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Sucumbência e honorários na intervenção de terceiro

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* Jomar Luiz Bellini 

INTRODUÇÃO    

            O artigo 34 do Código de Processo Civil deixa claro que reconvenção, oposição e ação declaratória incidental são ações, embora com particularidades e, por isso mesmo as submete a regra geral das custas processuais:

“Art. 34 . Aplicam-se à reconvenção, à oposição, à ação declaratória incidental e aos procedimentos de jurisdição voluntária, no que couber, as disposições constantes desta seção.”.

              Buscam, a reconvenção, oposição e ação declaratória incidental, a obtenção de bem jurídico autônomo, pois a pretensão tem identidade própria, que uma vez não sendo aceitas, justifica-se a condenação nas verbas sucumbenciais.

Reconvenção  

            A Reconvenção ocorre quando o réu propõe ação em face ao autor, na mesma ação em que está sendo demandado. Segundo Humberto Theodoro Júnior, a reconvenção não é simples resposta do réu, onde este pretende tão somente apresentar defesa, ao contrário da contestação, que é simples resistência à pretensão do autor, a reconvenção é um contra-ataque, uma verdadeira ação ajuizada pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), nos mesmos autos.[i]

              Não existe dúvida que a reconvenção é de fato uma ação, porém agregada ao pleito principal e embora uma vez residindo em juízo não se extingue tão – só com a extinção deste (CPC, art. 317).[ii]

Obrigatoriedade do Réu em apresentar a Reconvenção  

            Não há obrigatoriedade do réu em apresentar a reconvenção, já que seu “contra-ataque” pode ser reservado para uma ação autônoma a ser proposta por este contra o autor.  Assim, fica ao livre alvitre do réu em reconvir, embora seja apreciável sua atitude em face do princípio da economia processual. A reconvenção é apresentada ao mesmo tempo em que a contestação, só que em petição apartada (art. 299 do CPC).

              Admite a jurisprudência, todavia, a possibilidade da apresentação de contestação e reconvenção na mesma peça constituindo-se mera irregularidade, incapaz de motivar, por si só, a rejeição da reconvenção.[iii]

              Independentemente da forma apresentada a decisão da reconvenção só será proferida em uma sentença para ambas as ações.

Natureza Jurídica  

            Já que equiparada a uma ação, a reconvenção deve também preencher os requisitos processuais inerentes àquela para que possa ser intentada. Assim, há pressupostos e condições a serem preenchidos:  as partes têm que ser as mesmas, ou seja, só o réu poderá ajuizar a reconvenção, onde só o autor poderá ser o reconvindo; há de haver conexão entre as duas ações; a competência para o julgamento das ações tem que ser a mesma; e por fim, o rito das ações devem ser idênticos (ressaltando apenas que há vedação expressa do Código de Processo Civil quanto à reconvenção em ações propostas sob o rito sumaríssimo – art. 315, parágrafo 2º).

              Na reconvenção o réu, ao invés de manter-se na posição de quem resiste passivamente ao ataque, apenas alegando fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do autor, toma uma atitude agressiva, no sentido de fazer valer uma pretensão própria e autônoma contra este.

              A reconvenção não é simples resposta: é ação do réu contra o autor, é ataque do réu contra o autor. E o oferecimento de reconvenção pelo réu faz instaurar uma relação processual nova, distinta e paralela à que se fez inaugurar com a propositura da ação pelo autor em desfavor daquele réu. Tanto é uma ação distinta, que, no caso de, por algum motivo, ser extinta a relação processual inaugurada com o ajuizamento da ação, prossegue o juiz no julgamento da reconvenção.

              Sua finalidade não é somente, como pensam alguns, a de modificar ou excluir o pedido do autor, mas também a de possibilitar a reunião, em um único processo, da ação do réu e do autor, evitando-se sentenças contraditórias. É o que se dá no caso em que o autor pede a entrega da coisa e o réu reconvém pedindo o pagamento integral do preço. As duas pretensões podem ser julgadas procedentes, sendo que o veredicto dado ao pedido reconvencional não modifica nem exclui o pedido formulado inicialmente. [iv]

              Mesmo sendo a reconvenção uma ação, o reconvindo não será citado para apresentar resposta, mas será tão somente intimado na pessoa do seu procurador.

Prazo para apresentação da Reconvenção 

            A contestação e a reconvenção constituem forma de resposta do réu e são oferecidas no processo, simultaneamente, mas em peças distintas. É o que dispõe o art. 299, do Código de Processo Civil.

              Uma vez o prazo sendo 15 para a resposta esse é o prazo para a apresentação da reconvenção, como prescreve o artigo 297 do Código de Processo Civil. Por isso mesmo, a Fazenda ou o Ministério Público poderá utilizar-se da prerrogativa de prazo se quiser ajuizar reconvenção ou opor exceções.[v]

              De igual forma ocorrerá se houver mais de um Defensor consoante inteligência do artigo 191 do Código de Processo Civil, ou seja, o prazo será sempre em dobro.

Oposição  

            A oposição constitui-se numa das espécies de intervenção de terceiro, ou seja, ocorre quando alguém ingressa numa ação em que não seja parte.  A oposição se dá quando o terceiro intervém, espontaneamente, em processo alheio visando a defender o que é seu total ou parcialmente. Os opostos são litisconsortes não-unitários, com autonomia de procedimentos.

              A oposição não é atitude obrigatória do terceiro interveniente, neste caso chamado de opoente, que pode deixar para intentar ação autônoma no caso de ser prejudicado em face da decisão judicial a ser proferida na ação que demandam autor e réu. No entanto, e reverenciando também o princípio da economia processual, pouparia a pendência entre si e as partes daquela ação, se desde já se apresentasse à demanda. Não é necessário que a oposição aluda a toda questão que está sendo discutida entre autor e réu, bastando que se refira a apenas parte dele.

              Arruda Alvim ensina que a oposição se cristaliza numa ação bifronte. O opoente é autor de uma ação. Assim, deverá sua pretensão ser formulada de acordo com os requisitos para dedução de uma ação (art. 57); ou seja, devem ser preenchidos os pressupostos processuais e as condições da ação, e, observados os requisitos dos arts. 282 e 283, sem o que deverá ser a oposição indeferida. A oposição tem valor próprio e é este que deverá constar da petição inicial da mesma. [vi]

Natureza Jurídica  

            Constitui-se uma ação, onde o opoente ajuiza pretensão contrária aos opostos, ou seja, ao autor e ao réu ao mesmo tempo. Além disso, a pretensão também não é a mesma daquela primeira ação, tanto que o opoente litiga contra as duas partes, com o objetivo de excluir o pedido outrora formulado. Constitui uma espécie do gênero de intervenção de terceiro, sendo ação conexa, incidental à principal, o que não faz do opoente parte na relação principal.[vii] Por tal motivo a oposição é processada em autos apartados daquela primeira ação.

Prazo temporal para apresentação da oposição  

            Questão controvertida na doutrina é o limite no tempo para apresentação da oposição.

              Segundo Humberto Theodoro Júnior, o limite temporal de admissibilidade da oposição é o trânsito em julgado da sentença da causa principal[viii]. (…). A propósito, observe-se que, diante dos limites subjetivos da res judicata (art. 472), nem mesmo o trânsito em julgado da decisão da causa principal, transcorrida sem a oposição, é empecilho a que o terceiro, que não figurou na relação processual, intente ação comum contra a parte vencedora para recuperar a posse do bem que a sentença lhe conferiu.[ix]

            Para Celso Barbi[x] e Hélio Tornaghi[xi] entendem que o limite máximo para a intervenção do opoente ocorre antes da publicação da sentença.

Forma de apresentação da oposição  

            Ressalte-se que nem sempre a oposição será proposta em forma de intervenção de terceiro, o que só ocorrerá quando a mesma for apresentada antes da audiência de instrução e julgamento (art. 59 do CPC), correndo juntamente com a ação, sendo inclusive, proferida uma só sentença. Mas quando proposta após o referido prazo será feita através de ação autônoma (art. 60 do CPC), processada sob o rito ordinário, sendo possível a suspensão do processo por prazo não inferior a 90 dias.

              Já que constitui ação, a oposição será sempre apresentada sob a forma de petição inicial, ficando os autos em apenso à ação principal se apresentada antes da audiência. Neste caso, como também se a oposição tiver sido oferecida em ação autônoma, será realizada a citação dos opoentes, ainda se o réu tiver sido considerado revel.

Procedimento da oposição  

            Após, a ação correrá pelo procedimento normal, incidindo todas as regras pertinentes a uma ação qualquer, vez que pode se dar a revelia dos opoentes; o reconhecimento do pedido por ambas as partes e conseqüentemente o julgamento antecipado da oposição; o julgamento de extinção do processo, como ou sem julgamento do mérito, etc.

              Arruda Alvim, diz que os pressupostos de admissibilidade da oposição são os seguintes: 1º litispendência do processo principal; 2º que a pretensão do opoente objetive a coisa ou o direito sobre que discutem autor e réu, mesmo que essa pretensão tenha causa petendi diversa da do autor, mas tanto basta que com ela tal pretensão seja incompatível, no sentido de que ambas não possam conviver juridicamente;(…)[xii]

              Hélio Tornaghi diz que a oposição é ação declaratória contra o autor e condenatória ou meramente declaratória contra o réu.[xiii] A sentença proferida na oposição, ao invés de corrigir erro anterior, irá evitá-lo. A oposição tem, como se disse, caráter prejudicial.[xiv]. Dado o vínculo entre a ação primitiva e a oposição, o juízo daquela é competente para dessa conhecer e para julgá-la.[xv]

Ação Declaratória Incidental  

            Pode ocorrer no caso do art. 5º do Código de Processo Civil, ou seja, no curso do processo, tornar-se litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.

              A ação declaratória incidental não é considerada como a constituição de um “mero incidente processual”, segundo se constata da doutrina dominante, como também não é confundida com a reconvenção, quando proposta pelo réu.

              Na ação declaratória incidental busca-se o mero pronunciamento declaratório da existência – ou não – de relação jurídica material, de forma que não poderá resultar, jamais, em pronunciamento relativo a ato processual.[xvi]

              Não se pretendeu com a ação declaratória incidental aumentar o âmbito da discussão do processo, mas sim de permitir um debate mais amplo entre as partes.

              Em sendo assim, alguns dos mais renomados doutrinadores, tais como, Pinto Ferreira;[xvii] Rangel Dinamarco,[xviii] Greco Filho,[xix] e Ari Ferreira de Queiroz,[xx] se referem de modo explícito à ação declaratória incidental como maneira formal de ampliar o âmbito do dispositivo da sentença.

              No entendimento de Pontes de Miranda, Ada Pellegrini Grinover, Alfredo Buzaid, entre outros, necessário é o requerimento de uma das partes, através de ação declaratória incidental em juízo competente em razão da matéria, para que assim se constitua o pressuposto indispensável para o julgamento da lide. Dessa forma se acolhe então a autoridade e eficácia de “coisa julgada”.

              Como faz coisa julgada a parte da sentença que julga o mérito da causa, ficam excluídos não só os motivos em que foram baseadas aquela decisão, bem como também as questões prejudiciais, definidas por Humberto Theodoro Júnior como aquelas que, relativas a outros estados ou relações jurídicas, se apresentem no processo como mero antecedente lógico da questão principal, embora pudessem ser, por si só, objeto de processo autônomo.

              Proposta uma ação, na qual a parte autora formula seu pedido, deparando-se o magistrado com tal ação e tendo determinado a citação do réu, torna-se litigiosa a coisa (art. 219, caput), se estabelecendo assim uma relação jurídica processual para o julgamento da lide.

Questão Prejudicial  

            Humberto Theodoro Júnior, diz que só há questão quando ocorre controvérsia sobre o referido antecedente lógico. Mas, para justificar a declaratória incidental, é preciso que a questão seja tal, que pudesse justificar hipoteticamente um outro processo, pois, só assim, se concebe o exercício do direito de ação, que se contém no pedido de declaração incidente.[xxi]

              Sendo assim, de maneira indireta, a questão prejudicial, devido ao seu tamanho grau de importância, terá que passar a ser considerado como integrante do mérito da causa, para ser considerada coisa julgada. Tal ocorrerá através da ação declaratória incidental.

Procedimento da Ação Declaratória Incidental 

            Se o pedido da questão a ser suscitada tiver sido formulado pelo réu, tal ação será intentada através da reconvenção; se for objetivo do autor, o prazo para a propositura da referida ação será o de 10 dias a contar da intimação da contestação em que tenha sido criada a controvérsia.

            Embora se constitua numa ação, a declaratória incidental não será processada em autos apartados, mas sim nos mesmos autos da ação principal. Ressalte-se, por oportuno, que a ação deverá ser proposta com a observância dos mesmos requisitos da petição inicial.

            Apresentada ao juiz e, se atendidos os requisitos de admissibilidade específicos e também os gerais (pressupostos processuais e condições da ação),[xxii] o juiz determinará para que seja dado conhecimento a parte contrária, não através de uma citação, mas por uma intimação (art. 234), realizada na pessoa do procurador. É a norma do art. 316 que a doutrina manda aplicar à declaratória incidental.

            Indeferindo a inicial onde é levantada a questão incidental, o recurso cabível é o de agravo de instrumento.

            Nesse sentido já se pronunciou o Tribunal de Justiça de São Paulo[xxiii], decidindo que ação declaratória incidental, como indicado, por sua própria designação, se insere no processo instaurado com a ação principal, não levando a um novo processo. Assim, seu indeferimento liminar constitui decisão interlocutória, na medida em que o processo não termina, mas prossegue com a ação principal. A circunstância de, erroneamente, ser a ação declaratória autuada em apenso não altera a natureza do pronunciamento judicial, não operando, portanto, a transformação da decisão interlocutória em sentença. Assim, o indeferimento liminar da ação declaratória enseja o recurso de agravo de instrumento e não o de apelação. Interposta apelação, depois de escoado o qüinqüídio para a interposição do agravo, não há lugar para aplicação do princípio da fungibilidade.

            A questão suscitada não sendo objeto da demanda, o julgador, apenas dela conhecerá, não cabendo ao mesmo sobre ela proferir decisão alguma. Em não ocorrendo decisão sobre a questão, ou seja, não se discutindo o mérito quanto ao ser ou não o autor herdeiro, não ocorrerá a eficácia da coisa julgada.

Legitimidade  

            Por fim, cabe aduzir que as partes da ação declaratória incidental devem ser as mesmas da ação principal, só sendo cabível se o juiz for competente para apreciá-la.

Procedimentos de Jurisdição Voluntária  

            São aqueles em que não há partes, nem litígios envolvidos, mas que, no entanto, para dar a eficácia merecida a determinados atos, os mesmos terão que ser, obrigatoriamente, apreciados pelo Poder Judiciário. Humberto Theodoro Júnior define jurisdição voluntária, como sendo aquela em que o juiz apenas realiza gestão pública em torno de interesses privados, como se dá nas nomeações de tutores, nas alienações de bens de incapazes, na extinção do usufruto ou do fideicomisso etc.[xxiv]

            Para Pontes de Miranda conceitua Jurisdição Voluntária como sendo os atos processuais que exigem mera homologação são os atos jurídicos das partes, ou em lugar das partes, que sejam regidos pelo direito material, porém cuja eficácia processual dependa de sentença, sendo essa simplesmente homologatória.[xxv]

Aplicação das sanções prevista no artigo 34, do CPC  

            Por serem equiparadas a verdadeiras ações, a reconvenção, a oposição, a ação declaratória incidental, e ainda os procedimentos de jurisdição voluntária estão sujeitos também, como qualquer ação, a todo o regramento disposto na seção III, do Capítulo II do Código de Processo Civil, referente às despesas processuais e multas.  

