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A gradativa aproximação do sistema da civil law ao common law.

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Há muito tempo que o juiz deixou de ser a desprezível “boca da lei”, apesar da elegante expressão francesa la bouche de la loi[1], porque mesmo no sistema romano-germânico, veio a jurisprudência ocupar lugar de prestigiado destaque, principalmente por conta das cortes constitucionais, o que faz com que venha até a se aproximar do sistema da common law.

Foi René David o primeiro doutrinador a chamar a atenção no sistema common law do século CC no Reino Unido principalmente ao tratar do Welfare state[2] (O Estado do Bem-Estar social)e escreveu sobre novas situações que estão proporcionando maior aproximação do common law do civil law.

Afirmou literalmente: “O movimento iniciado no século XIX continua nos nossos dias, com novas características. Uma nova corrente socialista, visando o estabelecimento da sociedade sobre novas bases, substituiu a corrente liberal que foi dominante até 1914. A common law sofreu, por isto, uma grave crise, já que os processos de elaboração casuística e jurisprudencial, pelos quais ela se caracterizou desde a sua origem, conciliam-se com a vontade de efetuar na sociedade profundas e rápidas transformações. As leis e regulamentos adquiriram uma importância desmedida em comparação com a situação anterior.

Para resolver os problemas do Welfare-state[3], talvez os direitos românicos do continente europeu, familiarizados com a elaboração legislativa e doutrinal do direito, estejam mais preparados do que o direito inglês.

Esboça-se, assim, um movimento de aproximação entre o direito inglês e o direito do continente europeu; este movimento é estimulado pelas necessidades do comércio internacional e favorecido por mais nítida consciência das afinidades que existem entre os países europeus ligados a certos valores da civilização ocidental: a estrada do Reino Unido na Comunidade Econômica Europeia poderá dar um novo impulso a esta aproximação.

Já a ordem jurídica italiana após a Lei Fundamental de 1947, aponta para o stare decisis antes tido como peculiaridade do sistema inglês, atualmente é encontradiço em seus traços gerais com prática difundida em todo o continente europeu a partir do século XVI.

Conclui-se que no sistema italiano, a partir da Carta de 1947, existe autêntica aproximação do sistema common law ao da civil law. E idêntica aproximação acontece no sistema judiciário alemão. Pois de fato, a Lei fundamental de Bonn de 1949 é expressa ao prever em seu art. 94.2, o efeito vinculante das decisões do Tribunal Constitucional, salientado, ademais, que a lei federal disporá sobre a organização e o procedimento, precisando os casos em que seus julgados terão eficácia de lei.

Em Portugal, segundo José Joaquim Gomes Canotilho de acordo com o art. 282º/1 da Constituição Portuguesa, as decisões do Tribunal Constitucional possuem força obrigatória geral, demonstrando: a) vinculação geral, ao submeterem o legislador, que não pode reeditar normas julgadas inconstitucionais neutralizar a decisão através de convalidação retroativa; b) força de lei, porque tais deliberações, em face do valor normativo que ostentam, estendem seus efeitos perante as pessoas físicas e coletivas privadas.

A Espanha, por sua vez, não ficou alheia ao fascínio do precedente judicial e, para essa finalidade, o Tribunal Constitucional invocou o princípio da igualdade que fora prestigiado pelo art. 14 da Constituição de 1978.

Por derradeiro, é de se apontar o sistema vigente em França, historicamente por conta da Revolução de 1789, o sistema francês tendeu a repudiar o trabalho dos juízes, que eram vistos e considerados como caudários do Ancién Régime. Desta forma, a Lei de 1790, ao criar o référé legislatif, destacou o caráter do magistrado como um aplicador autômato da lei, dando importância maior à interpretação legislativa, com descrédito ao labor do juiz, sendo maior prova disso, o dispositivo contido no art. 3º da Constituição de 1791 que estabelecia que: “Os tribunais não podem imiscuir-se no exercício do Poder Legislativo ou suspender a execução das leis, nem intrometer-se nas funções administrativas ou citar perante eles os administradores por motivo de suas funções”.

Por essa razão fora criado o Tribunal de Cassação que representa o órgão político do Legislativo que tinha como principal função a de retificar as infrações cometidas pelas cortes judiciais francesas, sempre que as ditas infrações se traduzissem em contravenção ao texto da lei.

O Tribunal de Cassação, porém a partir de 1837 assumira outra feição, passando então a ser órgão do Judiciário com a atribuição de rever qualquer sentença que se baseasse em ratio decidendi contrária à sua orientação jurisprudencial.

Depois surgira em 1872 o Conselho de Estado que, mesmo não pertencendo ao Judiciário francês, passou a merecer a atribuição de julgar as questões de direito público, sendo considerado o ápice da jurisdição administrativa.

George Vedel[4] e Delvolvé Pierre[5] explicaram coerentemente a inclusão da jurisprudência como fonte do direito no sistema francês e destacaram a relevância do papel do juiz, afirmando que este somente interpreta os textos legais, não criando o direito.

Registre-se que essa aproximação enfocando o direito pátrio é mais visível quando da adoção das chamadas súmulas vinculantes que representam estruturas peculiares do sistema da common law[6] e que redirecionou o sistema jurídico brasileiro, onde as decisões do Supremo Tribunal Federal passaram a ter após a EC 45/2004 e a Lei 11.417/2006, o efeito vinculante[7] em relação aos demais órgãos do Judiciário e também à administração direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

A referida aproximação dos sistemas nos leva a uma análise sobre a mudança de paradigmas que estruturam cada um dos sistemas. Valendo-se da teoria de Thomas Kuhn que cuidou de demonstrar o caráter revolucionário do progresso científico, em que a revolução implica o eventual abandona de uma estrutura teórica e sua substituição por outra que, às vezes, se mostra mais incompatível com a primeira.

Kuhn sintetiza um quadro de como progride a ciência, num esquema aberto: pré-ciência, ciência normal, crise-revolução, nova ciência normal, nova crise.

Assim num retrospecto histórico percebe-se que os dois sistemas, na fase de pré-ciência em que se encontravam, chegaram até a fase de ciência normal, de modo que o sistema da common law passou a ser regulado por precedentes e o da civil law, por sua vez, pela legislação codificada e positivada.

O eventual fracasso em resolver um problema é considerado como fracasso do cientista e não como uma falta de adequação do paradigma. E, diante disso, o paradigma permanece. Quando será necessário, valer-se das leis gerais, os princípios metafísicos e metodológicos envolvidos no paradigma para tentar mantê-lo.

Em relação às crises, os sistemas ora analisados podem eventualmente apresentar, e os juristas de cada um dos sistemas irão tentar resolver seus problemas exatamente com os métodos paradigmáticos que orientam cada um dos dois sistemas.

Dificuldades, contudo, ainda não são as verdadeiras crises. As crises somente irão realmente se materializar quando as anomalias passam a representar os problemas sérios para um paradigma e um período de acentuada insegurança comece.

E, assim os cientistas começam a expressar abertamente seu descontentamento e inquietação com o paradigma reinante. Acentua-se a complexidade quando do surgimento de um eventual paradigma rival, quando os adeptos de cada sistema tenta se manter, o que ocorre porque vivem, por assim dizer, em mundos diferentes.

Chega-se, contudo, a um certo momento em que, em plena crise, os próprios adeptos aos conceitos orientadores de certo paradigma irão aderir às ideias e soluções do outro. É a chamada troca gestáltica ou conversão religiosa, que não terá significa ou até poderá traduzir-se em superioridade de um paradigma em relação ao outro, exatamente porque dita adesão não decorre de um único fator.

Indubitavelmente o sistema jurídico pátrio tem-se aproximado do common law que vigora no Reino Unido e nos EUA e se torna mais evidente a partir da implantação do sistema vinculativo de jurisprudência, e atualmente com o CPC/2015.

Porém tal aproximação não é recente, pois o CPC de 1939[8], em seu art. 861 trazia expressamente que o Tribunal poderia promover o pronunciamento prévio sobre a interpretação de qualquer norma jurídica. Mesmo no Anteprojeto do CPC de 1973 de autoria de Alfredo Buzaid, houve estudos no sentido de se restabelecer os antigos assentos que vigoravam anteriormente (art. 519 e item 29 da Exposição de Motivos) com que as decisões judiciais teriam então efeito vinculativo.

Também ocorreu na Constituição de 1946 quando existiram projetos de implantação do sistema de precedentes vinculante.

Porém, a mais pujante adoção das regras do common law no sistema jurídico brasileiro adveio com a EC45/2004 que inseriu o art. 103-A da CF/1988, possibilitando a edição pelo STF, de ofício ou por provocação, mediante a decisão de dois terços de seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, a aprovação de súmula[9] que, a partir de sua publicação passa a ter efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder sua revisão ou cancelamento.

O referido preceito constitucional fora regulamentado devidamente pela Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que disciplinou a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula[10] vinculante.

