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Alimentos sem culpa

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* Maria Berenice Dias

Talvez não se tenha atentado ainda no alcance da alteração promovida pelo atual estatuto civil, desvinculando a responsabilidade alimentar da causa da separação. A possibilidade de não só o inocente, mas também o responsável pelo fim do casamento pleitear alimentos introduz profundas mudanças na obrigação alimentar decorrente da sociedade conjugal. Agora não mais se pode falar em apenamento tendo por pressuposto a culpa, eis reconhecido o direito do cônjuge de obter alimentos mesmo se foi o culpado pela separação. Assim, merece ser repensada a natureza do encargo que persiste depois da dissolução do casamento e pode onerar um inocente, impondo-lhe o dever de pagar alimentos em favor do culpado pelo desenlace do vínculo matrimonial.

O dever de mútua assistência, atribuído aos cônjuges quando do casamento, é que dá origem à obrigação alimentar. Trata-se de ônus que surge na solenidade do casamento e persiste mesmo depois de solvido o vínculo matrimonial. Somente a sua exigibilidade está condicionada ao rompimento do casamento. Por isso, o encargo alimentar sempre foi reconhecido como uma seqüela do dever de assistência, obrigação que decorre de imposição legal, no momento das núpcias. A responsabilidade recíproca pela subsistência do consorte é um dos efeitos do casamento, imposta coactamente, pois independe da vontade dos noivos. Ainda que o ônus assistencial seja recíproco, os alimentos revestiam-se – ao menos até o advento do atual Código Civil – de caráter punitivo-indenizatório, já que decorriam da condenação do cônjuge culpado em favor do consorte inocente.

A lei civil anterior, em sua redação original, apesar de impor a ambos os cônjuges o dever de mútua assistência, só previa a obrigação alimentar do marido em favor da mulher inocente e pobre. Quando da edição do Código Civil de 1916, vigorava o princípio da indissolubilidade do casamento, eis que só se extinguia pela morte de um dos cônjuges ou pela anulação do casamento. Havia, porém, a possibilidade de o matrimônio terminar pelo desquite, o que dava ensejo à separação de fato dos cônjuges e à dispensa do dever de fidelidade, além de pôr fim ao regime de bens. No entanto, mantinha-se inalterado o vínculo matrimonial. Mesmo estando desquitados, como o casamento não se dissolvia, o encargo assistencial permanecia, ao menos do homem para com a mulher, a depender de sua inocência e necessidade, assim reconhecida na ação de desquite.

Com o advento da Lei do Divórcio, o dever de alimentos entre os cônjuges passou a ser recíproco, mas imputável somente ao responsável pela separação. Aquele que teve conduta desonrosa ou praticou qualquer ato que tenha importado em grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum, era condenado a pagar alimentos ao consorte que não teve culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Da redação do artigo 19 da Lei do Divórcio, a única conclusão que se podia extrair era que o culpado pela separação não tinha direito a alimentos, mesmo que deles necessitasse. Somente o responsável pela separação tinha a obrigação de pagar alimentos a quem não havia dado causa ao fim do casamento. Exclusivamente o inocente fazia jus à pensão alimentícia. Até a  simples iniciativa judicial de buscar a separação excluía o direito de pleitear alimentos.

Nada previa a lei divorcista sobre a obrigação de sustento quando não se conseguisse identificar qual dos cônjuges era o culpado, bem como nada era dito se fosse reconhecida a culpa de ambos pelo fim do casamento. Dessa tarefa desincumbiu-se a jurisprudência, admitindo a obrigação mesmo quando não identificadas responsabilidades. Reconhecida a culpa recíproca, simplesmente não se cogitava de alimentos.

A separação judicial – tal como o desquite – rompe, mas não dissolve a sociedade conjugal, ao contrário do que ocorre no divórcio, que põe fim ao casamento. Ainda assim, mesmo findo em definitivo o matrimônio, perdura o dever de mútua assistência, uma vez que permanece a obrigação alimentar entre o par depois de divorciados. Apesar de a Lei do Divórcio não dizer isso expressamente, não se pode chegar a outra conclusão. Estabelece a lei que cessa o crédito alimentar somente pelo novo casamento do beneficiário. Como só há a possibilidade de novo casamento após o divórcio, o dispositivo deixa claro que persiste o encargo mesmo estando os cônjuges divorciados.

A Lei do Divórcio assegurava alimentos somente ao cônjuge inocente, pois se tratava de encargo imposto ao culpado pelo término da sociedade conjugal. Por conseqüência, a demanda alimentícia necessariamente envolvia a perquirição da causa do rompimento da vida em comum para responsabilizar um de prover o sustento do outro. O autor da ação, para ser contemplado com alimentos, necessitava provar, além de sua necessidade, sua inocência, bem como a culpa do réu.

Já na legislação que regulamentava a união estável, em matéria de alimentos, os conviventes gozavam de uma situação privilegiada, se confrontada com o casamento. Quando da regulamentação infraconstitucional do novo instituto, o encargo alimentar não restou condicionado à postura dos parceiros pelo fim do relacionamento. A ausência do elemento culpa pelo término da união estável limitava, com vantagem, o âmbito de cognição da demanda alimentária, se comparada com a ação decorrente da relação de casamento. Tal incongruência passou a ser encarada pela jurisprudência como nítida afronta ao princípio da isonomia. Como a Justiça não consegue conviver com o imponderável, nem dar tratamento diferenciado e mais restritivo a direitos de igual natureza (eis originários de uma vinculação afetiva), passou a ser dispensada a perquirição da culpa quando a lide envolvesse cônjuges.

No Código Civil vigente, a responsabilidade alimentar recebeu tratamento único. De modo expresso, o artigo 1.694 prevê a possibilidade de parentes, cônjuges e companheiros pedirem alimentos uns aos outros para viver de modo compatível com a sua condição social. Todos os beneficiários, filhos, pais, parentes, cônjuges, companheiros, enfim, todos os que fazem jus a alimentos têm assegurado a mantença do padrão de vida que sempre desfrutaram.

A grande novidade introduzida na nova consolidação civil foi conceder, mesmo ao culpado pelo nascimento do encargo – ou seja, o culpado pela separação – direito a alimentos. A diferença é meramente quantitativa. Os alimentos permitem viver de modo compatível com a condição social. Ao culpado, no entanto, o valor dos alimentos é restrito a garantir sua sobrevivência. Essa dicotomia trouxe para a esfera legal a diferenciação entre alimentos civis e naturais, consolidando diferenciação de há muito sustentada pela doutrina e que dispunha de livre trânsito na jurisprudência. A distinção entre alimentos para viver de modo compatível com a condição social e alimentos em valor indispensável à sobrevivência era feita ao se quantificarem alimentos devidos aos filhos e alimentos a serem pagos ao ex-cônjuge. Enquanto o encargo decorrente do poder familiar era fixado em valor proporcional às condições econômicas do genitor, os alimentos com origem no casamento se limitavam a atender à necessidade do alimentando de forma a prover sua subsistência com dignidade. Somente os filhos, e não os cônjuges ou companheiros, tinham direito de viver com a mesma qualidade de vida do alimentante.

A diferenciação introduzida no Código Civil, no entanto, tem distinto pressuposto, pois serve exclusivamente para limitar os alimentos em favor do culpado pelo surgimento do estado de necessidade, sem questionar quem são os benefíciários. Assim, persiste a intenção do legislador de punir o responsável pelo surgimento do encargo alimentar. Ainda que sem o rigorismo anterior, continua sendo penalizado quem ousa se afastar do casamento adotando atitudes inadequadas à vida em comum. Somente perceberá o quanto baste para sobreviver.

Não diferencia a lei nem a natureza nem a origem da obrigação para restringir o valor do pensionamento em favor de quem dá ensejo à exigibilidade da obrigação. Tornou-se necessário identificar não só a culpa do cônjuge. A responsabilidade de todos os credores de alimentos também precisa ser perquirida. Portanto, nas demandas alimentícias de qualquer ordem passou a haver a necessidade de desvendar o motivo do surgimento da obrigação  para a fixação do valor da pensão alimentar. A penalização atinge todo e qualquer beneficiário que culposamente tenha dado causa à necessidade alimentícia. Pelo que está posto na lei, a restrição quantitativa do valor dos alimentos ocorre até quando o ônus decorre das relações de parentesco. Dita limitação tem sido alvo de acirradas críticas.

Ainda que não se possa deixar de reconhecer que a limitação constante do § 2º do artigo 1.694, referente à culpa do alimentando, também se dirige aos parentes e aos egressos da união estável, os dispositivos legais que, de forma mais incisiva, restringem a obrigação a simples garantia de subsistência fazem menção exclusivamente à relação de casamento. Tanto o artigo 1.702 como o artigo 1.704 e seu parágrafo único falam em “separação judicial”, “cônjuge inocente”, “cônjuge separado judicialmente” e “cônjuge declarado culpado”, levando em consideração a postura dos partícipes da relação de casamento. Assim, parece que somente quando buscados alimentos entre cônjuges é que a lei questiona a conduta do autor da ação no desenlace da convivência marital, em face da possibilidade de o valor do encargo sofrer limitações. Em vez de os alimentos garantirem a mantença da condição de vida do ex-cônjuge, podem ser fixados em montante a permitir-lhe exclusivamente o atendimento do mínimo vital. Porém, quando a origem do encargo alimentar decorre de um relacionamento estável, não há dita limitação. O convivente, ao acionar o ex-companheiro, não está sujeito a questionamentos sobre sua eventual culpa pelo fim da união de fato. Exclusivamente o cônjuge estaria sujeito ao risco de sofrer o achatamento do valor dos alimentos e os ver limitados a assegurar sua sobrevivência. Na união estável, como nada é perquirido a respeito da postura dos conviventes, os alimentos sempre seriam fixados de forma a permitir que o ex-parceiro viva de modo compatível com a condição social que usufruía durante a vida em comum.

Não há como não visualizar nesse discrímine legal afronta ao princípio da isonomia. Faltando razoabilidade à diferenciação levada a efeito pela lei, mister eliminar a culpa para o efeito de fixar alimentos ao cônjuge. Impositivo acabar com essa distinção, que não se coaduna com o sistema jurídico. A jurisprudência necessita continuar com a mesma orientação e ignorar injustificáveis diferenciações. O raciocínio que prevaleceu em face das distinções discriminatórias entre as leis reguladoras do divórcio e da união estável precisa ser novamente invocado. Descabe diferenciar cônjuges e conviventes, casamento e união estável.

As previsões legais que ensejam redução dos alimentos, sendo excludentes de direitos, merecem interpretação restritiva. Como a lei não impõe limitações quantitativas ao valor dos alimentos na união estável, não pode estar sujeita a tais restrições a obrigação decorrente da relação de casamento. Tanto os cônjuges como os conviventes não devem estar sujeitos à identificação de culpa ou de inocência, quer quem precisa de alimentos, quer quem deve pagar alimentos. É necessário subtrair toda e qualquer referência de ordem motivacional sobre o desenlace do vínculo afetivo tanto para deferir alimentos como para quantificar o seu valor. Assim, no casamento e na união estável, sendo o cônjuge ou o convivente desprovido de recursos, o outro lhe pagará pensão alimentícia. Mais uma vez, a solução é invocar os princípios da igualdade e simplesmente não condicionar o quantum alimentar à conduta culposa do par.

Imperioso é ressaltar que somente a restrição quanto à culpabilidade é que cabe ser afastada. No que o caput do artigo 1.704 tem de vantajoso, ou seja, ao agregar benefícios em favor da relação de casamento, é necessário estender seu âmbito de incidência à união estável, sob pena de se infringir mais uma vez o dogma da igualdade. Por conseqüência, cônjuges e companheiros têm direito a alimentos, mesmo depois de cessada a vida em comum. Desse modo, se depois de separados, não só o cônjuge, mas também o convivente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los. Essa é a única leitura que se pode fazer do texto da lei. Outro não pode ser o raciocínio, sob pena de se afrontar a principiologia constitucional que sustenta o sistema jurídico. Mais. Como os alimentos são irrenunciáveis, ainda que tenha havido renúncia, desistência ou mera dispensa na separação, no divórcio ou na dissolução (contratual ou judicial) da união estável, qualquer dos cônjuges ou conviventes pode a qualquer tempo pleitear alimentos. Basta exsurgir a necessidade.

Seqüela outra decorre de uma leitura mais atenta de tais dispositivos legais. Afastada a causa prejudicial para a constituição da obrigação alimentar, qual seja, a identificação da responsabilidade pelo fim do casamento, resta esvaziado de conteúdo o parágrafo único do artigo 1.704. Necessidade e possibilidade são os únicos balizadores para estabelecer a obrigação alimentar. Esse direito pode ser reconhecido quando do fim da relação ou em momento posterior, depois de o par já se encontrar apartado, quer pela separação judicial, quer pelo divórcio, quer pelo término da união estável. Descabido dar tratamento diferenciado a cônjuges e conviventes. Excluído o elemento culpa, não há como subsistirem as outras limitações constantes no referido parágrafo. Como não mais se questiona culpa para a concessão de alimentos, o culpado faz jus à pensão alimentar. Não é possível outra conclusão ao extirpar-se da lei o que ela tem de inconstitucional. Basta aferir a necessidade de quem pede e a possibilidade daquele a quem se pede para ser imposto o dever de alimentos. Não mais permanecem os pressupostos limitantes do parágrafo único do artigo 1.704. Como não se pode mais falar em culpa, não há motivo para repassar o encargo a parentes com condições de prestar os alimentos. Igualmente, a capacidade laborativa do alimentando não carece ser investigada. Cabe, tão-só, aferir a presença do binômio possibilidade-necessidade. E, como necessidade não se confunde com potencialidade para o desempenho de atividade laboral, a existência de condições para o trabalho não veda a concessão de alimentos. Somente a ausência da necessidade, ou seja, a percepção de ganhos capazes de prover a própria subsistência é que pode liberar o cônjuge ou companheiro do dever de pagar alimentos. Portanto, mesmo sendo culpado, mesmo tendo parentes em boas condições financeiras, mesmo possuindo aptidão para o trabalho, tanto o cônjuge como o companheiro podem pleitear alimentos do ex-parceiro.

Merece aplausos a novidade introduzida pela nova lei, que afasta o caráter punitivo da obrigação alimentar, postura que se afina com as legislações mais modernas e a doutrina contemporânea que atenta na dignidade da pessoa humana. Negar alimentos a quem necessita é, quiçá, condenar à morte quem cometeu o crime de se afastar do casamento. Ainda que conflitos surjam ao término de alguns relacionamentos afetivos, não há uma guerra declarada, única hipótese em que a Constituição Federal prevê a pena de morte.
 

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Direito e Estado: uma correlação entre Kelsen e Gramisci

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* Daniel Cavalcante Silva 

"A luta política transforma-se numa série de episódios pessoais entre quem é bastante esperto para se livrar das complicações e quem é enganado pelos próprios dirigentes e não quer se convencer disso por causa de uma incurável estupidez."

Antonio Gramsci – Cadernos do Cárcere: Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política.

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            O presente estudo visa fazer uma análise sistemática do tema "Direto e Estado", na concepção aventada por Hans Kelsen em sua obra "Teoria Pura do Direito", correlacionando-a com um entendimento de "Direito e Estado" nas entrelinhas do pensamento de Antonio Gramsci em sua obra "Cadernos do Cárcere", Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política.

            O pano de fundo da temática é o exame da possibilidade de que os autores supracitados possam comungar de um mesmo entendimento acerca do "Direito e Estado". A fundamentação basilar da idéia de "Direito e Estado", no presente estudo, está adstrita à obra de Kelsen. No entanto, ao criticar algumas idéias de Karl Marx, Antonio Gramsci vai incidir justamente na essência do "Direito e Estado", mormente explicitada por Kelsen. Embora as obras de Kelsen e Gramsci, ora em análise, fossem concebidas numa época bem contemporânea, tinham conteúdos ideológico-doutrinários totalmente diversos.