            Se não bastasse esse entendimento, o artigo 34 explicita prescrevendo que se aplicam à reconvenção, à oposição, à ação declaratória incidental e aos procedimentos de jurisdição voluntária, no que couber, a disposição constante desta seção. 

            O adiantamento das custas processuais, nos casos da jurisdição voluntária, é pacífico, uma vez que será adiantada pelo requerente e ao final será rateado por todos os interessados e da mesma forma o honorário advocatício.  

            Para Arruda Alvim, cabe, salientar que tanto a reconvenção como a oposição e ação declaratória incidental constituem ações diversas da ação proposta pelo autor, apesar de estarem contidas num mesmo procedimento. E, na medida em que consubstanciem pretensões com identidade própria, que não sejam acolhidas, justifica-se a condenação das custas. [xxvi]

              Via de regra, deve-se seguir as normas contidas na seção III. Nesse sentido, a sucumbência na reconvenção equivale à que ocorre na ação, e em sendo rejeitado o pedido por carência ou por improcedência, o reconvinte arcará com os honorários do advogado da parte reconvinda.

              O tribunal paranaense, já decidiu que a parte vencida na reconvenção deve arcar com todos os ônus da sucumbência, como está expresso no art. 34 do CPC, ainda que também tenha ficado vencida na ação. Cumpre-lhe, pois, pagar honorários relativos a uma e a outra.[xxvii]

              Diferente não será quando a sentença que decidir a oposição imporá as partes sucumbentes às sanções pertinentes no que se refere às despesas processuais e honorárias advocatícios.

              Nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária não se aplica a regra atinente a honorários advocatícios, salvo se tornarem contenciosas.[xxviii]

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[i] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição – pág. 385.

[ii] TJDF – AGI 19990020039415 – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Eduardo de Moraes Oliveira – DJU 12.04.2000 – p. 11.

[iii] TJSC – AC 96.009289-7 – SC – 4ª C.Cív. Rel. Des. Pedro Manoel Abreu – J. 30.06.1998.

[iv] Moacyr Amaral dos Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Saraiva, 1985, vol. II, p. 224.

[v] Nelson Nery Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição, RT, 2ª ed., pág. 48.

[vi] Arruda Alvin. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, p. 86

[vii] TRF 1ª R. – AG 01000488295 – BA – 3ª T. – Rel. Juiz Cândido Ribeiro – DJU 05.06.1998.

[viii] Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, v. I, p. 125.

[ix] Idem, p. 126.

[x] Comentários ao Código de Processo Civil, 1º edição, vol. 1,  t.II, nº355, pág. 314.

[xi] Comentários ao Código de Processo Civil, 1º edição, vol. 1,  pág. 242.

[xii] Idem, p. 87.

[xiii] Hélio Tornaghi. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 243.

[xiv] Idem, p. 240.

[xv] Idem, p. 243.

[xvi] TRT 9ª R. – RO 8.199/93 – 1ª T. – Ac. 11.167/94 – Rel. Juiz Iverson Manoel Rocha – DJPR 24.06.1994.

[xvii] Pinto Ferreira, Curso de Direito Processual Civil, p. 118.

[xviii] Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 308.

[xix] Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, v. 2, p. 151.

[xx] Ari Ferreira de Queiroz, Direito Processual Civil, p. 73 e 277.

[xxi] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição – pág. 398.

[xxii] Para João Batista Leite, os requisitos da declaratória incidental são: a) a existência de questão prejudicial autônoma; b) a ocorrência de controvérsia sobre a existência ou inexistência de relação jurídica; c) a existência de processo de cognição ampla; d) a competência absoluta do juiz; e) a identidade do tipo de procedimento para ambas as ações (a condicionante e a condicionada).

[xxiii] Ac. un. da 2ª Câm. do TJSP de 12.11.1991, no Ag. 162.304-1, rel. Des. Araújo Cintra; RJTJSP 135/307, apud Alexandre de Paula, op. cit., v. 1, p. 78.

[xxiv] Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro : Forense, 1992, vol. 1, 3º edição, pág. 40.

[xxv] Tratado da ação rescisória, § 38, nº 4, p. 414.

[xxvi] Código de Processo Civil Comentado: São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1975, vol.II, pág. 249.

[xxvii] TAPR – AC 115.063-2 – 7ª C – Rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo – J. 30.03.1998.

[xxviii] TAMG – AC 0307722-5 – 1ª C.Cív. – Rel. Juiz Nepomuceno Silva – J. 27.06.2000; TJRJ – AC 6038/94 – (Reg. 200795) – Cód. 94.001.06038 – Rio de Janeiro – 1ª C.Cív. – Rel. Des. C. A. Menezes Direito – J. 07.03.1995; TJSP – AC 233.442-2 – São Paulo – Rel. Des. Paulo Shintate – J. 24.05.1994.

 


Referência  Biográfica

Jomar Luiz Bellini  –  Advogado e Contador; Professor de Direito Processual Civil e Teoria Geral do Processo da Faculdade de Direito de Itapetininga e de Direito Processual Civil, Internacional e Legislação Tributária na Universidade de Sorocaba Especialista em Comércio Exterior (FECAP-SP) e Direito Tributário (PUC-SP); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Mackenzie  e Doutorando em Direito Processual Civil na PUC-SP.

“A Constituição Patrimonial Privada”

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* Donata A. Campos de Barros

NOÇÃO DE CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

Uma abordagem da obra  A Constituição Patrimonial Privada, de Antonio Menezes Cordeiro. Coimbra : Almedina, 1998. 

Constituição formal e constituição material

A doutrina fala em Constituição em vários sentidos mas os dois mais significativos são: a constituição formal e a constituição material.

Para o autor, a constituição formal é “a fonte ou o conjunto de fontes identificáveis por possuírem uma determinada característica exterior, a que se convenciona, em determinado momento histórico, chamar constituição” (é o texto legal, aprovado com determinadas formalidades e que exige requisitos especiais para a sua modificação) e, o sentido material, “constituição é a fonte ou conjunto de fontes que estruturam e legitimam determinada ordem jurídica, instituindo o poder político e estabelecendo os direitos fundamentais dos particulares”. 

O autor funde os dois conceitos dizendo que o essencial da constituição material está contido na constituição formal e por isso passa a tratar somente como constituição os aspectos materiais essenciais, formalizados constitucionalmente. Explica ainda que não define constituição como conjunto de normas ou princípios porque norma é tarefa a ser realizada caso a caso, por meio da interpretação e constituição é fonte da qual o intérprete extrairá, mediante recursos e regras determinadas, as normas constitucionais.

·   Normas e princípios constitucionais

O autor explica que normas constitucionais são normas jurídicas que se extraem da Constituição e os Princípios constitucionais são os que podemos induzir da fonte constitucional, através da interpretação científica, da interpretação e da sistematização.

Segundo ele, a norma traduz um comando que verificadas as condições nela previstas, se dirige a determinado sujeito. Ela é extraída da fonte pela interpretação. Já o princípio induz-se de fontes e normas pela construção e sistematização científicas.

O autor explica que não pode haver normas jurídicas igualmente válidas e contraditórias num ordenamento jurídico, porém, pode haver e há princípios válidos e contraditórios, e a escolha de um deles para um caso concreto, dependerá de cuidadosa ponderação efetuada à luz de outros princípios e normas.

Ele dá como exemplo insanável uma norma que designasse, pela Constituição, que a Assembléia da República devesse ter 150 membros. Depois, seria acrescentada à essa mesma Constituição que o número de mebros deveria ser definido pelo Governo. Seria isso, então uma contradição insanável, pois somente uma das normas poderia ser válida.

No entanto, a Constituição consagra, lado a lado, os princípios da igualdade e da propriedade privada, que pode ser entendido como contraditório. Contudo os dois princípios são considerados válidos, prevendo a própria Constituição várias formas de harmonização entre eles.

Diz o autor, que um sistema jurídico logicamente acabado, mesmo que somente um esboço, só pode ser conseguido recorrendo-se a normas e princípios.

·   Normas preceptivas e normas programáticas

A distinção entre elas é o que, para o autor, tem maior importância para o conceito de constituição patrimonial privada:

a)     preceptivas são normas de aplicação imediata;

b)     programáticas são as normas de aplicação diferida (procrastinada ou retardada) e mediata (depende de outra coisa) pois implicam a elaboração de outras regras capazes de as tornar exeqüíveis e efetivar sua vigência. As normas programáticas dirigem-se ao legislador ordinário e não dão lugar a direitos subjetivos.

O autor cita Grisafulli, ao dizer que as normas programáticas estão próximas dos princípios gerais do Direito, dos quais são, muitas vezes meras explicitações, embora sejam, para todos os efeitos, verdadeiras normas jurídicas.

·   O direito patrimonial privado

Cordeiro considera privado o Direito que regula situações da vida social, cujos sujeitos são desprovidos de poderes de autoridade. Ele distingue Direito Público de Direito Privado usando o critério subjetivo-material isto é, o Estado pode atuar como sujeito de situações privadas, bastando para isso que não esteja revestido de ius imperii (direito soberano). Nesse caso, a sua conduta é regida pelo Direito Privado.

No Direito Privado, distingue-se o Direito Patrimonial do Direito não Patrimonial.

O Direito Patrimonial Privado regula situações de conteúdo econômico e suscetíveis de avaliação pecuniária, ao contrário do Direito Privado não Patrimonial que regula situações que, não tendo conteúdo econômico, não são avaliáveis pecuniariamente.

Cordeiro cita Paulo Cunha, ao afirmar que a suscetibilidade da avaliação pecuniária obedece a critérios empíricos e extra-jurídicos pois uma situação terá natureza econômica quando seja como tal reconhecida pelo sentir geral da sociedade em que o caso concreto esteja acontecendo. Por isso, não existe um critério uniforme de avaliação pecuniária: a natureza patrimonial tem de ser aferida de acordo com as concepções dominantes em cada tipo de sociedade.

O autor chama de propriedade privada, os direitos subjetivos de natureza patrimonial.

Em sentido técnico-jurídico, propriedade designa o direito real cuja regulamentação consta dos artigos do Código Civil. Num sentido amplo, o termo traduz os diversos direitos de conteúdo patrimonial.

·   Noções de Constituição Patrimonial Privada: a sua Natureza Interdisciplinar

Ele aproxima as noções de Constituição e de Direito Patrimonial Privado e propõe o conceito de Constituição Patrimonial Privada que será: ”o conjunto sistematizado de normas e princípios dirigidos à regulamentação de situações jurídicas privadas de conteúdo econômico e que constam de determinada Constituição”. 

     Metodologia e Fontes

Quanto à Metodologia, pergunta-se qual a maneira de ordenar o material que integra a constituição patrimonial privada. O autor responde que uma das maneiras seria a de isolar da Constituição tudo o que sobre patrimônio fosse encontrado.

Um método por ele preferido seria partir das normas constitucionais que expressamente se dirigissem ao estatuto patrimonial privado e, a partir delas, extrapolar a constituição patrimonial. Recorrer-se-ia às restantes normas e princípios, na medida em que fosse necessário a integração, a orientação e a complementação do que ele chama de material recolhido.

A sistematização do material recolhido seria feita do seguinte modo:

NIVEL PRECEPTIVO (imediato):

Na área formal

–   fontes da normas patrimoniais

–   interpretação das fontes patrimoniais

–   estrutura da norma patrimonial

–   aplicação e sanções das normas patrimoniais.

Na área substancial

–   conteúdo da norma patrimonial

NÍVEL PROGRAMÁTICO

Na área substancial

–   conteúdo programático da norma patrimonial

·   Disposições constitucionais patrimoniais

O autor menciona, como exemplo, os preceitos constitucionais que mais têm relevância para o direito patrimonial privado, como o Direito de Propriedade Privada, Setores de Propriedade dos Meios de Produção, Iniciativa Privada.  Outros seriam Tarefas Fundamentais do Estado, Princípio da Igualdade, Garantias e condições de efetivação e Organização Econômica.

O autor menciona vários antecedentes históricos da Constituição Portuguesa até chegar nos dias de hoje, para justificar sua proposição.

NÍVEL PRECEPTIVO (aplicação imediata) – ÁREA FORMAL

Fontes do Direito Patrimonial

·   Segundo Cordeiro, a Constituição Portuguesa só pode ajudar indiretamente porque remete os termos do direito do direito è propriedade privada e a sua transmissão por vida ou por morte para a própria Constituição.

·   Quanto ao Princípio da Igualdade, o autor conclui que a situação patrimonial das pessoas só pode ser afetada por ato genérico ou seja, por ato perante o qual todos os cidadãos nacionais ( e nos casos previstos em norma também os estrangeiros e apátridas) se apresentem como iguais. Isso quer dizer que ou o ato atinge a todos como iguais ou será inconstitucional.

·   Quanto aos costumes, somente o Estado pode produzir atos genéricos desse tipo, pelo que, as fontes do direito material deverão estar compreendidas na noção de lei material, que deve ser entendida como disposição genérica proveniente de órgão estadual competente.

·   A Interpretação da Lei Patrimonial

A constituição não contém expressamente quaisquer regras de interpretação de fontes em geral ou da lei em especial. No entanto, as regras de interpretação constam de normas jurídicas em sentido próprio pois, nos casos concretos, a resolução se à luz de determinadas normas, que são as normas aplicáveis e é justamente a interpretação que permite descortinar quais são essas normas, as chamadas aplicáveis e as interpretativas.

Nesse ponto, o autor entende que as regras de interpretação devem estar inseridas no sistema de fontes em cuja ordem jurídica se integrem. 

A constituição patrimonial prescreve, como fontes do direito patrimonial, diplomas não inferiores a leis, decretos-leis ou decretos-regionais, concluindo-se, assim, que a interpretação patrimonial não pode constar de regras inferiores e, assim, entende-se que somente as leis federais podem dispor sobre a interpretação das fontes patrimoniais.

·   Estrutura do comando patrimonial

O comando abstrato se compõe de previsão e estatuição.

–   previsão quando descreve determinado evento, prevendo a sua eventual ocorrência;

–   estatuição associa à verificação dessa ocorrência certos efeitos em termos do dever ser. A descrição da ocorrência prevista ou dos efeitos estatísticos pode ser feita de 3 formas:

1)     descrição casuística de eventos – são os comandos concretos, ou seja, perde-se a natureza de norma por falta de generalidade;

2)     descrição de categorias conceituais abstratas – são normas jurídicas comuns;

3)     descrição tipológica de eventos , pela indicação dos seus traços específicos – é a tipicidade normativa.

A exigência de generalidade (porque a lei material é fonte de direito patrimonial)  exclui a regulamentação mediante descrições casuísticas.

