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As Prisões Virtuais

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* Claudio da Silva Leiria 

É sabido que o encarceramento do criminoso em estabelecimento prisional pode acarretar, dentre outras conseqüências negativas, despersonalização, promiscuidade, embrutecimento, violência, degradação, rebeliões, etc.

Alvissareiras, novas descobertas tecnológicas podem propiciar novos modos de punição e vigilância do criminoso, evitando muitos males advindos do encarceramento em estabelecimento prisional.

Existe em alguns países, por exemplo, o monitoramento eletrônico do condenado, com adaptação de pulseiras, tornozeleiras, ou cintos ao seu corpo.  Esses dispositivos emitem sinais para um transmissor situado em uma central de monitoramento.  Para que o sistema funcione, deve-se contar com o suporte técnico de uma linha telefônica fixa na residência do indivíduo ‘monitorado’. Há necessidade também de residência fixa para que se possa fazer a ativação dos mecanismos de identificação das pulseiras, tornozeleiras ou cintos acima referidos.

Esse sistema de monitoramento possui transmissor conectado a satélites, o que permite ciência da localização exata do criminoso, ainda mais com a integração à tecnologia GPS.   Por meio do GPS, com auxílio de freqüência de rádio, torna-se possível determinar a localização do criminoso 24h por dia, o que permite verificar, por exemplo, se ele se afastou dos limites das áreas pela qual pode transitar, ou se está em local impróprio para determinados horários.

Na Inglaterra, o monitoramento eletrônico se faz com o sistema Webcam, ou seja, uma câmera na residência do infrator projeta a imagem do seu rosto para o centro de controle.  Nessa modalidade, o centro de controle, em horário aleatório, telefona para o infrator em prisão domiciliar, determinando que se poste em frente uma câmera, que fará a transmissão de sua imagem. 

No Rio Grande do Sul a Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE) estuda a compra de braceletes eletrônicos de titânio para monitoramento de presos do regime semi-aberto.  É sabido que expressiva parcela de presos nesse regime, que podem sair para exercer atividade laborativa durante o dia e fazem jus a 35 dias de saída temporária durante o ano, aproveitam esse tempo para praticar ilícitos, face à fiscalização precária dos órgãos de segurança.

Por fim, existe a opção de monitoramento eletrônico do criminoso mediante colocação de um microchip na camada subcutânea de sua pele, sem lesar vasos sangüíneos.

As vantagens do monitoramento eletrônico são várias: economia de recursos públicos (nos EUA, por exemplo, um preso recolhido à penitenciária custa, por dia, cerca de 50 dólares, enquanto um criminoso ‘monitorado’ custa ao contribuinte menos de 20 dólares); possibilidade de efetiva fiscalização do poder público quanto ao cumprimento da pena; diminuição da população carcerária nos estabelecimentos prisionais; manutenção dos laços familiares (já que a pena pode ser cumprida em casa); diminuição da reincidência; e, por fim, evita-se a convivência de presos de menor periculosidade com os de maior periculosidade, impedindo-se que os primeiros sejam ‘instruídos’ nas ‘artes delituosas’ pelos segundos (prisão como ‘universidade’ do crime).

O monitoramento eletrônico pode ser exercido inclusive em relação a pessoas não condenadas, como forma de substituição às prisões preventivas ou provisórias.

Como não poderia deixar de acontecer, os ativistas de direitos humanos no mundo inteiro já se mobilizam contra os meios de monitoramento eletrônico, alegando que representam inaceitável invasão das esferas da privacidade e da intimidade. Ora, tal insurgência é descabida, pois o monitoramento tem como finalidade apenas controlar a presença ou ausência do indivíduo no espaço geográfico imposto pelo juiz.  Aos descontentes com o monitoramento eletrônico, responde-se que então deve dar-se ao preso a opção de aceitar tal medida de controle ou então cumprir a pena no estabelecimento prisional. 

Conclui-se que o monitoramento eletrônico é uma alternativa penal e social útil, pois a ela pode recorrer o Estado para garantir uma sanção menos traumática, permitindo uma maior ressocialização do recluso.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Cláudio da Silva Leiria é Promotor de Justiça em Guaporé/RS

e-mail: claudioleiria@hotmail.com

Discriminação genética

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* João Baptista Herkenhoff 

Os avanços da ciência decorrem da capacidade inteligente de homens e mulheres e devem ser celebrados como o paulatino domínio do “mundo do ser” (mundo natural) pelos protagonistas do “mundo do compreender, explicar, conduzir, criar” (mundo cultural).

O labor científico tem como objetivo a busca da verdade material. A verdade material está, entretanto, subordinada à verdade substancial.

É verdade material que, através de determinados procedimentos, torna-se possível produzir bombas que não apenas matam pessoas, mas desnaturam a essência da vida (guerra química, guerra biológica). É verdade substancial que a produção de tais bombas, injustificável em toda e qualquer situação, desvia a ciência de seu fim, que é servir à felicidade humana.

A Ciência está subordinada à Ética, não pelo capricho de filósofos e teóricos, mas pela sua estrutura ontológica de ação destinada a um fim que a orienta.

O desenvolvimento da Biotecnologia, que se observa neste momento da História, coloca as questões éticas dentro de uma pauta prioritária.

Subordinando-se, como é correto, a Ciência à Ética, podemos admitir que se altere a substância biológica do homem, sua composição genética? É legítimo buscar um “ser humano melhorado”? Qual seria esse padrão de excelência e quem o fixaria? Não seria de novo o perigo da pretensão racista ameaçando a Humanidade?

Estas e outras questões aguçaram a mente do Professor Francisco Vieira Lima Neto, que está lançando o livro “O direito de não sofrer discriminação genética”, sob o selo da Editora Lumen Juris.

Francisco Vieira Lima Neto é o dinâmico e dedicado Coordenador do Mestrado em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Outros dois professores do Mestrado também estão autografando: Wanise Cabral Silva (As fases e as faces do Direito do Trabalho) e Hermes Zaneti Júnior (Processo constitucional).

Não obstante criado há pouco mais de um ano, o Mestrado em Direito da UFES está produzindo excelentes frutos.

Neste curto espaço de tempo, os professores produziram e publicaram seis livros, seis capítulos de livros e dez artigos jurídicos de grande porte, sendo que seis deles em revistas classificadas, pelos órgãos oficiais de pesquisa, como de qualidade nacional ou internacional.

Incentivados e orientados pelos professores, também os mestrandos publicaram artigos (oito) e estão em vias de aumentar em muito essa produção.

Quinze professores de renome nacional ou internacional estiveram presentes em nossa universidade para falar no Mestrado.

Aulas de altíssimo nível, ministradas pelos professores do quadro, marcam o cotidiano do curso.

Está assim o único Mestrado em Direito mantido pelo Poder Público, no Estado do Espírito Santo, cumprindo sua missão. Não se trata apenas de um Mestrado, mas de um Mestrado público, circunstância que o singulariza por múltiplas razões. Este aspecto, entretanto, teria de ser abordado num outro artigo.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da UFES – professor do Mestrado em Direito, e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br  


Soberania popular: Tribunal do júri prevalece sobre tribunal superior.

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* Edson Pereira Belo da Silva

01. Considerações iniciais.

O então deputado federal pelo Estado da Paraíba, Ronaldo José da Cunha Lima, renunciou ao mandato – que exerceria na legislatura 2007/2011 – no dia 30 de outubro de 2007, (1) portanto alguns dias antes do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a Ação Penal n.º 333 em que ele, agora ex-parlamentar, é acusado de tentar contra a vida de Tarcísio Buriti, um suposto inimigo político, fato esse ocorrido em 5 de  novembro  de 1993. No pedido de renúncia, que é irrevogável, o ex-deputado manifestou expressamente a vontade de ser julgado pelo Tribunal Popular do seu Estado natal, sendo esse o motivo primordial para ter renunciado de “última hora”.

Renunciar ao mandato para evitar a perda dos direitos políticos (ser “cassado”) tem sido uma constante nos parlamentos brasileiros (federal, estadual e municipal), sobretudo quando as provas são contundentes ou o parlamentar acusado não tem força política suficiente para impedir a cassação do referido mandato. Com isso, todos os elementos de provas coligidos contra o agora ex-parlamentar são remetidos ao Ministério Público, o qual adotará os procedimentos legais pertinentes ao caso.  

Em sentido oposto, e comum, muitos ex-políticos, que respondem a processos na primeira instância do Judiciário, buscam conquistar um mandato eleitoral nos Poderes Executivos ou Legislativos das três esferas de governo somente com o escopo de ver deslocada para o Tribunal respectivo (STF, STJ, TJ) a competência para julgar os processos penais dos quais são acusados de praticar os mais variados delitos. Assinale-se, contudo, que dentre os cargos eletivos apenas o de vereador, em várias Unidades da Federação, não possui o desejado foro por prerrogativa de função, como, por exemplo, no Estado de São Paulo.

Na situação em cotejo, o ex-deputado paraibano, depois de ver hibernar por 14 anos nas Cortes Superiores (STJ e finalmente STF) a Ação Penal que responde pela suposta pratica de crime doloso contra a vida, na modalidade tentada, de competência do Tribunal Popular, decidiu renunciar o mandato para ver-se julgado pelo Júri da Comarca de João Pessoa – PB, para onde será remetido todo o processo penal, caso a Corte Suprema não se dê por competente.

Alega-se que o ex-parlamentar, ao renunciar, “abusou do direito”. Há quem dissesse também que "O ato dele é um escárnio para com a Justiça brasileira em geral e para com o Supremo em especial".

Para o ministro do Supremo Tribunal, Joaquim Barbosa, que relata a aludida Ação Penal, “uma vez definida a data de julgamento do processo, como ocorreu na ação penal contra o ex-parlamentar, não caberia ao réu mudar a instância judicial competente para julgá-lo”.  (2) o ministro Aires Britto, da mesma Corte constitucional, sustentou que, sem dúvida alguma, o parágrafo 4.º, (3) do artigo 55, da Constituição Federal foi pensado para impedir tal abuso. Isto é, a renuncia do mandato estaria suspensa.

Como visto, da simples renúncia de um deputado federal, a Suprema Corte pode, finalmente, reconhecer que a competência do Tribunal do Júri prevalece sobre a do foro por prerrogativa da função. Do contrário, poderá o STF abrir um perigoso precedente para que ex-autoridades (parlamentares, ministros, governadores prefeitos) possam requerer que seus processos penais em tramite na primeira instância sejam remetidos para lá, já que o Supremo Tribunal insiste em julgar ex-parlamentar. 

02. Prevalência da competência do Tribunal Júri, que é o autêntico juiz natural para processo e julgar os crimes dolosos contra a vida.  

O Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, tem uma grande oportunidade de corrigir um dos maiores equívocos jurídicos, a nosso ver, no que concerne o conflito de competência entre o Júri e o foro por prerrogativa da função quando o delito praticado é doloso contra a vida. em outras palavras, se um cidadão comum matar alguém será ele julgado pelo Tribunal Popular (artigo 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da CF); ao passo que se um deputado federal ou senador da República praticar o mesmo delito caberá ao STF processá-lo e julgá-lo (artigo 102, inciso I, alínea “b”, da CF).

Apesar da Constituição Federal prevê o foro por prerrogativas da função para inúmeras autoridades (membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, presidente, governador, prefeito, deputado federal, senador, ministro, conselheiro dos Tribunais de Contas, chefes de missão diplomática de caráter permanente e os comandantes da Marinha, Exercito e Aeronáutica), não ficou consignado em nenhum dos seus dispositivos referentes a tal foro que os “crimes dolosos contra a vida” também seriam julgados pelo Tribunal togado respectivo.

 É claro que hão de pensar que, de igual forma, não se vedou aqueles Tribunais togados de processar julgar os delitos do Júri em razão do foro privilegiado. Mas, a nosso sentir, a competência do Tribunal do Popular não poderia ser afastada em nenhuma situação, sobremaneira por se tratar de uma garantia constitucional individual, (4) tanto que ela não pode sequer ser objeto de proposta de Emenda Constitucional (artigo 60, § 4.º, inciso iv, da CF).  

 O Texto Fundamental é bem claro: cabe ao Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida. Logo, qualquer cidadão, indistintamente, goza desse princípio garantista, do qual sequer pode renunciar; de modo que tal princípio não pode ser afastado ou desprezado pelo simples fato de ter determinada pessoa galgado um mandato eletivo, ingressado na magistratura ou no Ministério Público, etc. e, com isso, alcançado um foro mais específico, o foro por prerrogativa de função.

 A Suprema Corte Federal já deu mostra de que deve mesmo prevalecer à competência do Júri ao editar a Súmula 721, cuja qual está assim redigida: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual”.

 Destarte, continua o STF entendendo, até aqui, ser constitucional o foro por prerrogativa de função, em detrimento da competência do Júri, quando previsto na Constituição da República, ou seja, todas as autoridades estatais (13 ao todo) cujo foro privilegiado esteja previsto na referida Carta Política Federal, ainda que sejam elas acusadas de delitos dolosos contra a vida, serão julgadas pelos Tribunais togados respectivos (STF, STJ e TJ), pois ambas as competências (dos Tribunais popular e togado) são definidas pela Lei Maior.     

 Vale dizer, portanto, que a competência do Tribunal Popular não é absoluta, (5) cedendo esta àquela dos Tribunais togados – que também foi fixada pela mesma Constituição Federal – para julgar determinadas autoridades públicas. 