            O jurista austro-húngaro Hans Kelsen, no início do século XX, apresentou a sua obra "Teoria Pura do Direito", segundo a qual havia sido desenvolvida como sendo purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, ou seja, uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter alcançado, no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com esses termos que o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida. Para alcançar tais objetivos, Kelsen utiliza o sentido de "pureza" como metodologia tendente a libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhes são estranhos, como medida, inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina jurídica, que, segundo ele, vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos, políticos, psicológicos, filosóficos, etc.

            É sob esta perspectiva metodológica que Kelsen desenvolve o capítulo destinado a analisar "Direito e Estado", Capítulo VI da obra "Teoria Pura do Direito". Nesse sentido, Kelsen passa a tecer as diferenças que costumam caracterizar como oposição entre autonomia e heteronomia da teoria jurídica, essencialmente no domínio do Direito do Estado. O problema aventado inicialmente por Kelsen perpassa na identificação da forma do Estado e como trabalhar a questão relativa ao método de criação do Direito.

            Kelsen, então, passa a demonstrar o dualismo tradicional entre Estado e Direito, bem como a sua função ideológica. Nesse sentido, Kelsen explica:

            "O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em qualquer sentido. Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de fazer direito." [01]

            Amiúde à concepção dualística entre Estado e Direito, Kelsen passa a verificar a identidade do Estado e do Direito, o que é a essência de sua obra e que é de relevante interesse ao presente estudo. É evidente para Kelsen que a relação designada como poder do Estado se distingue de outras relações de poder pela circunstância dela ser juridicamente regulada, o que significa que os indivíduos que, como o Estado, exercem poder, recebem competência de uma ordem jurídica para exercerem aquele poder por intermédio da criação e aplicação de normas jurídicas.

            Segundo Kelsen, o poder do Estado não é uma força ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do Direito. Ele não é senão a eficácia da ordem jurídica, razão pela qual poder do Estado tem caráter normativo. Dessa ilação, Kelsen supera o que conjeturou inicialmente sobre o dualismo entre Estado e Direito, pois todo Estado teria de ser um Estado de Direito no sentido de que todo Estado é uma ordem jurídica.

            Partindo da perspectiva kelseniana acima aludida, cumpre evidenciar que ela também era corroborada, embora de maneira diversa, na obra de Antonio Gramsci. É necessário esclarecer que tais autores, embora seguissem correntes doutrinárias totalmente diversas, tinham pensamentos convergentes acerca da importância e aplicabilidade prática do Direito no Estado.

            Gramsci, na sua obra "Cadernos do Cárcere", Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política, chega ao entendimento da importância do Direito no Estado ao criticar o que Karl Marx chamava de "superestrutura". O conceito de "superestrutura" pode ser balizado de maneira mais didática por Raymond Aron, que, na sua obra "O Marxismo de Marx", explica:

            "Em toda sociedade podem-se distinguir a base econômica, ou infra-estrutura, e a superestrutura. A infra-estrutura constitui-se essencialmente por forças e relações de produção, enquanto na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas, ao mesmo tempo em que as maneiras de pensas, as ideologias e as filosofias." [02]

            Não obstante, Gramsci, ao analisar a "superestrutura" propugnada por Marx, verificou que tal "superestrutura", conquanto opere essencialmente sobre forças econômicas, que se reorganiza e se desenvolve no aparelho de produção econômica, não poderia ser abandonada a si mesma, a seu desenvolvimento espontâneo, a uma geminação casual e esporádica. A crítica de Gramsci tem respaldo no fato de que Marx parte de um critério político-ideológico, no caso a Teoria das Revoluções e das lutas de classes (relação de produção), para conceber o Direito.

            O ponto de partida dessa análise é a definição de Estado, que permite estabelecer a relação existente entre essa superestrutura complexa e a estrutura social. Para Gramsci, "o Estado não é concebível mais que como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção" [03]. O Estado é, assim, a expressão, no terreno das superestruturas, de uma determinada forma de organização social da produção. As relações entre Estado capitalista e o mundo econômico (relações entre superestrutura e estrutura) não podem ser determinadas de maneira fácil sob a forma de um simples esquema. Para entendê-las é preciso ter em mente que esses dois conjuntos formam uma totalidade que possui, em seu interior, diversas temporalidades.

            O desenvolvimento destes conjuntos encontra-se intimamente vinculado e marcado por influências, ações e reações recíprocas, pelas lutas que protagonizam as classes em presença e as formas superestruturais destas no terreno nacional e internacional. Reconhecer esses vínculos não implica em admitir que transformações no mundo econômico provoquem uma reação imediata a modificar as forma superestruturais, ou vice-versa. Um certo descompasso entre as mudanças ocorridas nesses conjuntos é, até mesmo, previsível, muito embora exista uma tendência à adequação de um a outro. Esta tendência não é, senão, a busca de uma otimização das condições de produção e reprodução das relações sociais capitalistas através da unidade econômica e política da classe dominante, unidade que se processa no Estado.

            Desta forma o Estado é concebido, segundo Gramsci, como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo. Essa expansão para ser eficazmente levada a cabo, não pode aparecer como a realização dos interesses exclusivos dos grupos diretamente beneficiados. Ela deve apresentar-se como uma expansão universal (expressão de toda a sociedade), por intermédio da incorporação à vida estatal das reivindicações e interesses dos grupos subalternos, subtraindo-os de sua lógica própria e enquadrando-os na ordem vigente. Incorporação essa que é o resultado contraditório de lutas permanentes e da formação de equilíbrios instáveis e de arranjos de força entre as classes. Processo limitado pelas necessidades de reprodução da própria ordem e que se restringe, portanto, ao nível das reivindicações econômico-corporativas.

            Fica claro que a definição de Estado até aqui esboçada procura evitar uma concepção que o reduz ao aparelho coercitivo. A construção do consenso também encontra lugar nesse Estado. O Estado tem, dessa maneira, um caráter dual, meio homem, meio animal, como o centauro maquiavélico. Chega-se ao ponto da exposição no qual se faz necessário precisar os contornos do Estado para Gramsci. O Estado é entendido em seu sentido orgânico e mais amplo como o conjunto formado pela sociedade política e sociedade civil, ou para retomar uma fórmula já clássica (Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia encouraçada de coerção).

            Tomem-se estes dois termos chaves: sociedade política e sociedade civil. O conceito de sociedade política está claro no texto gramsciano. Trata-se do Estado no sentido restrito, ou seja, o aparelho governamental encarregado da administração direta e do exercício legal da coerção sobre aqueles que não consentem nem ativa nem passivamente. Gramsci não perde, em momento nenhum, esta dimensão do Estado, ou seja, não perde de vista sua dimensão coercitiva, muito embora não reduza o Estado a ela. É justamente nesse ínterim que Gramsci se contrapõe à superestrutura marxista.

            Um erro na superestrutura de Marx, segundo Gramsci, foi o de crer que o Estado se reduz a um simples aparato político. Na verdade, o Estado atua não apenas com a ajuda do seu aparato político, como também por meio de uma ideologia que descansa em valores admitidos que a maioria dos membros da sociedade tenha como supostos. A referida ideologia engloba a cultura, as idéias, as tradições e até o sentido comum.

            Por outro lado, convém explicar que Karl Marx, na sua fase conhecida como "o jovem Marx", ao elaborar a "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", chegou à ilação de que o poder soberano do Estado seria a universalidade da constituição e das leis. Para Marx "o homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal." [04] Essa dedução, porém, teve por escopo rechaçar os fundamentos do Direito de Hegel na defesa da monarquia constitucional, cuja acepção baseava-se que a justificativa do Direito do Estado estaria na relação absoluta das formas de crença.

            Ao contrário do que pareça, a crítica feita por Marx o serviu para absorver e subtrair elementos as idéias de Hegel, com o objetivo, desvendado por Raymond Aron, de elaborar a concepção futura do materialismo histórico (teoria geral da sociedade). Para Aron, a partir dos temas marxistas que foram encontrados no "Manifesto Comunista" é que se pôde explicar a teoria geral da sociedade (que seria também chamada de materialismo histórico) e as idéias econômicas de Marx.

            Portanto, somente na "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" é que Marx desenvolveu uma breve consideração à importância da ligação do Estado e o Direito. No entanto, no decorrer de sua trajetória filosófica, Marx relegou o Direito como sendo parte de uma "superestrutura" da base econômica. O viés atribuído por Marx ao Direito, como já foi dito alhures, o remete ao critério político-ideológico, sem, contudo, observar que a "superestrutura" não se desenvolveria de forma espontânea. Em outras palavras, o direto não estaria adstrito à "superestrutura", mas seria pré-existente a ela. É necessário esclarecer que Marx não relega o Direito, mas remete a sua concepção a um critério político-econômico de implementação.

            Foi justamente esse entendimento que levou Gramsci, que embora fosse um dos mais ferrenhos defensores das idéias de Marx, a criticá-lo em relação ao que se convencionou chamar de "superestrutura" como ideário em si. Seguindo essa crítica, Gramsci explicita que:

            "Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadãos (e, portanto, de conivência e de relações individuais), tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para esta finalidade (ao lado da escola e de outras instituições e atividades) e deve ser elaborado para ficar conforme a tal finalidade, ser maximamente eficaz e produtor de resultados positivos." [05]

            Nesse sentido, o Direito, na concepção de Gramsci, deveria ser libertado de todo resíduo de transcendência e de absoluto, bem como praticamente de todo fanatismo moralista, mas com o objetivo de lutar contra a "periculosidade" social. O Estado, para Gramsci, deveria ser concebido como "educador", razão pela qual o direito passaria a ser um instrumento de racionalização, como um aspecto repressivo e negativo de toda atividade positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado. A idéia de racionalização do Direito do Estado estaria intimamente ligada às concepções kelsenianas.

            Embora Kelsen quisesse elaborar uma teoria do direito purificada de todo o viés da ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, ao contrário do viés político do Direito como fora conjeturado por Gramsci, ambos têm a idéia da essência exata do Direito no Estado, como sendo a implementação da eficácia da ordem jurídica, de acordo com a teoria pura de Kelsen, e seu reflexo na efetividade da Política, segundo as perspectivas de Gramsci.

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Referência Bibliográfica

            ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. Tradução de Jorge Bastos. São Paulo: Editora Arx, 2003.

            GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

            KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

            MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo, 2005.

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Notas

            01. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 316.

            02. ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. Tradução de Jorge Bastos. São Paulo: Editora Arx, 2003, p. 47.

            03. GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 36.

            04. MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo, 2005, p. 50.

            05. GRAMSCI. Antonio. Op Cit. 2002, p. 28.

 
 


Referência  Biográfica

Daniel Cavalcante Silva  –  Advogado em Brasília (DF), integrante do escritório MBSC Advogados Associados, pós-graduado no MBA de Direito e Política Tributária pela FGV Brasília

As provas ilícitas no processo brasileiro

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* José Olindo Gil Barbosa –

1. INTRODUÇÃO

            Segundo o ensinamento de ADA PELLEGRINI GRINOVER [01] , os direitos do homem não podem ser entendidos de forma absoluta. Assim, o princípio da convivência das liberdades deve ser respeitado de modo a não se tornar danoso à ordem pública e às liberdades alheias.

            O direito da parte de deduzir em juízo todas as provas relevantes à sua disposição não é absoluto. Há restrições.

            A Constituição Federal de 1988 ao tratar sobre o tema estabelece em seu art. 5° , inciso LVI, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

            Mas o que é prova? Prova é aquilo cujo escopo é estabelecer uma verdade por verificação ou demonstração. Ou, como no conceito de VICENTE GRECO FILHO [02], para quem "A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é o seu destinatário. No processo, a prova não tem um fim em si mesma ou um fim moral ou filosófico: sua finalidade prática, qual seja, convencer o juiz. Não se busca a certeza absoluta, a qual, aliás, é sempre impossível, mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado".

            O certo é que as provas servem à formação do convencimento do juiz e, ao mesmo tempo, cumprem também o papel de abonar perante a sociedade a decisão abraçada pelo magistrado.

            A prova, porém, para servir de sustentáculo a uma decisão judicial, há de ser obtida por meios lícitos, que não contrariem a moral e os bons costumes, que esteja dentro dos limites éticos do homem.

            É importante a lembrança que o Pacto de San Jose da Costa Rica, a chamada Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que faz parte do sistema constitucional da República Federativa do Brasil, que consagra o valor da vida privada e familiar, do domicilio e das correspondências, preceitua, nos seus artigos 9° e 11, que "ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação", garantindo a todas as pessoas o direito à proteção legal contra tais atos.

            Se assim não bastasse, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, em seu Artigo 12º, estabelece que "ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação", assegurando, também que contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei.

2. PROVA ILÍCITA – CONCEITUAÇÃO

            Segundo a eminente mestra ADA PELLEGRINI GRINOVER [03], sustentando-se em doutrina de NUVOLONE, a prova ilícita enquadra-se no grupo da prova vedada, entendida esta como a prova contrária, em sentido absoluto ou relativo, a uma específica norma legal, ou a um princípio de direito positivo.

            Segundo NUVOLONE, a prova é vedada, em sentido absoluto, quando o direito impede, sempre, sua produção. E o é em sentido relativo, quando o ordenamento jurídico, conquanto aceitando o meio de prova, condiciona sua licitude à observância de determinadas formas.

            Leciona, ainda, que a proibição tem natureza exclusivamente processual, quando for imposta em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo. Tem, ao contrário, natureza substancial quando, embora servindo, de forma imediata, também a interesses processuais, é vista, de maneira fundamental, em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo.

            A distinção é ressaltante, na seguinte medida: a transgressão do empecilho configura, nos dois casos, uma ilegalidade; mas enquanto no primeiro caso haverá um ato ilegítimo, no segundo caso haverá um ato ilícito.

            Ao lume dessas premissas, conclui NUVOLONE que a prova é ilegal sempre que caracterizar infração de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. A prova ilegal é o gênero, de que são espécies as provas ilegítimas e ilícitas.

            Em recente artigo o insigne mestre HUMBERTO THEODORO JÚNIOR [04], leciona que é certo que o compromisso do processo é com a verdade real. Salienta, contudo, que a atividade processual não poderá ficar distraída ou impassível à conduta ilícita da parte para influir na atividade do próprio órgão judicante.

            Assevera, ainda, que "quando veda a prova obtida ilicitamente, o que tem em mira o preceito constitucional não é o fato processual em si mesmo, mas a necessidade do coibir e desestimular a violação às garantias que a Carta Magna e o ordenamento jurídico que a complementa instituíram como regras indispensáveis à dignidade humana e à manutenção do império da lei".

            Certas provas ilícitas podem, ao mesmo tempo, ser ilegítimas, se a lei processual também atalhar sua produção em juízo. Nesta hipótese, como leciona ADA PELLEGRINI GRINOVER [05], será imperativo constatar se o impedimento processual de emprego é satisfatório para esvaziá-la, como acontece quando sua produção em juízo é passível de nulidade; ou se deverá persistir a ter em pensamento sua designação de "ilícita".

            Em sentido estrito, entende a eminente processualista, por prova ilícita, "a prova colhida com infringência às normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, freqüentemente para a proteção das liberdades públicas e especialmente dos direitos de personalidade e mais especificamente do direito à intimidade".