Ao contrário do que acontece na matéria patrimonial, a Constituição ordena a estrutura das normas de outros ramos do direito. Assim, a tipicidade é obrigatória no Direito Penal ou Tributário, por exemplo

·    A Aplicação da norma patrimonial: as Sanções

São normatizadas pelo Código Civil, nos campos de aplicação do tempo e do espaço. Usando do mesmo raciocínio quanto às normas da interpretação, o autor entende que as disposições em vigor só podem ser alteradas, no tocante ao direito patrimonial, por leis federais. Ele diz ser este um princípio geral implícito na constituição patrimonial.

NÍVEL PRECEPTIVO (imediato): ÁREA SUBSTANCIAL

·   O Controle da norma patrimonial

Aqui o autor fala do ponto de partida da constituição patrimonial que é o preceito: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação econômica ou condição social”.

Este é um princípio fundamental do direito com especial incidência no campo patrimonial ou seja, todos devem ter iguais direitos patrimoniais.

·    A propriedade privada

A Constituição garante a todos o direito à propriedade privada, e a sua transmissão em vida ou por morte. O sentido exato desse preceito está de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 17.

O autor diz que o direito de propriedade privada, tal como resulta da constituição patrimonial, é um direito econômico, conferido por igual a todos os cidadãos e em termos de não poder ser arbitrariamente afetado. A determinação do seu âmbito é feita por exclusão de partes, razão que leva o autor a abordar outros tipos de propriedade.

Quanto ao setor público, o autor o define como sendo composto pelos bens e pelas unidade de produção coletivizados sob diversos modos sociais de gestão e explicita, nos termos da Constituição, quais são os bens e meios de produção que devem estar, obrigatoriamente, na titularidade do Estado e sob alguma forma de gestão, inclusive o setor cooperativo e seus princípios.

NÍVEL PROGRAMÁTICO (mediato)

·    Normas e Princípios Programáticos

Sobre este assunto, o autor diz que é nos Princípios Fundamentais que reside o sentido do desenvolvimento do nível programático constitucional, podendo-se dividi-los em dois grupos que se respeitam:

1)     O problema da transição para o socialismo

2)     A questão da apropriação de riquezas.

Sobre esses grupos,  o autor diz que estão evidentemente interligados mas que mesmo assim não consegue precisar juridicamente o que seja socialismo, deixando para a Ciência Política proceder à tal análise. Ele diz que o princípio programático essencial em matéria patrimonial é a apropriação coletiva dos principais meios de produção, devendo o Estado socializá-los.

Quanto à indenizações, o autor fala que a coletivização de bens e meios de produção é feita normalmente em detrimento do setor privado, mas que a Constituição preceitua “justa indenização”, para manter um equilíbrio patrimonial entre os diversos setores e não na pura e simples privação do direito de propriedade privada, até porque a constituição Portuguesa tem natureza de direito econômico e não de direito fundamental, na acepção liberal.

Quanto ao que o Autor chama de Plano e Circuitos Comerciais, diz que uma economia de mercado, dominada pela apropriação privada dos bens produtivos, funciona automaticamente de acordo com leis econômicas cuja autonomização de deve sobretudo aos trabalhos realizados pelos economistas liberais.

No que tange à posse útil e a propriedade social, o autor entende que não são inteligíveis as duas noções separadamente, embora as explique assim, por exclusão de partes:

–     a posse útil não é a gestão

–     a posse útil não é a propriedade

–     a posse útil não é a posse em sentido técnico real e

–     a posse útil não é um usufruto  ou um domínio útil de tipo enfitêutico.

O que o autor diz é que a posse útil designa o direito que os trabalhadores das unidades de autogestão têm de exercer sobre os meios e bens nelas integrados os poderes necessários à sua exploração. Diz ainda ele, que trata-s e de um novo tipo de direito patrimonial, mas que incompreensível fora do âmbito da autogestão.

·     PERFIL E SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

No nível preceptivo, a área formal da constituição patrimonial implica,  como fontes únicas, a lei, o decreto-lei e o decreto regional, sem prejuízo de uma parte reservada à leis federais.

As normas patrimoniais privadas podem estatuir com recurso a conceitos abstratos ou mediante previsões típicas, competindo a sua aplicação aos tribunais.

No nível programático, a propriedade privada é delimitada no seu âmbito, pelos dispositivos constitucionais que prevêem a integração da riqueza mais significativa da sociedade, através da coletivização em geral e da reforma agrária em especial, para junto com o governo, atingir a meta que é a propriedade social.

·   Sentido da Constituição Patrimonial Privada

Ela consagra com precisão um setor reservado à atividade econômica dos particulares, tratado pelo direito Privado, não podendo haver ingerências extra-jurídicas, nem atuações estaduais autoritárias sem prejuízo das exceções constitucionais. No interior do setor reservado ao Direito Privado deve imperar a igualdade, no sentido lato do termo.

O sentido último da constituição patrimonial privada é preservar a esfera dos particulares da ingerência arbitrária do poder público, através do direito Privado.

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[i] Cordeiro, Antonio Menezes. A Constituição Patrimonial Privada. Coimbra : Almedina, 1998. 


 

Referência  Biográfica

Donata A. Campos de Barros – Professora Universitária, mestranda e secretária geral da Ouvidoria Pública da    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Direitos autorais na Internet: uma questão cultural

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* Rodrigo Guimarães Colares 

           Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte Norte-Americana, já afirmou que "a informação deve ser livre como o ar", ao se referir a todas obras que se encontram no domínio público e que podem ser livremente reproduzidas, sem que haja necessidade de autorização prévia de qualquer pessoa.

            Na época, o eminente magistrado decidia acerca de um caso em que se discutia sobre obras que não atendiam ao requisito mínimo de "criação do espírito" como fator de proteção jurídica sob o direito de autor, tal qual a simples narração de fatos.

            O exato sentido em que esse critério de proteção será adotado varia de um país para outro, e muitas vezes a previsão é consolidada pelas leis e o entendimento é expresso pelos tribunais, a cada caso.

            Em países cujo sistema legal segue o common law, como os Estados Unidos da América, basta a obra não ser cópia de algo anterior. Já em países como o Brasil, que seguem a tradição do direito civil, a obra deve realmente ser considerada como algo original, que traduza o pensamento, o estilo ou qualquer sinal distintivo de autoria da pessoa que a fez.

            Em comum, os dois sistemas guardam o fato de que a qualquer obra autoral será concedida a respectiva proteção jurídica, sem necessidade de qualquer formalidade de registro perante um órgão, entendimento que está previsto desde 1886 pela Convenção de Berna, e que foi repetido ao longo dos anos por diversos outros tratados internacionais, como os elaborados pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

            Na legislação brasileira – mais especificamente na Lei nº 9.610/98, de direitos autorais, existem algumas hipóteses em que são permitidas a utilização de uma obra por qualquer pessoa, sem que isso implique em ilegalidade. Podemos dividi-las em duas categorias: elementos que não são objeto de proteção pelos direitos autorais, como textos de leis, tratados, convenções internacionais e decisões judiciais; e as exceções ao direito de autor, como a reprodução de pequenos trechos de uma obra, para uso privado do copista, sem o intuito de lucro.

            Se o juiz norte-americano tivesse decidido caso análogo sob as leis brasileiras, provavelmente ele estaria restrito a afirmar que apenas não seriam protegidas as informações de uso comum, tais como calendários, agendas ou cadastros, ou ainda simples constatações de fatos.

            De resto, são protegidas todas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, desde o convencional papel até o ambiente cibernético criado pela grande rede de computadores.

Internet e o fim da cultura anarquista

            Ocorre que muitas empresas pontocom, que se estabeleceram na Internet, estão utilizando material de terceiros sem qualquer permissão e, o que é pior, em boa parte das vezes suprimindo o nome do verdadeiro autor.

            Primeiro, é importante que tenhamos em mente o fato de que a lei existente e aplicável no território nacional será igualmente aplicável no ciberespaço. O tempo em que as condutas ilegais perpetradas pela Internet mantinham-se impunes já se foi, e muitos estão sentindo na pele tais impactos, por bem ou por mal.

            Há alguns anos, desde meados de 2001, depois do boom da economia digital, ao tempo em que a poeira da euforia se assentou, decretou-se o fim da cultura anarquista na arquitetura eletrônica global. Os vetores empresariais passaram a reger a nova economia, e aqueles que se mostraram alheios a este fato tiveram sua sepultura selada.

            Segundo, é imprescindível entendermos que a grande maioria das obras postas na rede mundial, como músicas, programas de computador, textos, e outras, têm proteção do direito autoral e seus conexos, e não pertencem ao domínio público.

            Assim, para qualquer forma de utilização que não consista em exceção legal, é necessário haver prévia anuência do titular de seus direitos. Ainda, ao se tratar de textos e outras obras autorais, a citação do nome do autor se demonstra imprescindível, e sua supressão caracteriza explícito dano moral, fazendo jus à respectiva indenização.

            As empresas e os usuários estão cada vez mais atentos aos ciberdireitos, ou direitos do mundo virtual, e têm procurado sua proteção por meio de atitudes preventivas como a análise jurídica de seus websites e de demais produtos e serviços de informática. Muitas vezes, quando essas precauções não bastam, recorrem-se aos tribunais para fazê-los valer.

Direitos autorais e as Cortes de Justiça brasileiras

            A Justiça brasileira, por sua vez, em muitos casos tem apresentado resultados surpreendentes, demonstrando o processo de atualização pelo qual nossos juizes têm passado, estando aptos a dirimir algumas questões oriundas dos mares de bits, mas às vezes pecando na aplicação direta da legislação existente.

            Em 10 de dezembro de 2003, o Juiz Luiz Sérgio Silveira Cerqueira, do IV Juizado Especial Cível do Recife, decidiu um caso sobre reprodução não autorizada e supressão de autoria de um texto na Internet.

            A empresa, conhecida como Hiway Internet Provider (ou CM Informática Ltda.), copiou um artigo científico, sem a autorização prévia e expressa do titular, Rodrigo Guimarães Colares (também autor deste artigo), e publicou-o em seu website (www.hiway.com.br), tendo, ainda, retirado o nome do verdadeiro autor do texto, expressamente creditando a propriedade e a feitura do texto para si, como se fosse uma notícia.

            Notícias podem ser consideradas apenas textos ou narrações que constatam fatos, de simples percepção ao homem médio. Quaisquer outros que, de alguma forma, necessitaram de habilidades ou do conhecimento específico do autor para serem produzidos, gozarão de proteção jurídica do direito autoral. Em apenas uma leva, causou danos patrimoniais e morais.

            Na verdade, o texto tratava-se de um estudo jurídico sobre a troca de arquivos na Internet, que fora anteriormente publicado em grandes portais, como Consultor Jurídico, InfoGuerra, Terra, e em jornais de alto renome, como o Jornal do Commércio de Pernambuco. Sempre com a chancela de seu autor e a devida citação de autoria, o que conferia legalidade à conduta dos publicadores.

            O Juiz Silveira Cerqueira condenou a empresa ré a pagar R$2.000,00 (dois mil reais) ao autor, a título de danos morais, por não ter registrado o nome do autor no artigo científico. Apesar de sermos da opinião de que o valor foi por demais baixo, pois o potencial ofensivo da conduta é deveras alto (na lei penal, punível com 2 a 4 anos de reclusão e multa), sem dúvida alguma, trata-se de um avanço para o Direito da Informática no Brasil.

            Todavia, o magistrado cometeu grave erro ao sentenciar no que tange o dano patrimonial. Decidiu que o autor, caso quisesse ver seu direito patrimonial sobre o artigo protegido, deveria ter inserido no material disponível na Internet "mensagem evidenciando a necessidade do pagamento de direitos autorais no caso de uso e reprodução das informações". Sob este argumento, tratou que o autor teria agido com culpa concorrente na publicação de seu artigo sem sua expressa autorização.

            Ora, tal assertiva se demonstra surreal à luz do ordenamento jurídico nacional e internacional, visto que a própria Constituição da República, em seu art. 5º, inc. XXVII, explicitamente prevê que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.

            Além disso, a Lei de Direitos Autorais, em seu art. 29, inc. I, dispõe que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como sua reprodução parcial ou integral.

            Para que haja ocorrência de dano patrimonial ao autor não é necessário que este tenha feito qualquer espécie de "reserva" de direitos, pois a legislação brasileira prevê o contrário, que deve haver autorização expressa do autor para que haja qualquer forma de utilização de sua obra por terceiros.

            Interpretar de maneira contrária, como decidiu o juiz pernambucano, de modo a imputar ao autor a responsabilidade de expressamente consignar em sua obra a necessidade de sua prévia autorização expressa para seu uso ou reprodução, é decidir contra legem, desprezando a letra da lei. É ferir entendimentos internacionais contidos na Convenção de Berna sobre Propriedade Intelectual de 1886 e colidir frontalmente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e com a Lei de Direitos Autorais de 1998.

            Decidir nesse sentido, em outras palavras, é abandonar todas as conquistas que os autores de obras intelectuais tiveram ao longo dos dois últimos séculos, quando não se encontravam à disposição do cidadão comum mecanismos legais de proteção à sua criação que pudessem garantir a devida contraprestação pelo trabalho desenvolvido, voltando à barbarie jurídica.

            O Brasil, juntamente com diversos outros países em todo o mundo, adotou o sistema do Droit d’Auteur, de influência preponderantemente francesa. No idioma anglo-saxão, os direitos de autor receberam o nome de copyrights, ou "direitos de cópia", porque estes são exatamente o pilar de sustentação de todos os outros direitos de exploração econômica da obra autoral.

            O que se viu na decisão proferida em processo que este autor promoveu contra empresa usurpadora de seus direitos foi algo teratológico, do qual, neste ponto específico, nada deve ser aproveitado para a posteridade dos estudos de direitos autorais, a não ser para a prevenção de atitudes que caminhem no mesmo sentido.

Considerações finais e reflexos econômicos

            Sob certo aspecto, a sentença proferida pelo magistrado pernambucano denota a percepção da importância da figura do autor em relação à sua propriedade intelectual, sem, contudo, corretamente quantificar seu valor.

            No que concerne às considerações sobre os direitos patrimoniais, o entendimento jurisprudencial brasileiro não deve rumar no caminho que deu o juiz pernambucano ao caso que decidiu. A eficaz proteção aos direitos autorais no ambiente digital depende de três fatores: tecnologia, direito e cultura. Uma sentença que despreze a transparência normativa estimula a cultura de desrespeito à ordem estabelecida, tornando inócua qualquer tentativa de proteção por meios tecnológicos complementares.

            A reiterada inobservância de preceitos básicos de proteção à propriedade intelectual pelo Estado, da forma como se constatou, pode ocasionar em sério risco de sofrermos retaliações internacionais, que poderiam acarretar em abalos catastróficos na nossa indústria de propriedade intelectual, que, aos poucos, tenta aparecer para o cenário mundial.

            Além de causar explícita lesão aos direitos de autor, isso poderia implicar na criação de barreiras alfandegárias que impediriam a transferência viável de royaties ao Brasil, além de sérias desvantagens nas negociações em blocos econômicos, num mercado de propriedade intelectual que movimenta bilhões de dólares todos os anos.

            No estágio em que nos encontramos, rumo a liderar o bloco da América Latina em suas negociações para planejamento da ALCA, não podemos ser vistos como desrespeitadores de tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual, principalmente no que se refere aos entendimentos firmados pela OMPI e pela OMC, quando não houver algum aspecto de suprema importância social que justifique. É uma questão não apenas de fiel atenção à Justiça, mas de sobrevivência política no mercado econômico.