Em que pese o posicionamento do Tribunal constitucional, privilegiando duplamente os já privilegiados, dado que não são todos que conseguem exercer um relevante cargo público e com foro especial, não existe qualquer razoabilidade em afastar do julgo dos magistrados popular as aludidas autoridades acusadas de praticar crimes dolosos contra a vida.

 E com o devido respeito à posição da nossa Corte Suprema, a qual tem prestado substanciais serviços à nação, não é preciso invocar o imortal Rui Barbosa para sustentar tal ausência de razoabilidade.

 Quando o legislador constituinte de 1988 entregou ao Júri o objeto jurídico vida (artigo 5.º, “caput”, da CF), tornando-o, assim, competente para julgar todos os delitos dolosos contra a vida, quis ele que o povo, exercendo direitamente poder (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), fosse o único a julgar os acusados de violarem valioso bem jurídico. Do contrário, teria posto uma ressalva, em alguma parte do dispositivo de regência (inciso XXXVIII, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do artigo 5.º, CF), mencionando que não se submetem ao julgo do Tribunal Popular àquelas autoridades que usufruem do foro por prerrogativa de função (“imortais”).

 Mas, essa ressalva não veio expressa nem no Título I e, muito menos, nos demais Títulos da Carta Política em referência, restando aos Tribunais, mais especificamente o STF, que o guardião da Constituição, interpretar essa “questão de ordem” de natureza constitucional como há muito vem fazendo, por vezes de forma mais política do que jurídica.

 Dessa forma, sob a nossa ótica, a competência do Tribunal do Júri é absoluta por ser ele o único juiz natural previsto no rol das garantias constitucionais, não estando incluso no elenco do artigo 92, da CF, como órgão do Poder Judiciário. Ademais, essa mesma competência também é “mínima”, (6) uma vez que pode ser ampliada para julgar outros delitos, tanto é assim que já julga os delitos conexos (homicídio + ocultação de cadáver).  

Rogério Lauria Tucci, renomado processualista, enfatiza em magistério de fôlego (7) que o Júri é o “’tribunal natural’ para o processamento final das causas penais referentes aos ‘crimes dolosos contra a vida’, no âmbito da Justiça Criminal comum, que integra, e com a obvia exclusão de qualquer outro órgão judicante” (grifo nosso).

 Emerge-se, ainda, um outro valoroso e indispensável fundamento para alicerçar o nosso simplório entendimento, qual seja: o Júri é um Tribunal composto por pessoas povo, tidas como leigas e que julgam segundo as vossas íntimas consciências (ouvem as exposições das partes e decidem secreta e soberanamente), sem ter qualquer contato político externo.

 Por sua vez, os Tribunais togados sofrem todo o tipo de “assédio político” das autoridades com foro especial – cafés, almoços, jantares, encontros em eventos turísticos ou de lazer, etc. – que ali são acusadas, além de visitas dos seus procuradores; ao passo que os membros do Conselho de Sentença não experimentam isso, porque é formado ele no dia do julgamento final, não podendo, sequer, discutir o caso entre si, antecipar votos, voltar atrás de sua decisão, o que é comum acontecer nas Cortes togadas.

 Como se vê, o julgamento pelo Tribunal Popular dos crimes de sua competência, assim pretendido pelo legislador constituinte, é muito diferente daquele realizado pelas Cortes togadas, o que, sem dúvida alguma, agride novamente a garantia constitucional do “devido processo legal”, a qual foi ofendida inicialmente quando se deixou de observar o Júri como “o juiz natural” para julgar todos os acusados de delitos dolosos contra a vida. 

 Oportuno assinalar, nesse passo, que os maiores interessados no foro privilegiado – a classe política – em momento algum tentaram alterar a Constituição Federal, via Emenda Constitucional, para fazer constar que o mencionado foro especial prevalece sobre a competência do Júri, isto é, mesmo se fosse praticado um crime doloso contra a vida, ainda sim prevaleceria à competência do Tribunal togado respectivo.

 De fato, não houve necessidade de o Congresso Nacional fazer o seu papel, exercer a sua função precípua (legislar), posto ter o Supremo Tribunal Federal interpretado a Lei Maior politicamente, em detrimento do Tribunal Popular, que passou a julgar tão-somente pessoas “mortais” ou comuns, tendo limitada ainda mais a sua competência constitucional justamente pelo seu guardião: o STF.

Se todo o poder emana do povo e por ele é exercido diretamente ou por meio de representantes (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), não pode nenhum Tribunal togado dizer ao povo que ele (Júri)  não pode julgar as autoridades públicas cujas quais, legítima e juridicamente, constituíram para representá-lo.

 A exegese feita pelas Cortes togadas em sentido contrário, retira ou retirou do povo parte do poder que seus representes, eleitos diretamente, fizeram constar logo no artigo 1.º da Carta Política, bem como no inciso XXXVIII, do seu artigo 5.º. Isso nos levar a imaginar que o povo só tem competência para votar, pagar tributos e padecer com as mazelas da Justiça, sendo alijado do direito de exercer o seu poder diretamente no Tribunal do Júri, julgando todos aqueles, inclusive os magistrados togados que forem acusado de praticar um dos crimes de sua competência da Corte Popular (vide artigos 121 a 127, do Código Penal).     

03. Da garantia constitucional de ser julgado pelo povo.  

No caso do ex-deputado, Ronaldo José da Cunha Lima, inicialmente, não há o que se criticar, quando ele simplesmente fez uso da Lei, como tantos outros fizeram no passado, mas por outros motivos. Em outros termos, se a norma posta admite a renúncia do mandato, não cabe censurar quem a usa.

 O STF tem a grande oportunidade de começar a colocar um basta na “festa do foro privilegiado”, dando ao Júri todo o crédito que ele merece para julgar os delitos contra a vida eventualmente praticados por aqueles que possuem foro especial. A resposta da Corte constitucional deve ser democrática, razoável e atender o interesse do povo, e não revestida de “revanchismo” ou “vingança” só pelo fato de se ter renunciado ao mandato eletivo para não ser julgado pelo Plenário do Tribunal Supremo.

 Essa teratologia ou esse “Frankenstein” moderno nascera da jurisprudência dos Tribunais togados, cujos membros têm pavor de ser julgados pelo magistrado popular, daí continuarem mantendo o foro privilegiado mesmo para quem não quer mais o privilégio, inclusive para autoridade acusada de matar um cidadão inocente.

 Ora, data vênia, não se pode obrigar um cidadão (acusado ou não) a permanecer com o foro especial e, por conseguinte, no cargo eletivo se ele não o deseja mais. A tendência é extirpar o foro por prerrogativa de função, porque o povo clama por isso, e não criar obstáculos, por via da hermenêutica, para que o ex-parlamentar permaneça atado ao foro do qual ele abriu mão, espontaneamente.

 Mais uma vez, com o devido respeito, um julgamento não pode se eternizar num só Tribunal. Em regra, o processo leva vários anos para ser concluído, passando por duas instâncias e Cortes Superiores. Pelo que se sabe, só em dois Tribunais Superiores (STJ e STF) o processo levou 14 anos tramitando, até ser designado a data final para julgamento.

 O julgamento no STF não pode ser eterno, sobretudo pela impossibilidade de ser recorrer de suas decisões, haja vista ser esta Corte originária o único e último juízo natural para julgar deputados federais (artigo 102, inciso I, alínea “b”, da CF).

 Não obstante, a Corte Suprema não pode abrir um precedente para ex-autoridades. Isso certamente ocorrerá, caso referido Tribunal decida manter a sua competência para julgar a Ação Penal n.º 333 contra o ex-parlamentar que renunciou o mandato em caráter irrevogável.

 Como o STF não pode revogar a renúncia e restabelecer o mandato então renunciado, terá que escolher uma das duas possibilidades: (i) deixar o Tribunal do Júri da Comarca de João Pessoa – PB julgar o seu semelhante e ex-representante político, como quer o próprio renunciante; (ii) ou manter o julgamento do feito penal na Corte, criando um precedente para dezenas ou centenas de pedidos de ex-autoridades que respondem a processos penais na primeira instância e que com a renúncia ou cumprimento dos seus mandatos agora também querem ser julgadas no foro especial.

 Optando pela segunda possibilidade, a Suprema Corte permitirá, também, que os demais Tribunais sejam provocados com pedidos para avocar os feitos de ex-autoridades que gozaram de foro especial, especialmente com base no princípio da igualdade. 



(1) http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=76101. Acesso em 10/11/2007

(2) http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=75842. Acesso em 10/11/2007.

(3) A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2.º e 3.º (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão n.º 6, de 1994).

(4) Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 417: “Constitui-se de ‘garantias’ que visam tutelar a liberdade pessoal. Figura ela no art. 5.º, XXXVII a XLVII, mais a hipótese do inc. LXXV, sem falar no ‘habeas corpus’, incluído entre os remédios constitucionais. Essas garantias penais ou criminais protegem o indivíduo contra atuações arbitrárias.

(5) HC 69.325 – GO, Rel. Ministro Néri da Silveira; HC 70.581– AL, Rel. Ministro Marco Aurélio. No campo doutrinário, Alexandre de Moraes faz à mesma interpretação. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 307.

(6) Ver estudo específico de Edson Pereira Belo da Silva. Tribunal do júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos com evento morte. São Paulo: Iglu Editora, 2006. p. 74/79.

(7) Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 117.  


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA   

Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal, autor de obras jurídicas inéditas, pós-graduado em direito, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante (edson@edsonbelo.adv.br).

     

DIREITO PREVIDENCIÁRIO: TJMG reconhece direito de homossexual

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DECISÃO:  * TJ-MG  –  Reconhecendo os direitos constitucionais da união homoafetiva, a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) confirmou sentença e determinou a inclusão de R.C.B.N. no Instituto de Previdência do Servidor do Estado de Minas Gerais (IPSEMG) como beneficiário da pensão por morte de seu parceiro, um ex-servidor público aposentado. A decisão foi publicada do Diário Oficial do Estado, no dia 23/11.

O autor da ação fundamentou seu pedido no fato de que ele e o seu companheiro viveram em união estável por mais de 20 anos, tendo constituído uma vida em comum a partir de então. O ex-servidor faleceu em janeiro de 2005.

Para o relator do processo, desembargador Belizário de Lacerda, ficou demonstrado nos autos o vínculo entre R.C.B.N. e o seu parceiro, requisitos necessários para a configuração de uma união estável, segundo o magistrado. “Não se pode negar à união homoafetiva, o caráter de entidade familiar e os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa”, registrou Lacerda, salientando que o homossexual tem o direito constitucional de não ser discriminado.

“Hoje, a antiga instituição familiar é baseada, acima de tudo, no vínculo afetivo, admitindo-se várias formas de se constituir uma família, inclusive por pessoas de mesmo sexo”, anotou o relator. Os desembargadores Alvim Soares e Heloísa Combat também votaram pela manutenção da sentença.

 

FONTE:  TJ-MG, 27 de novembro de 2007.

 


VALIDADE DA MULTA DE TRÂNSITO: Ausência da notificação desautoriza cobrança de multa

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DECISÃO:   * TJ-MT  –  A ausência da notificação do infrator de trânsito, que obsta o exercício do direito constitucional da ampla defesa, autoriza a declaração de insubsistência das respectivas multas. Com base nessa jurisprudência, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso deu provimento ao recurso de apelação cível interposto por um motorista e declarou nulas multas emitidas pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran/MT) tendo em vista a não notificação do proprietário do veículo (reexame necessário de sentença com recurso de apelação cível nº. 37623/2007). 

Em Segunda Instância, o apelante interpôs, com sucesso, recurso contra sentença prolatada pelo Juízo da 1ª Vara de Fazenda da Comarca de Rondonópolis que, nos autos de uma ação mandamental, concedeu segurança apenas para desvincular o licenciamento/transferência do veículo ao pagamento das multas existentes sem, contudo, declará-las nulas.

Conforme o relator do recurso, desembargador Donato Fortunato Ojeda, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já salientou que deve ser inequívoco o conhecimento das notificações relativas às infrações de trânsito, "não se mostrando razoável que o condutor ou proprietário do veículo tenha a obrigação de comprovar que não foi devidamente cientificado, cabendo essa demonstração aos órgãos de trânsito, estes cada vez mais aparelhados em sua estrutura funcional" (STJ – RESP 89116 – SP – 2ª T. – DJU 30-4-2001).

Como o Detran não comprovou claramente a existência das notificações de autuação e da aplicação da pena decorrente das infrações de trânsito, não é possível a incidência do artigo 131, § 2º, do Código Brasileiro de Trânsito, que prescreve o referido condicionamento. "Sendo plenamente admissível a declaração de nulidade das referidas multas pela via mandamental", afirmou o desembargador.

Também participaram do julgamento a desembargadora Maria Helena Gargaglione Povoas (revisora) e a juíza substituta de 2º grau Clarice Claudino da Silva (vogal).

COMPROVAÇÃO – A Segunda Câmara Cível também deu provimento ao recurso interposto por outro motorista que também não fora notificado (nº. 59411/2007). Segundo os magistrados que participaram do julgamento, a autarquia estatal deve mostrar, de forma inequívoca, a comprovação de que o infrator ou proprietário do veiculo tenha sido notificado das infrações de trânsito para que estas tenham validade, sob pena de as mesmas serem declaradas insubsistentes (art. 281, parágrafo único, inciso II, do CTB). 

FONTE:  TJ-MT, 28 de novembro de 2007.