            As provas lícitas são, portanto, aquelas obtidas de forma correta, sob a prescrição da lei e da ética. Segundo o art. 332 do nosso Código de Processo Civil, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados nele, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. Nesse artigo estão as balizas legais e éticas das provas. Toda prova que foge desse parâmetro é ilícita e, portanto, imprestável. O Código de Processo Penal não contém dispositivo genérico ou abrangente no tocante a essa matéria, como o CPC, no sentido de estabelecer balizamento à produção de prova. Contudo, no título VII, do Livro I, inúmeras restrições à produção de prova são encontradas.

3. PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO – ADMISSIBILIDADE E INADMISSIBILIDADE DA SUA PRODUÇÃO

            No tocante a possibilidade da produção de provas obtidas por meios ilícitos, que não sejam consideradas ilegítimas pelo ordenamento jurídico, a jurisprudência e a doutrina pátrias sempre se posicionaram com decisões e opiniões diversas.

            É bom que fique enfatizado que provas ilícitas não se confundem com provas ilegais ou ilegítimas. De acordo com o já analisado, enquanto as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desobediência ao direito processual. Por sua vez, a provas ilegais seriam os gêneros do qual as espécies provas ilícitas e ilegítimas, pois se configuram pela obtenção com violação de natureza material ou processual ao ordenamento jurídico.

            Existe uma corrente doutrinária que defende a produção de provas ilícitas no processo, enquanto uma outra entende ser juridicamente impossível essa produção. Há outra, entretanto, que se posiciona de modo conciliador. Passemos a discorrer sobre cada uma delas.

            3.1 Corrente da admissibilidade

            Argumentam os defensores dessa tese que a prova obtida por meios ilícitos, não poderá ser alijada do feito, a não ser no caso de a própria lei assim o ordenar. Assim, a prova para ser afastada há de ser ao mesmo tempo ilícita e ilegítima.

            Advoga essa corrente que o problema da admissibilidade ou inadmissibilidade da prova não se refere ao modo de como foi obtida. Se ela no processo for consentida pela lei, in abstracto, sendo totalmente sem relevância o emprego dos meios para a sua obtenção.

            FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO [06], dentre os nacionais, é filiado a essa corrente doutrinária. Apóia-se ele no argumento de que se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, aceitável é que, se a prova ilicitamente obtida mostrar essa verdade, seja ela admissível, sem olvidar-se o Estado da persecução criminal contra o agente que infringiu as disposições legais e os direitos do réu.

            3.2 Corrente da inadmissibilidade

            Sustenta essa corrente que toda e qualquer prova obtida por meios ilícitos, deve ser de pronto rejeitada.

              ADA PELLEGRINI GRINOVER [07] diz que, nesses casos, incide a chamada "atipicidade constitucional", Isto é, a desconformidade do padrão, do tipo imposto pela Carta Magna. E, também, porque os preceitos constitucionais relevantes para o processo têm estatura de garantia, que interessam à ordem pública e à boa condução do processo, a contrariedade a essas normas acarreta sempre a ineficácia do ato processual, seja por nulidade absoluta, seja pela própria inexistência, porque a Constituição tem como inaceitável a prova alcançada por meios ilícitos.

            Um dos grandes advogados dessa corrente é o Ministro do Supremo Tribunal Federal , CELSO DE MELLO [08], que em recente julgamento naquela corte de Justiça proferiu voto em defesa da imprestabilidade das prova obtidas por meios ilícitos. Argumenta ele nesse voto que "a absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário. A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. Prova ilícita, sendo providência instrutória eivada de inconstitucionalidade, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica".

            3.3 Corrente da teoria da proporcionalidade

            Advogam os defensores dessa corrente que a prova colhida com transgressão aos direitos fundamentais do homem é totalmente inconstitucional e, conseqüentemente, deve ser declarada a sua ineficácia como substrato probatório capaz de abalizar uma decisão judicial. Porém, há uma exceção: quando a vedação é amainada para acolher a prova contaminada, excepcionalmente e em casos extremamente graves, se a sua aquisição puder ser sopesada como a única forma, possível e admissível, para o abrigo de outros valores fundamentais, considerados mais urgentes na concreta avaliação do caso.

            Em nosso País, essa teoria é adotada, com reservas, pela jurisprudência, mais acentuadamente em matéria processual civil, sobretudo nas causas de direito de família.

            Essa teoria é duramente criticada por alguns doutrinadores. Argumentam eles que essa solução, quando adotada, acarreta a possibilidade de dar margem em demasia a influência de fatores meramente subjetivos pelo julgador.

            NELSON NERY JÚNIOR [09] tem uma opinião bastante interessante no tocante a essa possibilidade:

            "Não devem ser aceitos os extremos: nem a negativa peremptória de emprestar-se validade e eficácia à prova obtida sem o conhecimento do protagonista da gravação sub-reptícia, nem a admissão pura e simples de qualquer gravação fonográfica ou televisiva. (A propositura da doutrina quanto à tese intermediária é a que mais se coaduna com o que se denomina modernamente de princípio da proporcionalidade), Devendo prevalecer, destarte, sobre as radicais".

            3.4 Corrente da prova ilícita pro reo

            A prova que venha a ser obtida por meios ilícitos, em matéria penal, quando favorável ao acusado, ou seja, pro reo, vem, sistematicamente, sendo acolhida com calmaria não apenas junto aos doutrinadores como também à jurisprudência, em obediência ao direito de defesa e ao princípio do favor rei. Como se vê, essa posição suaviza, indubitavelmente, o rigorismo da não aceitação incondicional das provas ilícitas. Nessas hipóteses o sujeito encontrar-se-ia em circunstância de verdadeiro estado de necessidade, que é umas das causas, como sabemos, de exclusão da antijuridicidade, vendo-se compelido ao uso de prova ilícita em defesa da sua liberdade.

4. PROVA ILÍCITA NO PROCESSO – CONSEQÜENCIAS

            Uma vez no bojo do feito a prova obtida por meio ilícitos deverá ser de lá desentranhada, visto que sendo inadmissível a sua produção pela Constituição pátria, como já salientado anteriormente, não pode ser considerada como prova, juridicamente falando.

            Ela inidônea e imprestável para servir de base a uma decisão judicial para todos os efeitos. Ineficaz, portanto. Se não for desentranhada do processo, deve ser totalmente desconsiderada para efeito de decisão, sob pena de se macular, irremediavelmente, todo o processo judicial. A decisão judicial que tenha por sustentáculo provas ilícitas desfavorável ao réu é totalmente nula e passível de desconstituição via revisão criminal.

            O nosso Código de Processo Penal é silente quanto às conseqüências da introdução de provas ilícitas no processo. Entretanto, o Código de Processo Penal Militar, mais especificamente no seu art. 375, preceitua que deverão ser desentranhadas do processo as correspondências particulares obtidas por meios criminosos.

5. INTERCEPTAÇÕES E GRAVAÇÕES NÃO AUTORIZADAS

            O renomado HUMBERTO THEODORO JÚNIOR [10], ao tratar do tema em recente artigo, invocando a Carta Magna, afirma com muita propriedade que "entre as garantias fundamentais a Constituição inclui a vedação ao uso em processo de "provas obtidas por meios ilícitos" (art. 5º, inc. LVI). E entre estas o problema mais freqüente e complexo refere-se à tutela, também fundamental, à inviolabilidade do sigilo da correspondência e da intimidade (art. 5º, XII e X)".

            Continuando, leciona o insigne mestre que "a vedação de provas obtidas por meio de escuta e gravação de comunicações telefônicas foi categoricamente proclamada pela Carta Magna, que somente a excepcionou para a investigação do processo criminal e mediante prévia autorização judicial. No cível, portanto, jamais se poderia utilizar, como prova lícita, a obtida por meio de interceptação telefônica".

            A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem, reiteradamente aceitando como lícita a prova sustentada em gravação feita por um dos interlocutores. Vejamos uma dessas decisões:

            "PROCESSUAL – GRAVAÇÃO DE CONVERSA AUTORIZADA POR UM DOS INTERLOCUTORES – CONTROVÉRSIA – 1. A jurisprudência desta Corte tem firmado o entendimento de que a gravação de conversa por um dos interlocutores não configura interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal. 2. Para se verificar se houve a efetiva autorização ou não por parte do ora paciente, necessária seria a realização de dilação probatória, o que não se admite nesta via constitucional. 3. Não conheço do Habeas Corpus. (STJ – HC 14336 – RJ – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 18.12.2000 – p. 00224)"

            O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, também vem decidindo nessa mesma direção.

            "PROVA – Licitude. Gravação de telefonema por interlocutor. É lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista. (STF – HC 75.338-8 – RJ – TP – Rel. Min. Nelson Jobim – DJU 25.09.1998)"

            Essa posição, entretanto, não é aceita de maneira pacífica na Excelsa Corte. Entende alguns de seus membros, dentre eles o eminente CELSO DE MELLO [11] que as gravações feitas por um dos interlocutores, sem o prévio assentimento e conhecimento do outro é imprestável para servir de prova em processo judicial. Assevera o notável ministro que "a gravação de conversação com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento – precisamente por realizar-se de modo sub-reptício – envolve quebra evidente de privacidade, sendo em conseqüência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio. O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de que a conversação que mantém com outrem está sendo objeto de gravação atua, a meu juízo, como causa obstativa desse meio de prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade (CF, art. 5º, X) desautoriza o valor probante do conteúdo de fita magnética que registra, de forma clandestina, o diálogo mantido com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado. A gravação de diálogos privados, quando executada com total desconhecimento de um dos seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando o órgão da acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório".

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Considera a Constituição da República de 1988, de maneira categórica, serem inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Não obstante assim serem consideradas, a Constituição Federal não estabelece as conseqüências que resultam da circunstância de apesar do impedimento, a prova ter sido acolhida, vindo a introduzir-se no feito processual.

            Sendo as provas ilícitas, constitucionalmente consideradas como inadmissíveis, não podem ser tidas como prova em processo judicial. Como bem salienta ADA PELLEGRINI GRINOVER [12]: "trata-se de não-ato, de não-prova, que as reconduz à categoria da inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas; não têm aptidão para surgirem como provas, daí sua total ineficácia".

            Entendemos, portanto, que a noção de inadmissibilidade probatória encontra-se intimamente acoplada à questão da validade e eficácia dos atos processuais. Atua de forma abreviada, atalhando o acesso, no processo, do ato irregular. Assim deve abranger, não só o acesso jurídico da prova nos autos processuais, mas do mesmo modo sua admissão material nos feito, o que viria a impedir, com isso, influências indesejáveis sobre o convencimento do órgão judicante, seja ele monocrático ou colegiado. Por sua vez, a nulidade obetiva a extrair as conseqüências de um ato que venha a ser praticado de modo irregular.

            Não podemos esquecer, contudo, que a jurisprudência de nossas cortes, notadamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, têm esteado que a prova ilícita não gerará a nulidade dos autos processuais, se o decreto condenatório não estiver edificado unicamente na prova ilícita. Como se vê, a simples alusão, na decisão, sobre a existência de outras provas, capazes de ensejar uma condenação, por si só seria satisfatório para arredar a nulidade do feito.

            É o que entendemos.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            1. GRINOVER, Ada Pellegrini, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho – As Nulidades no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição.

            2. GRECO FILHO, Vicente – Manual de Processo Penal, Editora Saraiva, 4ª edição.

            3. NERY JR, Nelson – Proibição da prova ilícita, 4ª edição, São Paulo, 1997.

            4. THEODORO JÚNIOR, Humberto – A Gravação de conversa telefônica como meio de prova, www.oab-mg.org,br

            5. PEDROSO, Fernando de Almeida – Prova penal, Rio de Janeiro, AIDE, 1994, p. 163, e Processo penal: O direito de defesa: Repercussão, amplitude e limites, Rio de Janeiro, Forense, 1986

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NOTAS:

            01 As Nulidades no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 6a Edição.

            02 Manual de Processo Penal, Editora Saraiva, 4a edição.

            03 Obra citada.

            04 A Gravação de conversa telefônica como meio de prova – www.oab-mg.org,br

            05 Obra citada.

            06 Prova penal, Rio de Janeiro, AIDE, 1994, p. 163, e Processo penal: O direito de defesa: Repercussão, amplitude e limites, Rio de Janeiro, Forense, 1986

            07 A eficácia dos atos processuais à luz da Constituição Federal, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 37, jun. 1992

            08 Ação penal n. 307-3 – Distrito Federal – voto (preliminar sobre ilicitude da prova)

            09 Proibição da prova ilícita, 4ª edição, São Paulo, 1997.

            10 Prova – Princípio da verdade real – Poderes do juiz – Ônus da prova e sua eventual inversão – Provas ilícitas – Prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (dna) – publicada na revista brasileira de direito de família nº 03 – out-nov-dez/1999, pág. 5

            11 Ação penal n. 307-3 – Distrito Federal – voto (preliminar sobre ilicitude da prova)

            12 Obra citada
 

 

 Referência  Biográfica

José Olindo Gil Barbosa  –  Juiz de Direito, titular da Comarca de Angical do Piauí (PI), pós-graduado em Direito Processual


Assédio Moral no meio ambiente do trabalho

0

* Mara Vidigal Darcanchy –

SUMÁRIO: Resumo. – Abstract. – 1. Conceito –2. O assédio moral no mundo jurídico – 3. O trabalho e o assédio – 4. Conseqüências do assédio moral para o trabalhador – 4.1. O nexo causal – 4.2. Síndrome de Burnout – 5. Os Valores Morais. – Conclusão.

Resumo

O mundo neoliberal que se instalou nas últimas décadas acirrou um antigo problema nas relações sociais e, conseqüentemente, nas relações jurídicas: o assédio moral. Desde que o homem sobrepujou o seu semelhante, o assédio esteve presente, manifestando-se em suas variadas formas. No entanto, é na sociedade competitiva, que vozes se fazem ouvir contra essa forma de conduta. A informação permite que cada vez mais as pessoas saibam de seus direitos e lutem por eles. Assim, o assédio moral, embora seja um problema imanente à sociedade, ganha destaque nas discussões em todos os âmbitos, social, médico, psicológico e, como não poderia deixar de ser, no Direito, este instituído pelos homens para normatizar a sociedade. O objetivo deste artigo, resultado de pesquisa bibliográfica é mostrar como estão as discussões a respeito desse assunto, presente no cotidiano de todos os cidadãos. Embora a referência inicial seja da França, a abordagem limita-se ao processo no Brasil. Verificou-se que apesar das discussões, denúncias, leis e jurisprudência, falta ainda um componente essencial para que se supere este problema, falta a consciência do fato pelo cidadão e pela sociedade.

Palavras-chave: assédio moral/ relações sociais/ lei/ consciência/ justiça.

Abstract

The neoliberal world that was installed in the late decades exacerbated an old issue in the social relationships and, consequently, in the legal relationships: the moral molestation. Since man surpassed its fellow creatures, the moral molestation has been present, revealing itself in several ways. However, it is in the competitive society that voices are to be heard against this way of behavior. The information allows that more and more, people know their rights and fight for them. Then, the moral molestation, despite of being an intrinsic problem to society, gains prominence in discussions in all social, medical, psychological scopes, and, as it could not be otherwise, in Law, instituted by men to normalize the society. The purpose of this paper, as a result of bibliographical research, is to show how discussions about this subject are, present in all citizens quotidian. Although the initial reference is in France, the approach limits itself to the process in Brazil. It was verified that in spite of the discussions, denunciations, laws and jurisprudences, it still lacks an essential component for overcoming the problem: lack of conscience to the fact by the citizen and by the society.

Key-words: moral molestation/ relationships / law / conscience/ justice.