            Há possibilidades de flexibilização dos direitos de autor (copyleft), como as trazidas pelas licenças públicas gerais disponibilizadas por entidades como a Creative Commons, em que se permite livre uso, cópia e distribuição de obras, sob expressa autorização de seu titular.

            Essa capacidade do autor de dispor de alguns direitos e tornar sua criação algo de livre distribuição é importantíssima e imprescindível a um desenvolvimento sustentável de democratização da informação, do conhecimento e da tecnologia para países como o Brasil.

            É uma alternativa legal que possibilita o livre uso de informações, estudos e até softwares, mas que é unicamente uma questão cultural, a ser adotada ou não pelo titular da obra. Afinal, "a informação deve ser livre como o ar", já prolatou o juiz norte-americano, contanto que respeitados os limites da legalidade.

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Referências

            Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School – http://cyber.law.harvard.edu

            COLARES, Rodrigo Guimarães. A troca de arquivos na Internet em um Brasil pós-Napster, in Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em http://conjur.uol.com.br/textos/21725/

            Creative Commons – http://creativecommons.org

            LEMOS, Ronaldo. Como o ar – quem é dono da informação na Internet? in KAMINSKI, Omar (Coord.). Internet Legal: o Direito na Tecnologia da Informação. Curitiba: Juruá, 2003. p. 229-230.

            World Intellectual Property Organization (WIPO) – http://www.wipo.org

 


Referência  Biográfica

Rodrigo Guimarães Colares  –  Advogado em Recife (PE); Integrante de Martorelli Advogados; Professor de Direito na pós-graduação em Gestão do Comércio Eletrônico da FAFIRE Business School (agregada à UFPE) e Diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI)

A Guarda Compartilhada, como um ato de amor

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* Clovis Brasil Pereira –

Introdução

É crescente no Brasil o número de separações e divórcios, e como conseqüência, dá-se o natural distanciamento entre  pais e filhos, já que na grande maioria dos casos, estes ficam sob a guarda e responsabilidade da mãe.

A rotineira fixação de visitas  pré-estabelecidas, em dias e condições pactuadas entre os separandos, se mostra muitas vezes insuficiente para atender a expectativa dos filhos, notadamente quando na tenra idade.

Certamente, a grande maioria não consegue assimilar e entender a nova situação criada, pois de um dia para o outro, se vêm distanciados do convívio do pai, antes sempre ou quase sempre presente, e agora um mero visitante ocasional.

Parece difícil para os filhos menores, entenderem a nova situação criada, notadamente quando não existe um diálogo franco, aberto, sem subterfúgios, entre pais e filhos, afinal, a interrupção da convivência entre os pais, não significa que ambos, pai e mãe, deixem de amar e  de querer bem, seus filhos.

O reflexo da separação, na maioria das vezes, se faz sentir no cotidiano dos filhos, que passam a se sentir desamparados, abandonados, esquecidos, notadamente pelo pai, quando é este que deixa o lar. Tal insatisfação, acaba resultando em rebeldia, baixo rendimento escolar, dificuldade no relacionamento com outras crianças, descontrole emocional, dentre outras atitudes negativas, que acabam por afetar grande parte das crianças e adolescentes.

É certo pois, que o modelo convencional de guarda e visita estabelecido pelos pais, quando da separação ou divórcio, não atende muitas  vezes, de forma  satisfatória o interesse dos filhos menores, pois estes  são surpreendidos com a separação repentina, e não estão preparados para viver a nova situação que acabou de se criada, notadamente no início da separação, quando a mãe geralmente assume o encargo da guarda, com todas as suas conseqüências, também desgastada emocionalmente, e dentro de uma nova realidade econômica, via de regra,  difícil de ser superada.

Num primeiro momento, a mãe passa a ver a guarda como um  ônus, notadamente, porque em razão da nova situação e necessidades,   sente a imediata necessidade de tentar se inserir no mercado de trabalho, quando não trabalhava, ou ainda, de ascender à melhor posição, quando já trabalha, com o intuito de aumentar sua renda, para enfrentar as dificuldades que de pronto, começam a aparecer.

As vantagens da  guarda compartilhada

Para superar tais dificuldades e obstáculos, surgiu em nosso ordenamento jurídico, a guarda compartilhada, como uma nova forma de relacionamento entre pais e filhos, quando da separação dos pais, e que consiste na possibilidade dos filhos  serem assistidos, concomitantemente, por ambos os pais, e estes  têm autoridade efetiva para agir e para tomar as decisões necessárias e prontas, quanto ao bem estar dos seus filhos.

Várias são as vantagens, ao nosso ver,  protagonizadas pela guarda compartilhada, em prol do bem estar dos filhos, e do fortalecimento dos laços de afetividade e confiança entre eles, dentre as quais destacamos:  o maior envolvimento do pai no cuidado dos filhos;  maior contato dos filhos com os pais, estreitando o relacionamento íntimo entre ambos – pais e filhos –  aumentando, consequentemente,  o grau de confiança e cumplicidade entre eles; as mães ficam liberadas em parte da responsabilidade da guarda unitária, que vigora como um primado cultural em nossa sociedade, liberando-a para buscar e perseguir  outros objetivos, que não seja apenas o de cuidar dos filhos.

Para tanto, o compartilhamento da guarda, exige uma comunicação efetiva, ágil e respeitosa entre os genitores, além de uma disponibilidade maior para atender as necessidades dos filhos, não para simplesmente vigiá-los, mas para que sintam segurança, amparo, retaguarda, para um crescimento harmonioso, notadamente  no plano emocional e  psicológico.

A Guarda Compartilhada na legislação brasileira

A legislação pátria já dá  a base legal para estimular a guarda compartilhada, com uma legislação moderna e avançada, que ainda contrasta com o arraigado preconceito machista, secularmente transmitido, de que o cuidado dos filhos, deve ser tarefa da mãe, cabendo ao pai, a responsabilidade de prover seus alimentos.

O  legislador, por outro lado,  vem introduzindo paulatinamente no ordenamento jurídico, vários normativos que por certo, acabarão por consolidar a guarda compartilhada, como um instrumento legal hábil para a melhoria da qualidade do relacionamento entre pais separados e seus filhos.

O marco decisivo para a implantação da guarda provisória,  encontramos na Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu artigo 226, § 3º e 4º,  o reconhecimento da união  estável entre homem e mulher como entidade familiar; o § 5º, do mesmo artigo, trouxe grande contribuição, ao regulamentar que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal serão exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. O artigo 229, da Carta Magna, atribui aos pais “o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”.

Posteriormente,  o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, Lei nº 8069/90, de forma objetiva, atribui em seu artigo 4º,  como dever da família, ao lado da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária.

Tal dispositivo contido no ECA, na verdade, deu efetividade ao artigo 227, da Constituição Federal, que consolida como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos fundamentais, dentre os quais, o direito à convivência familiar.

O ECA, no artigo 5º, proíbe em relação às crianças e adolescentes,  qualquer modalidade de discriminação, negligência, exploração e violência, determinando a punição dos responsáveis por qualquer atentado aos direitos fundamentais.  Nos artigos subseqüentes, trata das disposições que devem ser observadas e garantidos às crianças e adolescentes,  para a garantia dos direitos fundamentais assegurados no artigo 4º, já referido.

Mais recentemente, o Código Civil, Lei nº 10.406/2002, estabeleceu o Poder Familiar, em substituição ao  Pátrio Poder, adaptando a legislação infraconstitucional, aos princípios constitucionais da Carta de 1988, disciplinando o exercício do poder familiar pelo pai e pela mãe, sempre atento ao interesse do menor, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que a disciplina do exercício do poder familiar se encontra inserta no  artigo 1634 do Estatuto  Civil.

A guarda compartilhada como um ato de amor

Temos assim, todo o embasamento jurídico e legal para assegurar a guarda compartilhada como um direito/dever dos pais, com o objetivo de proporcionar aos seus filhos, uma assistência mais efetiva, notadamente  no campo emocional, afetivo e  educacional.  Basta que se vençam as barreiras culturais decorrentes do preconceito enraizado em nossa sociedade, de que a missão de cuidar dos filhos de pais separados, é primordialmente da mãe.

Por certo, ao longo do tempo, com o estímulo do legislador e com sustentação na jurisprudência de alguns Tribunais, estes mediante uma interpretação mais qualificada da legislação constitucional e infraconstitucional, o instituto da guarda compartilhada acabará vencendo os obstáculos decorrentes do preconceito e da formação cultural de nossa sociedade, e poderá se tornar uma opção de uso comum pelos separandos, pois entendemos, que mais do que uma guarda meramente legal,  é um instituto que se impõe  como um verdadeiro ato de amor.

 E qual é o pai e a mãe que não ama seus filhos?   
 


 

Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira –  O autor é Advogado,  Professor Universitário, Especialista em Direito Processual Cicil, Mestre em Direito, Coordenador e Editor do Site jurídico www.prolegis.com.br

E-mail para contato:  prof.clovis@54.70.182.189

 

Alimentos sem culpa

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* Maria Berenice Dias

Talvez não se tenha atentado ainda no alcance da alteração promovida pelo atual estatuto civil, desvinculando a responsabilidade alimentar da causa da separação. A possibilidade de não só o inocente, mas também o responsável pelo fim do casamento pleitear alimentos introduz profundas mudanças na obrigação alimentar decorrente da sociedade conjugal. Agora não mais se pode falar em apenamento tendo por pressuposto a culpa, eis reconhecido o direito do cônjuge de obter alimentos mesmo se foi o culpado pela separação. Assim, merece ser repensada a natureza do encargo que persiste depois da dissolução do casamento e pode onerar um inocente, impondo-lhe o dever de pagar alimentos em favor do culpado pelo desenlace do vínculo matrimonial.

O dever de mútua assistência, atribuído aos cônjuges quando do casamento, é que dá origem à obrigação alimentar. Trata-se de ônus que surge na solenidade do casamento e persiste mesmo depois de solvido o vínculo matrimonial. Somente a sua exigibilidade está condicionada ao rompimento do casamento. Por isso, o encargo alimentar sempre foi reconhecido como uma seqüela do dever de assistência, obrigação que decorre de imposição legal, no momento das núpcias. A responsabilidade recíproca pela subsistência do consorte é um dos efeitos do casamento, imposta coactamente, pois independe da vontade dos noivos. Ainda que o ônus assistencial seja recíproco, os alimentos revestiam-se – ao menos até o advento do atual Código Civil – de caráter punitivo-indenizatório, já que decorriam da condenação do cônjuge culpado em favor do consorte inocente.

A lei civil anterior, em sua redação original, apesar de impor a ambos os cônjuges o dever de mútua assistência, só previa a obrigação alimentar do marido em favor da mulher inocente e pobre. Quando da edição do Código Civil de 1916, vigorava o princípio da indissolubilidade do casamento, eis que só se extinguia pela morte de um dos cônjuges ou pela anulação do casamento. Havia, porém, a possibilidade de o matrimônio terminar pelo desquite, o que dava ensejo à separação de fato dos cônjuges e à dispensa do dever de fidelidade, além de pôr fim ao regime de bens. No entanto, mantinha-se inalterado o vínculo matrimonial. Mesmo estando desquitados, como o casamento não se dissolvia, o encargo assistencial permanecia, ao menos do homem para com a mulher, a depender de sua inocência e necessidade, assim reconhecida na ação de desquite.

Com o advento da Lei do Divórcio, o dever de alimentos entre os cônjuges passou a ser recíproco, mas imputável somente ao responsável pela separação. Aquele que teve conduta desonrosa ou praticou qualquer ato que tenha importado em grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum, era condenado a pagar alimentos ao consorte que não teve culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Da redação do artigo 19 da Lei do Divórcio, a única conclusão que se podia extrair era que o culpado pela separação não tinha direito a alimentos, mesmo que deles necessitasse. Somente o responsável pela separação tinha a obrigação de pagar alimentos a quem não havia dado causa ao fim do casamento. Exclusivamente o inocente fazia jus à pensão alimentícia. Até a  simples iniciativa judicial de buscar a separação excluía o direito de pleitear alimentos.

Nada previa a lei divorcista sobre a obrigação de sustento quando não se conseguisse identificar qual dos cônjuges era o culpado, bem como nada era dito se fosse reconhecida a culpa de ambos pelo fim do casamento. Dessa tarefa desincumbiu-se a jurisprudência, admitindo a obrigação mesmo quando não identificadas responsabilidades. Reconhecida a culpa recíproca, simplesmente não se cogitava de alimentos.

A separação judicial – tal como o desquite – rompe, mas não dissolve a sociedade conjugal, ao contrário do que ocorre no divórcio, que põe fim ao casamento. Ainda assim, mesmo findo em definitivo o matrimônio, perdura o dever de mútua assistência, uma vez que permanece a obrigação alimentar entre o par depois de divorciados. Apesar de a Lei do Divórcio não dizer isso expressamente, não se pode chegar a outra conclusão. Estabelece a lei que cessa o crédito alimentar somente pelo novo casamento do beneficiário. Como só há a possibilidade de novo casamento após o divórcio, o dispositivo deixa claro que persiste o encargo mesmo estando os cônjuges divorciados.

A Lei do Divórcio assegurava alimentos somente ao cônjuge inocente, pois se tratava de encargo imposto ao culpado pelo término da sociedade conjugal. Por conseqüência, a demanda alimentícia necessariamente envolvia a perquirição da causa do rompimento da vida em comum para responsabilizar um de prover o sustento do outro. O autor da ação, para ser contemplado com alimentos, necessitava provar, além de sua necessidade, sua inocência, bem como a culpa do réu.

Já na legislação que regulamentava a união estável, em matéria de alimentos, os conviventes gozavam de uma situação privilegiada, se confrontada com o casamento. Quando da regulamentação infraconstitucional do novo instituto, o encargo alimentar não restou condicionado à postura dos parceiros pelo fim do relacionamento. A ausência do elemento culpa pelo término da união estável limitava, com vantagem, o âmbito de cognição da demanda alimentária, se comparada com a ação decorrente da relação de casamento. Tal incongruência passou a ser encarada pela jurisprudência como nítida afronta ao princípio da isonomia. Como a Justiça não consegue conviver com o imponderável, nem dar tratamento diferenciado e mais restritivo a direitos de igual natureza (eis originários de uma vinculação afetiva), passou a ser dispensada a perquirição da culpa quando a lide envolvesse cônjuges.

No Código Civil vigente, a responsabilidade alimentar recebeu tratamento único. De modo expresso, o artigo 1.694 prevê a possibilidade de parentes, cônjuges e companheiros pedirem alimentos uns aos outros para viver de modo compatível com a sua condição social. Todos os beneficiários, filhos, pais, parentes, cônjuges, companheiros, enfim, todos os que fazem jus a alimentos têm assegurado a mantença do padrão de vida que sempre desfrutaram.