Aliás, várias mudanças legislativas brasileiras apontam que tem realmente ocorrido o avizinhamento conforme o art. 38 da Lei 8.039/90, que permitira ao relator, no STF e no STJ, negar seguimento ao recurso que contrarie, nas questões de direito, súmula do respectivo tribunal; o art. 557 do CPC/73 (correspondente ao inciso III do art. 932 do CPC/2015) que, o mesmo sentido, dispôs que o relator negará o seguimento ao recurso que estiver em confronto com súmula ou jurisprudência predominante do Tribunal, do STF ou STJ; o art. 896 da CLT que também passou a estabelecer que o relator poderá negar seguimento ao recurso de revista, se a decisão recorrida estiver em consonância com enunciado de súmula do Tribunal Superior do Trabalho; o art. 285-A do CPC/73 (correspondente ao art. 332 do CPC/2015) que veio permitir que quando houver a matéria unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença nos mesmos moldes da que já fora anteriormente prolatada.

Igualmente os arts. 543-B e 543-C do CPC/73 e os arts. 544, terceiro e quarto parágrafos todos do Código Processual ainda vigente (O art. 534-A correspondente ao art. 1.035 do CPC/2015; O art. 534-B correspondente ao art. 1.036 do CPC/2015, art. 1.039; O art. 534- C correspondente ao Primeiro e terceiro parágrafos do art. 1.036 do CPC/2015).

Também quanto à tendência de incentivar a conciliação, o sistema anglo-saxônico se revela mais expressivo. É a denominada alternative dispute resolution dos EUA. E, percebe-se claramente essa tendência impressa no CPC/2015 onde há o claro incentivo para as vias alternativas de composição da lide, trazendo diversas formas combinadas entre as figuras de negociação, mediação, arbitragem e conciliação desonerando de forma evidente o labor do Poder Judiciário.

Na doutrina reconhecendo a aproximação, em brilhante artigo que teve grande circulação no país, ao tratar a transformação do Civil Law e a chance de se criar um sistema precedentalista para o Brasil, veio o Luiz Guilherme Marinoni sustentar que é chegada a hora para se ter efetivas investigações doutrinárias sobre a jurisdição da common law e se deve abandonar o preconceito em relação ao direito americano.

Afinal, afirma o brilhante doutrinador, o juiz da civil law passou a exercer o inconcebível papel  com esse sistema, passando a ser tão criativo quanto o seu colega da common law, porque atualmente o juiz do primeiro sistema controla a constitucionalidade da lei e, obviamente não está mais a esta submetido, com o seu papel até mesmo negaria a ideia da supremacia do legislativo que  é tão próprio na civil law.

O Estado Constitucional[11] deixou de ser mero servo do legislativo. O juiz sob o neoconstitucionalismo tem papel muito próximo ao do common law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law[12].

Afinal concluir que realmente tem havido a aproximação entre esses dois sistemas e que isto caracteriza uma mudança de paradigmas que traz a evolução do direito brasileiro e da jurisdição brasileira, trazendo o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito e o reforço necessário e inspirador para o cumprimento dos princípios constitucionais de segurança jurídica, da isonomia e do acesso à justiça. Além de garantir o exercício dos direitos fundamentais além da duração razoável do processo.

 

Referências

BRITO, Jaime Domingues. OLIVEIRA, Flávio Luis de. A convergência do sistema da civil law ao da common law e a concretização dos direitos. Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/INTERTEMAS/article/viewFile/2616/2405  Acesso em 31.07.2015.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed., Coimbra;: Almedina, 1992.

CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

DINAMARCO, C.R. Efeito vinculante das decisões judiciárias. In: Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2000.

LEITE, Gisele; HEUSELER, Denise. Commonlização à brasileira. Portal Jurídico Investidura. Florianópolis, 05.set.2011 Disponível em http://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/processocivil/197197-commonlizacao-a-brasileira Acesso 31.07.2015;

MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado Contemporâneo. In: Estudos de Direito Processual Civil. Homenagem ao Professor Egas Dirceu Monis Aragão. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A jurisprudência como fonte do direito e o Aprimoramento da magistratura. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 279, jul./set, 1982.

TESHEINER, José Maria Rosa. Juiz Bouche de la loi – Em defesa de Montesquieu. Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/64-artigos-jun-2008/5975-juiz-bouche-de-la-loi–em-defesa-de-montesquieu  Acesso em 31.07.2015.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas.  Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2006.

[1] É corrente a crítica à noção de juiz como “boca da lei” ou juiz robot que são expressões eivadas de pejora. Porém a crítica está longe de ser merecida e justa. A ideia de Montesquieu decorre naturalmente em prol do princípio da legalidade que, embora enfraquecido, continua a integrar nosso sistema constitucional. E em paralelo há outra ideia que não pode ser desprezada: a de que uma sociedade de homens livres deve ser governada por leis, e não por homens, ainda que juízes. Em resumo, prega-se a substituição decisões judicias discricionárias (decisões predominantemente politicas), por decisões vinculadas ao sistema jurídico (decisões predominantemente jurídicas). A ideia principal é o juiz que obedece à lei não exerce verdadeiro poder. Defere ou indefere o pedido do autor, em obediência a um dever. O juiz que, abusando da hermenêutica, faz a lei dizer o que ele quer, este sim, exerce poder: defere ao amigo o que nega ao inimigo.

A principal crítica de Montesquieu assenta na existência possível de várias interpretações de um texto legal, donde a possibilidade de extrair-se, de um texto velho, uma norma nova, mais consentânea com a atualidade. Em suma, trata-se da criação jurisprudencial do Direito, que constitui uma antítese do princípio da legalidade, baseado na supremacia da lei.

[2] A crise do Estado de Bem-estar é um tema complexo para o qual não há consenso entre os estudiosos. Nos países industrializados ocidentais, os primeiros sinais da crise do Welfare State estão relacionados à crise fiscal provocada pela dificuldade cada vez maior de harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista. Nessas condições, ocorre a desunião entre “capital e trabalho”. As grandes organizações e empresas capitalistas e as massas trabalhadoras já não se entendem e entram em conflito na tentativa de assegurar seus próprios interesses.
No Reino Unido, a eleição da primeira-ministra Margareth Thatcher (do Partido Conservador; que governou de 1979 a 1990) representou o marco histórico do desmonte gradual do Estado de Bem-estar inglês a partir da política de privatização das empresas públicas. Outros países adotaram a mesma política.

[3] O Estado do Bem-estar também conhecido pela denominação inglesa Welfare State. E designa basicamente um Estado assistencial que garante padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social a todos os cidadãos. É possível identificar vários tipos de políticas assistenciais promovidas por inúmeros Estados. Ao longo do século XVIII, por exemplo, em países como Áustria, Rússia, Prússia e Espanha colocaram em prática uma série de importantes políticas assistenciais.  Tais políticas desenvolvidas se situavam no campo da justiça material, e eram consideradas pelos súditos como dádivas ofertadas pelo governante. Podemos identificar tais políticas no governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945) que ficou conhecido por extensos segmentos das populações pobres como o “pai dos pobres”.

[4] Georges Vedel (1910-2002) professor e jurista francês de direito público. Consultor jurídico da delegação francesa nas negociações sobre o Mercado Comum e Euratom 1956-1957) em conferências em Veneza,  Bruxelas e Roma (organismo público europeu para coordenar os programas de investigação em matéria de energia nuclear.  Foi instituído por uma “indefinido” período pelo Tratado Euratom, assinado em 25 de Março de 1957 pelos seis países membros do Carvão e do Aço,  Comunidade Europeia (CECA), e entrou em vigor em 1 st  de Janeiro de 1958). Membro do Conselho Económico e Social (1969 1979).

[5] Delvolvé Pierre é professora e jurista francesa. É professora emérita da Universidade de Paris II. Sua tese intitulada “O princípio da igualdade perante ônus público”  que fora prefaciado por Georges Vedel e, fora publicado em 1969, na Biblioteca Geral da Lei e da Jurisprudência.

[6] O common law encontra seus primórdios na Inglaterra, no século XI, época da conquista de povos e expansão de territórios dominados pelo Império Britânico, como, por exemplo, EUA, Austrália, Índia e parte do Canadá. O direito inglês sempre foi baseado nos costumes e, principalmente, nos precedentes judiciais, apesar de considerarem a lei escrita como fonte de direito, mas visto sob um enfoque secundário. No common law, há o case method, quer dizer, são discutidos precedentes da Suprema Corte, assim como das cortes superiores dos estados americanos, dos quais serão extraídos regras e princípios gerais necessários para o julgamento.

[7] Vinculante não é somente o teor interpretativo-descritivo e imperativo da súmula, mas também os fundamentos invocados na sua edição, com relação ao núcleo do procedente. A edição, revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante depende sempre de decisão tomada por 2/3 (dois terços) dos membros da Corte em sessão plenária, o que equivale, em regra, a 8 (oito) ministros. O art. 3º apresenta o rol de legitimados para a edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante. De se observar que na redação final da lei foram excluídos os Procuradores-Gerais de Justiça dos estados e o Advogado-Geral da União, que figuravam na redação original.