 

 


 

RESTITUIÇÃO DE PARCELAS PAGAS: Construtora tem de restituir parcelas a ex-proprietária de imóvel

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DECISÃO: * TJ-GO  –  Por unanimidade, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás(TJ-GO) reformou parcialmente decisão do juízo de Aparecida de Goiânia e manteve condenação da construtora Cristal Construções e Empreendimentos Ltda. a restituir as parcelas pagas pela ex-proprietária de imóvel Maria Carlos da Silva e indenizá-la em 20 sálarios mínimos. De acordo com voto do relator,desembargador Felipe Batista Cordeiro, o colegiado reformou no entanto a sentença quanto à multa de 1% sobre o valor da causa, que deveria ser devolvida à construtora.  

O relator ressaltou que diante da rescisão do contrato, o vendedor do imóvel tem a obrigação de restituir o valor pago pelo comprador. Segundo ele, como a construtora não entregou o imóvel no prazo estipulado no contrato deve devolver as importâncias pagas de uma só vez, para evitar prejuízos à pessoa que pagou as prestações, com correção monetária.  

Felipe Cordeiro ressaltou que a indenização no valor de 20 salários mínimos pelas perdas e danos foi correta, já que a parte lesada pelo descumprimento das cláusulas contratuais tem o direito de pleitear o fim do pacto firmado e o ressarcimento pelos danos sofridos. Para ele, o valor fixado pelo juiz é razoável, ao observar: "É perfeitamente possível indenização do dano moral puro, em havendo perturbação nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos e nos afetos de uma pessoa."

Ementa 

A ementa recebeu a seguinte redação: "Apelação Cível. Contrato Particular de Compra e Venda de Imóvel. Rescisão Judicial. Promissário Vendedor. Restituição das Parcelas Pagas. Arras. Indenização Danos Morais. Multa Art. 538 do CPC. 1- O inadimplemento da promitente vendedora, autoriza a compradora a rescindir o contrato, nos termos do artigo 474 do CC/2002. 2- A quantificação pelo dano moral é fixada segundo o prudente arbítrio do julgador que a estabelece obedecendo os critérios de razoabilidade e credibilidade, considerando-se os efeitos do ato lesivo na vida da vítima. 3- Perde o direito de retenção das "arras" aquele que tiver dado causa ao rompimento do contrato, ocorrendo, assim, consectariamente, a devolução das mesmas por quem as recebeu. 4- A multa aplicada em 1%, nos termos do parágrafo único do artigo 538, do CPC, há que ser afastada da condenação, porque não houve reiteração de embargos de declaração. Recurso conhecido e parcialmente provido."Apelação Cível nº 115764-4/188(200703532434). 

 


 

FONTE:  TJ-GO, 28 de novembro de 2007.

O papel dos princípios no direito brasileiro e os princípios constitucionais

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* Sérgio Gabriel 

Sumário: 1. Introdução; 2. Sistema Normativo; 2.1. Lei; 2.2. Regra; 2.3. Norma Jurídica; 3. Princípios; 3.1. Importância e função dos princípios de Direito; 3.2. Distinção entre princípio e regra; 4. Princípios constitucionais; 5. Conclusão; 6. Bibliografia 

1. Introdução 

Nos dias atuais, qualquer discussão jurídica passa pelo termo princípio, e isso não é novidade, pois historicamente os jusnaturalistas e os juspositivistas já debatiam o tema. No entanto, atualmente o termo ganhou relevância, na medida em que se tornou o centro de todo Direito Contemporâneo.

A doutrina em geral trava grande discussão sobre o conceito e a função dos princípios para o Direito e, em especial, sobre os princípios constitucionais. É certo que o sistema jurídico é composto de regras e princípios, restando aqui a necessidade de diferenciá-los e identificar a respectiva função, para aprofundar-se no tema central proposto, pois, conforme Carlos Ari Sundfeld[1], “é o conhecimento dos princípios, e a habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhecedor de textos legais. 

Assim sendo, este estudo tem como finalidade precípua, analisar, ainda que de forma sucinta, o conceito e a função de princípio, haja vista que apenas o estudo do tema específico já seria suficiente para resultar em uma monografia. A razão se explica na medida em que se entende que não seria possível adentrar o debate de determinados princípios constitucionais, sem antes especificar os principais elementos teóricos e dogmáticos que contribuirão para a elucidação do tema central do presente estudo. 

De qualquer forma, é importante ressaltar que não tem o presente trabalho o objetivo de esgotar ou de realizar uma pesquisa mais aprofundada sobre a questão dos princípios. 

Por questão metodológica, serão analisados primeiro os conceitos de norma e lei, para depois analisar-se o conceito de regra que, ao ver deste autor, está mais relacionado com o princípio, razão pela qual, muitas vezes, se confunde com ele. 

2. Sistema Normativo 

Quando se fala em conceituar princípio, o grande problema inicial é desfazer a confusão comum que se faz com os termos regra, norma e lei. Não se trata, pois, de uma distinção meramente terminológica, mas de uma exigência de clareza conceitual: quando existem várias espécies de exames no plano concreto, é aconselhável que elas também sejam qualificadas de modo distinto.

Segundo o entendimento de Norberto Bobbio[2], talvez a explicação atribuível a esse fato é a de que com a majoração da importância que se passou a delegar aos princípios, o ordenamento jurídico ganhou dimensões de sistema normativo, necessitando, portanto, de uma interpretação estrutural, por que nele não podem coexistir normas incompatíveis, que possam pôr em risco a coerência e a unidade do todo.

Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior: 

“(…) o conceito de sistema, no Direito, está ligado ao de totalidade jurídica. No conceito de sistema está, porém, implícita a noção de limite. Falando-se em sistema jurídico surge assim a necessidade de se precisar o que pertence ao seu âmbito, bem como se determinar as relações entre sistema jurídico e aquilo a que ele se refiria, embora não fazendo parte de seu âmbito, e aquilo a que ele não se refira de modo algum”[3].   

Na medida em que o Direito ganha esse contorno de sistema, e de outra forma não se pode enxergá-lo, é imperiosa a necessidade de interpretá-lo e aplicá-lo segundo o todo, evitando-se, assim, as possíveis incoerências jurídicas. 

Logo, de forma a se evitar ou minimizar essa incoerência e permitir uma análise desse sistema normativo, necessariamente ter-se-á que identificar cada um de seus elementos e apresentar a correspondente função, para efeitos de interpretação e aplicação.

2.1. Lei

Um dos elementos que compõem o sistema jurídico é a lei, vocábulo este que apresenta vários sentidos e funções, porém, ao empregá-lo especificamente ao Direito, passa a ganhar contornos mais definidos e objetivos.

Segundo Rizzatto Nunes[4], a lei pode ter vários significados, ser divina, da natureza ou emanada do próprio Estado. A lei jurídica especificamente, que se relacionará com o tema central deste trabalho, se prende àquela emanada pelo Estado na regulação dos direitos e deveres do cidadão, que, por sua vez, pertencerão a um gênero denominado norma jurídica, que se formará pelas espécies – normas escritas (leis, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções, portarias, circulares, instrução normativa, ordens de serviço etc.) emanadas pelo Estado e, – normas não-escritas as quais se traduzem a partir dos costumes jurídicos, portanto, não-estatais.

Em complemento, Maria Helena Diniz acrescenta, às normas não-estatais, o Direito Científico (doutrina) e as convenções em geral ou negócios jurídicos[5].

Logo, claro está que quando se está fazendo uso do termo norma, certamente se está fazendo uso de um gênero do qual a lei é apenas uma espécie.

Inicialmente, este trabalho se deterá ao termo lei, porquanto significa uma das principais fontes de Direito, pois, em um país onde o Direito é em larga medida escrito, ele tem na legislação a sua principal fonte. Essa importância que se atribui à lei vem da exigência natural de segurança e certeza nas relações jurídicas.

No que concerne ao conceito de lei, Maria Helena Diniz as definiria como: normas jurídicas de observância geral[6] e Silvio de Salvo Venosa coaduna do mesmo pensamento ao expor que: 

“Quando se dá um passo além do raciocínio e se busca o conceito de lei, estaremos diante de uma especificidade mais restrita: a regra ou norma pode ser traduzida por uma lei, mas com ela nem sempre se confunde. Lei possui um conceito mais específico, como manifestação do Direito Positivo. A lei em sentido amplo é uma norma” [7].

Rizzatto Nunes acrescentaria que:

“(…) a lei jurídica propriamente, de sua parte, aponta também para alguns sentidos, que são análogos. A lei é tanto a norma constitucional quanto uma lei ordinária, por exemplo, o Código Civil, ou até uma cláusula contratual que se diz lei entre as partes” [8]. 

Outra particularidade, no que pertine ao elemento lei, diz respeito ao fato de ser ou não ela uma fonte de direito, haja vista que, apesar de ser a lei utilizada como fonte jurígena, na realidade ela é fruto de um processo legislativo, esse sim a fonte que originou o direito proposto na lei. Na realidade poder-se-ia ir além, sendo o processo legislativo, ainda que indiretamente, uma forma de manifestação popular, ou pelo menos decorrente dela, seria tal manifestação a fonte do direito expressa na lei.  

Ademais, utiliza-se o vocábulo lei, como já foi dito anteriormente, para exprimir outras manifestações, como afirmou Rizzatto Nunes, ao asseverar que o contrato gera lei entre as partes, ou mesmo, a lei natural, aquela que independe da vontade humana. Porém, para este estudo, limitar-se-á apenas à discussão da lei oriunda do processo legislativo.

Essa espécie normativa possui em sua estrutura de criação a possibilidade de ser emanada do poder legislativo federal, estadual ou municipal, sendo que cada um deles possui competência específica. Assim, em tese, não há que se falar em hierarquia das leis, exceto quando se tratar de competência concorrente, quando então a lei emanada do poder maior se sobrepõe à do poder menor.

De forma conclusiva, pode-se afirmar que a lei é elemento do sistema normativo e espécie de norma jurídica oriunda do Direito Positivo. Tal espécie normativa tem como função específica estabelecer regras.

2.2. Regra

Um segundo elemento do sistema normativo é a regra, que tem como destinatário o indivíduo, de forma a resultar em um comportamento humano. Ou seja, é a regra uma espécie de norma jurídica assim como a lei, porém, destinada diretamente a alguém. Miguel Reale diz que: 

“(…) a hipoteticidade ou condicionalidade da regra de conduta não tem apenas um aspecto lógico, mas apresenta também um caráter axiológico, uma vez que nela se expressa a objetividade de um valor a ser atingido, e, ao mesmo tempo, se salvaguarda o valor da liberdade do destinatário, ainda que para a prática de um ato de violação” [9].

As regras podem ser sociais, morais ou religiosas, sem a imposição coercitiva do ordenamento jurídico – regras jurídicas, causando ao indivíduo que não a cumpra apenas inconvenientes de ordem íntima ou comportamental. Já as regras jurídicas, aquelas que emanam do ordenamento jurídico, geram conseqüências na órbita jurídica, razão pela qual possuem caráter muito mais coativo e que por isso se localizarão no conjunto das normas jurídicas. 

Em razão do sentido, na linguagem coloquial, muitas vezes se é forçado a entender regra como sinônimo de norma, porém, como a proposição deste trabalho exige uma linguagem científica, resta aqui verificar-se que ambos os conceitos possuem funções distintas, na medida em que a regra se põe a determinado indivíduo ou grupo e a norma jurídica se põe de forma genérica à sociedade. 

Da mesma forma, pode-se estabelecer uma analogia entre regra e lei, pois enquanto a regra pode ou não ser positivada, sendo uma espécie normativa positiva ou não, a lei é necessariamente uma espécie normativa devidamente positivada, quando emanada do Estado.

2.3. Norma Jurídica

Ater-se-á aqui somente ao conceito de norma jurídica, de forma a não perder-se de vista o ponto central deste trabalho. 

Várias são as espécies possíveis de norma, porém, aqui interessa a norma jurídica, a qual se pode definir como gênero, do qual são espécies a lei e as regras jurídicas em geral.

Humberto Ávila assevera que: 

“normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” [10]. 

Tércio Sampaio Ferraz Júnior diz que:

“(…) a opinião prevalecente na doutrina dogmática é de que a norma jurídica é uma espécie de imperativo despsicologizado, isto é, um comando no qual não se identifica o comandante nem o comandado, posto que, de um lado, a figura do legislador ou quem quer que seja o emissor de normas parece perder sua importância depois de posta a norma e, de outro, os destinatários da norma não se identificam, posto que normas jurídicas são comandos genéricos e universais. Há por isso, quem diga não se tratar, em absoluto, de um comando” [11].

Rosa Maria de Andrade Nery também coaduna de tal entendimento afirmando que: 

“as normas jurídicas (em seu conteúdo mais amplo) são independentes da vigência que lhes dê o legislador” [12].

Dessa forma, se pode ver que a norma é mecanismo genérico de organização da sociedade, posto que o ser humano depende da vida social e, em função desse fato, terá que se moldar a padrões pré-estabelecidos para tornar essa convivência social viável. Ihering, conclui que: 

“(…) a norma jurídica é o instrumento elaborado pelos homens para lograr aquele fim consistente na produção da conduta desejada. A teleologia social tem, portanto, um papel dinâmico e de impulsão normativa” [13].

No mesmo sentido, Rizzatto Nunes acrescenta que: 

“(…) a norma jurídica é um comando, um imperativo dirigido às ações dos indivíduos – e das pessoas jurídicas e demais entes. É uma regra de conduta social; sua finalidade é regular as atividades dos sujeitos em suas relações sociais. A norma jurídica imputa certa ação ou comportamento a alguém, que é seu destinatário”[14].