 


1. Conceito

 

Nos últimos anos, um problema social tem sido a tônica das discussões de vários setores da sociedade, profissionais, advogados, médicos e psicólogos: o assédio moral. Embora exista em todas as relações sociais, desde os primórdios da humanidade, esse tipo de ação passou a ser divulgado, principalmente, a partir da obra de Hirigoyen1 , a qual detectou, que cada vez mais, na competitividade do mercado, pode-se observar esse fenômeno e constatar seus efeitos perversos, que vão da baixa auto-estima, a doenças físicas, psíquicas e até mesmo à morte.

De acordo com Marie-France Hirigoyen assédio moral no trabalho é:

“Toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.”2

Também pode-se esclarecer o assédio moral como:

“Exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações de humilhações repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comum em relações hierárquicas autoritárias, onde (sic) predominam condutas negativas e uma relação aética de longa duração de um ou mais chefes dirigida a um subordinado, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização.”3

E ainda, conforme conceituam Patrícia Piovesan e Paulo César Rodrigues:

“Assédio moral é todo comportamento abusivo (gesto, palavra e atitude) que ameaça, por sua repetição, a integridade física ou psíquica de uma pessoa. São microagressões, pouco graves se tomadas isoladamente, mas que, por serem sistemáticas, tornam-se destrutivas.”4

O assédio moral é uma forma de coação social, que pode instalar-se em qualquer tipo de hierarquia ou relação social que se sustente pela desigualdade social e autoritarismo. Disso decorre a afirmação de que existe desde os primórdios da civilização humana.

Nos últimos anos esse fenômeno tem levado à banalização da violência no trabalho, tal é a sua prática no cotidiano, como se fosse imanente ao próprio trabalho, ou quiçá, às relações sociais. Se assim fosse, a lógica de que o “homem é o lobo do homem”, de Thomas Hobbes, estaria mais atual do que nunca. No entanto, é necessário observar que essa lógica está político-social e economicamente contextualizada, por isso não pode ser vista como natureza do homem.

A prática do assédio moral traz implícitas situações em que a vítima sente-se ofendida, menosprezada, rebaixada, inferiorizada, constrangida, ultrajada ou que de qualquer forma tenha a sua auto-estima rebaixada por outra. Esse estado de ânimo traz conseqüências funestas para as vítimas, daí a necessidade de se conhecer bem o quadro e tratá-lo juridicamente, defendendo assim aqueles que são vítimas de pessoas opressoras, as quais de alguma forma têm o poder de coagi-las no seu local de trabalho ou no exercício de suas funções.

2. O assédio moral no mundo jurídico

Embora, como já se frisou, o assédio moral seja inerente ao aparecimento da civilização humana, o tema é recente como foco de discussões no Brasil, e mesmo nos demais países, mas o fenômeno expande-se de tal forma que países como França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Austrália e Suécia já estão inserindo em suas legislações dispositivos para a redução e punição dos casos em outros como Chile, Uruguai, Portugal, Suíça e Bélgica há Projetos de Lei.5

No Brasil, a primeira matéria sobre o assunto foi publicada no jornal Folha de São Paulo, em 25 de novembro de 2000, como resultado da pesquisa realizada pela Dra. Margarida Barreto6 .

No mesmo ano a Editora Bertrand Brasil publicou o livro de Hirigoyen que denuncia o fenômeno, notadamente nos países europeus. A partir desse momento o tema passou a ser discutido por vários setores da sociedade, principalmente os sindicatos de trabalhadores e, muitas causas já foram ganhas devido a esse tipo de agressão contra a pessoa.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que fez uma pesquisa em diversos países desenvolvidos tais como a Finlândia, Alemanha, Reino Unido, Polônia e Estados Unidos, os indicadores sobre as conseqüências do assédio moral são funestas para o mundo. Segundo a referida pesquisa, no modelo de globalização, gerenciado pelo neoliberalismo as condições opressivas de trabalho levam a inúmeros problemas de ordem social, psíquica e emocional.

Nos últimos quatro anos muito se tem discutido e algumas ações já têm sido desenvolvidas para reprimir o assédio moral, mas estas medidas ainda são insuficientes. É preciso que o tema se mantenha à tona e que as vítimas manifestem-se: reagindo, denunciando e evitando o agravamento do problema.

Já há muitos casos de empresas que foram punidas por assédio moral, bem como há aprovação de leis municipais e estaduais7 , porém a eficácia jurídica só se aplica diante dos casos denunciados e comprovados.

Algumas situações previstas no artigo 483 da Consolidação das Leis de Trabalho, relativas à dispensa indireta podem corresponder à condutas que se configuram em assédio moral, uma vez que têm a mesma característica de não demitir o empregado, mas tratá-lo de uma forma tal que acabe fazendo com que ele mesmo acabe sentindo-se obrigado a pedir a própria demissão. Senão vejamos:

“Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;(…); h) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.(…).”

Entretanto, sabe-se que a solução do problema não está apenas no número de dispositivos legais, mas sim na conscientização de todos para tamanha chaga social.

3. O trabalho e o assédio

O substantivo trabalho está associado ao latim vulgar “tripaliare”, que significa torturar e do latim clássico “tripalium”, antigo instrumento de tortura. No início da humanidade quando os homens ainda viviam em igualdade, sem propriedade privada e sem hierarquia econômica, trabalhar era uma atividade de sobrevivência, associada a outras tantas que se desenvolviam naturalmente.

Mas, a partir do momento em que foi criada a propriedade privada e estabeleceu-se uma relação de poder e hierarquia, na qual quem trabalhava não era quem detinha o produto, cada vez mais o trabalho aproximou-se do significado de tortura.

No período escravista, o trabalho, principalmente o manual, era vergonhoso e só deveria ser realizado por escravos, considerados objetos, coisas (res), das quais se podia dispor como bem o proprietário quisesse.

Durante a Idade Média, o trabalho passa a ser apregoado como uma forma de alcançar o reino dos céus. Visto que o clero era o intermediário, ao lado da nobreza, entre Deus e os servos, estes deveriam trabalhar para a própria redenção, portanto deveriam ser submissos às condições que lhe eram impostas.

No entanto, a industrialização e o capitalismo instauraram a idéia do trabalho como uma possibilidade para a ascensão humana, defendendo a sociedade de classes como uma sociedade aberta, na qual as condições de mobilidade do indivíduo dependem única e exclusivamente dele.

A partir desse momento histórico reestruturam-se as relações sociais; o homem é alienado do produto do seu trabalho e as condições de trabalho nas oficinas, depois nas fábricas e, modernamente, em todos os âmbitos sociais transformaram-se. O desemprego garante um “exército de reserva” sempre “disposto” a ceder para ficar no emprego.

Este cenário agravado pela competitividade que permeia o mundo globalizado, caracterizado pela escassez de trabalho e excesso de oferta de mão-de-obra, é perfeito para a disseminação do assédio moral, pois a política e o mercado estão marcados por atitudes desumanas e nada éticas, predominando a arrogância e o interesse individual.

O assédio moral instala-se sorrateiramente, sem que a vítima perceba, num processo gradativo de envenenamento psíquico e afetivo da vítima que, aos poucos, reflete-se em seu corpo, podendo levar até a morte.

Dentro de uma empresa, aquele que detém o poder, pelos mais variados motivos expõe seus subordinados, ou uma vítima em particular, a situações cada vez mais estressantes, humilhantes ou constrangedoras, durante o seu período de trabalho. A ação ocorre de maneira repetitiva e prolongada, como a aranha que tece uma teia para aprisionar sua vítima até deixá-la imóvel.

O assédio moral degrada o indivíduo, minando a sua auto-estima e condições físicas e psicológicas para o trabalho. A vítima escolhida é estigmatizada pelo seu agressor que age para que ela passe a ser vista como culpada pelos seus “erros, incapacidade, incompetência, falta de sociabilidade, depressão, alterações de ânimo” e outros comportamentos, até que fique desacreditada e isolada dos demais. Nesse momento seu agressor se satisfaz e escolhe outra vítima.

Por sua vez a vítima, diante da humilhação repetitiva baixa sua auto-estima e, gradativamente, perde sua capacidade para reagir, pois muitas vezes sente-se culpada. Mas, o medo do desemprego, a cobrança social, as responsabilidades levam-na a suportar o assédio, até o momento em que, muitas vezes perde o controle sobre sua vida física, mental e psíquica, entra em depressão e pode chegar até mesmo à morte.

Faz-se necessário lembrar que o trabalhador está sempre do lado mais frágil e ao agressor é mais fácil dissimular suas atitudes, que podem ocorrer de várias formas.

O assédio moral manifesta-se de maneira diferenciada em relação ao sexo masculino e feminino. Tal fato decorre de componentes culturais que podem ser explicados sociologicamente. Em relação às mulheres pode ocorrer em forma de intimidação, submissão, piadas grosseiras, comentários acerca de sua aparência física ou do vestuário. Quanto aos homens, é comum o seu isolamento e comentários maldosos sobre sua virilidade e capacidade de trabalho e de manter a família. Estes são apenas alguns exemplos, mas a cultura oferece elementos variados. São os traços culturais que tipificam um povo, mas podem tornar-se um elemento de sarcasmo contra o indivíduo quando ele está isolado do grupo.

No entanto, é necessário reforçar que não só o indivíduo é vítima do assédio moral. A empresa, de acordo com sua política, pode constituir-se num espaço para este fenômeno, cabendo nesse caso ações coletivas.

Nos grupos, conforme consenso da literatura, é comum: começar reuniões amedrontando os participantes, ameaçando-os de demissão e salientando a facilidade de substituição, mais barata e mais competente; fazer comparações com outros grupos, depreciando o grupo presente; controlar idas e vindas ao banheiro; gritar ordens e repeti-las, como se as pessoas não tivessem capacidade para compreendê-las e executá-las; criticar sempre; cobrar além das possibilidades do grupo, para reafirmar a sua falta de capacidade; exigir que trabalhe fora do horário, comprometendo compromissos particulares; demitir sem causa; desativar área, seção ou departamento sem explicação e criar problemas intra-grupos.

O que se reforça em cada atitude é que se trata de perseguição aberta, que se ressalte, é sempre temida, principalmente em tempos de desemprego, de globalização e de reengenharias.

Os autores que tratam do assunto, demonstram que as frases, gestos ou atitudes tomadas nada tem de profissional, mas de particular, da vontade do agressor. Porém, independente das causas que levam uma pessoa ao assédio moral, graves são as conseqüências para aqueles que são assediados, visto que a qualidade de vida no trabalho é determinante da qualidade de vida em geral.

4. Conseqüências do assédio moral

Uma das conclusões da pesquisa coordenada pela médica do trabalho Margarida Barreto é que esta tortura psicológica que é o assédio moral, se transformou em um problema de saúde pública.

O assédio moral é como uma guerra de nervos travada no interior das empresas. Dependente do trabalho para as suas satisfações morais, sociais, afetivas, psicológicas e materiais, inúmeras pessoas vêem-se à mercê de ditadores, que dificultam ou até mesmo impossibilitam-no de exercer o seu direito de trabalhar e de viver de forma saudável.

Assim, gradativamente, desaparece o equilíbrio físico e psíquico do indivíduo, sem que o veneno que o desencadeou seja visto. Sabe-se, hoje , que a auto-estima é um dos pontos de partida para que o homem seja engajado na vida como pessoa e cidadão, mas submetido a humilhação constante no trabalho sua saúde corre risco e começa a corroer-se pela baixa auto-estima, pelas práticas perversas das relações sociais, como as do trabalho.

Aos poucos, o indivíduo vai perdendo suas forças e luta para manter-se, mas, em geral, a pressão é tanta que os erros, as doenças físicas e emocionais passam a atingi-lo. Suas relações pessoais são afetadas. Após cada doença o assédio moral se acirra, como numa cena de terror. Muitas vezes, quando volta, depois de um afastamento, encontra outro em sua função, ficando até sem lugar para ficar. Outras vezes, o agressor não lhe dá mais trabalhos para que sinta a sua inutilidade. Os colegas têm medo de aproximar-se e serem retaliados, por isso aquele que é agredido fica sozinho.

Agressivos, apáticos, negligentes, preguiçosos, lerdos são rótulos comuns nesse tipo de fenômeno. Com sua auto-estima abalada, as drogas legais ou não (como o álcool) passam a fazer parte de sua vida e a derrocada é rápida e muitas vezes sem chance de recuperação. Mas, como estabelecer um nexo causal entre o assédio moral e as doenças físicas e psíquicas dos trabalhadores?

4.1 O nexo causal

A resposta à pergunta anterior encontra-se na própria lei, na Resolução 1.488/98, do Conselho Federal de Medicina:

“Para o estabelecimento do nexo entre os transtornos da saúde e as atividades do trabalhado, além do exame clínico (físico e mental)) e os exames complementares, quando necessário, deve o médico considerar: – A história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; – O estudo do local do trabalho; – O estudo da organização do trabalho; – Os dados epidemiológicos; – A literatura atualizada; – A ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condições agressivas; – A identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; – O depoimento e a experiência dos trabalhadores; – Os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde”.9

Diante do exposto, fica clara a possibilidade de se estabelecer a relação causal entre o assédio moral e doenças psicológicas e físicas, que venham a surgir ou agravar-se pela exposição constante a humilhações.

Lê-se na Resolução que “o depoimento e a experiência dos trabalhadores” é um dado a ser considerado para estabelecer a relação causal, mas há que se lembrar pontos que permearam este trabalho desde o início, ou seja, o mundo contemporâneo é de competitividade acirrada, a solidariedade esvaiu-se no consumismo e na escassez do neoliberalismo e no lucro sempre. Assim, nem sempre é fácil que outros trabalhadores se exponham como testemunhas, por isso a necessidade de conscientização para que o grupo denuncie, pois o agressor, tendo eliminado sua vítima logo arrumará outra.

4.2 . Síndrome de Burnout

Outra possível conseqüência, muito grave, é a doença ocupacional conhecida como Síndrome de Burnout.10 Uma doença causada pelo estresse extremo no trabalho.

Esta doença caracterizada pelo esgotamento físico, psíquico e emocional, em decorrência de trabalho em condições muito estressantes, provoca distúrbios mentais e psíquicos que tem como efeitos: stress, hipertensão arterial, perda de memória, ganho de peso e depressão entre outros problemas.

A nossa Legislação Previdenciária n. 8.213/91 em seu artigo 20 indica as situações que configuram as doenças profissionais e ocupacionais como acidente do trabalho, a saber:

“Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas: I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I. (…) § 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.”11

5. Os valores morais

É mister acentuar ainda que toda sociedade se baseia em valores que expressam desejos de ordem moral. Não podemos encontrar sequer uma única sociedade ou grupo social que não seja instituído por meio de regras morais, e que, em última instância, não seja pautado por essa determinação. Os seres humanos têm como convenção a estruturação de padrões que institucionalizam até mesmo a condição social das relações entre indivíduos:

“A convencionalidade dos padrões de comportamento sempre impressionou a todos que pensam sobre seres humanos. Como é notório, alguns filósofos propõem neste contexto uma distinção de princípio entre os fatos do meio ambiente físico e os valores da orientação ética.”12

Em outras palavras, os filósofos se debruçaram sobre os aspectos constitutivos de uma ação dos seres humanos. De um lado, o fazer instintivo, natural, necessário e, de outro, a ação humana que nos remete a uma condição moral da atividade social e individual. Dentre muitos filósofos, os quais, na sua grande maioria se referiram a questões éticas, Kant tinha na ação ética um dos seus grandes problemas filosóficos. Assim:

“Temos boas razões para aceitar, segundo princípios transcendentes, uma conformidade a fins subjetiva da natureza nas suas leis particulares, relativamente à sua compreensão para a faculdade de juízo humana e à possibilidade da conexão das experiências particulares num sistema dessa mesma natureza…”13

Isto significa que há uma conformidade ética na condição humana, mesmo que em grande medida a natureza humana esteja submetida a um elemento fundamental que é a mudança. Sem dúvida, Heráclito tinha razão ao afirmar que tudo flui substancialmente na vida e na natureza. No entanto, é preciso salientar o fato de que esta mudança, para angústia da consciência, não é um elemento com o que se possa lidar confortavelmente, ao contrário, uma certa estabilidade se faz necessária.