[8] O referido diploma legal de 1939 teve o mérito de se inspirar nas mais modernas doutrinas europeias da época, introduzindo importantes inovações em nosso ordenamento processual, como o princípio da oralidade e a combinação do princípio dispositivo e do princípio do juiz ativo, permitindo uma maior agilidade nos procedimentos.

[9] Vulgarmente a palavra súmula significa o sinônimo de suma ou resumo, mas juridicamente significa um enunciado sobre a jurisprudência dominante no tribunal. O que se publica do acórdão, verdadeiramente, é o seu dispositivo, e não propriamente a sua súmula. O dispositivo do acórdão representa o fechamento do silogismo iniciado com o relatório e desenvolvido pela motivação, isto é, é a resposta com que se nega ou dá provimento ao recurso. É essa conclusão que deverá ser divulgada na imprensa oficial, para que a parte compreenda desde logo se venceu ou se foi vencida na demanda.

[10] A decisão judicial sob a forma de uma súmula vinculante passa a se tornar, ao lado da lei, fonte formal do direito. A palavra súmula, criada no direito brasileiro no ano de 1963, pelo então Ministro Victor Nunes Leal, passa a ganhar agora um duplo sentido. Podemos falar em súmula persuasiva, ou seja, aquela que tem por objetivo influenciar outras decisões, e em súmula vinculante, entendida como aquela dotada de força obrigatória para os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo. Em regra, as súmulas não são vinculantes. Vale lembrar, inclusive, que nenhuma das súmulas editadas pelo STF até o advento da presente Lei tem efeito vinculante. Para que sejam vinculantes, as súmulas terão que seguir todo o procedimento adiante descrito. A base teórica da súmula vinculante repousa na doutrina americana conhecida como stare decisis, que se fundamenta nos princípios da isonomia, respeito à coisa julgada, economicidade e previsibilidade das decisões judiciais.

[11] Não nasceu o Estado Constitucional moderno, permita-se-nos o truísmo, de uma sentada só.  Foi fruto de lenta evolução dos costumes das sociedades políticas, as quais nem sempre caminhavam no mesmo diapasão.  Fatores de toda ordem, sociais, geográficos, culturais, seguramente contribuíram para que essa caminhada não se processasse da mesma maneira. Não é desprezível, por exemplo, o registro de a Inglaterra, até por sua condição insular, ter desenvolvido uma monarquia parlamentar, ou experimentado uma curta República, quando no continente vigorava uma monarquia absolutista.

[12] Há uma crescente simpatia pelo common law o que pode ser taxado de commonlawlização do direito brasileiro principalmente a partir da constatação da importância que a jurisprudência, prestigiando a função criadora do juiz. Também é crescente o fenômeno a que chamamos de “justiça negociada”, pois na maioria das vezes ocorre o acordo entre as partes, como meio de resolução do mérito, evitando-se enfim o julgamento do pedido .Acreditamos que deve existir prudência ao encarar a chamada interação[9] entre os dois sistemas, respeitando-se as peculiaridades de cada país. Não basta as meras reformas legislativas e sucessivas, mas busca-se a autêntica mudança de ideologia, principalmente para conferir ao Poder Judiciário o poder de pacificação do convívio social, com a garantia de acesso à justiça e da cidadania resgatada.

Convencido, convertido ou coagido

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A força ressocializadora das entidades religiosas nas Unidades Prisionais

Sumário: 1. Introdução. 2. Atuação e objetivos. 3. Junção de forças para o bem comum 4. Conclusão. 5. Referências.

Resumo O presente artigo aborda a temática referente a ressocialização, promovida pelas entidades religiosas nas Unidades Prisionais. A CF/88 assegurou a plena liberdade religiosa, de culto e credo, inclusive a ausência desse sentimento, e no plano infraconstitucional coube a LEP regulamentar a assistência religiosa nos presídios, seguindo os ditames do Texto Magno, sempre tendo em mira a laicidade do Estado.

Palavras-chave: grupos religiosos. ressocialização. liberdade. credo. culto. Estado. laico.

Abstract

This article discusses the issue related to rehabilitation, promoted by religious bodies in Prison Units . The CF/ 88 guaranteed full religious freedom, including the absence of that feeling , and in infra constitutional plan the LEP regulated the religious assistance in prisons , without no preferences of creed, cause the State is non religious.

Key words: religious groups. resocialization . freedom. creed. worship. State. secular.

  1. Introdução

Esse jargão é bastante conhecido no meio religioso, sendo amplamente utilizado como forma de medir o grau de comprometimento do fiel com suas obrigações religiosas, ou religião. Todavia, na atualidade, em razão da atuação ostensiva e marcante de grupos religiosos, em diversos setores da sociedade, tais expressões se disseminaram e alcançaram, também, a comunidade carcerária.

Todo aquele que transita pelos presídios percebe a presença desses agrupamentos de confissão religiosa, que lastreados em elementos livros e apostilas doutrinárias, preceitos religiosos, éticos e comportamentais, apregoam a ressocialização, sem deixar de prestar o conforto espiritual, cumprindo, na visão destes, uma “ordenança Divina”.

Em que pesem as superiores razões transcendentais para legitimar e justificar a presença religiosa nos presídios, é bem verdade que a CF assegurou a liberdade de culto e de credo, tendo a LEP regulamentado a assistência religiosa nos presídios, com plena e irrestrita liberdade de culto, sobretudo porque o Estado é laico sendo, inclusive assegurado ao apenado o direito de não professar qualquer credo e, portanto, não se imiscuir em cerimônias religiosas.

  1. Atuação e objetivos

A questão que se põe diz respeito à contribuição dessas comunidades religiosas para a efetiva reinserção social dos custodiados evitando-se, assim, a tão indesejada reincidência.

A caótica realidade do sistema carcerário brasileiro (carência de infraestrutura básica, celas superlotadas e imundas, sem areação adequada ou luminosidade suficientes e atos de violência e vandalismo) evidencia a insuficiência do Estado em prover o mínimo existencial para a efetiva ressocialização do apenado, trazendo punições severas à toda sociedade (alto custeio do sistema penal), afetando os resultados de recuperação dos reeducandos e repercutindo negativamente nos os índices de reincidência e criminalidade.

Nesse vácuo existencial do Poder Público, crescem e atuam de forma bastante incisiva e ostensiva os grupos religiosos. Eles adotam linguagem simples, acessível, direta e objetiva e estratégias de pregação inovadoras. Além de promessas para vida vindoura, trazem promessas de restauração para vida terrena conferindo, também, suporte material às famílias dos presos. Ponto este que ganham, de vez, os apenados, que, em razão da prisão, não podem prover o sustento de que precisa a família, vindo o auxilio externo em boa hora, sendo essa atuação um dos elementos que justificam a propagação e aceitação destas comunidades civis pela comunidade carcerária.

Outro aspecto relevante é a própria situação de vulnerabilidade que o cárcere gera, isto é, essa restrição ambulatorial e o cotidiano tenso nas prisões, em que qualquer alento é bem-vindo, sendo a gratidão eterna, ao menos enquanto pena existir. A pretensa missão alardeada por estes ajuntamentos religiosos é o chamamento dos reeducandos à consciência, com o objetivo de dissuadi-los da seara criminosa e, ao final, termina-se, indubitavelmente, por angariar novos fiéis.

Noutro diapasão, outros sustentam que a finalidade escamoteada seria a formação de novos fiéis, com aptidão para geração de riquezas para a entidade religiosa formando, portanto, nova cadeia, a religiosa, muito mais difícil de ser vencida, por ser de intima convicção, já que é atinente à dita fé, aspecto da alma insidicável exclusivamente pelos meios racionais.

A despeito desse pensamento, é notória a mudança comportamental daqueles que se dedicam à prática e disciplina religiosa, ao menos, dentro das unidades prisionais e enquanto cumprem pena. Tanto é que existem alas nos presídios destinadas especificamente aos religiosos, como sendo um setor de disciplina, ordem, excelência e recuperação de outros presos.

Muitos, após o cumprimento integral da pena, passam a se dedicar a atividades religiosas fora e dentro dos presídios, invocando “um suposto chamado divino” que teria sido despertado, enquanto estava custodiado. Isso é o que se chama de efeito multiplicador do proselitismo.

  1. Junção de forças para o bem comum

Nessa ótica, ao Estado, cabe assegurar a liberdade de credo e culto, sem discriminação e contribuir para que haja a efetiva ressocialização seja de forma direta, com sua atuação intensiva, a qual precisa ser mais eficiente, ou mediante atuação reflexa, permitindo a atuação de grupos da sociedade civil que externem ideais condizentes à recuperação total do ressocializando.

O Estado, sem prejuízo da atuação fiscalizatória, não deve criar entraves ou embaraçar a atuação desses agrupamentos civis que se dedicam a restaurar a vida de outrem, pouco importando a bandeira religiosa, sobretudo, por se tratar de clientela vulnerável inserta em um sistema prisional sofrível, que pune o sentenciado duplamente por um mesmo fato ou atos, em um odioso e inconstitucional bis in idem.