Como já visto, todas as teses e outras mais poderiam ser citadas, porém, parece suficiente esta singela investigação, diante do objetivo que aqui se pretende, pois indicam que a norma é o comando genérico que tem por objetivo provocar comportamentos na sociedade, já que é um preceito dirigido à vontade humana, podendo ser ou não obedecido.  

3. Princípios

Prefere-se tratar o termo princípio de forma isolada dos demais elementos do sistema normativo, haja vista a relevância específica desse elemento, que é capaz de influenciar todos os demais, como mostra Rizzatto Nunes, ao dispor que:

“(…) nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas” [15].

E acrescenta, dizendo que:

“(…) percebe-se que os princípios funcionam como verdadeiras supranormas, isto é, eles, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas ou mesmo às normas costumeiras” [16].

O termo princípio, em regra, parece designar o começo ou início de alguma coisa, porém, em termos jurídicos, é muito mais amplo; o princípio quer na verdade alicerçar uma estrutura, garantir a sua existência e a sua aplicabilidade. Na doutrina jurídica, variados são os conceitos de princípio, inúmeras são as classificações que lhes são atribuídas e, por fim, também não existe um consenso sobre sua função. Ademais, mais difícil ainda se torna a compreensão do tema, haja vista que muitas vezes se confunde conceito, classificação e função. 

Segundo o Dicionário Aurélio[17], princípio seria o momento ou local ou trecho em que algo tem origem; começo; causa primária. Acrescentando, conceitua princípio em Filosofia, dizendo ser a origem de algo, de uma ação ou de um conhecimento e, em Lógica, conceitua como a proposição que lhe serve de base, ainda que de modo provisório, e cuja verdade não é questionada.

Então, tais proposições serão observadas do ponto de vista jurídico.

Segundo Aristóteles, princípio era uma fonte, uma causa de ação, tornando-se um freio dos fenômenos sociais. Já Cícero, analisando o conjunto de codificação civil romana, dizia que os princípios serviriam para resolver casos novos[18].

Assim, é de se perceber que, na Antigüidade, os princípios eram tidos como fonte de direito natural.

Porém, no Direito moderno, a questão é mais controvertida. Tércio Sampaio de Ferraz Júnior diz que os princípios compõem a estrutura do sistema e não o seu repertório; Unger diz que são meros expedientes para liberação das passagens legais que não mais atendem à opinião dominante; Hoffman diz que são permissões para livre criação do Direito, por parte do magistrado; Serpa Lopes define-os como simples fontes interpretativas e integrativas de normas legais, sem qualquer força criadora; os racionalistas compactuam com o pensamento esposado na Antigüidade, definindo os princípios como fonte de direito natural, corrente esta sustentada por Del Vecchio, Espínola, Zeiller, idéia esta também aceita pela codificação civil espanhola e austríaca, onde respectivamente, nos artigos 6º e 7º, encontra-se a prescrição dos princípios gerais do Direito, como direito natural[19].

Com a duplicidade de codificação voltada para o Direito Privado, uma de ordem pública, garantida pelos direitos fundamentais constitucionalmente previstos e outra de ordem privada, por meio das diversas codificações de Direito Privado, com sua essência no Código Civil, resta agora a institucionalização da sociedade civil, que se dará com a integração dessas duas ordens jurídicas.

Para se obter essa integração e, conseqüentemente, essa função institucional do Direito Privado, existe a necessidade de uma ordem de princípios, como bem preleciona Lorenzetti[20].

E antes de adentrar na importância e função dos princípios, mas já o fazendo em sua conceituação, é transcrita a posição de Carlos Ari Sundfeld, citado por Luiz Alberto David de Araújo:

“Os princípios são as idéias de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se. Tomando como exemplo de sistema certa guarnição militar, composta de soldados, suboficiais e oficiais, com facilidade descobrimos a idéia geral que explica seu funcionamento: os subordinados devem cumprir as determinações dos superiores. Sem captar essa idéia, é totalmente impossível entender o que se passa dentro da guarnição, a maneira como funciona”[21].

3.1. Importância e função dos princípios de Direito

A doutrina em geral atribui várias funções distintas para os princípios, porém, de forma uníssona, se releva a importância de tal elemento do sistema normativo. Alguns diriam que os princípios permitem a correta interpretação do sistema jurídico; outros diriam, são fontes jurígenas; outros atribuem à qualidade de mecanismo de integração das várias partes do sistema, e assim segue a doutrina. No entanto, observar-se-á mais detidamente cada uma dessas funções, a partir de sua importância.

Falar de princípios de Direito não é tarefa das mais fáceis, porém, não tão nebulosa que não se possa elucidá-la.

Sebastião José Roque considera: 

“(…) os princípios gerais de direito como os fundamentos mais elevados do direito, estabelecidos na antiga Roma e expressos nos brocardos, máximas, aforismos que nos legou o direito romano”[22].

No tocante à importância, Geraldo Ataliba diz que “os princípios são a chave e essência de todo direito; não há direito sem princípios. As simples regras jurídicas de nada valem se não estiverem apoiadas em princípios sólidos”[23].

No mesmo sentido, Rizzatto Nunes afirma que:

“(…) os princípios são, dentre as formulações deônticas de todo sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados não só pelo aplicador do direito mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam. Sendo assim, ressalta a importância em sua essência e como elemento harmonizador, integrador e de mecanismo de garantia de eficácia da norma jurídica”[24].

 Não menos importante, entende Celso Antonio Bandeira de Mello, que:

“(…) quando os defende, dizendo que violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”[25].

Dessas lições depreende-se que os princípios estão para o Direito, assim como o ar está para o ser humano. Renegá-los, seria o mesmo que negar a existência do Direito.

Silvio de Salvo Venosa, que anteriormente creditou ao princípio sua função meramente normativa, posteriormente releva a sua importância ao afirmar que:

“por meio dos princípios, o intérprete investiga o pensamento mais elevado da cultura jurídica universal, buscando orientação geral do pensamento jurídico”[26].

Além disso, no tocante à sua importância e função, acrescenta que:

“(…) de início é fundamental ressaltar sua importância, reconhecida pelo próprio legislador não só como fonte material, mas também como inspiração para as fontes materiais, para sua atividade legislativa”[27].

Maria Helena Diniz não descarta a função dos princípios como fonte jurídica ao afirmar que:

“(…) eles suprem a deficiência da ordem jurídica, possibilitando a adoção de princípios gerais de direito, que, às vezes, são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico”[28].

Prefere-se aqui ficar com o conceito de Miguel Reale que, além de mostrar a importância, discorre sobre suas principais funções, ao expor que princípios gerais de Direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Eles cobrem desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática[29].

3.2. Distinção entre princípio e regra

Silvio de Salvo Venosa diz que os princípios são, em última instância, uma regra de convivência[30], porém, nesse caso, estar-se-ia atribuindo ao princípio de Direito apenas a função de fonte jurídica, renegando sua importância para o sistema jurídico e confundindo-o como mera regra.

Mas, não é essa interpretação que quis dar o doutrinador em comento; é que ao referir-se ao princípio como regra, ressaltou apenas sua importância para dizer que se a regra está em consonância com o princípio, este último também estará influenciando no comportamento humano. Rizzatto Nunes explica tal entendimento, ao discorrer que: 

 “(…) isso não implica terem as normas jurídicas a serem aplicadas vida independente dos princípios. Muito pelo contrário. Elas estão totalmente ligadas a eles. Nascem atrelados e não têm como se libertar”[31].

 Para Josef Esser, citado por Humberto Ávila:

“(…) princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada no grau de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão”.

Acrescenta ainda, que:

“(…) os princípios são normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento. Para esse autor os princípios seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação, na medida em que lhes falta o caráter formal de proposições jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma conseqüência jurídica. Daí por que os princípios indicariam somente a direção em que está situada a regra a ser encontrada, como que determinando um primeiro passo direcionador de outros passos para a obtenção da regra”[32].

 Ruy Samuel Espíndola diz que:

“(…) a regra é geral porque estabelecida para um número indeterminado de atos ou fatos. Isso não obstante, ela é especial na medida em que regula senão tais atos ou tais fatos: é editada para ser aplicada a uma situação jurídica determinada. Já o princípio, ao contrário, é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações”[33].

Logo, sem mais delongas e apenas para contribuir na elucidação de alguns elementos que serão trazidos durante a exploração do objeto central de pesquisa, pode-se concluir aqui que o princípio não se confunde com a regra, por estar em um plano anterior e superior a elas, dando razão à sua existência ou à sua interpretação e aplicação. 

Os princípios são de duas ordens, no sistema jurídico brasileiro: os constitucionais e os infraconstitucionais. Os infraconstitucionais informam as partes menores do sistema, ou subsistemas, já os constitucionais aplicam-se a todo o sistema, elegendo assim sua ordem maior.

4. Princípios constitucionais

Historicamente sabe-se que as constituições nasceram em contraposição ao absolutismo de certos governos, ou seja, o homem tomou a consciência de que, sendo livre, deveria se opor aos regimes individualistas e proporcionar um sistema que pudesse proporcionar uma vida mais digna.

Assim nasceram as constituições, organizando o Estado, garantindo a sua finalidade e pondo fim ao arbítrio e à força. Porém, ao longo da história, as constituições foram evoluindo, organizando e impondo cada vez mais limites à estrutura estatal, e foi justamente nos princípios constitucionais, que se assentaram as normas balizadoras do organismo político.

Gustavo Tepedino explica que:

“(…) hoje não temos mais um direito privado com uma sustentação normativa tipificadamente privada, pois com a promulgação da constituição, o Código Civil perdeu seu papel de constituição do direito privado, dividindo com o texto constitucional princípios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, e outras”[34].

 Luiz Alberto David Araújo[35] afirma que: 

“para o estudo da Constituição de cada Estado é necessário antes verificar a sua estrutura básica, os fundamentos e os alicerces do sistema”.

Acrescenta ainda que, fazendo isso se estará identificando os princípios constitucionais. Nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos diz que:[36]

“Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas”.

A Constituição Federal do Brasil é o alicerce e é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio. Seus comandos normativos supremos fixam todas as diretrizes que o Direito infraconstitucional deve seguir e determina, de forma direta e indireta, a organização do Estado e da sociedade brasileira.

Dessa forma, os princípios constitucionais norteiam o caminho a ser seguido para a aplicação do texto constitucional, ordem máxima de alicerce do presente objeto de pesquisa.

José Afonso da Silva, se referindo aos princípios constitucionais, afirma que:

“(…) a palavra princípio é equívoca. Aparece com sentidos diversos. Apresenta a acepção de começo, de início. Norma de princípio (ou disposição de princípio), por exemplo, significa norma que contém o início ou esquema de um órgão, entidade ou de programa, como são as normas de princípio institutivo e as de princípio programático. Não é nesse sentido que se acha a palavra princípios, da expressão princípios fundamentais, do Título I, da Constituição. Princípio aí exprime a noção de mandamento nuclear de um sistema”[37].

 Segundo Rizzatto Nunes:

“(…) dois princípios constitucionais fundamentais orientam o sistema jurídico brasileiro, ou seja, transcendem a interpretação e aplicação da própria Constituição Federal, quais sejam, a soberania e a dignidade da pessoa humana”[38].

 O primeiro deles, a soberania nacional, está contido no inciso I do artigo 1º e novamente será invocado para alicerçar a ordem econômica nacional, no inciso I do artigo 170. A soberania de um Estado, segundo Rizzatto Nunes, implica a sua autodeterminação, com independência territorial, de tal modo que pode, por isso, pôr e impor normas jurídicas na órbita interna e relacionar-se com os demais Estados do planeta, na ordem internacional[39].

O segundo, a dignidade da pessoa humana, contida no inciso III do artigo 1º e que Rizzatto Nunes descreve como: 

“(…) o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. A isonomia, essencial também, servirá para gerar equilíbrio real visando concretizar o direito à dignidade. Mas antes há que se levar em consideração o sentido de dignidade”[40].

 Rosa Nery, ao discorrer sobre os princípios fundamentais, ressalta a importância de tal princípio dizendo que:

“(…) refletem-se em princípios gerais de Direito privado quando informam seus elementos e privilegiam a realidade fundamental do fenômeno jurídico, que é a consideração que o homem é sujeito de direito e, nunca, objeto de direito. Esse reconhecimento principiológico se alicerça em valor fundamental para o exercício de qualquer elaboração jurídica; está no cerne daquilo que a Ciência do Direito experimentou de mais especial; está naquilo que o conhecimento jusfilosófico buscou com mais entusiasmo e vitalidade: é a mais importante consideração jusfilosófica do conhecimento científico do Direito. É o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Por isso se diz que a Justiça como valor é o núcleo central da axiologia jurídica, e a marca desse valor fundamental de Justiça é o homem, princípio e razão de todo o Direito”[41].

 Em geral, a doutrina classifica os princípios constitucionais em duas ordens: os princípios político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais. Os primeiros dizem respeito a decisões políticas fundamentais, concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo, e, os segundos, princípios informadores da ordem jurídica nacional.

5. Conclusão

Não nos resta muito a concluir a não ser reafirmar a importância dos princípios para o direito contemporâneo. Não se fala em interpretação do sistema jurídico pátrio se o ponto de partida não for princípios.

A coesão lógica, a harmonia interpretativa e a uniformização de entendimentos só pode nascer a partir da observância dos princípios.

O entendimento de princípio como fonte de direito é hoje apenas secundária, até porque, nosso sistema jurídico atualmente é muito mais completo e complexo, sendo que a necessidade de fonte a partir dos princípios fica cada vez menos provável, porém, na mesma medida em que esse sistema se torna complexo, fica a dependência pelos princípios de forma a dar a tal coesão lógica quer valida o sistema.