Daí é possível observar, até mesmo do ponto de vista histórico, o fato de que os valores éticos e morais mudam, mas que sua mudança não é experimentada com a velocidade observada em outros campos da sociedade, como os meios produtivos, a tecnologia, a técnica, etc.

A sociedade necessita de estabilidade quanto aos seus valores éticos. Toda sociedade é estabelecida em conformidade com a ética, em outras palavras, não há sociedade sem ética e sem moral, uma vez que somos seres sociais constituídos de fundamentos morais, isto é, somos seres morais.

De outro lado:

“(…) é assim que, entre os seus muitos produtos, podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas que lhe são adequadas, como se afinal estivessem dispostos para a nossa faculdade do juízo.”14

Valores são fundamentais em qualquer agrupamento social, tornam-se imprescindíveis na medida em que regulam as relações humanas e promovem o processo de comunicação entre indivíduos e a coletividade. No entanto, os valores éticos são em parte uma escolha do processo social, estão relacionados à historicidade dos grupos, em estreita relação com suas experiências humanas, antropológicas e materiais. Assim, os valores são em parte uma escolha que exorta os sujeitos sociais a uma responsabilidade e a um compartilhar das mesmas escolhas, fundamentais para a compreensão ontológica dos próprios indivíduos no contexto em que estão inseridos.

“Ainda que adotemos a distinção entre fatos e valores, creio que temos de reconhecer que é um fato sobre a vida humana que ela é vivida também e essencialmente num ambiente determinado por valores.”15

Ademais, há uma relação paradoxal entre indivíduo e coletivo. Os valores são em grande medida compartilhados pela coletividade, aceitos pelos indivíduos, no entanto, os indivíduos não são totalmente determinados pela coletividade, sua subjetividade faz com que a vontade individual também seja colocada no contexto das escolhas dos valores. Isto significa dizer que a imposição coletiva de valores éticos não é garantia de que os seus indivíduos obedeçam na sua integralidade, ao contrário, há um campo no qual nem mesmo a racionalidade pode impor um controle regulador das ações humanas.

Dessa forma, do ponto de vista moral, a ação dos indivíduos resvala constantemente no consenso coletivo, assim, pode-se determinar objetivamente a transgressão dos valores, ou a sua negação. É aí que certos comportamentos devem passar pelo crivo do juízo moral, uma vez que afeta a conjunto das regras ou fere os princípios conceituais que foram acordados pela coletividade.

Sem um acordo e uma convencionalidade, a sociedade provavelmente perderia sua condição de sociedade, pois o pacto é um fundamento implícito em todos os grupamentos de seres humanos. É bem como imaginarmos que toda negativa aos valores acordados coletivamente seja considerada como uma transgressão moral, ou, em outro sentido, a negativa pode assumir uma conotação de imoralidade. Contudo, nem sempre os valores podem responder de forma justa às aspirações dos indivíduos, mas é preciso formular adequadamente as expectativas quanto à ação dos indivíduos, uma vez que toda atitude, seja natural ou moral, está diretamente relacionada aos demais membros da sociedade.

Em face disso é possível estabelecer parâmetros, em todos os locais e em especial no meio ambiente de trabalho, quanto àquilo que pode ser ou não permitido. Certos valores podem se tornar um consenso a partir das condições do estado de natureza, conforme Kant apresenta, pois é daí que se promulgam valores que se tornam comuns. Com isto, a dor, a humilhação, a privação de toda ordem, a tortura e a precarização de certas condições que devem ser supostamente atendidas, são, em grande medida, valores que atingem a todos e são tanto em conformidade com a vontade coletiva quanto no que tange à vontade dos indivíduos sociais, em sua singularidade.

Este pode ser o parâmetro com o qual se estabeleceriam juízos de valor a respeito da ação dos sujeitos sociais, em suas relações singulares, como é o caso do trabalho. Em certas circunstâncias especiais, o código moral parece não fazer efeito, uma vez que entra em cena a característica básica do humano em permanecer vivo a todo custo. No entanto, em condições aparentemente normais, os indivíduos, no intuito de preservação de sua integridade física e mental, são capazes de reconhecer a necessidade de certas regras que possibilitem uma convivência equilibrada, especialmente no que toca às forças que estão direta ou indiretamente envolvidas no processo laboral.

Evidentemente que a ação moral se torna uma violência praticada por aqueles que imaginam possuir alguma forma de força, em detrimento àqueles que estão em condições inferiores ou indefesos diante da ação, os hipossuficientes. É preciso, então, haver mecanismos de proteção que favoreçam os menos protegidos em situações de fragilidade moral.

Considerações Finais

O homem tornou-se o seu maior adversário. As guerras e a criminalidade denunciam abertamente este fato, mas o assédio moral sorrateiramente abala a base de pessoas no trabalho, sem que a mídia lhe dê o merecido destaque.

O assédio moral é como um inimigo invisível que pouco se pune. Mas, tal estado de coisas pode ser mudado com consciência e solidariedade, caminho sugerido pela psiquiatra Hirigoyen.

O assédio moral é nocivo à saúde do trabalhador e, consequentemente, à da sociedade. É como uma doença que se alastra e que se precisa combater e a arma é a Justiça, que também precisa da solidariedade das pessoas para que possa agir. Testemunhas são necessárias para que algum fato seja dado como verdade. A eficácia jurídica depende da sociedade, precisa de denúncias e de comprometimento.

O combate ao assédio moral pela Justiça é uma questão internacional, portanto, já há um espaço aberto para combatê-lo. Lembramos que a consciência, a percepção da realidade e a luta em grupo estão intrinsecamente ligadas à eficácia jurídica e que o Direito é que garante a estabilidade social e o direito dos indivíduos.

Notas de rodapé convertidas

1. Marie-France HIRIGOYEN é médica psiquiátrica francesa, autora do livro "Harcèlement Moral: la violence perverse au quotidien", traduzido por Maria Helena Hübner, Assédio moral: a violência perversa no cotidiano, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.

2. Marie-France HIRIGOYEN. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral , tradução de Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 17.

3. O que é assédio moral no trabalho. Disponível em www.assediomoral.org, Acesso em 8 ago. 2005.

4. Disponível em www.assediomoral.com.br . Acesso em 24 de agosto de 2004.

5. Vide texto integral no site: http://www.assediomoral.org/site/legisla

6. A Dra. Margarida BARRETO fez a pesquisa para sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, defendida em 22 de maio de 2000, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o título: Uma jornada de humilhações.

7. Atualmente existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios do país. Vários projetos já foram aprovados e, entre eles, destacam-se: São Paulo, Natal, Guarulhos, Iracemápolis (pioneiro), Bauru, Jaboticabal, Cascavel, Sidrolândia, Reserva do Iguaçu, Guararema, Campinas, entre outros. No âmbito estadual, o Rio de Janeiro, que, desde maio de 2002, condena esta prática. Existem projetos em tramitação nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Bahia, entre outros. No âmbito federal, há propostas de alteração do Código Penal e outros projetos de lei.

8. Inclusive muitas empresas têm realizado uma série de atividades, através de vários projetos e programas de incentivo ao bem-estar de seus funcionários, como ginástica, técnicas orientais, etc, o que, independentemente de serem ações que buscam um melhor aproveitamento da mão-de-obra e uma redução dos acidentes de trabalho e conseqüentes custos, não deixam de apresentar um saldo positivo na saúde física e mental do trabalhador.

9. Art. 2º da Resolução n. 1.488/98 do C.F.M.

10. “Burn Out”, expressão inglesa: aquilo que deixou de funcionar, derivado de gíria de rua e significa aquele que se estragou pelo uso.

11. Art. 20 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991.

12. Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? IN FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003, p. 15.

13. Immanuel KANT. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 203.

14. Idem, Ibidem, p. 203.

15. Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? p. 15 .

Referências Bibliográficas

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BRASILIANO, Cristina Ribeiro. Assédio moral no trabalho: liame para doenças profissionais. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2005.

CARTILHA do SINDICATO dos PETROLEIROS do RIO de JANEIRO, s/d.

CASTRO, C. A. P. Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 2000.

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FARIA, J. E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento na transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988.

GUEDES, M. N. Terror psicológico no trabalho. São Paulo: LTR, 2003.

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HELOANI, R. Gestão e organização no capitalismo globalizado/História da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

MENDONÇA, Wilson. Como deliberar sobre questões morais? In FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ZIMMERMMANN, Silvia Maria; SANTOS, Teresa Cristina Dunka Rodrigues dos e LIMA, Wilma Coral Mendes de. O assédio moral no mundo do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2003
 


Referência  Biográfica

Mara Vidigal Darcanchy  –  Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais – Direito do Trabalho – PUC/SP; Ex-bolsista CNPq e CAPES; Especialista em Didática do Ensino Superior e em Direito do Trabalho – USP/SP; Pesquisadora Científica; Professora de Direito do Trabalho na Graduação e Pós-Graduação da UNIB e de Cursos Preparatórios para Concursos e Exame da Ordem e Consultora Jurídica na ÁreaTrabalhista.

Aplicação subsidiária do art. 253, II, CPC no Proc esso do Trabalho: uma tentativa de se evitar a escolha do Juízo

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* William de Almeida Brito Júnior –

 

Resumo: Visando evitar a maliciosa escolha do juízo para o julgamento do processo trabalhista é necessário que se aplique subsidiariamente o artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil.

Palavras-chave: desistência – ação trabalhista – prevenção – competência absoluta


            Estes breves apontamentos que aqui se iniciam têm como escopo analisar a eventual aplicação do artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil no âmbito do processo trabalhista.

 

            O artigo em questão preceitua o seguinte:

            Art. 253. Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza:

            I – (…)

            II – quando, tendo havido desistência, o pedido for reiterado, mesmo que em litisconsórcio com outros autores.

            Tal estudo afigura-se importante, considerando que, para que tal dispositivo seja aplicável ao processo do trabalho, é mister que ele cumpra as exigências previstas no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho (omissão na CLT e compatibilidade do dispositivo do direito comum no âmbito do processo do trabalho).

            Para melhor visualização do debate, entendo por bem transcrever o artigo 769 consolidado:

            Art. 769. Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste título.

            Conforme veremos nas linhas abaixo, a adoção do artigo 253, II, CPC visa por fim a uma perniciosa prática corrente na justiça trabalhista: o não comparecimento do reclamante à audiência inicial, com o consectário arquivamento do processo, nos termos do artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho, e a repropositura de ação idêntica, para que seja redistribuída a outro juízo que tenha outro entendimento sobre a matéria.

            Este fato se constitui na abominável tentativa de escolha do juízo para apreciação da reclamação trabalhista. A "estratégia processual" em questão representa na verdade um ato de profunda má-fé por parte do reclamante e evidente desrespeito à ética processual e profissional por parte de seu causídico, podendo sujeitar o responsável à condenação às penas previstas em caso de litigância de má-fé, conforme previsto nos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil.

            Isso ocorre pelo fato de que muitos advogados já conhecem o entendimento pessoal de cada magistrado acerca da solução jurídica dada à matéria que está sendo levada a juízo. Assim, quando percebem que a petição inicial é distribuída para um determinado juiz que possui entendimento diverso do seu, o reclamante é instruído a não comparecer à audiência inicial para que, dessa maneira, o processo seja arquivado (art. 844, CLT) e, assim, possa ser reproposta nova demanda, nos idênticos termos do processo arquivado.

            Esta realidade fática é fielmente retratada por Cândido Rangel Dinamarco, senão vejamos:

            A desistência e ulterior repropositura da demanda é um expediente (abusivo e inescrupuloso – José Rogério Cruz e Tucci) de que às vezes lançam mão os demandantes, em busca de melhor sorte. Não obtida a liminar em um foro ou em uma vara, vamos tentar em outra. Distribuída a causa a um juiz que vem decidindo aquela mesma tese de modo não conveniente ao autor, vamos ver se da segunda vez a distribuição será mais feliz. Isso acontece em relação a causas portadoras de teses que se repetem, com em matéria tributária. [01]

            Para afastar essa prática aviltante, o legislador federal editou a Lei n° 10.358 de 27 de dezembro 2001, que incluiu o inciso II ao artigo 253 do Código de Processo Civil. Trata-se de lei editada no âmbito da denominada "reforma processual", que consiste em um conjunto de leis que vem alterando o Código de Processo Civil de maneira gradativa e fracionada.

            Assim, o Código de Processo Civil, após a alteração legislativa, determina que se for reproposta ação idêntica àquela que foi arquivada, ela obrigatoriamente será distribuída por dependência ao juízo que inicialmente conheceu do processo.

            Comentando o dispositivo em questão, trazemos a abalizada lição de Nelson Nery Júnior:

            A norma determina seja feita a distribuição por dependência, quando se tratar de repropositura da ação cujo processo tenha sido extinto anteriormente por desistência (CPC 267 VIII). Mesmo que o autor desista da ação, o juízo para o qual foi distribuída a ação extinta continua competente para processar e julgar a mesma ação quando for reproposta, ainda que o autor venha acompanhado de outros litisconsortes. [02]

            Nas sábias palavras de Miguel Reale a competência determinada pela dependência é funcional sucessiva e, portanto, absoluta. [03] Assim, o juízo que inicialmente tomou conhecimento do processo arquivado (realizou qualquer ato processual) será o competente para conhecer e apreciar a ação reproposta nos idênticos termos da outra.

            Alexandre Freitas Câmara, invocando lições de Chiovenda, afirma tratar-se do fenômeno da competência funcional ocorrendo em processos diferentes, senão vejamos:

            Há, ainda, o fenômeno da competência funcional ocorrendo entre processos diferentes, quando todos eles são ligados por uma mesma pretensão (ou, como dizia Chiovenda, em trecho de sua obra a pouco citado, a uma mesma vontade de lei). É o que ocorre (omissis) ainda, do juízo para que se distribuiu o primeiro processo quando, extinto este por desistência da ação, pretender o autor ajuizar novamente a mesma demanda, sozinho ou em litisconsórcio (omissis). Em todas estas hipóteses tem-se um juízo competente também para todos os demais processos ligados àquele primeiro por serem destinados à atuação de uma mesma vontade da lei. [04]

            No mesmo sentido do entendimento destes ilustres juristas acima referidos, Cândido Rangel Dinamarco em sua festejada obra "A Reforma da reforma" faz as seguintes ponderações:

            Mas a prevenção de que cuidava o art. 253 era somente aquela relativa a outras causas, desde que conexas à primeira, e não à própria primeira causa, quando reproposta. Ainda assim, certos setores da jurisprudência evoluíram no sentido de considerar prevento o juízo da primeira propositura não somente para o processo que lhe foi distribuído e para as causas conexas, mas também para a própria causa primeira, quando o demandante desistisse e depois voltasse a propô-la. [05]

            Seguindo esta trilha doutrinária, acerca da aplicabilidade do artigo 253, II, Código de Processo Civil ao processo do trabalho, Wagner D. Giglio preleciona, in verbis:

            Deverão ser distribuídos por dependência os feitos de qualquer natureza que se relacionarem, por conexão ou continência, com outros que já houverem sido distribuídos, ainda que tenha ocorrido desistência, segundo a regra inserta no Código de Processo Civil, art. 253 [06]

            Conforme mencionado acima por Cândido Rangel Dinamarco, nossos tribunais, apesar da ainda recente inovação legislativa, já têm se posicionado neste sentido, consoante se vislumbra de julgado extraído do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:

            Voltando ao tema, concluímos que a competência fixada continua a prevalecer, mesmo em relação a processos encerrados. Isso quer dizer, como foi anteriormente frisado, que a competência para julgar os processos entre o mesmo reclamante e reclamado será sempre do mesmo juízo, ressalvadas as hipóteses do art. 87 do CPC, que cuida da exceção à regra. Além do posicionamento jurídico, há o aspecto prático destas conclusões que, se forem adotadas, impedirão a avalancha de reclamações repetidas, muitas vezes fraudando a própria "distribuição", quando alguns reclamantes manipulam o sistema, escolhendo, por quaisquer razões, a vara do trabalho que irá julgar a sua reclamação.(MS n.º 546/2001; Juiz Bolívar Viegas Peixoto; TRT 3ª Região; DJMG 26/04/2002; p.4)

            Este julgado apenas ilustra a orientação jurisprudencial pacífica do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais), tendo em vista que referido Tribunal já até editou a Orientação Jurisprudencial n° 01, litteris:

            ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 01 ORIGEM: TRT/SDI 1ª SEÇÃO ESPECIALIZADA FONTE: DJMG 17.07.2004.