Ademais, esse contato com pessoas extramuros é bem salutar, pois tem grande efeito psicológico sobre os apenados, já que contribui para o aumento da autoestima e confiança destes, retirando-lhes a sensação de renegação, sobretudo dos órgãos oficiais, que, na maioria das vezes, não lhe concedem estruturas penitenciárias adequadas para que possam cumprir a pena, tampouco lhe proveem o arcabouço assistencial a que a Lei previu.

Disto decorre a necessidade de se fomentar o intercambio da sociedade civil com o sistema prisional, como forma de quebrar preconceitos e barreiras, bem como propiciar mecanismos de ressocialização, de modo a minorar e progressivamente abolir com as distorções no sistema penitenciário que redundam nos indesejados motins.

  1. Conclusão.

É preciso que se entenda que vivemos em um mosaico etno-cultural, fruto de uma sociedade plural e cada vez mais complexa e imbricada, a qual não pode ver os apenados como inimigos da sociedade, até porque no Brasil, não há penas capitais, mas vigora o princípio da dignidade da pessoa humana. Todos nós estamos suscetíveis a equívocos e aqui parafraseando Cristo, atire a primeira pedra, quem nunca cometeu uma infração, qualquer que seja sua natureza ou gravidade. Talvez, a nossa diferença, ou melhor a nossa sorte, foi não termos sido flagranteados pelos órgãos repressores do Estado, sejam penais ou administrativos, daí que vale outra máxima de Cristo, que externa que com o mesmo rigor que julgarmos é que seremos julgados.

Assim, deve-se envidar esforços institucionais e da própria coletividade, no sentido de alcançar a reinserção massiva dos sentenciados, o que passa, sem dúvidas, pela rejeição de uma postura inativa e da adoção de uma positiva, que não se restringe ao fornecimento de trabalho, alimentação, educação e registro documental, mas de concessão da plena e efetiva cidadania, já que, infelizmente, independente do delito, aqueles condenados, por sentença com trânsito em julgado, sequer podem votar, o que demonstra a necessidade de humanização urgente, não só do ambiente físico do sistema prisional, mas também, do normativo, com o fito de cumprir o ideal da norma que é reinserir, agregar, restaurar e recuperar, evitando a reincidência.

A vedação constitucional ao voto àqueles condenados por sentença transitada em julgado deve ser reinterpretada à luz do Pacto de São José da Costa Rica, que assegura a todo cidadão o direito ao voto. Assim, aqueles que ostentam sentença com trânsito em julgado não deixam de ser cidadãos, pelo simples fato de terem sido apenados, devendo-lhe ser garantidos o direito ao voto. Pensamento contrário, legitimaria o Direito Penal do Inimigo que destitui algumas pessoas do caráter de cidadão, algo inaceitável, sob o pálio do Estado Democrático de Direito.

Agora, novamente parafraseando as Escrituras Sagrada, estamos no período de graça, isto é, no momento em que a misericórdia, favor e a bondade de “Deus” superabundam. Não por outra razão, a nossa CF/88 foi elaborada para inaugurar nova fase democrática e, portanto, veio repleta de direitos e garantias fundamentais e as famosas cláusulas pétreas.

No âmbito social, tem-se visto a implementação de ações afirmativas e programas assistencialistas, com forma de inclusão social de grupos historicamente e socialmente vulneráveis. Vê-se o crescimento da militância e consagração dos direitos dos gêneros raciais, religiosos e sexuais. Tem-se acompanhado grande fiscalização, seja dos órgãos e agentes estatais ou da sociedade civil organizada e, também, por meio da atuação incansável da imprensa, que é o portal de ressonância da coletividade, em que pesem eventuais tendências de alguns órgãos midiáticos, algo absolutamente normal, cabendo aos receptores filtrarem as informações com senso crítico.

Todavia, diante das crises cíclicas que vivenciamos, sejam estas institucionais ou econômicas, não saberemos por quanto tempo perdurará este “estado” de busca à efetivação de direitos fundamentais. Tanto é que, atualmente, alguns já defendem abertamente a adoção de penas capitais, a redução de maioridade penal, o aumento de penas e crimes, para combater a violência e o fim de políticas assistenciais e reparatórias, sem perceber que medidas mais radicais, desacompanhadas de políticas sociais, não eleitoreiras, não atingiram a gênese do problema e só causaram mais desajuste social.

Finalizo com uma frase que adoto e creio que seja de autoria desconhecida, mas se não, desde já, peço a devida autorização para utilizá-la, que se estrutura assim: pena para quem precisa desta, na medida da razoabilidade e proporcionalidade, e dignidade para todos.

  1. Referências.

AMORIM, Rodolfo de Oliveira e SILVA, Bruno Joviniano de Santana. Progressão de regime retroativa x direito adquirido Distinção e a progressão de regime per saltum. Jus Brasil, Salvador, 04 jun. 2015. Disponível em: http://brunojssilva.jusbrasil.com.br/artigos/195029660/progressao-de-regime-retroativa-x-direito-adquirido-distincao-e-a-progressao-de-regime-per-saltum. Acesso em: 4 jun. 2015.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 13ª Edição. Editora Ediouro: Rio de Janeiro, 1999.

COSTA NETO, Nilo de Siqueira. Ressocialização do preso: falência do sistema penitenciário. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3560, 31 mar. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24073>. Acesso em: 24 jun. 2015.

REGATIERI, Daniella Geres de Lima. Ressocialização como fim da pena. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4050, 3 ago. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/30639>. Acesso em: 23 jun. 2015.

SILVA. Bruno Joviniano de Santana Silva. Indulto retroativo: Respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Disponível em: http://54.70.182.189/indulto-retroativo-respeito-ao-direito-adquirido-e-ao-ato-juridico-perfeito/. Acesso. 26. Jun 2015.

SILVA. Bruno Joviniano de Santana Silva. O atestado de pena a cumprir. Direito fundamental. Instrumento de ressocialização. Disponível em: http://brunojssilva.jusbrasil.com.br/artigos/195009685/o-atestado-de-pena-a-cumprir-direito-fundamental-instrumento-de-ressocializacao?ref=topic_feed. Acesso. 04. Jun 2015.

 

Propositura de ação popular independe de comprovação de prejuízo aos cofres públicos, reafirma STF

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O Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou jurisprudência no sentido de que não é necessária a comprovação de prejuízo material aos cofres públicos como condição para a propositura de ação popular. A decisão foi tomada pelo Plenário Virtual da Corte na análise do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 824781, que teve repercussão geral reconhecida.

Na origem, a ação popular foi ajuizada por um cidadão de Cuiabá (MT) contra o Decreto municipal 4.399/2006, que autorizou o aumento da tarifa de transporte público. Ele sustentou que o reajuste foi instituído em desacordo com as normas previstas na Lei Orgânica do município. Alegou, também, que o reajuste da tarifa resultou em aumento de gastos com subsídios às passagens de estudantes e outros beneficiários.

Na primeira instância, o processo foi extinto sem resolução do mérito sob o fundamento de que não havia prova da existência de lesividade ao patrimônio público, que seria, no entendimento do juiz, requisito essencial para a propositura da ação popular. Em grau de apelação, a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). Contra o acórdão da corte estadual, o cidadão interpôs recurso ao STF.

Ao se pronunciar pela existência repercussão geral na matéria, o relator do processo, ministro Dias Toffoli, observou que o tema ultrapassa os interesses subjetivos das partes, pois se trata de definir quais as condições para o exercício da ação popular, “importantíssimo instrumento de exercício da cidadania”.

“Embora divirjam as partes quanto ao conteúdo do próprio texto constitucional, o qual cuidou de disciplinar os requisitos para a propositura da mencionada ação constitucional, o tema retratado não é novo para esta Corte. O mérito da tese posta nestes autos foi decidido, em oportunidades diversas, pelas duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, no mesmo sentido, não havendo qualquer divergência sobre a interpretação da matéria por esta Corte”, destacou o ministro Dias Toffoli ao reafirmar a jurisprudência.

Assim, o ministro se manifestou no sentido de conhecer do agravo e prover o recurso extraordinário para reformar o acórdão do TJ-MT, determinando o retorno dos autos à primeira instância para que seja processado e julgado o mérito da demanda.

A manifestação do relator quanto ao reconhecimento da repercussão geral foi seguida, por maioria, no Plenário Virtual, vencido o ministro Marco Aurélio. No tocante à reafirmação da jurisprudência dominante sobre a matéria, ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Teori Zavascki.


 

FONTE: STF, 04 de setembro de 2015.

DANOS MORAIS: Soropositivo obtém reparação de Igreja por dano moral

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DECISÃO: TJRS*– Um homem portador do vírus da AIDS receberá R$ 300 mil da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) a título de ressarcimento por danos morais. A decisão, unânime, é da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, que avaliou como fundamental a influência da Igreja na opção do então fiel de abandonar o tratamento médico em nome da cura pela fé.