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NOTAS

[1] Fundamentos de Direito Público, p.13.

[2] Teoria do ordenamento jurídico, p. 71-81.

[3] Conceito de sistema no direito, p. 129.

[4] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 73.

[5] Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 280.

[6] Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 283.

[7] Introdução ao Estudo do Direito, p. 95.

[8] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 73. 

[9] Lições Preliminares de Direito, p. 102. 

[10] Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 22.

[11] Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação, p. 118.

[12] Noções Preliminares de Direito Civil, p. 57.

[13] Apud Maria Helena Diniz. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 328.

[14] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 179.

[15] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 164.

[16] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 172.

[17] Novo Aurélio Século XXI, p. 1639.

[18] apud Maria Helena Diniz, As lacunas no Direito, 1997, p. 211.

[19] Apud Maria Helena Diniz, op. cit., p. 214-217.

[20] Fundamentos do Direito Privado, p. 280.

[21] Curso de Direito Constitucional, p. 46.

[22] Introdução ao Estudo do Direito, p. 135.

[23] “Mudança da Constituição”, RDP 86/181 apud Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo, nº 51, Outubro/97, artigo “Princípios e origens da lei de arbitragem”, de autoria de Selma Maria Ferreira Lemes, p. 32.

[24] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 163.

[25] Elementos de Direito Administrativo, p. 300.

[26] Introdução ao Estudo do Direito, p. 162.

[27] Idem, p.163.

[28] Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 456.

[29] Apud Silvio de Salvo Venosa. In: Introdução ao Estudo do Direito, p. 163.

[30] Introdução ao Estudo do Direito, p. 162.

[31] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 167.

[32] Apud Humberto Ávila: Teoria dos Princípios, Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 27.

[33] Conceito de Princípios Constitucionais, p. 69.

[34] Temas de Direito Civil, p. 7.

[35] Curso de Direito Constitucional, p. 45.

[36] Idem, p. 143-4.

[37] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 93.

[38] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 173.

[39] Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 173.

[40] Idem, p. 175.

[41] Noções Preliminares de Direito Civil, p. 113.

 


 

FONTE BIOGRÁFICA

SERGIO GABRIEL:  Administrador de Empresas e Advogado; Pós-graduado em Administração pela FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos; Coordenador do curso de Administração da USF – Universidade São Francisco; Professor de Direito Empresarial e Tributário da USF – Universidade São Francisco; Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul; Membro da Comissão de Direitos Autorais da UNICSUL; Professor da INTERFASES – Escola de Prática Jurídica de São Paulo; Professor do EXORD – Curso Preparatório; Professor convidado da ESA/OAB – Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil; Co-autor do livro “Temas Relevantes do Direito”, SP: Lúmen Editora, 2001; Co-autor do livro “Dano Moral e sua Quantificação”, RS: Editora Plenum, 2004; Co-autor do livro “Exame de Ordem comentado e anotado”, SP: Apta Edições, 2005; Co-autor do livro “Exames de OAB”, SP: DPJ Editora, 2005; Autor do livro “Direito Empresarial” da coleção Lições de Direito, SP: DPJ Editora, 2006.

Texto adaptado em 23/07/2007 da dissertação de mestrado do autor defendida junto a UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos .

 

Responsabilidade Civil: Evolução e Apanhado Histórico. A problemática da efetiva reparação do dano suportado pela vítima em razão da culpa como pressuposto.

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* Frederico de Ávila Miguel 

            Aliado à razão o ser humano traz consigo os sentimentos. Um caminha junto ao outro, sendo que muitas vezes aquela predomina sobre o lado sentimental e em outras ocasiões este prevalece em relação à face racional.  

           Certo é que o homem sempre zelou pelo que é seu e, também, por aquilo ou aqueles que lhe são queridos. Dessa forma, seja utilizando o juízo, seja agindo emotivamente, tem-se que quando percebe que seu patrimônio está sendo agredido por outrem o homem reage, defendendo-o, buscando preservá-lo e impedir a ocorrência de qualquer tipo de prejuízo, ou, se o mesmo já se verificou, visa, então, o retorno ao estado anterior ou uma compensação pelo mal sofrido. 

           Aludida busca sempre existiu. Em todos os tempos o dano foi combatido pelo lesado. Todavia a forma de combater foi se alterando, sofrendo modificações de acordo com o pensamento da época em que ocorria o dano. Essa evolução culminou com a responsabilidade civil do agente causador do dano, a qual, no entanto, não permanece estática, mas sim em contínua evolução, exigida pelo dinamismo da própria sociedade, que está sempre a buscar um direito mais justo e eficiente.  

           A verificação dessa evolução, bem como da correlação existente com a responsabilidade penal, são fundamentais para uma melhor compreensão do instituto da responsabilidade civil no âmbito do direito brasileiro moderno e, também, para a análise de sua efetividade na sociedade contemporânea. 

           Naturalmente que a compreensão da evolução histórica não é suficiente por si só, tornando-se imprescindível, para isso, o estudo de toda responsabilidade civil, desde seu conceito até, especialmente, seus pressupostos: ação ou omissão; culpa; nexo de causalidade; e dano. Todavia, não é isso que se pretende neste artigo, mas que, talvez, possa ser objeto de estudo em outra oportunidade. De qualquer maneira, não é demais destacar a culpa dentre os requisitos da responsabilidade civil, visto que ela se mostra mais intimamente ligada à problemática da efetividade daquele instituto do direito junto à coletividade. 

           Isso decorre principalmente devido ao embate entre as correntes subjetiva e objetiva, defensoras, respectivamente, da exigência da culpa e da sua prescindibilidade para a caracterização da obrigação de reparar o dano causado. 

           Por essa razão é a culpa que merecerá maior notoriedade no decorrer deste trabalho, durante o acompanhamento da evolução e de um apanhado histórico da responsabilidade civil, passando, naturalmente, pelo embate entre as teorias subjetiva e objetiva. 

           Certo que a problemática da garantia da efetiva reparação à vítima pelo dano sofrido merece confrontamento com o sistema atual de aplicação do direito, tendo em vista sempre a busca da justiça, o que se objetivará no transcorrer deste trabalho.  

           Como já salientado, a atual forma da responsabilidade civil é o produto de uma acentuada evolução através dos tempos. 

           Nos primórdios o ofendido reagia ao dano de maneira imediata e brutal, movido por puro instinto. Nesta época predominava o sistema da vingança privada[1] 

           Costuma-se dizer que foi a época da reparação do mal pelo mal. Em tal fase a culpa sequer era cogitada, bastava o dano, fato que possibilita classificar aquela responsabilidade de objetiva. 

           Note-se, contudo, que às vezes não era possível ao lesado reagir desde logo, mesmo porque ele nem sempre estava presente no momento da prática do ato danoso. Nesses casos o castigo era posterior. A necessidade de regulamentação desse castigo posterior deu origem à pena do “olho por olho, dente por dente”, prevista na Lei de Talião. 

           Percebe-se, portanto, que a responsabilidade penal é anterior à responsabilidade civil, podendo ser afirmado que esta evoluiu a partir daquela, que, no entanto, continua a existir em ramificação distinta do direito. Enquanto a responsabilidade civil integra o direito privado, a responsabilidade penal está inserida no âmbito do direito público.

          Após esse período surge o da composição voluntária, com o qual o ofendido passou a ter a faculdade de substituir a retaliação ao agente por uma compensação de ordem econômica. Passa o lesado a perceber as vantagens advindas desta mudança de conduta junto ao causador do dano. É o dinheiro substituindo o castigo físico. Nessa fase a culpa ainda não é cogitada como elemento necessário à indenização, ou seja, a responsabilidade é objetiva, já que dispensa a análise da culpa.

          É de se notar que não é só a responsabilidade que evolui com o passar do tempo. Todo o mundo vai se modificando, nas mais diversas áreas possíveis e imagináveis. 

         Eis que com a alteração na estrutura estatal, mais precisamente com o surgimento de uma autoridade soberana, ocorre a proibição à vítima de fazer justiça com as próprias mãos. Com isso o Estado substitui o lesado na tarefa de dosar a pena ao agente causador do ato danoso e, então, a composição deixa de ser voluntária para ser obrigatória. Há a tarifação dos danos, sendo estipulado um determinado preço para cada tipo de lesão. Nessa época, na qual foram elaborados os Códigos de Ur Manu, de Manu e da Lei das XII Tábuas, a responsabilidade era objetiva, prescindindo da verificação da existência da culpa. 

            Entretanto, com os romanos começou a ser delineado um esboço de diferenciação entre pena e reparação, através da distinção entre delitos públicos e delitos privados. Enquanto nestes a autoridade intervinha apenas para fixar a composição, naqueles, por serem as ofensas consideradas mais graves e perturbadoras da ordem, o réu deveria recolher a pena a favor dos cofres públicos. Ainda aqui a reparação era objetiva, isto é, independente da análise da culpa. 

            Vale mencionar que data dessa época a origem da ação de indenização, fato que, na Idade Média, colocou a responsabilidade civil ao lado da penal, distinguindo-as. Nessa fase é que, também, se verifica o aparecimento da responsabilidade contratual.

            É de se ressaltar, ainda, a importância da Lei das XII Tábuas para os romanos, principalmente devido ao fato de ter ela representado a passagem da norma consuetudinária para a lei escrita. Sua vigência durante cerca de novecentos anos em Roma já é capaz, por si só, de demonstrar a relevância que teve sobre os habitantes do local. As penas impostas por ela iam desde a multa até o exílio, da prisão até a morte, sendo certo que muitas delas tinham por base a sanção da retaliação (pena de Talião).

            Com a Lei Aquília desponta um princípio geral da reparação do dano, sendo desta época as primeiras idéias acerca da noção de culpa. É a responsabilidade ganhando traços subjetivos, com a necessidade da averiguação da culpa do agente para a caracterização da obrigação de ressarcir. Nessa fase, além do distanciamento da responsabilidade objetiva, houve a cristalização da reparação pecuniária.

            Já na Idade Média, notadamente na França, o pensamento dos romanos foi sendo aperfeiçoado. Evoluiu-se da enumeração dos casos de composição obrigatória para um princípio geral, culminando, passo a passo, na consagração do princípio aquiliano, segundo o qual a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar. Após a Revolução Francesa (1789), já na Idade Contemporânea, surge o Código de Napoleão, com a previsão da responsabilidade contratual, bem como é feita a distinção entre a responsabilidade penal e a civil.

            O direito francês influenciou vários povos e, por consequência, a legislação de vários países, inclusive do Brasil. Assim, ainda que via reflexa, o atual Código Civil e especialmente o revogado Código Civil de 1916, cuja vigência se estendeu até 2002, tiveram aquele Códex como fonte inspiradora, o que levou a consagração da teoria da culpa como regra no campo da responsabilidade civil. 

            Foi assim com o Código Civil de 1916 que, em seu famoso artigo 159, dispunha:    

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

           Cumpre salientar que já era indiferente ser a conduta dolosa, imprudente, negligente ou imperita, sendo qualquer daquelas espécies de culpa suficiente para caracterizar a responsabilidade civil e isso independentemente da gravidade, bastando a culpa levíssima para levar à obrigação de reparar.

           A exigência da culpa, nos mesmos moldes já expostos, continua sendo a regra também no atual Código Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, por força do artigo 2.044, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. É o que se verifica da conjugação dos artigos 927 caput e 186 do referido diploma legal.

          Enquanto a cabeça da norma contida no artigo 927 estipula que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, o dispositivo trazido pelo artigo 186 deixa claro que a culpa normalmente é exigida para a configuração da responsabilidade civil. Isso ocorre em razão da exigência de ser culposa a conduta causadora do dano, seja em decorrência de imprudência ou de negligência, na qual se insere a imperícia de maneira implícita. Vale a pena explicitar o conteúdo normativo citado:

“Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

          Igualmente relevante é a inclusão expressa da possibilidade de indenização por dano moral, que já vinha sendo amplamente admitida pela jurisprudência, até mesmo em virtude de permissão constitucional.

         Fruto do projeto de lei 734-B/75, o atual Código Civil manteve como regra a responsabilidade civil subjetiva, mas, por outro lado, ampliou o campo dos casos de responsabilidade civil objetiva, notadamente através da teoria do risco. É o que se extrai do parágrafo único do artigo 927:

“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

        A necessidade da lei especificar que a culpa não será exigida para que exista a obrigação de reparar demonstra que se trata de situação de exceção. Isso porque a exceção depende de previsão expressa, diferentemente do que ocorre com a regra, que se presume. Assim, em nosso direito, a culpa é regra e, por conseqüência a responsabilidade subjetiva, sendo exceção a responsabilidade objetiva, na qual a culpa sequer é cogitada.

         Nesse aspecto nenhuma novidade trouxe o novo Código, pois assim já era na legislação revogada. Exemplo nítido da responsabilidade objetiva por determinação legal é a do Código de Defesa do Consumidor, que data de 1990, sustentada sobretudo pela hipossuficiência do consumidor em relação ao fornecedor.

         Mas além da inexigência da culpa quando assim expressamente estiver declarado em lei, pelo contido no artigo 927, parágrafo único, também passa a ser possível a responsabilização objetiva por previsão genérica, nos casos em que o dano for acarretado por atividade que, por sua natureza, implicar em risco para direitos da vítima. E vale frisar que assim será apesar da atividade desenvolvida ser lícita, bastando o risco por ela criado e que culminou por efetivar o dano suportado pela vítima.