            PREVENÇÃO. ARQUIVAMENTO DA RECLAMAÇÃO. DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA.

            O arquivamento da reclamação equivale à desistência da ação e torna prevento o Juízo, para os efeitos do inciso II do art. 253 do CPC. [07]

            E não há que se falar em inaplicabilidade deste dispositivo ao processo do trabalho. O artigo 769 do texto consolidado, prevendo hipóteses de omissão, invoca a subsidiariedade do direito processual comum, desde que este não seja incompatível com as normas da CLT.

            Tal artigo consolidado é plenamente aplicável, razão pelo qual cito as lições de Délio Maranhão:

            Processo comum com fonte subsidiária. Nos casos omissos diz o art. 769 da Consolidação – o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, desde que a norma do direito comum não seja incompatível com os princípios do direito especial. [08]

            Primeiramente, para adequação da subsidiariedade do Código de Processo Civil no processo do trabalho, há que existir uma omissão legislativa acerca da matéria.

            No caso em apreço a omissão na lei está patente, pois a legislação trabalhista não possui qualquer dispositivo que trata da distribuição por dependência de ação idêntica ao juízo em que foi distribuída a primeira petição inicial, na hipótese de não comparecimento do reclamante à audiência inicial.

            Configurada a omissão, passamos a analisar o requisito da compatibilidade do dispositivo legal com o processo trabalhista. Pois bem, entendemos ser perfeitamente compatível com o processo do trabalho os ditames previstos no artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil, por óbvios motivos de ética processual e profissional.

            Tal preceito legal visa evitar a malfadada escolha de juízes para o julgamento da lide. Este preceito é profundamente salutar e serve como um instrumento de moralização da atuação processual; de adequação aos preceitos do artigo 14 do Código de Processo Civil e da moderna tendência à busca do processo justo.

            Dessarte, não se visualiza qualquer incompatibilidade do artigo 253, II, CPC com o processo trabalhista, mas sim o contrário, pois tal aplicação subsidiária serve como medida de aperfeiçoamento e modernização do processo do trabalho.

            Além do mais, o não comparecimento do reclamante à audiência possui a natureza jurídica de "desistência do pedido". Trata-se da prática de ato incompatível ao desejo de litigar. Aliás, esta é a opinião esposada por Valentin Carrion:

            Contestada a ação, se o autor não comparecer para prestar depoimento, arquiva-se a reclamação, caso o requeira o réu; a ação poderá ser renovada pelo autor. Se o réu o requerer, a ação terá prosseguimento, pois o contrario seria permitir a desistência da ação pelo autor, depois de contestado o feito. [09]

            Considerando a ausência injustificada do reclamante à audiência inicial como uma verdadeira "desistência do pedido" deduzido na inicial, tal fato atrai a incidência do artigo 253, II, do Diploma Processual Civil.

            Tais as razões acima aventadas, torna-se imperiosa a aplicação do artigo 253, II, Código de Processo Civil ao processo do trabalho, por força do permissivo legal contido no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

            Apesar da alteração legislativa conferida ao artigo 253, II, do Código de Processo Civil ser recente, entendemos por bem que a jurisprudência pátria evolua no sentido de se aplicar este artigo no processo trabalhista, a exemplo do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região ao editar a mencionada Orientação Jurisprudencial n° 01, evitando-se, assim, a maliciosa e inescrupulosa escolha do juízo para se apreciar a demanda do reclamante.

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BIBLIOGRAFIA

            CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003.

            CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

            DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2002.

            GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2002.

            NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 2003.

            SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 1997

            REVISTA DO TRIBUNAIS, 538/31

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Notas

            01 A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2002.

            02 Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 2003.

            03 Revista do Tribunais, 538/31.

            04 Lições de Direito Processual Civil, Vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003. p.72

            05 Op. cit. p. 74.

            06 Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2002

            07 Disponível em http://www.mg.trt.gov.br. Acesso em 16.ago.2004.

            08 Sussekind Arnaldo.. .[et. al.] – Instituições de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 1997

            09 Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2004
 

 


 

Referência  Biográfica

William de Almeida Brito Júnior  –  Procurador do Estado de Goiás, membro do Conselho de Procuradores da PGE/GO, pós-graduando em Direito Constitucional e Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás

Honorários Advocatícios e sua natureza jurídica

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 * Kiyoshi Harada  –  

            Importante decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário de que foi Relator o Ministro Marco Aurélio.

            Abandonando a interpretação literal do § 1º-A, do art. 100 da CF, que define os créditos de natureza alimentícia, o eminente Ministro, prolator do voto condutor, classificou a verba honorária, resultante de sucumbência, como sendo de natureza alimentícia abrangida pelo caput do art. 100 da Carta Política.

            O argumento invocado para assim decidir foi no sentido de que os salários, vencimentos, proventos etc., enumerados no § 1º-A referido, dizem respeito a relações jurídicas específicas, mas que não afastam outras relações que resultam, por exemplo, do vínculo liberal como os honorários advocatícios, que têm a mesma finalidade dos primeiros, ou sejam, destinam-se a prover a subsistência própria dos advogados e das respectivas famílias.

            De fato, a enumeração do § 1º-A retro mencionado não exaure o elenco de percepções de verbas alimentícias. Tivemos a oportunidade de escrever que ‘alimento, em sentido amplo, abarca toda a percepção em dinheiro ou in natura relativa às despesas ordinárias e extraordinárias a que tem direito o alimentado: habitação, transporte, vestuário, sustento, saúde, educação, instrução e lazer. Não se limita a salários e vencimentos’ (Cf. nosso Desapropriação doutrina e prática, 6ª ed.. São Paulo: Atlas, 2006, p. 136).

            Segue a transcrição do voto proferido pelo Min. Relator do RE nº 470407-DF:

            RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

            RELATÓRIO: O Superior Tribunal de Justiça negou acolhida a pedido formulado em recurso ordinário em mandado de segurança, ante os fundamentos assim sintetizados (folha 338):

            PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DECORRENTES DE SUCUMBÊNCIA. PRECATÓRIO. ART. 100, § 1-A, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

            1. O art. 100, § 1-A, da Constituição Federal dispõe: "Os créditos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado".

            2. A ratio essendi do art. 1º da Emenda nº 30 dirigi-se exatamente àquelas verbas necessarium vitae, que são devidas e em relação às quais as partes não podem praticamente sobreviver, razão pela qual mereceram um tratamento constitucional privilegiado.

            3. Deveras, a verba decorrente dos honorários de sucumbência – cuja retribuição é aleatória e incerta – dependente do êxito da parte a qual patrocina, não podem ser considerados da mesma categoria dos alimentos necessarium vitae previstos na Carta Magna.

            4. Recurso ordinário em mandado de segurança improvido.

            Foram interpostos quatro embargos de declaração, sendo todos desprovidos pelo Colegiado (folha 378 a 385; 398 a 405; 435 a 444; 458 a 467).

            No recurso extraordinário de folha 469 a 478, no qual se evoca a alínea "a" do permissivo constitucional, o recorrente articula com a transgressão dos artigos 5º, cabeça e incisos XXXV, LV e LXIX, 37 e 93, inciso IX, da Carta Política da República. Alega ter a Corte de origem deixado de analisar, mesmo após o julgamento dos sucessivos declaratórios, "nove questões constitucionais que haveriam sido regularmente suscitadas naquele recurso ordinário de ampla devolutividade" (folha 473). Assevera que, nos quatro acórdãos relativos aos embargos, registrou-se, superficialmente, a ausência de vícios no julgado, mas sempre considerando-se o envolvimento de recurso especial e não ordinário, como era o caso. Afirma que os acórdãos possuem o mesmo teor, sendo o último mera reprodução dos dois anteriores, o que confirmaria a negativa de prestação jurisdicional apontada e a inobservância ao devido processo legal.

            O recorrente esclarece haver impetrado mandado de segurança contra ato de natureza administrativa de competência privativa do Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mas praticado ilegalmente e com abuso de poder por servidores da Divisão de Precatórios da Corte, que consistiu na inclusão do precatório na listagem ordinária para pagamento parcelado. Salienta tratar-se de crédito de natureza alimentícia, referente a honorários advocatícios e que, no exame do mandado de segurança, não se apreciou a matéria crucial, relativa "à anulação do ato administrativo irregularmente praticado por servidora que usurpara os poderes hierárquicos do próprio Presidente do Tribunal, ao fazer a extemporânea e equivocada classificação, ignorando-se a existência de um agravo regimental engavetado – para enveredar-se pelos caminhos da interpretação teleológica do novel § 1º-A do artigo 100, que fora acrescido ao texto constitucional pela recente Emenda nº 30, de 13.09.2000" (folha 476). A partir de então, prossegue o recorrente consignando que o enfoque dado à questão foi o concernente à natureza da verba honorária, deixando-se de lado aquele efetivamente impugnado por meio do mandado de segurança.

            A União apresentou as contra-razões de folha 480 a 487, ressaltando o caráter protelatório do extraordinário, por pretender o reexame de matéria exaustivamente analisada na esfera ordinária. Evoca o Verbete nº 284 da Súmula desta Corte, aludindo à deficiente fundamentação do recurso. Entende estar a matéria restrita à interpretação de normas infraconstitucionais e aponta o não-cabimento do recurso contra decisão referente ao processamento de precatório.

            O recurso foi admitido mediante o ato de folhas 489 e 490.

            A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 499 a 501, preconiza o provimento do recurso, considerando o caráter alimentar dos honorários.

            É o relatório.

            VOTO: Na interposição deste recurso, foram observados os pressupostos gerais de recorribilidade. A peça, subscrita por profissional da advocacia que atua em causa própria, restou protocolada no prazo assinado em lei. A notícia do acórdão atinente aos últimos embargos foi publicada no Diário de 22 de agosto de 2005, segunda-feira (folha 468), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 6 de setembro imediato, terça-feira (folha 469). Os documentos de folha 471 evidenciam a regularidade do preparo.

            Cumpre frisar, por oportuno, que, quando da interposição dos diversos embargos declaratórios, sempre esteve em questão, considerado o fenômeno da interrupção, o objeto respectivo, ou seja, o prazo referente ao extraordinário. No mais, se de um lado é certo que a Corte de origem não emitiu entendimento sobre as matérias veiculadas nos sucessivos embargos declaratórios, de outro, o tema de fundo propriamente dito deste extraordinário, ou seja, a natureza jurídica dos honorários advocatícios para efeito de expedição de precatório foi objeto de debate e decisão prévios.

            A Corte de origem teve como exaustiva a definição de crédito de natureza alimentícia constante do artigo 100, § 1º-A, da Constituição Federal, apenas tomando sob tal ângulo salário, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenização por morte ou invalidez, fundada na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado. O enfoque não merece subsistir. Se por um aspecto verifica–se explicitação do que se entende como crédito de natureza alimentícia, por outro, cabe concluir pelo caráter simplesmente exemplificativo do preceito. É que há de prevalecer a regra básica da cabeça do artigo 100 e, nesse sentido, constata-se a alusão ao gênero crédito de natureza alimentícia. O preceito remete necessariamente ao objeto, em si, do crédito alimentar visado. Ora, salários e vencimentos dizem respeito a relações jurídicas específicas e ao lado destas tem-se a revelada pelo vínculo liberal. Os profissionais liberais não recebem salários, vencimentos, mas honorários e a finalidade destes não é outra senão prover a subsistência própria e das respectivas famílias.

            Conforme explicitado no voto do relator no Tribunal Regional Federal, não sendo sufragado pela ilustrada maioria, o precatório, embora rotulado de comum, versa apenas os honorários advocatícios. Então, há de se concluir pelo caráter alimentar, ficando afastado o enquadramento até aqui prevalecente. Ao julgar, perante a Segunda Turma, o Recurso Extraordinário nº 170.220-6/SP em 19 de maio de 1998, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 7 de agosto de 1998, tive a oportunidade de consignar que a jurisprudência consolidou-se no sentido de dar-se ordem especial de precatórios quando envolvida prestação alimentícia, em que pese o artigo 100 da Constituição Federal conter expressão, em bom vernáculo, excluindo o hoje famigerado sistema de execução.

            Consoante o disposto na Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, os advogados têm direito não só aos honorários convencionados como também aos fixados por arbitramento e na definição da sucumbência – artigo 22 – sendo explícito o artigo 23 ao estabelecer que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido a seu favor. Repita mais uma vez que os honorários advocatícios consubstanciam, para os profissionais liberais do direito, prestação alimentícia. Daí se considerar infringido o artigo 100 da Constituição Federal, valendo notar que, no recurso extraordinário, embora explorado em maior dimensão o vício de procedimento, revela-se inconformismo com o julgamento no que tomada a parcela como a indicar crédito comum.

            Provejo o recurso extraordinário para conceder a segurança e determinar a retificação da classificação do precatório, tomando-o como de natureza alimentícia com as conseqüências próprias’ (DJ de 19-5-2006, Ata nº 13 de 9-5-2006).

            Com se vê, se a verba de sucumbência pertence ao advogado, nos termos do Estatuto da Advocacia, independentemente, de essa verba representar uma retribuição aleatória e incerta, dependente do êxito da parte para a qual patrocina o advogado, não se pode negar a ela a natureza alimentícia, pois o profissional liberal não percebe salários, nem vencimentos, mas vive exclusivamente de honorários contratuais e sucumbenciais. Daí o absoluto acerto da decisão supra transcrita.
 
 


Referência  Biográfica

Kiyoshi Harada  –  Advogado em São Paulo (SP), professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos

Os efeitos da oposição de Embargos de Declaração

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* Luiz Carlos Américo dos Reis Neto –  

           Antes de tecer qualquer consideração acerca dos efeitos da oposição dos embargos de declaração, torna-se imperiosa a análise da sua natureza jurídica.

            Neste sentido, pode-se afirmar que os embargos de declaração, para efeitos da legislação processual pátria, assumem natureza essencialmente recursal, nos exatos termos do que preconiza o artigo 496, inciso IV do Código de Processo Civil brasileiro, in verbis:

            "Art. 496. São cabíveis os seguintes recursos:

            (…)

            IV – embargos de declaração;"

            Passando ao largo de intermináveis discussões doutrinárias acerca da sua natureza jurídica, certo é que, para a legislação processual civil em vigor, os embargos de declaração possuem natureza jurídica de recurso.

            Compartilhando de tal posicionamento, encontra-se o ilustre OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA [01], ao afirmar que "(…) embora, às vezes se procure negar o caráter recursal dos embargos de declaração, parece indiscutível sua natureza de recurso, pois são freqüentes os embargos cujo provimento importa modificação do julgado mostrando-se os embargos de declaração com efeitos nitidamente infringentes. (…)"

            E ,sendo recurso, a conclusão óbvia é a de que também os embargos de declaração estão sujeitos aos princípios gerais e norteadores do sistema recursal pátrio.