Conforme os autos do processo, o soropositivo ainda teria sido levado a se relacionar sexualmente com a esposa sem o uso de preservativos, como prova de fé, acabando por transmitir-lhe o vírus, e a ceder bens materiais para a IURD.

Processo

O valor da indenização foi majorado pelo colegiado em quase 760% e considerou, principalmente, o estado crítico de saúde a que o homem chegou por deixar de tomar a medicação, em setembro de 2009. Poucos meses depois, com a queda da defesa imunológica, uma broncopneumonia obrigou-o a ficar hospitalizado por 77 dias, sendo 40 deles sob coma induzido. Chegou a perder 50% do peso. O homem adquiriu o vírus em 2005.

A condenação consta de duplo recurso, concedendo o aumento da indenização buscado pelo autor, e negando o pleito da IURD de reversão da sentença da Juíza Rosane Wanner da Silva Bordasch, que fixou a reparação em R$ 35 mil. Além disso, a entidade pedia a nulidade da sentença, sugerindo que a magistrada de 1º Grau teria agido de forma a favorecer o autor da ação. Rejeitada, essa exceção de suspeição alegava ausência de imparcialidade por convicções religiosas.

Apelação

Para o relator do apelo no TJ, Desembargador Eugênio Facchini Neto, os laudos médicos e o depoimento da Psicóloga são provas de que o abandono do tratamento pelo paciente se deu a partir do início das visitas aos cultos. Esse fato, somado a outras provas (indiretas), como testemunhos e matérias jornalísticas, convenceram o magistrado sobre a atuação decisiva da Igreja no sentido de direcionar a escolha.

As provas citadas incluíam: declaração em redes sociais sobre falsas curas da AIDS propaladas por um bispo da IURD, documento da própria igreja recomendando sacrifício perfeito e não em parte para os que creem em Deus, gravação de reportagem de jornal de âmbito nacional com investigação sobre coação moral praticada durante os cultos, e testemunho de ex-bispo que admite ter doado tudo o que tinha para obter a cura da filha.

Avaliou o Desembargador Facchini: Assim, apesar de inexistir prova explícita acerca da orientação recebida pelo autor no sentido de abandonar sua medicação e confiar apenas na intervenção divina, tenho que o contexto probatório nos autos é suficiente para convencer da absoluta verossimilhança da versão do autor.

Proteção da confiança

Aprofundando o tema, o magistrado discorreu sobre a importância social da religião, sua capacidade de aglutinação e como, na história multimilenar do homem, tem servido de conforto e esperança nos momentos de vulnerabilidade dos que nela têm fé. Junto a essa reflexão, tratou de como a proteção da confiança – inclusive a religiosa – corresponde a um princípio ético-jurídico, razão pela qual quem induz a confiar deve responder, caso frustre essa expectativa:

No caso em tela, a responsabilidade da ré, reside no fato de ter se aproveitado da extrema fragilidade e vulnerabilidade em que se encontrava o autor, para não só obter dele vantagens materiais, mas também abusar da confiança que ele, em tal estado, depositava nos ‘mensageiros’ da ré.

Além do mais, continuou o Desembargador Facchini, (…) pessoa ou instituição que tem conhecimento de sua influência na vida de pessoas que a tem em alta consideração, deve sopesar com extrema cautela as orientações que passa àqueles que provavelmente as seguirão.

Quanto ao valor da indenização, o significativo aumento foi justificado pelos graves danos causados ao doente e à dimensão de potência econômica da Igreja Universal do Reino de Deus, a quem a fixação da indenização em R$ 300 mil deverá ter caráter pedagógico, finalizou o Desembargador Facchini.

Incompatibilidade

Ao seguir a decisão do relator, o Desembargador Carlos Eduardo Richinitti acrescentou severas críticas àqueles que, em nome de Deus, ameaçando com a ira satânica, constroem um lucrativo negócio financiado, muitas vezes, pelo medo.

Não se trata de discutir a pertinência ou não da religião, ou questionar a crença de cada um, salientou. Sem meias palavras, a religião virou, no Brasil, um grande negócio, planejado e que se espraia por vários segmentos da nação. Não foi para materializar essas distorções que a Constituição assegurou a liberdade religiosa, asseverou o Desembargador Richinitti.


FONTE: TJRS, 02 de setembro de 2015.

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE: Recusa de herdeiros ao exame de DNA também gera presunção de paternidade

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DECISÃO: STJ* – A recusa imotivada da parte investigada – mesmo que sejam os herdeiros do suposto pai – a se submeter ao exame de DNA gera presunção relativa de paternidade, como determina a Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com base nesse entendimento, a Terceira Turma rejeitou recurso de herdeiros contra decisão que reconheceu um cidadão como filho legítimo do pai deles.

Segundo o relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, a súmula “é a aplicação direta da vedação do venire contra factum proprium, porque obstaculizar a realização do exame de DNA possui o evidente intento de frustrar o reconhecimento da paternidade”. No caso, o tribunal de segunda instância reconheceu a paternidade com base em testemunhos e provas documentais, chegando a afirmar que ela “era de conhecimento de todos”.

Entre outros pontos, os herdeiros contestaram a aplicação da presunção contra eles ao argumento de que só seria válida em caso de recusa pessoal do suposto pai. No entanto, conforme explicou o ministro, na ação de paternidade posterior à morte, a legitimidade passiva recai sobre os herdeiros ou sucessores do falecido, “que, por isso mesmo, sujeitam-se ao ônus de se defender das alegações aduzidas pelo autor”.

Exumação

Ainda de acordo com o relator, se as provas do processo forem consideradas suficientes para se presumir a paternidade, não é necessária a exumação de cadáver para fazer exame de DNA. Ele disse que o STJ já firmou tese no sentido de que “a exumação de cadáver, em ação de investigação de paternidade, para realização de exame de DNA, é faculdade conferida ao magistrado pelo artigo 130 do Código de Processo Civil”.

Villas Bôas Cueva ressaltou que o tribunal estadual nem cogitou da necessidade de exumação, pois o contexto fático-probatório dos autos foi considerado suficiente para o julgamento da causa.

“A prova testemunhal e o comportamento processual dos herdeiros do réu conduziram à certeza da paternidade. Assim, o reconhecimento da paternidade reafirmada pelo tribunal de origem, fundamentada no conjunto fático-probatório apresentado e produzido durante a instrução, não pode ser desconstituída em sede de recurso especial, porque vedado o reexame de matéria de prova produzida no processo”, afirmou o relator.

Direito indisponível

No recurso, os herdeiros também contestaram a conclusão do tribunal estadual a respeito de um acordo feito no passado para encerrar outra ação de investigação de paternidade, ocasião em que o autor, suposto filho, recebeu expressiva quantia em dinheiro para desistir do processo.

Para a corte local, a existência daquele acordo corrobora as outras provas, pois a viúva e os herdeiros não teriam firmado o pacto se não tivessem pleno conhecimento de que o autor da ação era mesmo filho biológico do falecido.

Os herdeiros sustentaram que nenhuma outra conclusão poderia ser tirada do acordo a não ser o fato de que o autor “manteve seu estado de filiação” e deu quitação de eventuais direitos hereditários.

Sobre isso, Villas Bôas Cueva comentou que o acordo não afasta a possibilidade de reconhecimento da paternidade, visto que se trata de direito indisponível, imprescritível e irrenunciável, ou seja, ninguém é obrigado a abdicar de seu próprio estado, que pode ser reconhecido a qualquer tempo.

A decisão da turma foi unânime.


FONTE: STJ, 01 de setembro de 2015.

Fazendeiro terá que indenizar vaqueiro que levou coice de cavalo

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Um produtor rural de Uberaba (MG) terá que indenizar por dano moral e material um vaqueiro que levou um coice de cavalo durante o exercício de suas atividades. A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho não conheceu do recurso do empregador, que tentava se isentar da condenação alegando culpa exclusiva da vítima no acidente.

Contratado havia apenas dois meses para tirar leite e cuidar de vacas, bezerros e touros da fazenda, o trabalhador fraturou o pé no acidente. Segundo ele, ao descer do cavalo para amarrar o corpo de uma novilha morta para removê-la, o animal se assustou com um trovão e lhe deu um coice. Ao pedir a indenização, afirmou que não recebeu botinas, calçado apropriado para desempenhar o trabalho, o que pode ter contribuído para a lesão sofrida.

Em defesa, o proprietário da fazenda disse que o vaqueiro agiu com imprudência e imperícia ao fazer o resgate sozinho, em condições climáticas ruins, e ainda ficou próximo aos cascos do animal, sem botinas, caracterizando culpa exclusiva da vítima.

Em primeira instância, o juízo da 1ª Vara do Trabalho de Uberaba indeferiu o pedido de indenização por entender que a ocorrência do acidente não leva à imediata responsabilização do empregador. A sentença, no entanto, foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG), que entendeu que o trabalho com animal vivo envolve risco acentuado.