         A teoria do risco parte do pressuposto de que aquele que tira os proveitos da atividade deve, por uma questão de justiça, arcar com os danos advindos do exercício da atividade, independentemente da verificação da culpa. Logo, não se cogitará se a conduta foi dolosa, imprudente, negligente ou imperita, visto que a simples verificação do evento danoso bastará para que surja de maneira objetiva a responsabilidade civil.   

        O artigo 187 do mesmo diploma legal dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exerce-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. No caso o ato tem a aparência de lícito, mas o excesso ou abuso esconde a ilicitude nele impregnada. De qualquer modo, nessa hipótese a responsabilidade também se verificará objetivamente, ou seja, independentemente da existência de culpa. Inegável que o mencionado dispositivo também aponta para uma tendência cada vez mais objetivista da responsabilidade civil, visando a facilitação do ressarcimento às vítimas.

       Aqui cabe nova ênfase em relação ao entrelaçamento entre a responsabilidade civil e penal. Isto porque a primeira evoluiu a partir da segunda, sendo que, como visto, em épocas mais primitivas o dano pecuniário era ressarcido através de pena corpórea sobre o agente. No Brasil, já na era moderna, a obrigação de indenizar esteve prevista na legislação penal. Foi assim, por exemplo, na época do império, quando o Código Criminal de 1830 é que previa o dever do delinquente em satisfazer a vítima pelo dano causado com o delito. Inegável, portanto, a relevância que teve, e ainda hoje têm, a responsabilidade penal para a construção da responsabilidade civil nos moldes atuais.

        Do exposto até aqui, é possível perceber que, de certa forma, há uma tendência de retorno ao abandono da verificação da culpa para a imputação da responsabilidade civil. Com isso, a responsabilidade que evoluiu do objetivismo dos primórdios para o subjetivismo aquiliano inclina a retornar ao objetivismo. Porém, a semelhança de agora com outrora termina na prescindibilidade da culpa, já que não mais se cogita de pena sobre a pessoa propriamente dita, mas sim sobre o patrimônio economicamente apreciável da mesma.

        Modernamente vivemos em uma época na qual dá-se inegável importância aos valores sociais. Evidencia-se a injustiça imposta pelo sistema econômico, que culmina por extremar pessoas em distantes classes sociais. Ora, o direito deve sempre servir à justiça; esta é sua finalidade precípua. Assim, atua ele, também, como instrumento para diminuir referidas diferenças, tornando mais justo o tão injusto mundo, sendo, desta forma, um mecanismo de justiça social.

        Ademais, o direito é uma ciência humana e, como tal, evolui e se modifica com o tempo. Logo, fácil perceber que aquilo que era justo no passado pode não mais ser hoje, que a interpretação de determinada norma passa por várias fases e se modifica, ora para um sentido ora para outro. Todavia, é certo que o escopo dessas alterações é sempre o da realização da justiça, a qual, como visto, oscila de acordo com a época na qual situa-se.

        Não obstante o fato de que a inclusão da culpa como elemento da responsabilidade civil tenha significado inquestionável avanço, a verdade é que, com o passar do tempo, demonstrou não ser capaz de solucionar todos os casos, deixando muitas vezes irressarcido o lesado. Essa situação é muito verificada em casos nos quais, não obstante exista um prejuízo, não consegue a vítima provar a culpa do agente. Da necessidade de solucionar problemas dessa natureza é que surgiu a teoria da responsabilidade objetiva modernamente conhecida, que prescinde da culpa para impor a obrigação de reparar.

        O direito brasileiro adota a teoria subjetiva como regra, impondo à vítima o ônus da prova da culpa do agente.  Porém admite  em  exceção  casos  de  responsabilidade objetiva, isto é, sem culpa e, também, hipóteses onde, embora se exija a culpa para a caracterização da responsabilidade pelo dano causado, seja ela presumida, invertendo-se o ônus da prova da culpa, que deixa de ser da vítima para ser do agente, que para se eximir terá de demonstrar a sua não culpa.

        Ora, a tendência do direito moderno aponta no sentido de se ressarcir o maior número de vítimas possível e da maneira mais completa. Fácil notar que, neste aspecto, a responsabilidade civil objetiva se mostra mais apropriada. Óbvio, pois ao retirar um dos elementos necessários para a caracterização da responsabilidade facilita a verificação da mesma e, por extensão, favorece a situação do lesado, que se livra do ônus da prova da culpa. Por outro lado, inegável que, enquanto dá extremada importância aos direitos da vítima, a responsabilidade objetiva dificulta em muito o afastamento da obrigação de reparar pelo agente.

        Rui Stoco referindo-se à doutrina objetiva afirma de forma elucidativa que “… o que importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento e se dele emanou o prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato causador do dano é o responsável…”.[2]

        O problema não é de fácil solução, mas talvez uma alternativa intermediária seja a mais adequada. A teoria da culpa presumida parece muito bem preencher este papel. Ao mesmo tempo em que livra a vítima do ônus da prova da culpa do agente, tarefa árdua e que às vezes beira o impossível, mantém ao agente a possibilidade de demonstrar não ter agido com dolo ou de maneira, imprudente, negligente ou imperita. Afasta-se, assim, a terrível hipótese de alguém arcar com a reparação de dano cuja verificação não se deu por culpa sua.

         Dentre as correntes que procuram justificar a teoria objetiva, a mais aceita modernamente é a teoria do risco, agora expressamente consagrada no Código Civil em vigor. Segundo essa teoria, será responsável independentemente de culpa quem exerce atividade que, devido à sua natureza, cria risco de dano a direito de outrem, se o dano efetivamente vier a se verificar. Ora, nada mais justo, pois o agente sabia previamente dos riscos advindos da atividade exercida. Mesmo assim preferiu praticá-la. Assumiu o risco visando colher os frutos positivos; logo, terá de arcar com os prejuízos acarretados a outras pessoas, que suportaram o desenvolvimento da atividade.

          Foi ousado o legislador. Em primeiro lugar por prever de maneira genérica a responsabilidade civil pela teoria do risco, livrando-a da limitação por previsão expressa em lei. O dia a dia, a evolução do mundo como um todo é que direcionarão nossos julgadores na análise da existência ou não do risco, ou seja, do que realmente é atividade perigosa. Foi ousado também ao estabelecer que a responsabilidade nos casos de atividades cujo normal desenvolvimento implique riscos a direito de outrem será objetiva, “… independentemente de culpa…”. Não se trata de culpa presumida, visto ser a mesma totalmente prescindível. Sequer será verificada, pouco importa se o agente causador do dano agiu ou não com culpa; tanto faz, pois será responsável de qualquer maneira. Não terá, assim, a oportunidade de provar a sua não culpa, pois mesmo que a demonstre sua responsabilidade persistirá, visto que dela independe. Trata-se, repita-se, de responsabilidade civil objetiva, prevista em norma genérica, como tanto defenderam os objetivistas.

          Certo que o instituto da responsabilidade civil é de extremada relevância, tanto no âmbito do direito, quanto na esfera da cidadania. Sendo assim, natural que o homem busque o aperfeiçoamento do instituto, no sentido de dar ao mesmo a maior efetividade possível. 

            Neste aspecto a responsabilidade civil, que era objetiva nos primórdios da civilização, evoluiu gradativamente até atingir a era subjetiva, nos moldes do direito pátrio atual.

            Eis, então, o cerne da questão da efetividade da responsabilidade civil na sociedade contemporânea, isto é, responsabilidade com culpa ou sem culpa. O direito brasileiro é eclético, acolhendo as duas posições: de regra exige-se a culpa para que haja a obrigação de reparar; entretanto em casos expressamente previstos a culpa é prescindível, bem como nas circunstâncias em que a atividade desenvolvida implicar em risco para direitos de outrem, não sendo elemento necessário à caracterização da responsabilidade civil.

            Andou bem o legislador do novo Código Civil ao manter a exigência da culpa como regra, mas também ao consagrar, de forma genérica, a responsabilidade objetiva de acordo com a teoria do risco, ou seja, pelos danos causados pelo exercício de atividade perigosa, além de manter outras hipóteses de obrigação de reparar independentemente de culpa que não aquelas advindas do risco da prática de atividade perigosa, desde que previstas em lei. Assim, foi facilitado o ressarcimento às vítimas, mas sem que isso significasse uma desenfreada busca por indenizações, já que de regra a exigência da culpa foi mantida.

            Talvez o pior problema da responsabilidade civil subjetiva seja a árdua, quando não impossível, tarefa da vítima de provar a culpa do agente. Diante disso, a culpa presumida mostra-se como solução a ser cada vez mais adotada. Têm a seu favor a facilitação da caracterização da responsabilidade civil, vez que a culpa do agente não precisa ser demonstrada pela vítima e, ainda, permite que o agente demonstre sua não culpa, fato que não é possível na responsabilidade objetiva. Possui, portanto, nuances de ambas as espécies de responsabilidade.

            Não se pode negar, entretanto, o significativo avanço que significou a adoção pelo legislador da teoria do risco da atividade através de norma de previsão genérica. Natural que aumente a efetividade da responsabilidade civil, acompanhando a tendência moderna de ressarcir todas as vítimas da maneira mais completa possível.

            Uma justiça mais eficiente também acarretará um direito mais efetivo. A verdade é que o atual sistema de aplicação legal mostra-se deficitário e insuficiente para resolver os problemas apresentados dentro de um prazo razoável. Com isso a justiça, e o próprio direito, caem no descrédito popular e, em consequência, fica dificultado o próprio sistema de aplicação do direito, sendo prejudicada ainda mais a efetividade do direito devido à descrença popular.

            Tal situação é altamente perigosa e, por isso, precisa ser solucionada. Entre os leigos é comum a pregação da prisão do devedor. Logo, em caráter de urgência, devem ser criadas alternativas que dêem celeridade à resolução dos conflitos de interesses levados ao judiciário, em especial no tocante a reforma na estrutura deste e na busca de procedimentos mais ágeis na esfera processual. É preciso que o povo veja os resultados e não que o problema seja longamente discutido até cair no esquecimento da comunidade. Neste caso haverá descrédito para com a justiça; naquele, pelo simples teor inibitório da verificação da efetiva aplicação do direito, existirá maior respeito para com a lei.

            Tais medidas certamente contribuirão para a garantia da efetiva reparação, servindo inclusive como instrumento de preservação da cidadania. Para tanto, imprescindível se torna a elaboração de estudos específicos e aprofundados sobre o tema, tarefas que devem ser cada vez mais estimuladas no país.

BIBLIOGRAFIA 

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MONTEIRO,  Washington  de  Barros.  Curso  de  direito  civil,  5º.  Vol.,  26a.   ed.  atualizada, São Paulo, Saraiva.

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OLIVEIRA,  Juarez  de. Código  civil: organização de notas remissivas e índices 42a. ed., São Paulo, Saraiva.

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________. Vocabulário jurídico, vol. II, 3a. ed., Rio de Janeiro, Forense.

________. Vocabulário jurídico, vol. III, 3a. ed., Rio de Janeiro, Forense.

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SOARES, Orlando Estevão da Costa. Responsabilidade civil no direito brasileiro: teoria,  prática  forense  e  jurisprudência,  2a.  ed.,  Rio  de  Janeiro, Forense.

STOCO, Rui.   Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial: doutrina e jurisprudência,  3a.  ed.  revista e ampliada, São Paulo, Revista dos Tribunais.       



NOTAS

[1] Como bem esclarece Orlando Estevão Da Costa Soares “Esse período histórico, como se sabe, constituiu a denominada vingança privada, que evoluiu no sentido da vingança divina (ou sacral, realizada em nome de Deus) e, finalmente, cristalizou-se, na vingança pública(em nome do Estado), nos tempos modernos”(SOARES, Orlando Estevão da Costa. Responsabilidade civil no direito brasileiro, p. 01).

[2] STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p. 66.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

FREDERICO DE ÁVILA MIGUELAdvogado; Mestre em Direito – ITE/Bauru-SP; Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos.

fredadvogado@ig.com.br

 

Ligeiras observações sobre a im(p)unidade penal nos crimes contra o patrimônio

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*Claudio da Silva Leiria

“Na história da sociedade há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo criminoso, e o faz a sério e honestamente” (F. Nietsche, Para além do bem e do mal).

Resumo: No presente artigo, defende-se que as imunidades previstas no artigo 181 do Código Penal não são absolutas, mas dependem de representação, sob pena de entendimento contrário ferir o princípio da igualdade de todos perante a lei e os direitos fundamentais à propriedade e segurança.   

Sumário:  1. Introdução. 2. Da necessidade de uma nova interpretação do artigo 181 do Código Penal. 2.1 Colisão de direitos fundamentais. 2.2 Do direito fundamental à segurança e à propriedade. 2.3 Lei Maria da Penha e imunidades penais 3. A objeção ideológica.  4. Breves conclusões. 5. Abstract. 6. Referências.

Palavras-chaves: Crimes patrimoniais. Imunidades. Segurança. Propriedade. Ação.

 


 

 

1. INTRODUÇÃO 

Prescreve o artigo 181 do Código Penal que é isento de pena quem comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I) e de ascendentes ou descendentes, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural (inciso II).

 Já nos incisos I, II e III do artigo 182 do Diploma Repressivo é previsto que somente se procede mediante representação se os crimes contra o patrimônio  forem praticados em detrimento de cônjuge desquitado ou judicialmente separado; de irmão, legítimo e ilegítimo;  de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.

 Não se aplica o disposto nos dois artigos acima citados se o crime é de roubo ou extorsão, ou, em geral, quando haja o emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; ao estranho que participa do crime; se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, conforme dispõe os incisos I, II e III do artigo 183 do Código Penal.  