            A partir daí, indaga-se: possuem os embargos de declaração o condão de suspender os efeitos da decisão contra a qual foram opostos? Ou, ainda, possuem os embargos de declaração o denominado efeito suspensivo, isto é, o efeito de impedir que a decisão atacada produza seus efeitos somente após sua apreciação e julgamento?

            Este denominado "efeito suspensivo" dos recursos foi brilhantemente abordado pelo mestre JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA [02], afirmando que tal efeito consiste em "(…) fazer subsistir o óbice à manifestação da eficácia da decisão. A interposição não faz cessar efeitos que já se estivessem produzindo, apenas prolonga o estado de ineficácia em que se encontrava a decisão, pelo simples fato de estar sujeita à impugnação através do recurso".

            A regra consagrada por nosso Código de Processo Civil é a de que todos os recursos são dotados de efeito suspensivo pois, enquanto sujeita a recurso, a decisão, em princípio, não produzirá efeitos. Em alguns casos excepcionais a lei retira expressamente o efeito suspensivo do recurso, conferindo-lhe apenas o denominado efeito devolutivo [03], permitindo que a decisão se torne eficaz antes de transitar em julgado.

            O Código de Processo Civil Brasileiro deve ser interpretado de forma sistemática, rechaçando-se desde já qualquer idéia rasa de que "vale somente o que está expressamente regulado no Código", pois se assim efetivamente fosse, consagrados institutos processuais utilizados cotidianamente por todos os advogados (v. g. a réplica e a exceção de pré-executividade) restariam eivados, de uma hora para outra, de fulminante nulidade.

            Nesta toada, traz-se à baila ensinamento do ilustre processualista NELSON NERY JUNIOR [04] para quem "(…) No sistema recursal do Código de Processo Civil brasileiro, a regra é o recebimento dos recursos nos efeitos suspensivo e devolutivo."

            Ora, se a regra é a de que os recursos serão recebidos no efeito suspensivo e, somente em casos excepcionais o Código expressamente lhe retira tal prerrogativa, pode-se concluir que, no silêncio da lei, isto é, nos casos em que o Código de Processo Civil expressamente não determinar quais os efeitos da interposição do recurso, deve-se entender que o recurso possui efeito suspensivo.

            Novamente, o mestre JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA [05] nos traz valioso ensinamento, ao afirmar que "No silêncio da lei, deve-se normalmente entender que o recurso tem efeito suspensivo (…)"

            E, no caso específico dos embargos de declaração, inegavelmente a lei processual foi silente, posto que em momento algum indicou quais os efeitos da oposição de embargos de declaração.

            Se o julgado foi atacado pelos declaratórios significa que ainda não está inteiramente aperfeiçoada a prestação jurisdicional, isto é, não foi proferida uma sentença ou um acórdão capaz de produzir todos os efeitos jurídicos a que se propunham, pois padecem de omissão, obscuridade, contradição ou erro material.

            E, se está incompleta ou imperfeita a prestação jurisdicional, não se pode pretender que esta produza, desde sua publicação, todos os seus regulares efeitos jurídicos.

            Tais afirmações tornam-se ainda mais robustas se cogitarmos a hipótese de que, em alguns casos, podem os embargos declaratórios modificar substancialmente o julgado, pois que excepcionalmente tal recurso assume caráter infringente.

            Imagine-se um acórdão proferido por um Tribunal que, ao examinar o apelo da parte vencida em primeira instância, passa ao largo das argumentações expendidas acerca de suposta ocorrência de prescrição. A omissão enseja a oposição dos embargos e, neste caso, sua apreciação poderá conferir novo rumo ao deslinde processual.

            Seria razoável, na hipótese acima construída, admitir-se que o acórdão proferido, mesmo omisso quanto a ponto crucial da relação jurídica processual, produza todos os seus efeitos legais, mesmo após a oposição dos competentes embargos de declaração?

            Não parece ser essa a posição mais técnica, ainda mais quando se raciocina sob o ponto de vista da segurança jurídica, princípio este fundamental e norteador de nosso ordenamento jurídico.

            Há de se registrar, por fim, que a jurisprudência pátria já decidiu que os embargos de declaração possuem efeito suspensivo, como se depreende da análise dos seguintes julgados:

            "PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CPC-73, ART-538.

            É precipitada, e por isso nula, a lavratura de auto de infração com multa fiscal à empresa que, vencida em decisão judicial de segunda instância, interpõe embargos de declaração, com efeito suspensivo, pois a execução do julgado depende de decisão definitiva, até então inexistente." [06]

            * * *

            "(…) Interpostos os embargos declaratórios tempestivamente não há decisão definitiva de segunda instância, porque pendente de exame o recurso.

            (…) A sentença que concedeu a segurança no primeiro grau ainda estava em vigor, pois o acórdão que a reformou não havia gerado efeitos justamente porque submetido a embargos de declaração." [07]

            Em síntese, pode-se concluir que a oposição de embargos de declaração impede que a decisão por ele atacada produza de imediato seus regulares efeitos jurídicos.

            Tem-se, portanto, a configuração do denominado efeito suspensivo, decorrente do caráter eminentemente recursal dos embargos declaratórios e das disposições contidas no Código de Processo Civil Brasileiro acerca do tema.

            Rio de Janeiro, 06 de janeiro de 2006.

            LUIZ CARLOS AMÉRICO DOS REIS NETO

            OAB/RJ nº 114.900

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Notas

            01 IN, "Curso de Processo Civil" – 5ª Edição, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2000, pg. 447. Sem grifos no original.

            02 IN, "O Novo Processo Civil Brasileiro" – 22ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2002, pág. 122/123.

            03 Como é o caso dos recursos especial e extraordinário que, por expressa determinação legal (§2º, do artigo 541 do Código de Processo Civil Brasileiro) serão necessariamente recebidos no efeito meramente devolutivo.

            04 IN, "Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos", Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, pág. 385.

            05 Ob. Cit., pág. 123

            06 AMS nº 98.04.03702-5/RS, 1ª Turma do TRF/4ª Região, Relator Des. Fed. Vladimir Freitas, unânime.

            07 AI nº 1998.04.01.034397-3/PR, 1ª Turma do TRF/4ª Região, Relator Des. Fed. Vladimir Freitas, unânime.
 

 


Referência  Biográfica

Luiz Carlos Américo dos Reis Neto  –  Advogado no Rio de Janeiro(RJ)

Obrigação de prestar alimentos aos filhos menores

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* Adriana Aguiar Brotti –  

A maior parte das ações distribuídas no âmbito do Direito de Família é, incontestavelmente, as relativas ao pleito de alimentos.

Embora o  Código Civil seja claro ao estabelecer que, após a separação dos genitores, a manutenção dos filhos havidos desta relação, deve ser proporcional às possibilidades de cada um deles, o  fato é que  essa contribuição, na forma de “pensão alimentícia”,  acaba gerando uma segunda etapa de conflitos entre os membros desta família que, via de regra, encontra-se em sua nova formação estrutural. 

 A resistência do devedor (alimentante) de prestar alimentos ao credor (alimentando), advém, muitas vezes, da falsa idéia de que os recursos disponibilizados a título de pensão alimentícia, serão utilizados para outros fins que não o sustento do filho. Em outras, o alimentante simplesmente é incapaz de entender  a fase de desenvolvimento físico-emocional em que se encontra o filho. 

Com efeito, independentemente  do motivo da referida resistência, o panorama que encontramos no Poder Judiciário é de um número cada vez maior de sentenças não cumpridas, as quais culminam em execuções e, cujos valores,  assumem proporções absurdas, refletindo a ausência de uma paternidade responsável. 

Ora, diante desta constatação, é imperioso que invoquemos a Carta Magna no que concerne a um de seus princípios fundamentais : a dignidade da pessoa humana. Todavia, para que esse princípio se instale verdadeiramente em nossa sociedade, devemos  exercitar a  cidadania que, por sua vez, deve ser iniciada por um processo de conscientização. 

No caso específico da prestação alimentar, há de se destacar de maneira prática a finalidade desta obrigação,  ou seja, os alimentos devem satisfazer tanto às necessidades estritamente vitais, quais sejam, os alimentos propriamente ditos, higiene, vestuário, entre outros e, neste caso, são chamados de necessários ou naturais, quanto àquelas que compreendam a manutenção de um padrão e qualidade de vida  que o filho usufruía antes da ruptura do vinculo conjugal dos pais e, já neste caso , são chamados de civis ou côngruos.   

Frise-se que a fixação do “quantum” da obrigação alimentar deve respeitar o binômio necessidade x possibilidade, cumprindo ao magistrado avaliar a proporção das necessidades do alimentando e os recursos do alimentante em cada caso concreto.   

Conforme visto, abordamos a finalidade da prestação alimentar e o parâmetro para a fixação de seu numerário. Feito isso, podemos retomar a questão do princípio da dignidade da pessoa humana, afirmando que o cumprimento da obrigação alimentar também representa uma demonstração de afeto ao alimentando.   

Vale dizer que, essa relação moeda x afeto, implica na valorização do bem-estar do menor, ou seja, o alimentando sabe, desde tenra idade, que a satisfação de suas necessidades / vontades, dependerá da contribuição financeira do outro genitor.   

A verdade é que esse “discernimento / sensibilidade”  do alimentando geralmente se desenvolve em virtude de sua participação nos comentários do genitor  guardião, a respeito da ajuda financeira que não veio num determinado mês ou em vários deles, fazendo inclusive, o uso de muitos apelos desesperados.   

Portanto, todo filho sabe que, se seu pai ou sua mãe lhe ofertam a devida assistência, dentro de suas reais possibilidades, é porque se preocupam com ele e querem o melhor para o seu futuro. E é até muito saudável que o genitor (alimentante)  acompanhe o  “emprego de sua contribuição financeira”, assim, sua participação como genitor não guardião será muito mais concreta na vida do filho. 

Contudo, não bastasse a problemática do não cumprimento das obrigações alimentares, eis que o advento da Súmula 309 do STJ vem reforçar a postura irresponsável do alimentante – executado. 

Segundo a nova súmula, o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores  à citação do mesmo e, as que vencerem no curso do processo. Por óbvio, esta súmula beneficia o  executado e, certamente, será utilizada em sua defesa. Entretanto, o que se pretende aqui  é a preservação dos preceitos constitucionais assegurados à criança e ao adolescente pois,  todos nós, operadores do Direito, devemos buscar sempre a JUSTIÇA.  E, para que possamos defendê-la, devemos nos firmar no entendimento de que a execução, em sua modalidade coercitiva, é cabível  às três últimas parcelas vencidas  à data do ajuizamento do feito. 

Firmarmo-nos nesse sentido, significa pensar de maneira  mais integrada, ponderando “ causas e efeitos ”, buscando o bem comum, de modo a preservar a integridade física e moral do ser humano nos seus diferentes ciclos de vida.    

Conclui-se que, quanto à obrigação alimentar, a JUSTIÇA consiste no direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer e à profissionalização do filho de cada família que, se amado e respeitado nesta fase tão especial de sua existência, certamente aprenderá o sentido da gratidão e a importância dos laços familiares, repassando esse aprendizado a gerações futuras.


Referência  Biográfica

ADRIANA AGUIAR BROTTI  –  Advogada; Presidente da Comissão de Direito de Família da 57ª Subsecção da OAB – Guarulhos e Editora Assistente do Prolegis Site Jurídico.

Algemas ainda não podem ser usadas

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* Aristides Medeiros

Quase que diariamente vemos na televisão a condução de pessoas presas, das mais variadas categorias, em que os policiais fazem questão de aplicar algemas a todos, sem qualquer distinção, como se tal procedimento fosse obrigatório. E assim parece que se sentem regozijados, principalmente quando tem câmeras de filmagem pela frente, às quais exibem os coatos como se fossem troféus, inclusive ridicularizando-os.

Tal conduta dos policiais é de todo ilegal, pois o uso de algemas ainda não está legalmente autorizado, dependendo o mesmo da respectiva e futura regulamentação.

Com efeito, dispõe expressamente o art. 199 da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210, de 11/07/84) que “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”, ou seja, enquanto não tiver sido efetuada a respectiva regulamentação, é óbvio que ilegal será fazê-lo sponte propria.

A propósito, destacam ODIR ODILON PINTO DA SILVA e JOSÉ ANTÔNIO PAGANELLA BOSCHI que “No artigo 199, a lei institui regra não auto-aplicável referente ao emprego de algemas. Por decreto, o poder público federal deverá regulamentar o seu emprego. O sentido da norma é, exatamente, pela disciplina que se dará, evitar o vexame e o constrangimento públicos que os presos algemados sofrem junto à comunidade, quando assim são vistos no traslado do estabelecimento penal para o foro, a hospital, etc” (in Comentários à Lei de Execução Penal, Aide Editora, 1986, págs. 223/224).

Por sua vez, JÚLIO FABBRINI MIRABETE discorre, verbis: “Mesmo em época anterior a Beccaria, já se restringia o uso de algemas (ferros), permitido apenas na hipótese de constituírem a própria sanção penal ou serem necessárias à segurança pública. No Brasil, o artigo 28 do Decreto n° 4.824, de 22-11-11871, que regulamentou a Lei n° 2.033, de 20-9-1871, impunha sanção ao funcionário que conduzisse o preso “com ferros, algemas ou cordas”, salvo o caso extremo de segurança, justificado pelo condutor.”. E acrescenta: “Não há dúvida sobre a necessidade de regulamentação, pois o uso desnecessário e abusivo de algemas fere não só artigo 40da Lei de Execução Penal, como o artigo 153, § 14, da Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do preso” (in Execução Penal, Ed. Atlas, 1987, pág. 468)

Visando a disciplinar o assunto, o senador DEMÓSTENES TORRES apresentou ao Senado Federal o Projeto de Lei n° 185, de 2004, o qual se encontra em tramitação na Câmara Alta, tendo o seu último ato sido praticado no dia 07/12/05, quando, na Comissão de Constituição e Justiça, foi declarado como pronto para a pauta na Comissão, com parecer do Relator, Senador José Maranhão, pela sua aprovação.

Como se vê, o uso de algemas ainda não está legalmente permitido, por natureza admitido excepcionalmente apenas na hipótese a que alude o art. 284 do Código de Processo Penal, segundo o qual, “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga de preso”. Mas, ao que se tem, forçoso é convir que os agentes policiais estão, a seu talante, agindo como se a LEP houvesse esdruxulamente dito que “Os casos em que não deve ser empregado o uso de algemas, esses sim, é que serão objeto de futura regulamentação” !!!

Na verdade, não há nenhuma dúvida de que o emprego de algemas a pessoa de bem, – como atualmente está sendo indevidamente feito pelos policiais, – caracteriza evidente violência arbitrária e constrangimento ilegal, passíveis seus autores de serem responsabilizados administrativa e criminalmente.

Referência  Biográfica

 

Aristides Medeiros  –  Advogado

 


 

A administração da Falência e da Recuperação de Empresas

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  * Sérgio Gabriel –

Sumário: 1. Introdução    2.  Administrador Judicial      3. Comitê de Credores   4.  Assembléia-Geral de Credores      5.  Conclusão     6. Bibliografia

 


 

1. Introdução

Durante a vigência do Decreto nº 7.661/45 – denominado de Lei de Falências, era a administração do processo falimentar ou de concordata entregue a pessoa nomeada pelo juízo e que podia figurar entre os próprios credores do empresário-devedor.