A grande novidade introduzida na nova consolidação civil foi conceder, mesmo ao culpado pelo nascimento do encargo – ou seja, o culpado pela separação – direito a alimentos. A diferença é meramente quantitativa. Os alimentos permitem viver de modo compatível com a condição social. Ao culpado, no entanto, o valor dos alimentos é restrito a garantir sua sobrevivência. Essa dicotomia trouxe para a esfera legal a diferenciação entre alimentos civis e naturais, consolidando diferenciação de há muito sustentada pela doutrina e que dispunha de livre trânsito na jurisprudência. A distinção entre alimentos para viver de modo compatível com a condição social e alimentos em valor indispensável à sobrevivência era feita ao se quantificarem alimentos devidos aos filhos e alimentos a serem pagos ao ex-cônjuge. Enquanto o encargo decorrente do poder familiar era fixado em valor proporcional às condições econômicas do genitor, os alimentos com origem no casamento se limitavam a atender à necessidade do alimentando de forma a prover sua subsistência com dignidade. Somente os filhos, e não os cônjuges ou companheiros, tinham direito de viver com a mesma qualidade de vida do alimentante.

A diferenciação introduzida no Código Civil, no entanto, tem distinto pressuposto, pois serve exclusivamente para limitar os alimentos em favor do culpado pelo surgimento do estado de necessidade, sem questionar quem são os benefíciários. Assim, persiste a intenção do legislador de punir o responsável pelo surgimento do encargo alimentar. Ainda que sem o rigorismo anterior, continua sendo penalizado quem ousa se afastar do casamento adotando atitudes inadequadas à vida em comum. Somente perceberá o quanto baste para sobreviver.

Não diferencia a lei nem a natureza nem a origem da obrigação para restringir o valor do pensionamento em favor de quem dá ensejo à exigibilidade da obrigação. Tornou-se necessário identificar não só a culpa do cônjuge. A responsabilidade de todos os credores de alimentos também precisa ser perquirida. Portanto, nas demandas alimentícias de qualquer ordem passou a haver a necessidade de desvendar o motivo do surgimento da obrigação  para a fixação do valor da pensão alimentar. A penalização atinge todo e qualquer beneficiário que culposamente tenha dado causa à necessidade alimentícia. Pelo que está posto na lei, a restrição quantitativa do valor dos alimentos ocorre até quando o ônus decorre das relações de parentesco. Dita limitação tem sido alvo de acirradas críticas.

Ainda que não se possa deixar de reconhecer que a limitação constante do § 2º do artigo 1.694, referente à culpa do alimentando, também se dirige aos parentes e aos egressos da união estável, os dispositivos legais que, de forma mais incisiva, restringem a obrigação a simples garantia de subsistência fazem menção exclusivamente à relação de casamento. Tanto o artigo 1.702 como o artigo 1.704 e seu parágrafo único falam em “separação judicial”, “cônjuge inocente”, “cônjuge separado judicialmente” e “cônjuge declarado culpado”, levando em consideração a postura dos partícipes da relação de casamento. Assim, parece que somente quando buscados alimentos entre cônjuges é que a lei questiona a conduta do autor da ação no desenlace da convivência marital, em face da possibilidade de o valor do encargo sofrer limitações. Em vez de os alimentos garantirem a mantença da condição de vida do ex-cônjuge, podem ser fixados em montante a permitir-lhe exclusivamente o atendimento do mínimo vital. Porém, quando a origem do encargo alimentar decorre de um relacionamento estável, não há dita limitação. O convivente, ao acionar o ex-companheiro, não está sujeito a questionamentos sobre sua eventual culpa pelo fim da união de fato. Exclusivamente o cônjuge estaria sujeito ao risco de sofrer o achatamento do valor dos alimentos e os ver limitados a assegurar sua sobrevivência. Na união estável, como nada é perquirido a respeito da postura dos conviventes, os alimentos sempre seriam fixados de forma a permitir que o ex-parceiro viva de modo compatível com a condição social que usufruía durante a vida em comum.

Não há como não visualizar nesse discrímine legal afronta ao princípio da isonomia. Faltando razoabilidade à diferenciação levada a efeito pela lei, mister eliminar a culpa para o efeito de fixar alimentos ao cônjuge. Impositivo acabar com essa distinção, que não se coaduna com o sistema jurídico. A jurisprudência necessita continuar com a mesma orientação e ignorar injustificáveis diferenciações. O raciocínio que prevaleceu em face das distinções discriminatórias entre as leis reguladoras do divórcio e da união estável precisa ser novamente invocado. Descabe diferenciar cônjuges e conviventes, casamento e união estável.

As previsões legais que ensejam redução dos alimentos, sendo excludentes de direitos, merecem interpretação restritiva. Como a lei não impõe limitações quantitativas ao valor dos alimentos na união estável, não pode estar sujeita a tais restrições a obrigação decorrente da relação de casamento. Tanto os cônjuges como os conviventes não devem estar sujeitos à identificação de culpa ou de inocência, quer quem precisa de alimentos, quer quem deve pagar alimentos. É necessário subtrair toda e qualquer referência de ordem motivacional sobre o desenlace do vínculo afetivo tanto para deferir alimentos como para quantificar o seu valor. Assim, no casamento e na união estável, sendo o cônjuge ou o convivente desprovido de recursos, o outro lhe pagará pensão alimentícia. Mais uma vez, a solução é invocar os princípios da igualdade e simplesmente não condicionar o quantum alimentar à conduta culposa do par.

Imperioso é ressaltar que somente a restrição quanto à culpabilidade é que cabe ser afastada. No que o caput do artigo 1.704 tem de vantajoso, ou seja, ao agregar benefícios em favor da relação de casamento, é necessário estender seu âmbito de incidência à união estável, sob pena de se infringir mais uma vez o dogma da igualdade. Por conseqüência, cônjuges e companheiros têm direito a alimentos, mesmo depois de cessada a vida em comum. Desse modo, se depois de separados, não só o cônjuge, mas também o convivente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los. Essa é a única leitura que se pode fazer do texto da lei. Outro não pode ser o raciocínio, sob pena de se afrontar a principiologia constitucional que sustenta o sistema jurídico. Mais. Como os alimentos são irrenunciáveis, ainda que tenha havido renúncia, desistência ou mera dispensa na separação, no divórcio ou na dissolução (contratual ou judicial) da união estável, qualquer dos cônjuges ou conviventes pode a qualquer tempo pleitear alimentos. Basta exsurgir a necessidade.

Seqüela outra decorre de uma leitura mais atenta de tais dispositivos legais. Afastada a causa prejudicial para a constituição da obrigação alimentar, qual seja, a identificação da responsabilidade pelo fim do casamento, resta esvaziado de conteúdo o parágrafo único do artigo 1.704. Necessidade e possibilidade são os únicos balizadores para estabelecer a obrigação alimentar. Esse direito pode ser reconhecido quando do fim da relação ou em momento posterior, depois de o par já se encontrar apartado, quer pela separação judicial, quer pelo divórcio, quer pelo término da união estável. Descabido dar tratamento diferenciado a cônjuges e conviventes. Excluído o elemento culpa, não há como subsistirem as outras limitações constantes no referido parágrafo. Como não mais se questiona culpa para a concessão de alimentos, o culpado faz jus à pensão alimentar. Não é possível outra conclusão ao extirpar-se da lei o que ela tem de inconstitucional. Basta aferir a necessidade de quem pede e a possibilidade daquele a quem se pede para ser imposto o dever de alimentos. Não mais permanecem os pressupostos limitantes do parágrafo único do artigo 1.704. Como não se pode mais falar em culpa, não há motivo para repassar o encargo a parentes com condições de prestar os alimentos. Igualmente, a capacidade laborativa do alimentando não carece ser investigada. Cabe, tão-só, aferir a presença do binômio possibilidade-necessidade. E, como necessidade não se confunde com potencialidade para o desempenho de atividade laboral, a existência de condições para o trabalho não veda a concessão de alimentos. Somente a ausência da necessidade, ou seja, a percepção de ganhos capazes de prover a própria subsistência é que pode liberar o cônjuge ou companheiro do dever de pagar alimentos. Portanto, mesmo sendo culpado, mesmo tendo parentes em boas condições financeiras, mesmo possuindo aptidão para o trabalho, tanto o cônjuge como o companheiro podem pleitear alimentos do ex-parceiro.

Merece aplausos a novidade introduzida pela nova lei, que afasta o caráter punitivo da obrigação alimentar, postura que se afina com as legislações mais modernas e a doutrina contemporânea que atenta na dignidade da pessoa humana. Negar alimentos a quem necessita é, quiçá, condenar à morte quem cometeu o crime de se afastar do casamento. Ainda que conflitos surjam ao término de alguns relacionamentos afetivos, não há uma guerra declarada, única hipótese em que a Constituição Federal prevê a pena de morte.
 

 


Referência  Biográfica

Maria  Berenice Dias  –  Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Direito e Estado: uma correlação entre Kelsen e Gramisci

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* Daniel Cavalcante Silva 

"A luta política transforma-se numa série de episódios pessoais entre quem é bastante esperto para se livrar das complicações e quem é enganado pelos próprios dirigentes e não quer se convencer disso por causa de uma incurável estupidez."

Antonio Gramsci – Cadernos do Cárcere: Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política.

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            O presente estudo visa fazer uma análise sistemática do tema "Direto e Estado", na concepção aventada por Hans Kelsen em sua obra "Teoria Pura do Direito", correlacionando-a com um entendimento de "Direito e Estado" nas entrelinhas do pensamento de Antonio Gramsci em sua obra "Cadernos do Cárcere", Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política.

            O pano de fundo da temática é o exame da possibilidade de que os autores supracitados possam comungar de um mesmo entendimento acerca do "Direito e Estado". A fundamentação basilar da idéia de "Direito e Estado", no presente estudo, está adstrita à obra de Kelsen. No entanto, ao criticar algumas idéias de Karl Marx, Antonio Gramsci vai incidir justamente na essência do "Direito e Estado", mormente explicitada por Kelsen. Embora as obras de Kelsen e Gramsci, ora em análise, fossem concebidas numa época bem contemporânea, tinham conteúdos ideológico-doutrinários totalmente diversos.

            O jurista austro-húngaro Hans Kelsen, no início do século XX, apresentou a sua obra "Teoria Pura do Direito", segundo a qual havia sido desenvolvida como sendo purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, ou seja, uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter alcançado, no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com esses termos que o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida. Para alcançar tais objetivos, Kelsen utiliza o sentido de "pureza" como metodologia tendente a libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhes são estranhos, como medida, inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina jurídica, que, segundo ele, vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos, políticos, psicológicos, filosóficos, etc.

            É sob esta perspectiva metodológica que Kelsen desenvolve o capítulo destinado a analisar "Direito e Estado", Capítulo VI da obra "Teoria Pura do Direito". Nesse sentido, Kelsen passa a tecer as diferenças que costumam caracterizar como oposição entre autonomia e heteronomia da teoria jurídica, essencialmente no domínio do Direito do Estado. O problema aventado inicialmente por Kelsen perpassa na identificação da forma do Estado e como trabalhar a questão relativa ao método de criação do Direito.

            Kelsen, então, passa a demonstrar o dualismo tradicional entre Estado e Direito, bem como a sua função ideológica. Nesse sentido, Kelsen explica:

            "O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em qualquer sentido. Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de fazer direito." [01]

            Amiúde à concepção dualística entre Estado e Direito, Kelsen passa a verificar a identidade do Estado e do Direito, o que é a essência de sua obra e que é de relevante interesse ao presente estudo. É evidente para Kelsen que a relação designada como poder do Estado se distingue de outras relações de poder pela circunstância dela ser juridicamente regulada, o que significa que os indivíduos que, como o Estado, exercem poder, recebem competência de uma ordem jurídica para exercerem aquele poder por intermédio da criação e aplicação de normas jurídicas.

            Segundo Kelsen, o poder do Estado não é uma força ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do Direito. Ele não é senão a eficácia da ordem jurídica, razão pela qual poder do Estado tem caráter normativo. Dessa ilação, Kelsen supera o que conjeturou inicialmente sobre o dualismo entre Estado e Direito, pois todo Estado teria de ser um Estado de Direito no sentido de que todo Estado é uma ordem jurídica.

            Partindo da perspectiva kelseniana acima aludida, cumpre evidenciar que ela também era corroborada, embora de maneira diversa, na obra de Antonio Gramsci. É necessário esclarecer que tais autores, embora seguissem correntes doutrinárias totalmente diversas, tinham pensamentos convergentes acerca da importância e aplicabilidade prática do Direito no Estado.

            Gramsci, na sua obra "Cadernos do Cárcere", Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política, chega ao entendimento da importância do Direito no Estado ao criticar o que Karl Marx chamava de "superestrutura". O conceito de "superestrutura" pode ser balizado de maneira mais didática por Raymond Aron, que, na sua obra "O Marxismo de Marx", explica:

            "Em toda sociedade podem-se distinguir a base econômica, ou infra-estrutura, e a superestrutura. A infra-estrutura constitui-se essencialmente por forças e relações de produção, enquanto na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas, ao mesmo tempo em que as maneiras de pensas, as ideologias e as filosofias." [02]

            Não obstante, Gramsci, ao analisar a "superestrutura" propugnada por Marx, verificou que tal "superestrutura", conquanto opere essencialmente sobre forças econômicas, que se reorganiza e se desenvolve no aparelho de produção econômica, não poderia ser abandonada a si mesma, a seu desenvolvimento espontâneo, a uma geminação casual e esporádica. A crítica de Gramsci tem respaldo no fato de que Marx parte de um critério político-ideológico, no caso a Teoria das Revoluções e das lutas de classes (relação de produção), para conceber o Direito.

            O ponto de partida dessa análise é a definição de Estado, que permite estabelecer a relação existente entre essa superestrutura complexa e a estrutura social. Para Gramsci, "o Estado não é concebível mais que como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção" [03]. O Estado é, assim, a expressão, no terreno das superestruturas, de uma determinada forma de organização social da produção. As relações entre Estado capitalista e o mundo econômico (relações entre superestrutura e estrutura) não podem ser determinadas de maneira fácil sob a forma de um simples esquema. Para entendê-las é preciso ter em mente que esses dois conjuntos formam uma totalidade que possui, em seu interior, diversas temporalidades.

            O desenvolvimento destes conjuntos encontra-se intimamente vinculado e marcado por influências, ações e reações recíprocas, pelas lutas que protagonizam as classes em presença e as formas superestruturais destas no terreno nacional e internacional. Reconhecer esses vínculos não implica em admitir que transformações no mundo econômico provoquem uma reação imediata a modificar as forma superestruturais, ou vice-versa. Um certo descompasso entre as mudanças ocorridas nesses conjuntos é, até mesmo, previsível, muito embora exista uma tendência à adequação de um a outro. Esta tendência não é, senão, a busca de uma otimização das condições de produção e reprodução das relações sociais capitalistas através da unidade econômica e política da classe dominante, unidade que se processa no Estado.

            Desta forma o Estado é concebido, segundo Gramsci, como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo. Essa expansão para ser eficazmente levada a cabo, não pode aparecer como a realização dos interesses exclusivos dos grupos diretamente beneficiados. Ela deve apresentar-se como uma expansão universal (expressão de toda a sociedade), por intermédio da incorporação à vida estatal das reivindicações e interesses dos grupos subalternos, subtraindo-os de sua lógica própria e enquadrando-os na ordem vigente. Incorporação essa que é o resultado contraditório de lutas permanentes e da formação de equilíbrios instáveis e de arranjos de força entre as classes. Processo limitado pelas necessidades de reprodução da própria ordem e que se restringe, portanto, ao nível das reivindicações econômico-corporativas.