 No presente artigo, pretende-se demonstrar que a norma veiculada no artigo 181, inciso I, do Código Penal deve ser relativizada,  pois, dentre outros motivos,  sua ‘interpretação tradicional’ (literal) fere o princípio constitucional da isonomia, além de servir de fomento à impunidade.

 2. Da necessidade de nova interpretação do artigo 181 do Código Penal.

 Refere NUCCI que ‘imunidade é um privilégio de natureza pessoal, desfrutado por alguém em razão do cargo ou da função exercida, bem como por conta de alguma condição ou circunstância de caráter pessoal.  No âmbito penal, trata-se (art. 181) de uma escusa absolutória, condição negativa de punibilidade ou causa pessoal de exclusão da pena.  Assim, por razões de política criminal, levando em conta motivos de ordem utilitária e baseando-se nas circunstâncias de existirem laços familiares ou afetivos entre os envolvidos, o legislador houve por bem afastar a punibilidade de determinadas pessoas”[1].

 O citado autor prossegue afirmando que ‘Ensina Nélson Hungria que a razão dessa imunidade nasceu, no direito romano, fundado na co-propriedade familiar.  Posteriormente, vieram outros argumentos: a) evitar a cizânia entre os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo do prestígio auferido pela família.  Um furto, por exemplo, ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se escândalos lesivos à sua honorabilidade (Comentários ao Código Penal, v. 7, p. 324).

 No entanto, o legislador não poderia, pura e simplesmente, face ao princípio de que todos são iguais perante à lei, blindar contra a ação persecutória do Estado o agente que pratica crimes patrimoniais em prejuízo de seus ascendentes, descendentes e cônjuges. 

 Está-se, vez mais, diante do problema de colisão de direitos fundamentais.  De um lado, o direito fundamental à segurança e à propriedade de que a vítima é titular; de outro, o direito do réu a uma imunidade penal, qual seja, não ver-se processado pelo Estado por uma conduta ilícita.

 2.1 Colisão de direitos fundamentais

 É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos.  Como o homem vive em sociedade, estando em contato permanente com seu semelhante – que também goza de direitos e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses direitos.

 Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja, ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um caso concreto.

 Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.

 E no âmbito penal, não se pode ter visão monocular do Direito.  Os interesses da sociedade também devem ser tutelados.  Importante relembrar a lição do Supremo Tribunal Federal: “A lei deve ser interpretada não somente à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade, baseados na tranqüilidade e segurança social[2]”.

 O princípio da proporcionalidade tem dupla face: se de um lado há a proibição de excesso, para conter o arbítrio do Estado, de outro existe a proibição da proteção deficiente aos que têm seus direitos fundamentais violados.

 2.2  Do direito fundamental à segurança e à propriedade

 Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança e à propriedade, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter sua intimidade preservada, sem que seu patrimônio, integridade física, moral ou psicológica sejam colocados em risco.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no seu artigo 3, prescreve que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”  No art. 8 há a previsão de que todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.  E, por fim, prescreve o artigo 17, itens 1e 2,  da referida Declaração:

 “I – Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

“II – Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.”

 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto de São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais’.

 A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – art. 5º, ‘caput’. 

 É absolutamente necessário que os operadores do Direito passem a enxergar que não somente o indivíduo tem direitos, mas que a coletividade pacata e ordeira precisa de ordem e segurança para  levar em paz sua vida.  O contrato social precisa ser protegido.  O Estado tem sua razão maior de ser na proteção do todo, e não somente da da parte.  Invoca-se ensinamento de SAMPAIO DÓRIA (grifos não constantes do original): 

“Em verdade, o Estado, que o homem organiza, se destina ao bem do homem, e não à sua desgraça.  Ninguém constrói, por exemplo, uma estrada de ferro para ser esmagado por um desastre.  Nem mesmo para servi-la.  Mas para se servir dela.  Da mesma forma, não é para ser anulado que o homem organiza o Estado.  As sociedades se formam em função dos indivíduos, e para eles.  E, nas sociedades, a organização política, ou Estado, surge, mas é para garantir, igualmente, a cada um a liberdade, isto é, fazer, ou deixar de fazer, o que generalizado, não destrua, nem prejudique a vida social.  Nunca para suprimir aos homens a dignidade da existência”[3].   

A solução que se alvitra para o conflito de direitos fundamentais é fazer interpretação condicionando à representação as situações previstas nos incisos do art. 181 do Código Penal. 

Muitos são os motivos pelos quais se deve considerar condicionada à representação a ação penal nos crimes contra o patrimônio em que são vítimas as pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.  

Em primeiro lugar, face ao princípio da igualdade, o patrimônio dessas vítimas não é menos digno de proteção do que o das demais pessoas.   

A Constituição brasileira, no ‘caput’ do art. 5º, prescreve que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. 

A interpretação literal do art. 181 do CP gera teratóide: cidadãos de segunda classe, cujo patrimônio não teria a proteção penal.  E lembre-se que o patrimônio é protegido pela Constituição e pelo Pacto de São José da Costa Rica.

 A igualdade perante a lei penal exige que a mesma lei penal, com as sanções correspondentes,  seja aplicada a todos quantos pratiquem o fato típico nela descrito.

 Ao tratar sobre o tema ‘inconstitucionalidade’, JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que  “A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permanecem em condições mais favoráveis.  O ato é inconstitucional por fazer discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade[4]”.

 Se a Constituição Federal de um lado impõe limites ao legislador ordinário na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, de outro impõe a obrigação de incriminar a ofensa de certos bens jurídicos e determina a exclusão de certos benefícios.

 Ao dispor que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais’ (art. 5º, inciso XLI), a Constituição está protegendo a propriedade (direito fundamental), e via de conseqüência, impedindo que de forma absoluta o legislador penal prescreva imunidades no que diz respeito aos crime contra o patrimônio praticados pelas pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.   Configura-se um direito constitucional a não ser discriminado em função dos direitos fundamentais.

 Não pode o legislador infraconstitucional simplesmente negar proteção penal a bens jurídicos de primazia e fundamentalidade, como a propriedade, face a ataques repulsivos, como os delitos de furto, estelionato, apropriação indébita, abuso de incapazes, etc.

 Na esteira do ensinamento de LUCIANO FELDENS, “Passamos a perceber, pois, uma situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação normativa em matéria penal e o tema da prospecção objetiva dos direitos fundamentais, haja vista a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los….Por essa razão, e tal como reconhecido por penalistas de primeira grandeza, a problematização em torno dos mandados constitucionais de criminalização deve partir de bases normativo-constitucionalistas[5].”  

 Em segundo, a meta optata do artigo 181 do Código Penal é acobertar a intimidade familiar, protegê-la de escândalos perante terceiros.   No entanto, há outras formas de se fazer isso e ainda assim dar proteção ao patrimônio das vítimas.

 Isso poderia ser facilmente obtido determinando-se o segredo de justiça para o inquérito policial ou processo judicial criminal envolvendo as partes elencadas no art. 181 do CP.  Preservada ficaria a honorabilidade da família (enquanto instituição) e de seus membros (no particular).

 Em terceiro, em muitas situações, a vítima não tem qualquer sentimento de amor ou afeto pelo agente que lhe causou um desfalque patrimonial.  Nem é preciso mencionar  que são inúmeros os casamentos ‘de ‘fachada’, em que os cônjuges não nutrem o menor sentimento de amor um pelo outro, ou de pais que até odeiam seus filhos. 

 Nesses casos, que motivo racional haveria para tornar os autores dos ilícitos imunes a uma persecução penal? 

 Frise-se ainda que a família modificou-se radicalmente.  Novos padrões de comportamento são adotados.  Na década de 40, quando o Código Penal entrou em vigor, o Brasil ainda era uma sociedade agrária e patriarcal.  A religião, especialmente a católica, era de enorme influência.  Os sentimentos de unidade e de honra de uma família eram bem mais acentuados do que nos tempos atuais.   A matriarca apenas cuidava dos filhos e dos afazeres domésticos. O dinheiro da família era guardado em cofres ou debaixo do colchão. O divórcio sequer existia.

 Importante destacar que na seara infracional, o Tribunal de Justiça de São Paulo improveu recurso de adolescente contra a sentença que lhe aplicou a medida socioeducativa de internação porque subtraiu vários objetos de seus pais com o intuito de comprar substâncias entorpecentes.  No julgamento, os Desembargadores entenderam que os atos infracionais praticados  foram mais danosos ao grupo familiar do que a preservação da instituição familiar.

 Em quarto, como conseqüência do ponto anterior, mencione-se que a vítima pode ter interesse em futura ação indenizatória, na esteira do que dispõe o art. 63 do CPP[6], para o que será de enorme utilidade o trânsito em julgado de uma sentença condenatória na órbita criminal.

 Em quinto, a imunidade prevista no artigo 181 do CP quebra a coerência interna do sistema jurídico.  Ora, um crime no seio familiar seria sempre grave, independentemente do bem jurídico afetado.  Então, qual a lógica de permitir a imunidade para os crimes patrimoniais quando ela não se aplica a delitos que afetam outros bens jurídicos?  Por que conceder imunidade para delitos com maior quantitativo de pena e negá-la para delitos menos graves?

 É de bom alvitre salientar que o Código Penal capitula como agravante o crime cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, nos termos do seu artigo 61, inciso II, ‘e’.  E assim sendo, os delitos não-patrimoniais cometidos contra as pessoas referidas no art. 181 do CP também não prejudicariam o ‘bom nome da família?  Não semeariam a cizânia?

 Não se pode olvidar, também, que a imunidade penal prevista no artigo 181 do CP é fator criminógeno, pois sabendo que não poderá haver a persecução penal pelo Estado, o indivíduo não se intimidará em realizar a conduta ilícita.  

 Para a pobre vítima, restaria apenas uma ação indenizatória contra o agente.  Mas qualquer um que tenha os pés na realidade sabe a crise que atravessa a execução: muitos bens não são penhoráveis, o agente via de regra não terá bens para pagar o devido, o escamoteamento de bens é de fácil realização (venda do bem, colocação do bem em nome de terceiros, ocultamento de bens, etc).

 Deve-se, sempre, portanto, deixar ao crivo do familiar ou cônjuge lesado a decisão de possibilitar a deflagração da ação penal.   É a única forma de manter-se o equilíbrio entre os direitos da vítima e do acusado.

 O Parlamento parece estar atento para a questão. Visando corrigir a absurda situação consagrada pelo art. 181 do Código Penal, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 3.764/2004, de autoria do Deputado Coronel Alves, prevendo a revogação desse artigo e dando nova redação ao artigo 182, nos seguintes termos: 

Art. 1º. Esta lei revoga o art. 181 e dá nova redação ao art. 182 do Código Penal Brasileiro.

“Art. 2º.  Fica revogado o artigo 181 do Decreto-lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940.

“Art. 3º.  O art. 182 do Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 182…………………………………………………………..

I –  do cônjuge, na constância da sociedade conjugal ou judicialmente separado;

II – de ascendente, descendente e colateral até o 3º grau.

Na justificativa do Projeto de lei, o parlamentar argumenta:

 Para melhor adequar o texto à realidade brasileira e não beneficiar o parente que praticou a infração contra a própria família, entendemos que a melhor hipótese seria a revogação do art. 181, pois traz a isenção de pena, quando o mais correto deve ser a representação, deixando para a família a decisão da responsabilidade penal ou não.

“Assim, este projeto visa aperfeiçoar o texto e ampliar a ação familiar na correção dos atos delituosos, dentro do espírito das penas alternativas.” 

2.3. LEI MARIA DA PENHA E IMUNIDADES PENAIS 

Com o advento da Lei Maria da Penha, tende a se formar um consenso doutrinário de que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não teriam mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher, nos termos do artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV, da Lei n.º 11.340/06)[7]. 

Nesse diapasão é o entendimento da douta Desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, verbis: 

"A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f)"[8] 

A interpretação acima é a única que se afina com o espírito da lei de garantir a proteção à mulher.  Entender que as imunidades do artigo 181 do Código Penal prevalecem sobre o disposto no artigo 7º, inciso IV, da Lei Maria da Penha, seria tornar o último dispositivo mero ornamento legal e propiciar a continuidade das subtrações patrimoniais contra a mulher nas esferas familiar e residencial.

No mínimo, há de se entender pela derrogação dos artigos 181 e 182 do Código Penal face ao disposto no artigo 2º, 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil – a lei posterior revoga a anterior quando com ela incompatível.   

3. A OBJEÇÃO IDEOLÓGICA 

Com certeza, as posições externadas no presente artigo atrairão os protestos dos autodesignados ‘penalistas modernos’, que, escandalizados, focarão suas críticas no fato de que direitos dos acusados, expressos legislativamente, não poderiam ser suprimidos na ‘via interpretativa’. 

Na dogmática ‘garantista’, o Direito Penal existe tão-somente para a proteção daquele que seus adeptos denominam ‘o mais débil’ (o acusado) diante do Leviatã (O Estado).   

Nessa visão estreita e unilateral do fenômeno jurídico, o Direito Penal tem como única finalidade   proteger o acusado da fúria punitiva do Estado.  

Só não percebeu o ‘garantista’, ‘neto retardatário do Iluminismo’, que na realidade brasileira o débil na relação penal é o Estado (depauperado, sem condições de equipar sua polícia e o Poder Judiciário, ou dar vida digna aos seus cidadãos), enquanto o Leviatã é o criminoso, cada vez mais ousado, organizado e bem armado.   Isso é mais uma prova do equívoco que é transplantar-se doutrinas alienígenas para aplicação em solo pátrio, sem qualquer observância das realidades locais. 