Ocorre, todavia, que tal situação não contemplava a melhor escolha, haja vista que a função de administração burocrática do processo acabava por recair sobre pessoa leiga que normalmente tinha interesses individuais vinculados ao processo – o credor. Além disso, enorme era a probabilidade de fraude no sistema concursal por conta da fragilidade imposta pela ausência de fiscalização sobre a atividade exercida pelo administrador, pois, a quem competia predominantemente à fiscalização – o juiz1 , estava sempre no exercício jurisdicional em seu gabinete, não restando a possibilidade concreta de fiscalização junto as etapas desenvolvidas fora do âmbito judicial.

Nasce o novo regime e vislumbramos a partir dele uma profissionalização do sistema de administração da falência e da recuperação de empresas, como passaremos então a expor.

Observando-se a estrutura criada pela Lei nº 11.101/05 verifica-se que possuímos hoje um “sistema de administração” composto por uma pessoa (física ou jurídica) e dois órgãos, assim se formando o sistema: o administrador judicial, o comitê de credores e a assembléia geral de credores.

2. Administrador Judicial

O administrador judicial com funções predominantemente de interventor, será a pessoa designada pelo juiz para exercer as atividades burocráticas do processo judicial de falência ou de recuperação de empresa. Disciplinado na Lei nº 11.101/05 em seus artigos 21 a 25, o administrador judicial será “art. 21 – (…) profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada”.

Diante dessa qualificação profissional exigida (advogado, administrador de empresas, economista, contabilista2 etc.), é de se perceber que o legislador corrigiu um grave erro existente no regime anterior, trazendo para o exercício da função principal de administrador judicial, profissional habilitado para exercê-la3 . No mesmo sentido, Waldo Fazzio Júnior afirma que o “o administrador judicial da falência é um auxiliar qualificado do juízo4 ”. Em complemento, Manoel Justino Bezerra Filho assim se posiciona:

“O processo de recuperação e de falência é bastante complexo, por envolver inúmeras questões que só o técnico, com conhecimento especializado da matéria, poderá resolver a contento, prestando real auxílio ao bom andamento do feito”

É natural que podemos aqui apresentar uma crítica – até no sentido de se melhorar o sistema proposto, indicando a necessidade de se limitar a subjetividade da escolha e vinculando o exercício dessa – que passa a ser reconhecidamente como atividade profissional auxiliar da empresa e da justiça, a um órgão de registro que seria a Junta Comercial, disciplinando-se inclusive, requisitos para o registro vinculados a exigência de idoneidade indicada pelo legislador, como a necessidade de apresentação para ingresso e periódica para renovação, de atestado de antecedentes, certidão de distribuidor de protesto, certidão de distribuidor cível e criminal, além de outros que possam contribuir para assegurar o requisito de “caráter” exigido pelo art. 21.

Mas de qualquer forma, a profissionalização do administrador judicial já foi um avanço significante no sistema, permitindo conferir a ele a credibilidade necessária de que precisa o credor para se certificar da lisura do processo.

A indicação de interventor outorgada ao administrador judicial se justifica na medida em que ele passa a exercer papel de autonomia sobre decisões até então pertencentes a outra pessoa, como se vê:

“Ao administrador judicial compete, sob a fiscalização do juiz e do Comitê, além de outros deveres que esta lei lhe impõe:

(…);

(…) elaborar a relação de credores (…);

(…) consolidar o quadro geral de credores (…);

(…) contratar, mediante autorização judicial, profissionais ou empresas especializadas (…);

(…) fiscalizar as atividades do devedor (…);

(…) requerer a falência no caso de descumprimento de obrigação assumida (…);

(…) examinar a escrituração do devedor (…);

(…) relacionar os processos e assumir a representação judicial da massa falida;

(…) receber a abrir correspondência dirigida ao devedor (…);

(…) arrecadar os bens e documentos do devedor (…);

(…) avaliar os bens arrecadados;

(…) contratar avaliadores (…);

(…) praticar os atos necessários à realização do ativo e ao pagamento dos credores ;

(…) praticar todos os atos conservatórios de direitos e ações (…);

(…) representar a massa falida em juízo (…);

(…) requerer todas as medidas e diligências que forem necessárias ao cumprimento desta lei (…);

(…)”.

Dada a complexidade da função exercida pelo administrador judicial, determinou o legislador que ele seria remunerado da seguinte forma: “art. 24 – O juiz fixará o valor e a forma de pagamento da remuneração do administrador judicial, observados a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes. Parágrafo 1º. Em qualquer hipótese, o total pago ao administrador judicial não excederá 5% (cinco por cento) do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência”. Sobre a questão da remuneração, assim se posiciona Manoel Justino Bezerra Filho6:

“O administrador muitas vezes desenvolve árduo trabalho, podendo sofrer sanções judiciais, culminando até com a sua responsabilização penal e civil, caso não se desincumba dele. Por outro lado, no serviço de administração da falência ou da recuperação, desempenha trabalho constante e, por isso, deve ser remunerado”

3. Comitê de Credores

O segundo elemento do sistema de administração da falência e da recuperação de empresa é o comitê de credores. Trata-se de um órgão colegiado criado a partir da indicação de três classes de credores7 , a saber: trabalhistas, com garantia real e quirografários. Nada impede que o comitê venha a ter membros das outras classes de credores, no entanto, as três anteriormente citadas são de presença obrigatória para a sua formação.

De fácil operacionalização por possuir apenas três membros, o comitê de credores passa a ter uma flexibilização de exercício, podendo alcançar a sua principal função que é a de servir como órgão fiscalizador, garantindo aos credores a mesma lisura e credibilidade exigidas no primeiro caso – do administrador. Waldo Fazzio Júnior também credita ao Comitê a função de fiscalização8 :

“Enfim, além do que já foi dito sobre o Comitê de Credores, no Capítulo 8, referente a recuperação judicial, resta concluir que se trata de órgão fiscalizatório, (…)”

O papel de agente fiscalizador se verifica facilmente pelas funções elencadas no art. 27:

“(…) fiscalizar as atividades e examinar as contas do administrador judicial;

(…) zelar pelo bom andamento do processo e pelo cumprimento da lei;

(…) comunicar ao juiz, caso detecte violação dos direitos ou prejuízo aos interesses dos credores;

(…) apurar e emitir parecer sobre quaisquer reclamações dos interessados;

(…) fiscalizar a administração das atividades do devedor (…);

(…) fiscalizar a execução do plano de recuperação judicial;

(…)”.

Com isso, é de se verificar que o credor passa a ter uma segurança muito maior no processo, além da possibilidade de participação ativa que lhe garanta a manutenção constante de todas as etapas que transcorrerem.

Por não ser o comitê de credores um órgão obrigatório, na sua ausência, conforme justificar a necessidade, poderão as atividades ser realizadas pelo administrador judicial ou pelo juiz de acordo com o que determina o art. 28 – “não havendo Comitê de Credores, caberá ao administrador judicial ou, na incompatibilidade deste, ao juiz exercer suas atribuições”.

No entanto, não se disciplinou ao Comitê de Credores qualquer tipo de remuneração, a não ser reembolso de eventual despesas, consoante determina o art. 29 – “Os membros do Comitê não terão sua remuneração custeada pelo devedor ou pela massa falida, mas as despesas realizadas para a realização de ato previsto nesta lei, se devidamente comprovadas e com a autorização do juiz, serão ressarcidas atendendo à disponibilidade de caixa”.

Talvez esse ponto mereça uma crítica, pois como vimos, o Comitê é um órgão de segurança do processo e que responde pela credibilidade que o concurso exige, porém, nota-se que seus membros necessitarão como vimos, dedicar grande parte de seu tempo para atuação junto ao processo, o que demanda a necessidade de desligamento, ainda que parcial, de suas respectivas atividades principais, justificando então, uma remuneração.

4. Assembléia-Geral de Credores

O terceiro elemento do sistema de administração da falência e recuperação de empresa é a assembléia geral de credores, que como o próprio nome indica, é o órgão máximo de representação dos credores, possuindo funções notadamente deliberativas como indica o art. 35 – “A assembléia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre: (…)” (grifamos). Waldo Fazzio Júnior assim reafirma essa função deliberativa9 :

“A assembléia geral de credores é um colegiado de existência obrigatória nos processos de recuperação judicial e facultativa nos processos falitários com o fim de deliberar sobre qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores”

No mesmo sentido, Manoel Justino Bezerra Filho10 afirma que:

“Evidentemente a assembléia, constituída por credores diretamente interessados no bom andamento da recuperação, deverá levar sempre ao juiz as melhores deliberações, que atendam de forma mais eficiente ao interesse das partes envolvidas na recuperação, tanto devedor quanto credores”

Entre as funções da assembléia está a de eleger e constituir o comitê de credores, o que outorga ainda mais, legitimidade para o segundo órgão. Ocorre, porém, que nem tudo são flores no exercício democrático de direito proposto pelo legislador aos credores do empresário em crise financeira, visto que nas situações em que a quantidade de credores passe a ser volumosa, será de difícil operacionalização a assembléia de credores, o que pode dificultar entre outras, a eleição dos membros do comitê de credores.

Não parece, no entanto, que será essa dificuldade a inviabilizar a participação dos credores no processo, pois a abertura concedida pelo legislador aos credores no processo concursal é de fundamental importância para o atual regime econômico neoliberal.

A realização de assembléia-geral de credores poderá ser solicitada pelo administrador judicial, pelo Comitê de Credores ou pelos próprios credores representantes de no mínimo 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos de determina classe, porém, caberá ao juiz a sua convocação respeitando o prazo de 15 (quinze) dias em primeira convocação e 05 (cinco) dias em segunda. Para sua instalação, necessário se faz a presença de representantes de mais da metade dos créditos de cada classe em primeira convocação e de qualquer número em segunda convocação.

Como se trata de um ato solene e formal, caberá ao administrador judicial presidir o evento e nomear entre os credores, alguém para exercer a função de secretário. Porém, caso a assembléia tenha sido convocada para deliberar sobre o afastamento do próprio administrador judicial, caberá ao credor representante do maior crédito presidir o evento.

A grande crítica que se faz ao instituto da assembléia é que ela possui funções notadamente econômicas, haja vista ter preservado o voto a proporcionalidade de representação do crédito conforme determina o art. 38 – “O voto do credor será proporcional ao valor de seu crédito, (…)”.

Embora tal critério respeite a função econômica da lei, em termos democráticos pode renegar o papel do pequeno credor a de mero expectador do processo, já que não existe limitação dos poderes do maior credor, nem tampouco de obrigatoriedade de participação do menor credor. No entanto, a possibilidade de participação ativa do credor tanto na falência quanto na recuperação judicial é que denota a sua importância, como bem preleciona o Profº Sebastião José Roque11:

“Em suma, a AGC – Assembléia-Geral de Credores é poderosa arma nas mãos dos empregados da empresa falida para a defesa de seus direitos. È também arma poderosa para os demais credores, para as quais foram transferidos muitos dos poderes anteriormente reservados ao juiz. A eficácia da AGC dependerá da mobilização dos interessados, ou seja, os credores. A lei lhes deu poderosa faculdade; façam uso dela”

5. Conclusão

Embora alguns reparos mereçam a legislação concursal neste aspecto, somos forçados a concluir que o legislador viabilizou a criação de um sistema capaz de afastar as fraudes que normalmente rondavam esse tipo de certame, resgatando a credibilidade do credor e justificando o seu retorno para participação ativa na solução da crise financeira do devedor, seja pela recuperação ou pela falência.

O sistema, assim como todos os instrumentos propostos pela Lei nº 11.101/05, passam agora pelo crivo da experiência de aplicação ao caso concreto, que permitirão às adaptações necessárias para o pleno desenvolvimento de mais esse ramo do direito, que como já afirmamos anteriormente12 , constitui um marco evolutivo e inclui o Direito Concursal entre as especializações jurídicas nacionais em destaque no cenário internacional.

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Notas de rodapé


1. O Profº Manoel Justino Bezerra Filho, nesse sentido afirmava que “Na Lei anterior, para administração da falência, era nomeado um síndico (art. 59 da lei anterior), que exercia seu trabalho sob a imediata direção e superintendência do juiz. Na concordata, o devedor conservava a administração de seu negócio (art. 167 da lei anterior), fiscalizado pelo comissário, que também era nomeado pelo juiz, a quem prestava contas”. In Nova Lei de Recuperação e Falências, SP:RT, 2005, p. 83.

2. Embora a Lei nº 11.101/05 utilize a denominação “contador”, o legislador na elaboração do Código Civil já havia retificado o nome para “contabilista” conforme se verifica da seção III, do capítulo III, do título IV do Livro de Direito de Empresa.

3. O Profº Sebastião José Roque faz uma crítica neste sentido, afirmando que: “De nossa parte, temos dúvidas quanto à atuação do administrador judicial não advogado; não só ele fiscaliza e controla o comportamento da empresa, mas aciona o processo. É imperioso o conhecimento de normas processuais e das práticas judiciárias, que só atraem os advogados”, in Direito de Recuperação de Empresas, SP: Ícone Editora, 2005, p. 135.

4. Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, SP: Atlas, 2005, p. 326.

5. Op. citada, p. 84.

6. Op. Citada, p. 98.

7. Art. 26 – O Comitê de credores será constituído por deliberação de qualquer das classes de credores na assembléia –geral e terá a seguinte composição: I – um representante indicado pela classe de credores trabalhistas, com dois suplentes; II – um representante indicado pela classe de credores com direitos reais de garantia ou privilégio especiais, com dois suplentes; III – um representante indicado pela classe de credores quirografários e com privilégios gerais, com dois suplentes.

8. Op. Citada, p. 337.

9. Op. Citada, p. 338.

10.Op. Citada, p. 111.

11. Assembléia-geral de credores é ponto crítico da Lei de Recuperação de Empresas, artigo publicado e disponível no site Boletim Jurídico.

12. Sobre esse assunto ver artigo do autor: “O Projeto Substitutivo da Lei de Falências. Lei de Recuperação de Empresas – Uma Mudança de Concepção”- Publicado no Site Jus Vigilantibus em 12/02/2005 – www.jusvi.com.

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6.Bibliografia

____________, Nova Lei de Falências. SP: RT, 2005.

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada. SP: RT, 3ª edição, 2005.

JÚNIOR, Waldo Fazzio. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. SP: Atlas, 2005.

ROQUE, Sebastião José. Direito de Recuperação de Empresas. SP: Ícone Editora, 2005.

ROQUE, Sebastião José. Assembléia-geral de credores é ponto crítico da Lei de Recuperação de Empresas. Boletim Jurídico, Uberaba-MG, a.3, nº 165. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto/texto.asp?id=1064>. Acesso em 13 de fevereiro de 2006.

 

Referência  Biográfica

* Sérgio Gabriel   O autor é administrador de empresas e advogado; pós-graduado em Administração de Empresas pela FAAP-Fundação Armando Álvares Penteado; mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES-Universidade Metropolitana de Santos; professor de Direito Empresarial e Tributário da USF-Universidade São Francisco; coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da UNICSUL-Universidade Cruzeiro do Sul; membro da Comissão de Direitos Autorais da UNICSUL; professor da INTERFASES-Escola de Prática Jurídica de São Paulo; professor convidado da ESA-Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil; co-autor do livro “Temas Relevantes do Direito”, SP: Lúmen Editora, 2001; co-autor do livro “Dano Moral e sua Quantificação”, RS: Editora Plenum, 2004; co-autor do livro “Exame de Ordem comentado e anotado”, SP: Apta Edições, 2005; co-autor do livro “Exames de OAB”, SP: DPJ Editora, 2005; autor do livro “Direito Empresarial” da coleção Lições de Direito, SP: DPJ Editora (no prelo). Artigo elaborado em 23/02/2006.