            Fica claro que a definição de Estado até aqui esboçada procura evitar uma concepção que o reduz ao aparelho coercitivo. A construção do consenso também encontra lugar nesse Estado. O Estado tem, dessa maneira, um caráter dual, meio homem, meio animal, como o centauro maquiavélico. Chega-se ao ponto da exposição no qual se faz necessário precisar os contornos do Estado para Gramsci. O Estado é entendido em seu sentido orgânico e mais amplo como o conjunto formado pela sociedade política e sociedade civil, ou para retomar uma fórmula já clássica (Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia encouraçada de coerção).

            Tomem-se estes dois termos chaves: sociedade política e sociedade civil. O conceito de sociedade política está claro no texto gramsciano. Trata-se do Estado no sentido restrito, ou seja, o aparelho governamental encarregado da administração direta e do exercício legal da coerção sobre aqueles que não consentem nem ativa nem passivamente. Gramsci não perde, em momento nenhum, esta dimensão do Estado, ou seja, não perde de vista sua dimensão coercitiva, muito embora não reduza o Estado a ela. É justamente nesse ínterim que Gramsci se contrapõe à superestrutura marxista.

            Um erro na superestrutura de Marx, segundo Gramsci, foi o de crer que o Estado se reduz a um simples aparato político. Na verdade, o Estado atua não apenas com a ajuda do seu aparato político, como também por meio de uma ideologia que descansa em valores admitidos que a maioria dos membros da sociedade tenha como supostos. A referida ideologia engloba a cultura, as idéias, as tradições e até o sentido comum.

            Por outro lado, convém explicar que Karl Marx, na sua fase conhecida como "o jovem Marx", ao elaborar a "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", chegou à ilação de que o poder soberano do Estado seria a universalidade da constituição e das leis. Para Marx "o homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal." [04] Essa dedução, porém, teve por escopo rechaçar os fundamentos do Direito de Hegel na defesa da monarquia constitucional, cuja acepção baseava-se que a justificativa do Direito do Estado estaria na relação absoluta das formas de crença.

            Ao contrário do que pareça, a crítica feita por Marx o serviu para absorver e subtrair elementos as idéias de Hegel, com o objetivo, desvendado por Raymond Aron, de elaborar a concepção futura do materialismo histórico (teoria geral da sociedade). Para Aron, a partir dos temas marxistas que foram encontrados no "Manifesto Comunista" é que se pôde explicar a teoria geral da sociedade (que seria também chamada de materialismo histórico) e as idéias econômicas de Marx.

            Portanto, somente na "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" é que Marx desenvolveu uma breve consideração à importância da ligação do Estado e o Direito. No entanto, no decorrer de sua trajetória filosófica, Marx relegou o Direito como sendo parte de uma "superestrutura" da base econômica. O viés atribuído por Marx ao Direito, como já foi dito alhures, o remete ao critério político-ideológico, sem, contudo, observar que a "superestrutura" não se desenvolveria de forma espontânea. Em outras palavras, o direto não estaria adstrito à "superestrutura", mas seria pré-existente a ela. É necessário esclarecer que Marx não relega o Direito, mas remete a sua concepção a um critério político-econômico de implementação.

            Foi justamente esse entendimento que levou Gramsci, que embora fosse um dos mais ferrenhos defensores das idéias de Marx, a criticá-lo em relação ao que se convencionou chamar de "superestrutura" como ideário em si. Seguindo essa crítica, Gramsci explicita que:

            "Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadãos (e, portanto, de conivência e de relações individuais), tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para esta finalidade (ao lado da escola e de outras instituições e atividades) e deve ser elaborado para ficar conforme a tal finalidade, ser maximamente eficaz e produtor de resultados positivos." [05]

            Nesse sentido, o Direito, na concepção de Gramsci, deveria ser libertado de todo resíduo de transcendência e de absoluto, bem como praticamente de todo fanatismo moralista, mas com o objetivo de lutar contra a "periculosidade" social. O Estado, para Gramsci, deveria ser concebido como "educador", razão pela qual o direito passaria a ser um instrumento de racionalização, como um aspecto repressivo e negativo de toda atividade positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado. A idéia de racionalização do Direito do Estado estaria intimamente ligada às concepções kelsenianas.

            Embora Kelsen quisesse elaborar uma teoria do direito purificada de todo o viés da ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, ao contrário do viés político do Direito como fora conjeturado por Gramsci, ambos têm a idéia da essência exata do Direito no Estado, como sendo a implementação da eficácia da ordem jurídica, de acordo com a teoria pura de Kelsen, e seu reflexo na efetividade da Política, segundo as perspectivas de Gramsci.

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Referência Bibliográfica

            ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. Tradução de Jorge Bastos. São Paulo: Editora Arx, 2003.

            GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

            KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

            MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo, 2005.

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Notas

            01. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 316.

            02. ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. Tradução de Jorge Bastos. São Paulo: Editora Arx, 2003, p. 47.

            03. GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 36.

            04. MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo, 2005, p. 50.

            05. GRAMSCI. Antonio. Op Cit. 2002, p. 28.

 
 


Referência  Biográfica

Daniel Cavalcante Silva  –  Advogado em Brasília (DF), integrante do escritório MBSC Advogados Associados, pós-graduado no MBA de Direito e Política Tributária pela FGV Brasília

As provas ilícitas no processo brasileiro

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* José Olindo Gil Barbosa –

1. INTRODUÇÃO

            Segundo o ensinamento de ADA PELLEGRINI GRINOVER [01] , os direitos do homem não podem ser entendidos de forma absoluta. Assim, o princípio da convivência das liberdades deve ser respeitado de modo a não se tornar danoso à ordem pública e às liberdades alheias.

            O direito da parte de deduzir em juízo todas as provas relevantes à sua disposição não é absoluto. Há restrições.

            A Constituição Federal de 1988 ao tratar sobre o tema estabelece em seu art. 5° , inciso LVI, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

            Mas o que é prova? Prova é aquilo cujo escopo é estabelecer uma verdade por verificação ou demonstração. Ou, como no conceito de VICENTE GRECO FILHO [02], para quem "A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é o seu destinatário. No processo, a prova não tem um fim em si mesma ou um fim moral ou filosófico: sua finalidade prática, qual seja, convencer o juiz. Não se busca a certeza absoluta, a qual, aliás, é sempre impossível, mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado".

            O certo é que as provas servem à formação do convencimento do juiz e, ao mesmo tempo, cumprem também o papel de abonar perante a sociedade a decisão abraçada pelo magistrado.

            A prova, porém, para servir de sustentáculo a uma decisão judicial, há de ser obtida por meios lícitos, que não contrariem a moral e os bons costumes, que esteja dentro dos limites éticos do homem.

            É importante a lembrança que o Pacto de San Jose da Costa Rica, a chamada Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que faz parte do sistema constitucional da República Federativa do Brasil, que consagra o valor da vida privada e familiar, do domicilio e das correspondências, preceitua, nos seus artigos 9° e 11, que "ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação", garantindo a todas as pessoas o direito à proteção legal contra tais atos.

            Se assim não bastasse, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, em seu Artigo 12º, estabelece que "ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação", assegurando, também que contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei.

2. PROVA ILÍCITA – CONCEITUAÇÃO

            Segundo a eminente mestra ADA PELLEGRINI GRINOVER [03], sustentando-se em doutrina de NUVOLONE, a prova ilícita enquadra-se no grupo da prova vedada, entendida esta como a prova contrária, em sentido absoluto ou relativo, a uma específica norma legal, ou a um princípio de direito positivo.

            Segundo NUVOLONE, a prova é vedada, em sentido absoluto, quando o direito impede, sempre, sua produção. E o é em sentido relativo, quando o ordenamento jurídico, conquanto aceitando o meio de prova, condiciona sua licitude à observância de determinadas formas.

            Leciona, ainda, que a proibição tem natureza exclusivamente processual, quando for imposta em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo. Tem, ao contrário, natureza substancial quando, embora servindo, de forma imediata, também a interesses processuais, é vista, de maneira fundamental, em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo.

            A distinção é ressaltante, na seguinte medida: a transgressão do empecilho configura, nos dois casos, uma ilegalidade; mas enquanto no primeiro caso haverá um ato ilegítimo, no segundo caso haverá um ato ilícito.

            Ao lume dessas premissas, conclui NUVOLONE que a prova é ilegal sempre que caracterizar infração de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. A prova ilegal é o gênero, de que são espécies as provas ilegítimas e ilícitas.

            Em recente artigo o insigne mestre HUMBERTO THEODORO JÚNIOR [04], leciona que é certo que o compromisso do processo é com a verdade real. Salienta, contudo, que a atividade processual não poderá ficar distraída ou impassível à conduta ilícita da parte para influir na atividade do próprio órgão judicante.

            Assevera, ainda, que "quando veda a prova obtida ilicitamente, o que tem em mira o preceito constitucional não é o fato processual em si mesmo, mas a necessidade do coibir e desestimular a violação às garantias que a Carta Magna e o ordenamento jurídico que a complementa instituíram como regras indispensáveis à dignidade humana e à manutenção do império da lei".

            Certas provas ilícitas podem, ao mesmo tempo, ser ilegítimas, se a lei processual também atalhar sua produção em juízo. Nesta hipótese, como leciona ADA PELLEGRINI GRINOVER [05], será imperativo constatar se o impedimento processual de emprego é satisfatório para esvaziá-la, como acontece quando sua produção em juízo é passível de nulidade; ou se deverá persistir a ter em pensamento sua designação de "ilícita".

            Em sentido estrito, entende a eminente processualista, por prova ilícita, "a prova colhida com infringência às normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, freqüentemente para a proteção das liberdades públicas e especialmente dos direitos de personalidade e mais especificamente do direito à intimidade".

            As provas lícitas são, portanto, aquelas obtidas de forma correta, sob a prescrição da lei e da ética. Segundo o art. 332 do nosso Código de Processo Civil, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados nele, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. Nesse artigo estão as balizas legais e éticas das provas. Toda prova que foge desse parâmetro é ilícita e, portanto, imprestável. O Código de Processo Penal não contém dispositivo genérico ou abrangente no tocante a essa matéria, como o CPC, no sentido de estabelecer balizamento à produção de prova. Contudo, no título VII, do Livro I, inúmeras restrições à produção de prova são encontradas.

3. PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO – ADMISSIBILIDADE E INADMISSIBILIDADE DA SUA PRODUÇÃO

            No tocante a possibilidade da produção de provas obtidas por meios ilícitos, que não sejam consideradas ilegítimas pelo ordenamento jurídico, a jurisprudência e a doutrina pátrias sempre se posicionaram com decisões e opiniões diversas.

            É bom que fique enfatizado que provas ilícitas não se confundem com provas ilegais ou ilegítimas. De acordo com o já analisado, enquanto as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desobediência ao direito processual. Por sua vez, a provas ilegais seriam os gêneros do qual as espécies provas ilícitas e ilegítimas, pois se configuram pela obtenção com violação de natureza material ou processual ao ordenamento jurídico.

            Existe uma corrente doutrinária que defende a produção de provas ilícitas no processo, enquanto uma outra entende ser juridicamente impossível essa produção. Há outra, entretanto, que se posiciona de modo conciliador. Passemos a discorrer sobre cada uma delas.

            3.1 Corrente da admissibilidade

            Argumentam os defensores dessa tese que a prova obtida por meios ilícitos, não poderá ser alijada do feito, a não ser no caso de a própria lei assim o ordenar. Assim, a prova para ser afastada há de ser ao mesmo tempo ilícita e ilegítima.

            Advoga essa corrente que o problema da admissibilidade ou inadmissibilidade da prova não se refere ao modo de como foi obtida. Se ela no processo for consentida pela lei, in abstracto, sendo totalmente sem relevância o emprego dos meios para a sua obtenção.

            FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO [06], dentre os nacionais, é filiado a essa corrente doutrinária. Apóia-se ele no argumento de que se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, aceitável é que, se a prova ilicitamente obtida mostrar essa verdade, seja ela admissível, sem olvidar-se o Estado da persecução criminal contra o agente que infringiu as disposições legais e os direitos do réu.

            3.2 Corrente da inadmissibilidade

            Sustenta essa corrente que toda e qualquer prova obtida por meios ilícitos, deve ser de pronto rejeitada.

              ADA PELLEGRINI GRINOVER [07] diz que, nesses casos, incide a chamada "atipicidade constitucional", Isto é, a desconformidade do padrão, do tipo imposto pela Carta Magna. E, também, porque os preceitos constitucionais relevantes para o processo têm estatura de garantia, que interessam à ordem pública e à boa condução do processo, a contrariedade a essas normas acarreta sempre a ineficácia do ato processual, seja por nulidade absoluta, seja pela própria inexistência, porque a Constituição tem como inaceitável a prova alcançada por meios ilícitos.

            Um dos grandes advogados dessa corrente é o Ministro do Supremo Tribunal Federal , CELSO DE MELLO [08], que em recente julgamento naquela corte de Justiça proferiu voto em defesa da imprestabilidade das prova obtidas por meios ilícitos. Argumenta ele nesse voto que "a absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário. A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. Prova ilícita, sendo providência instrutória eivada de inconstitucionalidade, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica".

            3.3 Corrente da teoria da proporcionalidade

            Advogam os defensores dessa corrente que a prova colhida com transgressão aos direitos fundamentais do homem é totalmente inconstitucional e, conseqüentemente, deve ser declarada a sua ineficácia como substrato probatório capaz de abalizar uma decisão judicial. Porém, há uma exceção: quando a vedação é amainada para acolher a prova contaminada, excepcionalmente e em casos extremamente graves, se a sua aquisição puder ser sopesada como a única forma, possível e admissível, para o abrigo de outros valores fundamentais, considerados mais urgentes na concreta avaliação do caso.

            Em nosso País, essa teoria é adotada, com reservas, pela jurisprudência, mais acentuadamente em matéria processual civil, sobretudo nas causas de direito de família.

            Essa teoria é duramente criticada por alguns doutrinadores. Argumentam eles que essa solução, quando adotada, acarreta a possibilidade de dar margem em demasia a influência de fatores meramente subjetivos pelo julgador.

            NELSON NERY JÚNIOR [09] tem uma opinião bastante interessante no tocante a essa possibilidade:

            "Não devem ser aceitos os extremos: nem a negativa peremptória de emprestar-se validade e eficácia à prova obtida sem o conhecimento do protagonista da gravação sub-reptícia, nem a admissão pura e simples de qualquer gravação fonográfica ou televisiva. (A propositura da doutrina quanto à tese intermediária é a que mais se coaduna com o que se denomina modernamente de princípio da proporcionalidade), Devendo prevalecer, destarte, sobre as radicais".

            3.4 Corrente da prova ilícita pro reo

            A prova que venha a ser obtida por meios ilícitos, em matéria penal, quando favorável ao acusado, ou seja, pro reo, vem, sistematicamente, sendo acolhida com calmaria não apenas junto aos doutrinadores como também à jurisprudência, em obediência ao direito de defesa e ao princípio do favor rei. Como se vê, essa posição suaviza, indubitavelmente, o rigorismo da não aceitação incondicional das provas ilícitas. Nessas hipóteses o sujeito encontrar-se-ia em circunstância de verdadeiro estado de necessidade, que é umas das causas, como sabemos, de exclusão da antijuridicidade, vendo-se compelido ao uso de prova ilícita em defesa da sua liberdade.