O TRT concluiu ainda que o trabalhador não contava com os itens de proteção necessários, configurando culpa subjetiva do empregador. Assim, condenou o fazendeiro ao pagamento de R$ 10 mil a título de dano moral e aproximadamente R$ 76 mil por danos materiais.

Em recurso ao TST, o empregador insistiu na culpa exclusiva do vaqueiro e sustentou que sua atividade não pode ser considerada de risco. Para ele, o acidente foi um caso fortuito, de força maior.

O argumento, no entanto, não foi acolhido pela relatora do recurso, ministra Maria Cristina Peduzzi. Segundo ela, o TRT reconheceu a culpa do fazendeiro em razão do não fornecimento de botas que poderiam evitar ou amenizar o dano causado pelo acidente. “Tal fundamento é suficiente à manutenção do acórdão, sendo inócua a discussão sobre a aplicabilidade da responsabilidade objetiva decorrente do exercício de atividade de risco ou da propriedade de animal,” explicou. A decisão foi unânime.

Caso fortuito

Em caso semelhante, julgado em março deste ano, a Quarta Turma absolveu um fazendeiro da responsabilidade de indenizar um trabalhador que levou um coice de vaca, em Caldas Novas (GO). Na ocasião, o trabalhador tentava comprovar que foi vítima de acidente de trabalho por culpa do empregador, que não teria fornecido equipamentos de segurança capazes de evitar o ocorrido. Mas para o ministro Fernando Eizo Ono, o acórdão regional foi claro ao considerar que o caso foi fortuito, ou seja, difícil de prever e com consequências inevitáveis.

Processo: RR-865-42.2010.5.03.0041


FONTE: TST, 04 de setembro de 2015

Para o STJ, estupro de menor de 14 anos não admite relativização

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“Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.”

A tese foi fixada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamento realizado na tarde desta quarta-feira (26) sob o rito dos recursos repetitivos (artigo 543-C do Código de Processo Civil), com relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz. A decisão (tema 918) vai orientar as demais instâncias da Justiça sobre como proceder em casos idênticos, de modo a evitar que recursos que sustentem posições contrárias cheguem ao STJ.

O caso analisado – posterior à reforma de 2009 no Código Penal, que alterou a tipificação do crime de estupro – envolveu namoro entre uma menina, menor de 14 anos, e um jovem adulto.

Segundo a defesa, a relação tinha o consentimento da garota e de seus pais, que permitiam, inclusive, que o namorado da filha dormisse na casa da família.

A sentença condenou o rapaz à pena de 12 anos de reclusão, inicialmente em regime fechado, pela prática de estupro de vulnerável (artigo 217-A) em continuidade delitiva (artigo 71 do Código Penal).

Discernimento

Na apelação, entretanto, o réu foi absolvido ao fundamento de que o conceito de vulnerabilidade deveria ser analisado em cada caso, pois não se deveria considerar apenas o critério etário.

O Tribunal de Justiça do Piauí, com apoio nas declarações prestadas pela menor, adotou seu grau de discernimento, o consentimento para a relação sexual e a ausência de violência real como justificativas para descaracterizar o crime.

Contra a decisão, o Ministério Público interpôs recurso especial no STJ. O ministro Rogerio Schietti votou pela reforma do acórdão. Segundo ele, o entendimento de que o consentimento da vítima é irrelevante já está pacificado na corte e também no Supremo Tribunal Federal (STF).

Dúvida superada

O relator explicou que, com as alterações trazidas pela Lei 12.015/09, o estupro de menor de 14 anos passou a ter tipificação específica no novo artigo 217-A, e já não se fala mais em presunção de violência, mencionada no revogado artigo 224.

Essa alteração legislativa, segundo Schietti, não permite mais nenhuma dúvida quanto à irrelevância de eventual consentimento da vítima, de sua experiência sexual anterior ou da existência de relacionamento amoroso com o agente.

Para o ministro, não cabe ao juiz indagar se a vítima estava preparada e suficientemente madura para decidir sobre sexo, pois o legislador estabeleceu de forma clara a idade de 14 como limite para o livre e pleno discernimento quanto ao início de sua vida sexual.

A modernidade, a evolução dos costumes e o maior acesso à informação, de acordo com Schietti, tampouco valem como argumentos para flexibilizar a vulnerabilidade do menor. Ele disse que a proteção e o cuidado do estado são indispensáveis para que as crianças “vivam plenamente o tempo da meninice” em vez de “antecipar experiências da vida adulta”.

A posição do relator foi acompanhada de forma unânime pelos ministros da Terceira Seção. Leia o voto do relator.


FONTE: STJ, 27 de agosto de 2015.

Enunciados sobre aplicação do novo CPC já estão disponíveis

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A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) divulgou a íntegra dos 62 enunciados que servirão para orientar a magistratura nacional na aplicação do novo Código de Processo Civil (NCPC). Os textos foram aprovados por cerca de 500 magistrados durante o seminário O Poder Judiciário e o novo CPC, realizado de 26 a 28 de agosto na sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Os enunciados tratam de questões consideradas relevantes sobre a aplicação do novo código, a saber: Contraditório no novo CPC; Precedentes e jurisprudência; Motivação das decisões; Honorários; Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR); Recursos repetitivos; Tutela provisória; Ordem cronológica, flexibilização procedimental e calendário processual; Sistema recursal; Juizados especiais; Cumprimento de julgados e execução; e Mediação e conciliação.

Confira a íntegra dos enunciados.


FONTE: STJ, 03 de setembro de 2015.

A reforma tributária e a academia

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A reforma tributária[1] tem sido um tema muito presente e polêmico na agenda política e na mídia brasileira nos últimos anos.

 

Parece ser consenso por parte do governo e também do setor privado que o sistema tributário nacional necessita de modificações substanciais.

 

Mas todo o consenso, infelizmente, acaba aí, pois os objetivos a serem alcançados são, de certo modo, conflitantes ou incompatíveis, pois cada “grupo de pressão” tem concepções distintas acerca do modelo ideal a ser implementado.

 

De fato, tem havido fortes divergências de opiniões dentro do próprio governo, o que, indubitavelmente, só acarreta maior morosidade e falta de credibilidade ao processo de reforma no país.

 

Conforme dizia humorista inglês Muggeridge que há duas coisas de difícil implementação: as promessas de campanha política e as ideias sobre as quais todo o mundo está de acordo.

 

E a reforma fiscal[2] de que tanto se cogita, participa fielmente destas qualidades.

 

Bom frisar o significado de reforma fiscal que é aquela que visa atender as expectativas da justiça social, de forma que harmonize a demanda dos setores produtivos com o interesse público.

 

Trata-se de uma reforma que tem em mente a finalidade pela qual existe o direito tributário e quais os objetivos que o Estado pretenda atingir exatamente através pelo exercício da tributação.

 

Enfim, fundamenta-se a ideia de reforma tributária como sendo aquela voltada a transmitir maior eficiência ao sistema tributário, seja pelo ponto de vista da Administração Pública, seja da perspectiva dos contribuintes.

 

E, a academia visa promover a identificação do debate sobre esses objetivos tanto do direito tributário como do direito financeiro promovendo a melhor sintonização do sistema com o atual desempenho dos setores econômicos no PIB nacional e com uma política eficiente que compatibilize a estrutura federativa vigente com o desenvolvimento regional e socioeconômico.

 

A academia visa ainda promover, à duras penas, a análise crítica do atual do sistema tributário e propor a redução da carga tributária, mas não apenas na perspectiva do direito tributário, mas, sobretudo, discutir os problemas do contínuo aumento das despesas públicas e de meios que possam efetivamente conter essa tendência.

 

Enfim, a academia procura definir claramente uma política fiscal que possa conferir maior eficácia ao Plano Plurianual e demais leis orçamentárias e, ainda, instituir instrumentos de efetiva transparência das contas públicas.

 

A incompatibilidade lógica dos objetivos propostos quando considerados conjuntamente; isto é, se cada objetivo fosse expresso por meio de uma equação matemática, o sistema de equações daí resultante não galgaria uma solução única.

 

Por exemplo, não há como realizar a transição da origem para o destino no ICMS sem incorrer em perdas individuais para alguns Estados, o que altera fatalmente a partilha horizontal de receitas.

 

De modo a compensar essas perdas seria necessário, então, buscar recursos da União, o que levaria à modificação da partilha vertical de receitas.

 

Assim, contrariamente ao que pretendiam algumas propostas de reformas, o objetivo de obtenção do princípio do destino é incompatível com as premissas de manutenção do nível de carga tributária global e da partilha horizontal e vertical de recursos.

 

A partir da impossibilidade técnica, então surgem conflitos a serem administrados, ou melhor, negociados politicamente: ou os estados produtores admitem alguma perda em suas receitas, ou a União admite um maior repasse de recursos aos governos estaduais e municipais, ou ainda, os contribuintes admitem e amargam um aumento de carga tributária.