Na linha de pensamento ‘garantista’, conforme as necessidades de proteção do ‘mais débil’, ora a legalidade se flexibiliza (concedendo-se direitos sem previsão legal), ora torna-se uma muralha intransponível (restringindo-se interpretações desfavoráveis ao acusado).

 Essa cegueira ideológica, no entanto, não se harmoniza com a Constituição brasileira, que deve ser a bússola na interpretação do Direito.    Pode-se dizer que se extrai do sistema constitucional o mandamento de criminalizar os delitos patrimoniais praticados pelos agentes elencados no artigo 181 do Código Penal. 

 O ‘garantista’ constrói sobre areia movediça, ao interpretar o Código Penal e a Constituição com olho de Polifemo: ‘só o delinqüente tem direitos’.

 Ora, análise ponderada da Constituição revela, como não poderia deixar de ser, que ela faz o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais do acusado e a defesa da sociedade (individual x coletivo).  Pode-se dizer com todas as letras que a Constituição Federal não acolheu o comando normativo estampado no artigo 181 do CP.

 A não ser assim, o Direito Penal chancelaria situações teratológicas e afrontosas aos mais elementares sentimentos de justiça, como, por exemplo, não punir o agente que lesa patrimonialmente a mãe com 59 anos de idade, cega e analfabeta; ou então, isentar de pena o agente relacionado no art. 181 do CP pela prática do grave delito de abuso de incapaz débil mental.

 Como já referido neste texto, se de um lado o Estado não pode usar de arbítrio contra o cidadão, excedendo-se no rigor punitivo (proibição de excesso), também não pode pecar pela proteção deficiente à coletividade na seara penal.

 E é justamente a tarefa do aplicador do direito encontrar o ponto de equilíbrio entre direitos do acusado e os direitos da sociedade, não permitindo o aniquilamento de uma espécie por outra.   Não existem ‘modelos’ de interpretação pré-definidos, sujeitando-se o intérprete, também, às variáveis sociais. 

 No Brasil, infelizmente, os operadores do Direito que se intitulam ‘garantistas’ (termo que usurparam) cingem-se a criar doutrinas pró-delinqüentes, esquecendo que as vítimas também têm direitos, o que faz relembrar as agudas palavras de VOLNEY CORRÊA JÙNIOR[9] 

“Todos os séculos registram surtos espasmódicos de contracultura e anticivilização.  Neste fim de século, a revivescência cínica em voga é a bandidolatria.  Cegos à dramática situação da população atormentada por assaltantes e surdos aos gemidos das vítimas, insensatos há que se propõem a identificar no ladrão-assaltante uma auréola robin-hoodiana: ele, a seu modo e em última instância, estaria a promover redistribuição de renda…Seria cômico, se não fosse trágico. 

“Humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a faxineira e para a lavadeira (que não delinqüem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinqüem); para o metroviário e para o bancário (que não delinqüem); para o rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço de terra; para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinqüem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinqüem, não delinqüem, não delinqüem, porque mansos de espírito, puros, dotados de boa índole). 

“Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, seqüestram, matam e roubam.”

 

4. BREVES CONCLUSÕES 

1. A imunidade prevista no artigo 181 do Código Penal, tal como posta, é inconstitucional, pois: a) fere o princípio da igualdade, já que o patrimônio da vítima naquelas hipóteses é tão digno de proteção quanto o de qualquer cidadão; b) a proteção à intimidade familiar, buscada pelo instituto, pode ser alcançada por outros meios, tal como a decretação de sigilo no procedimento investigatório; c) muitas vezes não há vínculos afetivos a proteger entre autor e vítima; d) a vítima pode ter interesse na condenação do culpado para exercer a ação ex delicto;  e) há uma quebra de coerência interna do sistema penal, já que a imunidade não é aplicada para outros delitos cometidos pelos agentes relacionados no art. 181 do CP, inclusive para os com menor quantitativo de pena.  

2. Ainda, a imunidade positivada no artigo 181 do Código Penal estimula a impunidade, pois sabendo de antemão que não poderá ser perseguido penalmente, o simples temor de sofrer uma ação indenizatória, de difícil execução posterior, não intimidará o agente. 

3. Contra as pessoas elencadas no artigo 181 do CP pode haver a deflagração de ação penal, mas condicionada à representação da vítima. 

4. A Lei 11.340/06 (“Maria da Penha”) derrogou tacitamente o artigo 181 do Código Penal, fazendo com que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não tenham mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher (artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV).

5.  O Direito Penal não pode ser visto somente sob a ótica dos direitos do acusado (visão monocular), devendo a interpretação da lei levar em consideração os interesses da vítima, pois o princípio da proporcionalidade é uma via dupla: de um lado, contém o arbítrio do Estado, de outro proíbe proteção deficiente ao lesado em seus direitos fundamentais. 

5. ABSTRACT

                   In the present article, it is defended that the immunities foreseen in article 181 of the Criminal Code are not absolute, but depend on representation, duly warned contrary agreement to wound the principle of the equality of all before the basic law and rights to the property and security.

 Keywords: Larcenies. Immunities. Security. Property. Action.

6. REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. Editora RT, 2007.

DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo:  Max Limonad, 1962.

FELDENS, Luciano. A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de Moraes. Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores. 



NOTAS

[1] Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, P. 731. 

[2] RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p. 10.929.

[3] DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo:  Max Limonad, 1962, p. 244.

[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, p. 208. 

[5] A Constituição Penal – A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73. 

[6] Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

[7] Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

(…)

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I , II, III – (omissis)

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

[8] A Lei Maria da Penha na justiça, RT, pp. 88-89.

[9] Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002, p. 90.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLÁUDIO DA SILVA LEIRIA:    Promotor de Justiça no RS

A guarda compartilhada como um ato de amor

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* Clovis Brasil Pereira 

 

Introdução 

 

É crescente no Brasil o número de separações e divórcios, e como conseqüência, dá-se o natural distanciamento entre  pais e filhos, já que na grande maioria dos casos, estes ficam sob a guarda e responsabilidade da mãe.  

A rotineira fixação de visitas  pré-estabelecidas, em dias e condições pactuadas entre os separandos, se mostra muitas vezes insuficiente para atender a expectativa dos filhos, notadamente quando na tenra idade.  

Certamente, a grande maioria não consegue assimilar e entender a nova situação criada, pois de um dia para o outro, se vêm distanciados do convívio do pai, antes sempre ou quase sempre presente, e agora um mero visitante ocasional. 

Parece difícil para os filhos menores, entenderem a nova situação criada, notadamente quando não existe um diálogo franco, aberto, sem subterfúgios, entre pais e filhos, afinal, a interrupção da convivência entre os pais, não significa que ambos, pai e mãe, deixem de amar e  de querer bem, seus filhos.  

O reflexo da separação, na maioria das vezes, se faz sentir no cotidiano dos filhos, que passam a se sentir desamparados, abandonados, esquecidos, notadamente pelo pai, quando é este que deixa o lar. Tal insatisfação, acaba resultando em rebeldia, baixo rendimento escolar, dificuldade no relacionamento com outras crianças, descontrole emocional, dentre outras atitudes negativas, que acabam por afetar grande parte das crianças e adolescentes. 

È certo pois, que o modelo convencional de guarda e visita estabelecido pelos pais, quando da separação ou divórcio, não atende muitas  vezes, de forma  satisfatória o interesse dos filhos menores, pois estes  são surpreendidos com a separação repentina, e não estão preparados para viver a nova situação que acabou de se criada, notadamente no início da separação, quando a mãe geralmente assume o encargo da guarda, com todas as suas conseqüências, também desgastada emocionalmente, e dentro de uma nova realidade econômica, via de regra,  difícil de ser superada.  

Num primeiro momento, a mãe passa a ver a guarda como um  ônus, notadamente, porque em razão da nova situação e necessidades,   sente a imediata necessidade de tentar se inserir no mercado de trabalho, quando não trabalhava, ou ainda, de ascender à melhor posição, quando já trabalha, com o intuito de aumentar sua renda, para enfrentar as dificuldades que de pronto, começam a aparecer.  

As vantagens da  guarda compartilhada  

Para superar tais dificuldades e obstáculos, surgiu em nosso ordenamento jurídico, a guarda compartilhada, como uma nova forma de relacionamento entre pais e filhos, quando da separação dos pais, e que consiste na possibilidade dos filhos  serem assistidos, concomitantemente, por ambos os pais, e estes  têm autoridade efetiva para agir e para tomar as decisões necessárias e prontas, quanto ao bem estar dos seus filhos.  

Várias são as vantagens, ao nosso ver,  protagonizadas pela guarda compartilhada, em prol do bem estar dos filhos, e do fortalecimento dos laços de afetividade e confiança entre eles, dentre as quais destacamos:  o maior envolvimento do pai no cuidado dos filhos;  maior contato dos filhos com os pais, estreitando o relacionamento íntimo entre ambos – pais e filhos –  aumentando, consequentemente,  o grau de confiança e cumplicidade entre eles; as mães ficam liberadas em parte da responsabilidade da guarda unitária, que vigora como um primado cultural em nossa sociedade, liberando-a para buscar e perseguir  outros objetivos, que não seja apenas o de cuidar dos filhos.  

Para tanto, o compartilhamento da guarda, exige uma comunicação efetiva, ágil e respeitosa entre os genitores, além de uma disponibilidade maior para atender as necessidades dos filhos, não para simplesmente vigiá-los, mas para que sintam segurança, amparo, retaguarda, para um crescimento harmonioso, notadamente  no plano emocional e  psicológico.  

A Guarda Compartilhada na legislação brasileira  

A legislação pátria já dá  a base legal para estimular a guarda compartilhada, com uma legislação moderna e avançada, que ainda contrasta com o arraigado preconceito machista, secularmente transmitido, de que o cuidado dos filhos, deve ser tarefa da mãe, cabendo ao pai, a responsabilidade de prover seus alimentos.  

O  legislador, por outro lado,  vem introduzindo paulatinamente no ordenamento jurídico, vários normativos que por certo, acabarão por consolidar a guarda compartilhada, como um instrumento legal hábil para a melhoria da qualidade do relacionamento entre pais separados e seus filhos.  

O marco decisivo para a implantação da guarda provisória,  encontramos na Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu artigo 226, § 3º e 4º,  o reconhecimento da união  estável entre homem e mulher como entidade familiar; o § 5º, do mesmo artigo, trouxe grande contribuição, ao regulamentar que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal serão exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. O artigo 229, da Carta Magna, atribui aos pais “o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”.  

Posteriormente,  o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, Lei nº 8069/90, de forma objetiva, atribui em seu artigo 4º,  como dever da família, ao lado da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária.  

Tal dispositivo contido no ECA, na verdade, deu efetividade ao artigo 227, da Constituição Federal, que consolida como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos fundamentais, dentre os quais, o direito à convivência familiar.  

O ECA, no artigo 5º, proíbe em relação às crianças e adolescentes,  qualquer modalidade de discriminação, negligência, exploração e violência, determinando a punição dos responsáveis por qualquer atentado aos direitos fundamentais.  Nos artigos subseqüentes, trata das disposições que devem ser observadas e garantidos às crianças e adolescentes,  para a garantia dos direitos fundamentais assegurados no artigo 4º, já referido.  

Mais recentemente, o Código Civil, Lei nº 10.406/2002, estabeleceu o Poder Familiar, em substituição ao  Pátrio Poder, adaptando a legislação infraconstitucional, aos princípios constitucionais da Carta de 1988, disciplinando o exercício do poder familiar pelo pai e pela mãe, sempre atento ao interesse do menor, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que a disciplina do exercício do poder familiar se encontra inserta no  artigo 1634 do Estatuto  Civil.  

A guarda compartilhada como um ato de amor  

Temos assim, todo o embasamento jurídico e legal para assegurar a guarda compartilhada como um direito/dever dos pais, com o objetivo de proporcionar aos seus filhos, uma assistência mais efetiva, notadamente  no campo emocional, afetivo e  educacional.  Basta que se vençam as barreiras culturais decorrentes do preconceito enraizado em nossa sociedade, de que a missão de cuidar dos filhos de pais separados, é primordialmente da mãe.  

Por certo, ao longo do tempo, com o estímulo do legislador e com sustentação na jurisprudência de alguns Tribunais, estes mediante uma interpretação mais qualificada da legislação constitucional e infraconstitucional, o instituto da guarda compartilhada acabará vencendo os obstáculos decorrentes do preconceito e da formação cultural de nossa sociedade, e poderá se tornar uma opção de uso comum pelos  separandos, pois entendemos, que mais do que uma guarda meramente legal,  é um instituto que se impõe  como um verdadeiro ato de amor.  

 E qual é o pai e a mãe que não ama seus filhos?  

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLOVIS BRASIL PEREIRA:  Advogado, com escritório na cidade de Guarulhos (SP); Especialista em Processo Civil; Licenciado em Estudos Sociais, História e Geografia. É Mestre em Direito,  Professor Universitário;  ministra cursos na ESA- Escola Superior da Advocacia, no Estado de São Paulo,  Cursos Práticos de Atualização Profissional e  Palestras sobre temas atuais; é membro da Comissão do Advogado-Professor da OAB-SP; membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-Guarulhos; é colaborador com artigos publicados nos vários sites e revistas jurídicas. É coordenador e editor dos sites jurídicos www.prolegis.com.br e www.revistaprolegis.com.br