4. PROVA ILÍCITA NO PROCESSO – CONSEQÜENCIAS

            Uma vez no bojo do feito a prova obtida por meio ilícitos deverá ser de lá desentranhada, visto que sendo inadmissível a sua produção pela Constituição pátria, como já salientado anteriormente, não pode ser considerada como prova, juridicamente falando.

            Ela inidônea e imprestável para servir de base a uma decisão judicial para todos os efeitos. Ineficaz, portanto. Se não for desentranhada do processo, deve ser totalmente desconsiderada para efeito de decisão, sob pena de se macular, irremediavelmente, todo o processo judicial. A decisão judicial que tenha por sustentáculo provas ilícitas desfavorável ao réu é totalmente nula e passível de desconstituição via revisão criminal.

            O nosso Código de Processo Penal é silente quanto às conseqüências da introdução de provas ilícitas no processo. Entretanto, o Código de Processo Penal Militar, mais especificamente no seu art. 375, preceitua que deverão ser desentranhadas do processo as correspondências particulares obtidas por meios criminosos.

5. INTERCEPTAÇÕES E GRAVAÇÕES NÃO AUTORIZADAS

            O renomado HUMBERTO THEODORO JÚNIOR [10], ao tratar do tema em recente artigo, invocando a Carta Magna, afirma com muita propriedade que "entre as garantias fundamentais a Constituição inclui a vedação ao uso em processo de "provas obtidas por meios ilícitos" (art. 5º, inc. LVI). E entre estas o problema mais freqüente e complexo refere-se à tutela, também fundamental, à inviolabilidade do sigilo da correspondência e da intimidade (art. 5º, XII e X)".

            Continuando, leciona o insigne mestre que "a vedação de provas obtidas por meio de escuta e gravação de comunicações telefônicas foi categoricamente proclamada pela Carta Magna, que somente a excepcionou para a investigação do processo criminal e mediante prévia autorização judicial. No cível, portanto, jamais se poderia utilizar, como prova lícita, a obtida por meio de interceptação telefônica".

            A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem, reiteradamente aceitando como lícita a prova sustentada em gravação feita por um dos interlocutores. Vejamos uma dessas decisões:

            "PROCESSUAL – GRAVAÇÃO DE CONVERSA AUTORIZADA POR UM DOS INTERLOCUTORES – CONTROVÉRSIA – 1. A jurisprudência desta Corte tem firmado o entendimento de que a gravação de conversa por um dos interlocutores não configura interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal. 2. Para se verificar se houve a efetiva autorização ou não por parte do ora paciente, necessária seria a realização de dilação probatória, o que não se admite nesta via constitucional. 3. Não conheço do Habeas Corpus. (STJ – HC 14336 – RJ – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 18.12.2000 – p. 00224)"

            O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, também vem decidindo nessa mesma direção.

            "PROVA – Licitude. Gravação de telefonema por interlocutor. É lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista. (STF – HC 75.338-8 – RJ – TP – Rel. Min. Nelson Jobim – DJU 25.09.1998)"

            Essa posição, entretanto, não é aceita de maneira pacífica na Excelsa Corte. Entende alguns de seus membros, dentre eles o eminente CELSO DE MELLO [11] que as gravações feitas por um dos interlocutores, sem o prévio assentimento e conhecimento do outro é imprestável para servir de prova em processo judicial. Assevera o notável ministro que "a gravação de conversação com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento – precisamente por realizar-se de modo sub-reptício – envolve quebra evidente de privacidade, sendo em conseqüência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio. O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de que a conversação que mantém com outrem está sendo objeto de gravação atua, a meu juízo, como causa obstativa desse meio de prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade (CF, art. 5º, X) desautoriza o valor probante do conteúdo de fita magnética que registra, de forma clandestina, o diálogo mantido com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado. A gravação de diálogos privados, quando executada com total desconhecimento de um dos seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando o órgão da acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório".

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Considera a Constituição da República de 1988, de maneira categórica, serem inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Não obstante assim serem consideradas, a Constituição Federal não estabelece as conseqüências que resultam da circunstância de apesar do impedimento, a prova ter sido acolhida, vindo a introduzir-se no feito processual.

            Sendo as provas ilícitas, constitucionalmente consideradas como inadmissíveis, não podem ser tidas como prova em processo judicial. Como bem salienta ADA PELLEGRINI GRINOVER [12]: "trata-se de não-ato, de não-prova, que as reconduz à categoria da inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas; não têm aptidão para surgirem como provas, daí sua total ineficácia".

            Entendemos, portanto, que a noção de inadmissibilidade probatória encontra-se intimamente acoplada à questão da validade e eficácia dos atos processuais. Atua de forma abreviada, atalhando o acesso, no processo, do ato irregular. Assim deve abranger, não só o acesso jurídico da prova nos autos processuais, mas do mesmo modo sua admissão material nos feito, o que viria a impedir, com isso, influências indesejáveis sobre o convencimento do órgão judicante, seja ele monocrático ou colegiado. Por sua vez, a nulidade obetiva a extrair as conseqüências de um ato que venha a ser praticado de modo irregular.

            Não podemos esquecer, contudo, que a jurisprudência de nossas cortes, notadamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, têm esteado que a prova ilícita não gerará a nulidade dos autos processuais, se o decreto condenatório não estiver edificado unicamente na prova ilícita. Como se vê, a simples alusão, na decisão, sobre a existência de outras provas, capazes de ensejar uma condenação, por si só seria satisfatório para arredar a nulidade do feito.

            É o que entendemos.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            1. GRINOVER, Ada Pellegrini, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho – As Nulidades no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição.

            2. GRECO FILHO, Vicente – Manual de Processo Penal, Editora Saraiva, 4ª edição.

            3. NERY JR, Nelson – Proibição da prova ilícita, 4ª edição, São Paulo, 1997.

            4. THEODORO JÚNIOR, Humberto – A Gravação de conversa telefônica como meio de prova, www.oab-mg.org,br

            5. PEDROSO, Fernando de Almeida – Prova penal, Rio de Janeiro, AIDE, 1994, p. 163, e Processo penal: O direito de defesa: Repercussão, amplitude e limites, Rio de Janeiro, Forense, 1986

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NOTAS:

            01 As Nulidades no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 6a Edição.

            02 Manual de Processo Penal, Editora Saraiva, 4a edição.

            03 Obra citada.

            04 A Gravação de conversa telefônica como meio de prova – www.oab-mg.org,br

            05 Obra citada.

            06 Prova penal, Rio de Janeiro, AIDE, 1994, p. 163, e Processo penal: O direito de defesa: Repercussão, amplitude e limites, Rio de Janeiro, Forense, 1986

            07 A eficácia dos atos processuais à luz da Constituição Federal, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 37, jun. 1992

            08 Ação penal n. 307-3 – Distrito Federal – voto (preliminar sobre ilicitude da prova)

            09 Proibição da prova ilícita, 4ª edição, São Paulo, 1997.

            10 Prova – Princípio da verdade real – Poderes do juiz – Ônus da prova e sua eventual inversão – Provas ilícitas – Prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (dna) – publicada na revista brasileira de direito de família nº 03 – out-nov-dez/1999, pág. 5

            11 Ação penal n. 307-3 – Distrito Federal – voto (preliminar sobre ilicitude da prova)

            12 Obra citada
 

 

 Referência  Biográfica

José Olindo Gil Barbosa  –  Juiz de Direito, titular da Comarca de Angical do Piauí (PI), pós-graduado em Direito Processual


Assédio Moral no meio ambiente do trabalho

0

* Mara Vidigal Darcanchy –

SUMÁRIO: Resumo. – Abstract. – 1. Conceito –2. O assédio moral no mundo jurídico – 3. O trabalho e o assédio – 4. Conseqüências do assédio moral para o trabalhador – 4.1. O nexo causal – 4.2. Síndrome de Burnout – 5. Os Valores Morais. – Conclusão.

Resumo

O mundo neoliberal que se instalou nas últimas décadas acirrou um antigo problema nas relações sociais e, conseqüentemente, nas relações jurídicas: o assédio moral. Desde que o homem sobrepujou o seu semelhante, o assédio esteve presente, manifestando-se em suas variadas formas. No entanto, é na sociedade competitiva, que vozes se fazem ouvir contra essa forma de conduta. A informação permite que cada vez mais as pessoas saibam de seus direitos e lutem por eles. Assim, o assédio moral, embora seja um problema imanente à sociedade, ganha destaque nas discussões em todos os âmbitos, social, médico, psicológico e, como não poderia deixar de ser, no Direito, este instituído pelos homens para normatizar a sociedade. O objetivo deste artigo, resultado de pesquisa bibliográfica é mostrar como estão as discussões a respeito desse assunto, presente no cotidiano de todos os cidadãos. Embora a referência inicial seja da França, a abordagem limita-se ao processo no Brasil. Verificou-se que apesar das discussões, denúncias, leis e jurisprudência, falta ainda um componente essencial para que se supere este problema, falta a consciência do fato pelo cidadão e pela sociedade.

Palavras-chave: assédio moral/ relações sociais/ lei/ consciência/ justiça.

Abstract

The neoliberal world that was installed in the late decades exacerbated an old issue in the social relationships and, consequently, in the legal relationships: the moral molestation. Since man surpassed its fellow creatures, the moral molestation has been present, revealing itself in several ways. However, it is in the competitive society that voices are to be heard against this way of behavior. The information allows that more and more, people know their rights and fight for them. Then, the moral molestation, despite of being an intrinsic problem to society, gains prominence in discussions in all social, medical, psychological scopes, and, as it could not be otherwise, in Law, instituted by men to normalize the society. The purpose of this paper, as a result of bibliographical research, is to show how discussions about this subject are, present in all citizens quotidian. Although the initial reference is in France, the approach limits itself to the process in Brazil. It was verified that in spite of the discussions, denunciations, laws and jurisprudences, it still lacks an essential component for overcoming the problem: lack of conscience to the fact by the citizen and by the society.

Key-words: moral molestation/ relationships / law / conscience/ justice.

 


1. Conceito

 

Nos últimos anos, um problema social tem sido a tônica das discussões de vários setores da sociedade, profissionais, advogados, médicos e psicólogos: o assédio moral. Embora exista em todas as relações sociais, desde os primórdios da humanidade, esse tipo de ação passou a ser divulgado, principalmente, a partir da obra de Hirigoyen1 , a qual detectou, que cada vez mais, na competitividade do mercado, pode-se observar esse fenômeno e constatar seus efeitos perversos, que vão da baixa auto-estima, a doenças físicas, psíquicas e até mesmo à morte.

De acordo com Marie-France Hirigoyen assédio moral no trabalho é:

“Toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.”2

Também pode-se esclarecer o assédio moral como:

“Exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações de humilhações repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comum em relações hierárquicas autoritárias, onde (sic) predominam condutas negativas e uma relação aética de longa duração de um ou mais chefes dirigida a um subordinado, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização.”3

E ainda, conforme conceituam Patrícia Piovesan e Paulo César Rodrigues:

“Assédio moral é todo comportamento abusivo (gesto, palavra e atitude) que ameaça, por sua repetição, a integridade física ou psíquica de uma pessoa. São microagressões, pouco graves se tomadas isoladamente, mas que, por serem sistemáticas, tornam-se destrutivas.”4

O assédio moral é uma forma de coação social, que pode instalar-se em qualquer tipo de hierarquia ou relação social que se sustente pela desigualdade social e autoritarismo. Disso decorre a afirmação de que existe desde os primórdios da civilização humana.

Nos últimos anos esse fenômeno tem levado à banalização da violência no trabalho, tal é a sua prática no cotidiano, como se fosse imanente ao próprio trabalho, ou quiçá, às relações sociais. Se assim fosse, a lógica de que o “homem é o lobo do homem”, de Thomas Hobbes, estaria mais atual do que nunca. No entanto, é necessário observar que essa lógica está político-social e economicamente contextualizada, por isso não pode ser vista como natureza do homem.

A prática do assédio moral traz implícitas situações em que a vítima sente-se ofendida, menosprezada, rebaixada, inferiorizada, constrangida, ultrajada ou que de qualquer forma tenha a sua auto-estima rebaixada por outra. Esse estado de ânimo traz conseqüências funestas para as vítimas, daí a necessidade de se conhecer bem o quadro e tratá-lo juridicamente, defendendo assim aqueles que são vítimas de pessoas opressoras, as quais de alguma forma têm o poder de coagi-las no seu local de trabalho ou no exercício de suas funções.

2. O assédio moral no mundo jurídico

Embora, como já se frisou, o assédio moral seja inerente ao aparecimento da civilização humana, o tema é recente como foco de discussões no Brasil, e mesmo nos demais países, mas o fenômeno expande-se de tal forma que países como França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Austrália e Suécia já estão inserindo em suas legislações dispositivos para a redução e punição dos casos em outros como Chile, Uruguai, Portugal, Suíça e Bélgica há Projetos de Lei.5

No Brasil, a primeira matéria sobre o assunto foi publicada no jornal Folha de São Paulo, em 25 de novembro de 2000, como resultado da pesquisa realizada pela Dra. Margarida Barreto6 .

No mesmo ano a Editora Bertrand Brasil publicou o livro de Hirigoyen que denuncia o fenômeno, notadamente nos países europeus. A partir desse momento o tema passou a ser discutido por vários setores da sociedade, principalmente os sindicatos de trabalhadores e, muitas causas já foram ganhas devido a esse tipo de agressão contra a pessoa.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que fez uma pesquisa em diversos países desenvolvidos tais como a Finlândia, Alemanha, Reino Unido, Polônia e Estados Unidos, os indicadores sobre as conseqüências do assédio moral são funestas para o mundo. Segundo a referida pesquisa, no modelo de globalização, gerenciado pelo neoliberalismo as condições opressivas de trabalho levam a inúmeros problemas de ordem social, psíquica e emocional.

Nos últimos quatro anos muito se tem discutido e algumas ações já têm sido desenvolvidas para reprimir o assédio moral, mas estas medidas ainda são insuficientes. É preciso que o tema se mantenha à tona e que as vítimas manifestem-se: reagindo, denunciando e evitando o agravamento do problema.

Já há muitos casos de empresas que foram punidas por assédio moral, bem como há aprovação de leis municipais e estaduais7 , porém a eficácia jurídica só se aplica diante dos casos denunciados e comprovados.

Algumas situações previstas no artigo 483 da Consolidação das Leis de Trabalho, relativas à dispensa indireta podem corresponder à condutas que se configuram em assédio moral, uma vez que têm a mesma característica de não demitir o empregado, mas tratá-lo de uma forma tal que acabe fazendo com que ele mesmo acabe sentindo-se obrigado a pedir a própria demissão. Senão vejamos:

“Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;(…); h) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.(…).”

Entretanto, sabe-se que a solução do problema não está apenas no número de dispositivos legais, mas sim na conscientização de todos para tamanha chaga social.

3. O trabalho e o assédio

O substantivo trabalho está associado ao latim vulgar “tripaliare”, que significa torturar e do latim clássico “tripalium”, antigo instrumento de tortura. No início da humanidade quando os homens ainda viviam em igualdade, sem propriedade privada e sem hierarquia econômica, trabalhar era uma atividade de sobrevivência, associada a outras tantas que se desenvolviam naturalmente.

