momento – amadurecimento da democracia ou o iluminismo pleno e acabado – o sol pode não mais estar raiando sobre as nossas cabeças e os poetas terem se extinguido diante da impossibilidade de namorar a lua e paquerar as estrelas. 

     No concerne ao foro competente para julgar o jurado infrator, aplicar-se-á aquele próprio do juiz togado que preside o Júri, no caso Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.  

      Conclui-se, portanto, que apesar de não estar expressamente previsto no nosso direito pátrio, é uma garantia do magistrado popular o foro por prerrogativa função no efetivo exercício dessa relevante atividade jurisdicional indiscutivelmente democrática, devendo ser ele julgado pelo respectivo Tribunal competente para julgar o juiz togado presidente do Júri.  

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal, pós-graduado em direito, autor de obras jurídicas inéditas, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante (edson@edsonbelo.adv.br).         

 

 

CONSULTA POPULAR: Lei que trata de assuntos do Plano Diretor deve ter consulta à comunidade

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É inconstitucional a Lei Complementar nº 333/06, do Município de Santa Cruz do Sul, que regulamenta a regularização de edificações em desacordo com o Plano Diretor. A decisão foi unânime e tomada pelo Órgão Especial do TJRS nesta tarde (12/11).

A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pelo Procurador-Geral de Justiça. A legislação autorizou ao Município a regularizar edificações clandestinas ou construídas em desacordo com a legislação municipal em relação aos recuos e taxa de ocupação, entre outras características.

Para a Desembargadora Maria Berenice Dias, relatora, a norma trata de "matérias típicas do Plano Diretor e das leis de diretrizes gerais de ocupação do território, sem que houvesse qualquer consulta à comunidade".

Para a magistrada, não foi observado o disposto no art. 177 da Constituição Estadual, que diz, em seu parágrafo 5º: "Os Municípios assegurarão a participação das entidades comunitárias legalmente constituídas na definição do plano diretor e das diretrizes gerais de ocupação do território, bem como na elaboração e implementação dos planos, programas e projetos que lhe sejam concernentes".

"Há vício de inconstitucionalidade formal na lei (…), uma vez que o dispositivo constitucional é auto-aplicável, e exige a observância, no processo legislativo e na produção da lei, da condicionante da publicidade prévia e da efetiva participação de entidades comunitárias", considerou a Desembargadora Maria Berenice.  Proc. 70020527149


FONTE:  TJ-RS, 12 de novembro de 2007.

APOSENTADORIA É IMPENHORÁVEL: Cancelada penhora sobre proventos de aposentadoria em execução fiscal

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A 1ª Seção de Dissídios Individuais (SDI) do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região deu provimento parcial a mandado de segurança impetrado por um casal, modificando determinação da 9ª Vara do Trabalho de Campinas, que havia determinado o bloqueio eletrônico da conta conjunta dos autores, em razão de execução de dívida ativa promovida pela União. O débito decorre de processo em que figura como executada uma empresa da qual o primeiro impetrante é sócio.

A 1ª SDI reconheceu a impenhorabilidade dos valores depositados exclusivamente a título de proventos de aposentadoria em favor do primeiro impetrante. Quanto aos valores relativos a uma aplicação financeira, o colegiado determinou a liberação de 50% do total, referentes à meação da esposa.

Os autores alegaram que a decisão da 9ª VT violou direito líquido e certo. O relator, juiz Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva, ponderou em seu voto que, efetivamente, nos termos do inciso LXIX do artigo 5º da Constituição Federal, "conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas corpus’ ou ‘habeas data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público".

Para o relator, embora a penhora de conta corrente seja possível, "pois o artigo 655 do Código de Processo Civil (CPC) elege o dinheiro como bem preferencial à penhora", tratando-se de depósitos de proventos de aposentadoria, ainda que realizados em conta bancária comum, as quantias são impenhoráveis, conforme dispõe o artigo 649 do mesmo CPC, com a redação que lhe conferiu a Lei 11.382 de 2006. Segundo o artigo, são absolutamente impenhoráveis "os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal".

O magistrado observou ainda que a Lei 8.213 de 1991, que, dentre outras providências, dispõe sobre os planos de benefícios da previdência social, estabelece, no artigo 114: "Salvo quanto a valor devido à Previdência Social e a desconto autorizado por esta Lei, ou derivado da obrigação de prestar alimentos reconhecida em sentença judicial, o benefício não pode ser objeto de penhora, arresto ou seqüestro, sendo nula de pleno direito a sua venda ou cessão, ou a constituição de qualquer ônus sobre ele, bem como a outorga de poderes irrevogáveis ou em causa própria para o seu recebimento."

Quanto à liberação dos 50% referentes à meação da segunda impetrante no valor relativo à aplicação financeira, o juiz Sotero ressaltou que, apesar de o artigo 1.644 do Código Civil estabelecer que o casal é solidariamente responsável pelos débitos contraídos por qualquer um dos dois cônjuges, no caso em discussão, como a dívida se refere a uma execução fiscal em que não ficou demonstrado efetivo benefício da esposa em função do ato ilícito que gerou a dívida ativa em favor da União, coube aplicar o entendimento sintetizado pela Súmula 251 do Superior Tribunal de Justiça. De acordo com a Súmula, "a meação só responde pelo ato ilícito quando o credor, na execução fiscal, provar que o enriquecimento dele resultante aproveitou ao casal." (Processo 0620-2007-000-15-00-1 MS)


FONTE:  TRT-Campinas (15ª Região),  12 de novembro de 2007.