 

Também existem os conflitos advindos de concepções distintas do próprio modelo a ser implementado. Por exemplo, a solução de adoção de uma IVA[3] – Imposto sobre o Valor Agregado[4] centralizado, embora seja, a mais apoiada por especialistas tributários e pelo setor privado, não é admitida pelos governos estaduais e municipais.

 

A continuidade de coexistência de dois IVA – o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) federal e o ICMS estadual – ou a opção por IVA compartilhado, embora seja a solução que resolva os conflitos federativos brasileiros, não simplifica o sistema atual conforme demandado pelos contribuintes.

 

Em resumo, reformar a tributação em um país federativo, onde o principal imposto da economia está sob a competência subnacional e parte significativa das receitas é arrecada cumulativamente, tem se mostrado uma tarefa muito difícil.

 

São várias as questões a ser enfrentadas, incluindo a guerra fiscal, a autonomia dos governos estaduais e municipais e, ainda a incidência em cascata das contribuições sociais sobre o faturamento (PIS/PASEP e COFINS) e a manutenção do nível de receitas arrecadadas de modo a cumprir as exigências do ajuste fiscal[5].

 

E, além disso, além de resolver todos os desafios, a reforma tributária só teria sentido caso o novo sistema atendesse aos princípios básicos de simplicidade, neutralidade e inserção internacional, assegurando maior eficiência, competitividade[6] e harmonização (coesão[7]) à economia brasileira.

 

Portanto, a reforma tributária tem se configurando como um assunto econômico e politicamente complexo e, por isso, tem sido consistentemente adiada.

 

É patente o crescente inconformismo generalizado com a falta de resolução desse impasse, já que a reforma tem sido apontada como questão prioritária para a economia nacional.

 

Contudo, é preciso destacar que em meio a esse longo e conflituoso debate, poucos têm buscado uma compreensão mais técnica e isenta acerca do tema. E a academia se ressente disto.

 

De modo geral, todas as sociedades, democráticas ou não têm questionado seu modelo tributário, independentemente do seu grau de desenvolvimento econômico, do nível de carga tributária por ela suportada e da quantidade ou qualidade dos bens e serviços públicos colocados à disposição[8].

 

É notável que assim seja prevaleça que os impostos possam ser definidos como a transferência de parte do esforço produtivo dos indivíduos de uma determinada sociedade para o Estado.

 

E, normalmente, pela própria natureza compulsória dessa transferência que significa grosso modo, abrir mão do individual em prol do coletivo, o comportamento dos agentes econômicos é mesmo de contestação e rompimento do status quo vigente em nome de um novo modelo tributário.

 

Os impostos representam justamente a base do pacto social que determina a própria existência e funcionamento do Estado. Porque os homens decidiram se organizar socialmente e perceberam que algumas atividades deveriam ser feitas em nome do grupo, fossem estas administrativas, religiosas, culturais ou de qualquer outra natureza.

 

E, então para financiá-las, nada mais justo do que haver a contribuição de todos que, de alguma forma, se beneficiariam dessas atividades.

 

Surgiu desta forma, o que se convencionou a chamar de Sistema Tributário Nacional[9] que é entendido como conjunto de regras ou leis que determinam quem deve pagar os tributos e em qual quantidade deve fazê-lo.

 

É certamente a justiça que irá legitimar uma recorrente demanda por reformar o sistema tributário, não importa qual seja este.

 

Há, basicamente, três razões que podem explicar habilmente a ânsia pela reforma tributária: a falta de legitimidade do sistema tributário, a desestabilização do equilíbrio de forças que sustentam o “pacto tributário” ou pacto social e a necessidade de adaptação à dinâmica economia vigente[10].

 

A primeira razão decorre do fato de que nem sempre o processo de estabelecimento do sistema tributário é realizado pelo consenso de cidadãos e que se propuseram a transferir seu esforço produtivo por um Estado que poderia ser considerado democrático.

 

Eis o motivo de várias revoltas que levaram às reformas tributárias em diversos momentos históricos diferentes e que pode ser sintetizado na célebre frase: “No taxation without representation[11].

 

A reforma tributária torna-se indispensável para recompor os sistemas e conformá-los ao pensamento contemporâneo de Estado mais enxuto, não tão guloso e voraz e menos intervencionista.

 

O grande desafio que o país tem é de estruturar seus poderes (executivo, legislativo e judiciário) de maneira a enfrentar e harmonizar os interesses conflitantes que envolvem o adequar toda a estrutura de arrecadação e sua destinação orçamentária, com a aplicação justa, visando o social, mas garantindo também o crescimento econômico ao lado da manutenção das garantias dos direitos individuais previstas na Constituição Federal vigente.

 

E o papel da academia além de evidenciar impasses e paradoxos é trazer a multidisciplinar resposta, com base na ciência econômica, na ciência da Administração, da Contabilidade e na ciência jurídica.

 

Precisamos eliminar a guerra fiscal, pois é sabidamente maléfica para o Estado brasileiro e para haver uma política econômica desenvolmentista. Há muitas décadas é que somos e ainda permanecemos como o país em desenvolvimento, outrora, denominado de subdesenvolvido.

 

Além dos princípios norteadores fundamentais para a reforma tributária: tais como competitividade, coesão autonomia[12], responsabilidade e estabilidade, há de se ressaltar a extrema relevância também dos princípios éticos e morais que devem conduzir as autoridades delegadas pelo povo brasileiro para que através de instrumentos democráticos de pressão popular possam realmente produzir as melhorias que se fazem indispensáveis: provendo melhor distribuição de renda, ainda enfocando o aspecto social, para enfim, termos uma sociedade mais justa, igualitária e produtiva.

 

[1] Algumas das vantagens de uma reforma tributária incluem:

*Simplificar e desburocratizar o sistema tributário: reduz o número de tributos e o custo de cumprimento das obrigações tributárias acessórias pelas empresas.

*Aumentar a formalidade, distribuindo mais igualitariamente a carga tributária: os que pagam impostos passam a pagar menos e os que não cumprem suas obrigações tributárias passam a ter que contribuir.

*Eliminar distorções existentes na estrutura tributária. Por exemplo: diminui o custo dos investimentos e das exportações.

*Eliminar a “guerra fiscal”, o que resulta em aumento dos investimentos e da eficiência econômica.

*Aprimorar a política de desoneração, reduzindo o custo tributário para as empresas formais e para os consumidores, ao mesmo tempo em que amplia a competitividade da nação.

*Poder aperfeiçoar a política de desenvolvimento regional. Por exemplo: introduz mecanismos mais eficientes de desenvolvimento das regiões mais pobres.

[2] É distinto o conceito entre reforma fiscal e reforma tributária.

[3] Valor Agregado é expressão originária de finanças, do processo de Avaliação de Valor Agregado (do inglês, EVA), que mede performance. Em sua forma abrangente, designa a percepção que um stakeholder tem do serviço ou produto que lhe é apresentado.  É sempre uma percepção comparativa, tendo como base o preço do bem versus os atributos (funcionais ou não) percebidos.

A noção de valor agregado traz a ideia de superação de expectativa em relação aos benefícios funcionais do bem.

Valor Agregado também se entende por valor agregado o resultado de processos e atividades adicionados a um item, produto ou serviço, que o valorizam em relação ao que ele era antes de esse processo ou atividade estar presente.

[4] No âmbito da economia, o valor agregado remete para um atributo de qualidade, consiste no aumento de valor de um determinado produto de uma empresa.  O valor agregado permite medir o valor que é gerado pelo sistema produtivo de um determinado agente econômico.

[5] Aliás, são criticáveis as medidas de ajuste fiscal recém-propostas pelo governo brasileiro, pois ao invés de tirar recursos de benefícios dos trabalhadores, deveria estimular a realização de uma reforma tributária complexa. O grande mote atual do ministro da Fazenda, Joaquim Levy é o resgate da confiança no país pelo mercado. Deveríamos ter a regulamentação da tributação sobre as grandes fortunas e de heranças e não sobre os trabalhadores.

[6] Quando cogitamos em competitividade lembramos logo do Brasil inserido no comércio mundial, pensamos imediatamente no MERCOSUL e também na ALCA. Os índices de carga tributária suportada pelo produtor brasileiro, tanto na venda para mercados externos quanto na venda para nosso mercado doméstico, são inteiramente incompatíveis com nossos parceiros comerciais.  E, um dos maiores problemas é os tributos cumulativos (Cofins, Pis-Pasep e CPMF), que a cada dia têm maior participação no bolo tributário, em detrimento dos tributos tradicionais de boa qualidade.

[7] O desafio da coesão é correr o risco de partir para a ativa integração brasileira na área internacional e chegar a um processo indesejável de desintegração nacional. É fundamental mantermos e avançarmos na consolidação do mercado interno brasileiro, continuando os investimentos em transportes, energia e comunicação, que, unificando o mercado brasileiro, permitiu a consolidação da indústria paulista, da agroindústria do Centro-Oeste e do Nordeste.

Neste ponto é que os conflitos entre os Estados, através da guerra fiscal para atrair indústrias modernas, pode representar problemas na consolidação e ampliação deste mercado interno. Para mantermos a federação, é fundamental uma política de desenvolvimento para atenuar as desigualdades regionais, comandadas pelo Governo Federal.

A reforma tributária tem que dar resposta ao empresário que compra uma máquina na Itália porque é mais barato do que comprar no Brasil, ou da indústria de informática de Manaus, que também compra tudo do exterior pelo mesmo motivo.

Outra questão é a fragmentação das bases tributárias, onde a produção, à venda e o consumo são tributadas simultaneamente pela União, Estados e Municípios, onde serviços e mercadorias, hoje em dia de difícil diferenciação, seguem regras distintas.

[8] Como se garantir a responsabilidade fiscal num regime de descentralização das responsabilidades na federação? O equilíbrio fiscal é uma exigência da modernidade, com as suas consequentes políticas fiscais, de contas externas e de déficit público. Teremos que ter a capacidade de conseguir o equilíbrio fiscal num contexto federativo, onde a União e vinte e tantos Estados decidem sobre o uso dos recursos públicos como captar esses recursos via tributos. Não é à toa que constantemente seguem o caminho mais fácil, que é taxar fortemente os combustíveis, as bebidas, as comunicações e a eletricidade, bens de uso universal e de fácil arrecadação tributária.

[9] O Brasil deve buscar um modelo tributário que assegure a sustentação do Estado e que priorize os Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCAs). A reforma tributária deveria começar pela reafirmação de diversos princípios tributários já estabelecidos na Constituição brasileira e que nos últimos anos não vêm sendo observados. O pilar do sistema tributário deve ser o Imposto de Renda, pois é o mais importante dos impostos diretos, capaz de garantir o caráter pessoal e a graduação de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, além da expansão da tributação sobre o patrimônio. O sistema tributário não pode conceder tratamento privilegiado à renda dos capitalistas, de forma que todos os rendimentos de pessoa física devam ser feitos obrigatoriamente na tabela progressiva do IR que deveria ser ampliada em números de faixas e alíquotas.

A política tributária há de ser, antes de tudo, um instrumento de distribuição de renda e indutora do desenvolvimento econômico e social do país.

[10] Um dos traços do cenário atual do mundo desenvolvido é a interdependência dos sistemas econômicos e a globalização de suas atividades, obrigando os governos a promoverem crescente integração entre regimes monetários, tributários e cambiais. Do ponto de vista estritamente tributário, isso vem conduzindo a um processo de harmonização intrablocos de comércio. No que se referem ao Brasil, os ensinamentos são de dupla natureza.

Primeiro recomendam a aproximação aos padrões tributários do mundo desenvolvido, notadamente os europeus, negando a possibilidade de criação de sistemas tributários aberrantes, como, por exemplo, o que se inspira na adoção de um imposto único ou o crescente uso de impostos em cascata, tendo por base o faturamento.

Segundo, do ponto de vista da integração latino-americana, reforçam a necessidade de a harmonização tributária entre os países da área, seguir o padrão europeu.

Países como o Brasil, caracterizados atualmente pela baixa governabilidade e pelo enorme questionamento em matéria tributária, terão de recuperar seu poder coercitivo como pré- condição para intensificar a integração e globalização de suas economias, uma vez que essa integração supõe a capacidade ampliada dos governos na defesa de seus interesses e poderes.

[11] É um slogan da época de 1750 a 1760 que resumira uma queixa principal dos colonos norte-americanos nas treze colônias, e que fora uma das principais causas da Revolução Americana. Em resumo, muitos daqueles que nas colônias acreditavam que, como eles não estavam diretamente representados no distante e elegante Parlamento britânico, qualquer lei que passasse a afetar os colonos tal como a Lei do Açúcar e do Stamp Act, eram ilegais sob a ótica da Declaração de Direitos de 1689, e era uma negação dos seus direitos como os ingleses.

Quem primeiro utilizou a frase fora o pastor Jonathan Mayhew num sermão em 1750. A frase revive um sentimento central para a causa da Guerra Civil inglesa na sequencia da recusa do deputado John Hampden pagar o imposto. Tal frase apareceu pela primeira vez em versão impressa em fevereiro de 1768 na “Revista Londres”, na página 69, no “O Discurso do Senhor Camden no Declaratório Bill da soberania da Grã-Bretanha sobre as colônias”.

[12] De todos os lados há um clamor pela harmonização fiscal. Não é preciso que tudo seja igual, mas é preciso haver convergência de princípios e objetivos. Harmonização fiscal implica em rever os princípios da autonomia federativa, em colocar os Estados e à União para discutir as vinte e sete legislações estaduais de ICMS diferentes. Em discutir os fundos de participação e outras transferências da União, que têm enorme responsabilidade na criação de municípios insustentáveis economicamente.

VÍNCULO DE EMPREGO NEGADO: Reclamante que morou desde criança com família não consegue reconhecimento de vínculo como doméstica

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Ela contou que, após ter ficado órfã, com 7 ou 8 anos de idade, foi encaminhada para a residência de um senhor chamado Raimundo e começou a trabalhar como doméstica para a família dele. Depois de ficar viúvo, esse senhor a manteve como sua empregada, inclusive depois de se casar com outra pessoa. Ela disse ainda que ficava em tempo integral à disposição da família, mesmo depois do falecimento do Sr. Raimundo, continuando o trabalho para a viúva até ela falecer, em 2013. Mas, apesar de ter sido empregada doméstica da família por tantos anos, com todos os requisitos do vínculo empregatício, nunca recebeu salários e jamais teve os seus direitos trabalhistas reconhecidos, lamentou a reclamante. E, com esses argumentos, ajuizou ação trabalhista contra o espólio da viúva, requerendo o reconhecimento do vínculo de emprego de natureza doméstica a partir da morte do ex-patrão e pedindo horas extras, indenização por danos morais, além de outras parcelas trabalhistas, no montante total de R$385.847,01.

Mas, ao analisar os detalhes do caso, principalmente a prova testemunhal, o juiz Newton Gomes Godinho, na titularidade da 2ª Vara do Trabalho de João Monlevade/MG, se deparou com uma realidade bem diferente da que salta dos relatos da reclamante. Ele concluiu que o vínculo entre ela e a família não era de trabalho, mas sim, afetivo. Por isso, não reconheceu a relação de emprego e julgou improcedentes todos pedidos feitos na ação.

Ao se defender, o espólio negou, enfaticamente, a condição de empregada doméstica da reclamante. Alegou que ela foi criada como filha pela falecida, nunca recebeu salários e o vínculo que teve com a família foi apenas afetivo. Inclusive, sempre tiveram empregadas domésticas na residência e consideraram inacreditável que a reclamante tivesse trabalhado por quase 62 anos sem receber qualquer salário.

Para o juiz, foi isso o que, de fato, brotou do conjunto da prova, pois as declarações das testemunhas revelaram que a reclamante não atuava como empregada, mas, na realidade, tinha total liberdade de ação e laços de pura afeição para com a família com a qual passou a viver. A própria reclamante, em depoimento pessoal, reconheceu a liberdade que possuía na casa. Ela disse que movimentava valores na conta bancária da falecida, pois retirava dinheiro para custear despesas da falecida, como compra de remédios e pagamento de consultas. Também cuidava das despesas gerais da casa, pagando contas de água, luz, telefone e alimentação, inclusive retirando do próprio bolso (da aposentadoria), se fosse necessário. Além disso, era a reclamante quem pagava as pessoas que trabalhavam na casa, usando o dinheiro retirado da conta da falecida, ou o dela próprio. Ou seja, não era empregada doméstica, mas era tida como um membro da família.

Na visão do magistrado, esses laços familiares se revelaram também no depoimento da testemunha da própria autora, que acabou por declarar que a reclamante tinha cuidado especial com a falecida, chegando a “deixar de cuidar dela própria para cuidar da falecida”. Ou seja, ela não era empregada doméstica, mas se comportava e era tida como um membro da família.

Nesse mesmo sentido foram as declarações da testemunha do réu, que afirmou perceber uma relação de amor entre a reclamante e a falecida. Essa testemunha, inclusive, já tinha trabalhado como doméstica na residência e disse que fazia de tudo na casa, tendo sido contratada pela própria reclamante, a quem tinha como patroa, pois era quem acertava seus salários e comandava o serviço. Segundo ela, “como uma dona de casa, a reclamante ajudava em algumas coisas”.

Diante desse quadro, o magistrado não teve dúvidas de que o vínculo entre as partes era de natureza nitidamente afetiva, sem quaisquer dos traços que marcam a relação de emprego. “É o que sentiu o Juiz. Sentença, aliás, vem de ‘sentire’ e, quando a profere, o Juiz diz o que sente”, destacou. Por essas razões, não reconheceu a relação de emprego, julgando improcedente o pedido. A reclamante apresentou recurso ordinário, mas a decisão foi mantida pela Primeira Turma do TRT/MG.   (0001437-04.2013.5.03.0102 RO)


FONTE: TRT3-MG, 13 de agosto de 2015.