Mas, a partir do momento em que foi criada a propriedade privada e estabeleceu-se uma relação de poder e hierarquia, na qual quem trabalhava não era quem detinha o produto, cada vez mais o trabalho aproximou-se do significado de tortura.

No período escravista, o trabalho, principalmente o manual, era vergonhoso e só deveria ser realizado por escravos, considerados objetos, coisas (res), das quais se podia dispor como bem o proprietário quisesse.

Durante a Idade Média, o trabalho passa a ser apregoado como uma forma de alcançar o reino dos céus. Visto que o clero era o intermediário, ao lado da nobreza, entre Deus e os servos, estes deveriam trabalhar para a própria redenção, portanto deveriam ser submissos às condições que lhe eram impostas.

No entanto, a industrialização e o capitalismo instauraram a idéia do trabalho como uma possibilidade para a ascensão humana, defendendo a sociedade de classes como uma sociedade aberta, na qual as condições de mobilidade do indivíduo dependem única e exclusivamente dele.

A partir desse momento histórico reestruturam-se as relações sociais; o homem é alienado do produto do seu trabalho e as condições de trabalho nas oficinas, depois nas fábricas e, modernamente, em todos os âmbitos sociais transformaram-se. O desemprego garante um “exército de reserva” sempre “disposto” a ceder para ficar no emprego.

Este cenário agravado pela competitividade que permeia o mundo globalizado, caracterizado pela escassez de trabalho e excesso de oferta de mão-de-obra, é perfeito para a disseminação do assédio moral, pois a política e o mercado estão marcados por atitudes desumanas e nada éticas, predominando a arrogância e o interesse individual.

O assédio moral instala-se sorrateiramente, sem que a vítima perceba, num processo gradativo de envenenamento psíquico e afetivo da vítima que, aos poucos, reflete-se em seu corpo, podendo levar até a morte.

Dentro de uma empresa, aquele que detém o poder, pelos mais variados motivos expõe seus subordinados, ou uma vítima em particular, a situações cada vez mais estressantes, humilhantes ou constrangedoras, durante o seu período de trabalho. A ação ocorre de maneira repetitiva e prolongada, como a aranha que tece uma teia para aprisionar sua vítima até deixá-la imóvel.

O assédio moral degrada o indivíduo, minando a sua auto-estima e condições físicas e psicológicas para o trabalho. A vítima escolhida é estigmatizada pelo seu agressor que age para que ela passe a ser vista como culpada pelos seus “erros, incapacidade, incompetência, falta de sociabilidade, depressão, alterações de ânimo” e outros comportamentos, até que fique desacreditada e isolada dos demais. Nesse momento seu agressor se satisfaz e escolhe outra vítima.

Por sua vez a vítima, diante da humilhação repetitiva baixa sua auto-estima e, gradativamente, perde sua capacidade para reagir, pois muitas vezes sente-se culpada. Mas, o medo do desemprego, a cobrança social, as responsabilidades levam-na a suportar o assédio, até o momento em que, muitas vezes perde o controle sobre sua vida física, mental e psíquica, entra em depressão e pode chegar até mesmo à morte.

Faz-se necessário lembrar que o trabalhador está sempre do lado mais frágil e ao agressor é mais fácil dissimular suas atitudes, que podem ocorrer de várias formas.

O assédio moral manifesta-se de maneira diferenciada em relação ao sexo masculino e feminino. Tal fato decorre de componentes culturais que podem ser explicados sociologicamente. Em relação às mulheres pode ocorrer em forma de intimidação, submissão, piadas grosseiras, comentários acerca de sua aparência física ou do vestuário. Quanto aos homens, é comum o seu isolamento e comentários maldosos sobre sua virilidade e capacidade de trabalho e de manter a família. Estes são apenas alguns exemplos, mas a cultura oferece elementos variados. São os traços culturais que tipificam um povo, mas podem tornar-se um elemento de sarcasmo contra o indivíduo quando ele está isolado do grupo.

No entanto, é necessário reforçar que não só o indivíduo é vítima do assédio moral. A empresa, de acordo com sua política, pode constituir-se num espaço para este fenômeno, cabendo nesse caso ações coletivas.

Nos grupos, conforme consenso da literatura, é comum: começar reuniões amedrontando os participantes, ameaçando-os de demissão e salientando a facilidade de substituição, mais barata e mais competente; fazer comparações com outros grupos, depreciando o grupo presente; controlar idas e vindas ao banheiro; gritar ordens e repeti-las, como se as pessoas não tivessem capacidade para compreendê-las e executá-las; criticar sempre; cobrar além das possibilidades do grupo, para reafirmar a sua falta de capacidade; exigir que trabalhe fora do horário, comprometendo compromissos particulares; demitir sem causa; desativar área, seção ou departamento sem explicação e criar problemas intra-grupos.

O que se reforça em cada atitude é que se trata de perseguição aberta, que se ressalte, é sempre temida, principalmente em tempos de desemprego, de globalização e de reengenharias.

Os autores que tratam do assunto, demonstram que as frases, gestos ou atitudes tomadas nada tem de profissional, mas de particular, da vontade do agressor. Porém, independente das causas que levam uma pessoa ao assédio moral, graves são as conseqüências para aqueles que são assediados, visto que a qualidade de vida no trabalho é determinante da qualidade de vida em geral.

4. Conseqüências do assédio moral

Uma das conclusões da pesquisa coordenada pela médica do trabalho Margarida Barreto é que esta tortura psicológica que é o assédio moral, se transformou em um problema de saúde pública.

O assédio moral é como uma guerra de nervos travada no interior das empresas. Dependente do trabalho para as suas satisfações morais, sociais, afetivas, psicológicas e materiais, inúmeras pessoas vêem-se à mercê de ditadores, que dificultam ou até mesmo impossibilitam-no de exercer o seu direito de trabalhar e de viver de forma saudável.

Assim, gradativamente, desaparece o equilíbrio físico e psíquico do indivíduo, sem que o veneno que o desencadeou seja visto. Sabe-se, hoje , que a auto-estima é um dos pontos de partida para que o homem seja engajado na vida como pessoa e cidadão, mas submetido a humilhação constante no trabalho sua saúde corre risco e começa a corroer-se pela baixa auto-estima, pelas práticas perversas das relações sociais, como as do trabalho.

Aos poucos, o indivíduo vai perdendo suas forças e luta para manter-se, mas, em geral, a pressão é tanta que os erros, as doenças físicas e emocionais passam a atingi-lo. Suas relações pessoais são afetadas. Após cada doença o assédio moral se acirra, como numa cena de terror. Muitas vezes, quando volta, depois de um afastamento, encontra outro em sua função, ficando até sem lugar para ficar. Outras vezes, o agressor não lhe dá mais trabalhos para que sinta a sua inutilidade. Os colegas têm medo de aproximar-se e serem retaliados, por isso aquele que é agredido fica sozinho.

Agressivos, apáticos, negligentes, preguiçosos, lerdos são rótulos comuns nesse tipo de fenômeno. Com sua auto-estima abalada, as drogas legais ou não (como o álcool) passam a fazer parte de sua vida e a derrocada é rápida e muitas vezes sem chance de recuperação. Mas, como estabelecer um nexo causal entre o assédio moral e as doenças físicas e psíquicas dos trabalhadores?

4.1 O nexo causal

A resposta à pergunta anterior encontra-se na própria lei, na Resolução 1.488/98, do Conselho Federal de Medicina:

“Para o estabelecimento do nexo entre os transtornos da saúde e as atividades do trabalhado, além do exame clínico (físico e mental)) e os exames complementares, quando necessário, deve o médico considerar: – A história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; – O estudo do local do trabalho; – O estudo da organização do trabalho; – Os dados epidemiológicos; – A literatura atualizada; – A ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condições agressivas; – A identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; – O depoimento e a experiência dos trabalhadores; – Os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde”.9

Diante do exposto, fica clara a possibilidade de se estabelecer a relação causal entre o assédio moral e doenças psicológicas e físicas, que venham a surgir ou agravar-se pela exposição constante a humilhações.

Lê-se na Resolução que “o depoimento e a experiência dos trabalhadores” é um dado a ser considerado para estabelecer a relação causal, mas há que se lembrar pontos que permearam este trabalho desde o início, ou seja, o mundo contemporâneo é de competitividade acirrada, a solidariedade esvaiu-se no consumismo e na escassez do neoliberalismo e no lucro sempre. Assim, nem sempre é fácil que outros trabalhadores se exponham como testemunhas, por isso a necessidade de conscientização para que o grupo denuncie, pois o agressor, tendo eliminado sua vítima logo arrumará outra.

4.2 . Síndrome de Burnout

Outra possível conseqüência, muito grave, é a doença ocupacional conhecida como Síndrome de Burnout.10 Uma doença causada pelo estresse extremo no trabalho.

Esta doença caracterizada pelo esgotamento físico, psíquico e emocional, em decorrência de trabalho em condições muito estressantes, provoca distúrbios mentais e psíquicos que tem como efeitos: stress, hipertensão arterial, perda de memória, ganho de peso e depressão entre outros problemas.

A nossa Legislação Previdenciária n. 8.213/91 em seu artigo 20 indica as situações que configuram as doenças profissionais e ocupacionais como acidente do trabalho, a saber:

“Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas: I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I. (…) § 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.”11

5. Os valores morais

É mister acentuar ainda que toda sociedade se baseia em valores que expressam desejos de ordem moral. Não podemos encontrar sequer uma única sociedade ou grupo social que não seja instituído por meio de regras morais, e que, em última instância, não seja pautado por essa determinação. Os seres humanos têm como convenção a estruturação de padrões que institucionalizam até mesmo a condição social das relações entre indivíduos:

“A convencionalidade dos padrões de comportamento sempre impressionou a todos que pensam sobre seres humanos. Como é notório, alguns filósofos propõem neste contexto uma distinção de princípio entre os fatos do meio ambiente físico e os valores da orientação ética.”12

Em outras palavras, os filósofos se debruçaram sobre os aspectos constitutivos de uma ação dos seres humanos. De um lado, o fazer instintivo, natural, necessário e, de outro, a ação humana que nos remete a uma condição moral da atividade social e individual. Dentre muitos filósofos, os quais, na sua grande maioria se referiram a questões éticas, Kant tinha na ação ética um dos seus grandes problemas filosóficos. Assim:

“Temos boas razões para aceitar, segundo princípios transcendentes, uma conformidade a fins subjetiva da natureza nas suas leis particulares, relativamente à sua compreensão para a faculdade de juízo humana e à possibilidade da conexão das experiências particulares num sistema dessa mesma natureza…”13

Isto significa que há uma conformidade ética na condição humana, mesmo que em grande medida a natureza humana esteja submetida a um elemento fundamental que é a mudança. Sem dúvida, Heráclito tinha razão ao afirmar que tudo flui substancialmente na vida e na natureza. No entanto, é preciso salientar o fato de que esta mudança, para angústia da consciência, não é um elemento com o que se possa lidar confortavelmente, ao contrário, uma certa estabilidade se faz necessária.

Daí é possível observar, até mesmo do ponto de vista histórico, o fato de que os valores éticos e morais mudam, mas que sua mudança não é experimentada com a velocidade observada em outros campos da sociedade, como os meios produtivos, a tecnologia, a técnica, etc.

A sociedade necessita de estabilidade quanto aos seus valores éticos. Toda sociedade é estabelecida em conformidade com a ética, em outras palavras, não há sociedade sem ética e sem moral, uma vez que somos seres sociais constituídos de fundamentos morais, isto é, somos seres morais.

De outro lado:

“(…) é assim que, entre os seus muitos produtos, podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas que lhe são adequadas, como se afinal estivessem dispostos para a nossa faculdade do juízo.”14

Valores são fundamentais em qualquer agrupamento social, tornam-se imprescindíveis na medida em que regulam as relações humanas e promovem o processo de comunicação entre indivíduos e a coletividade. No entanto, os valores éticos são em parte uma escolha do processo social, estão relacionados à historicidade dos grupos, em estreita relação com suas experiências humanas, antropológicas e materiais. Assim, os valores são em parte uma escolha que exorta os sujeitos sociais a uma responsabilidade e a um compartilhar das mesmas escolhas, fundamentais para a compreensão ontológica dos próprios indivíduos no contexto em que estão inseridos.

“Ainda que adotemos a distinção entre fatos e valores, creio que temos de reconhecer que é um fato sobre a vida humana que ela é vivida também e essencialmente num ambiente determinado por valores.”15

Ademais, há uma relação paradoxal entre indivíduo e coletivo. Os valores são em grande medida compartilhados pela coletividade, aceitos pelos indivíduos, no entanto, os indivíduos não são totalmente determinados pela coletividade, sua subjetividade faz com que a vontade individual também seja colocada no contexto das escolhas dos valores. Isto significa dizer que a imposição coletiva de valores éticos não é garantia de que os seus indivíduos obedeçam na sua integralidade, ao contrário, há um campo no qual nem mesmo a racionalidade pode impor um controle regulador das ações humanas.

Dessa forma, do ponto de vista moral, a ação dos indivíduos resvala constantemente no consenso coletivo, assim, pode-se determinar objetivamente a transgressão dos valores, ou a sua negação. É aí que certos comportamentos devem passar pelo crivo do juízo moral, uma vez que afeta a conjunto das regras ou fere os princípios conceituais que foram acordados pela coletividade.

Sem um acordo e uma convencionalidade, a sociedade provavelmente perderia sua condição de sociedade, pois o pacto é um fundamento implícito em todos os grupamentos de seres humanos. É bem como imaginarmos que toda negativa aos valores acordados coletivamente seja considerada como uma transgressão moral, ou, em outro sentido, a negativa pode assumir uma conotação de imoralidade. Contudo, nem sempre os valores podem responder de forma justa às aspirações dos indivíduos, mas é preciso formular adequadamente as expectativas quanto à ação dos indivíduos, uma vez que toda atitude, seja natural ou moral, está diretamente relacionada aos demais membros da sociedade.

Em face disso é possível estabelecer parâmetros, em todos os locais e em especial no meio ambiente de trabalho, quanto àquilo que pode ser ou não permitido. Certos valores podem se tornar um consenso a partir das condições do estado de natureza, conforme Kant apresenta, pois é daí que se promulgam valores que se tornam comuns. Com isto, a dor, a humilhação, a privação de toda ordem, a tortura e a precarização de certas condições que devem ser supostamente atendidas, são, em grande medida, valores que atingem a todos e são tanto em conformidade com a vontade coletiva quanto no que tange à vontade dos indivíduos sociais, em sua singularidade.

Este pode ser o parâmetro com o qual se estabeleceriam juízos de valor a respeito da ação dos sujeitos sociais, em suas relações singulares, como é o caso do trabalho. Em certas circunstâncias especiais, o código moral parece não fazer efeito, uma vez que entra em cena a característica básica do humano em permanecer vivo a todo custo. No entanto, em condições aparentemente normais, os indivíduos, no intuito de preservação de sua integridade física e mental, são capazes de reconhecer a necessidade de certas regras que possibilitem uma convivência equilibrada, especialmente no que toca às forças que estão direta ou indiretamente envolvidas no processo laboral.

Evidentemente que a ação moral se torna uma violência praticada por aqueles que imaginam possuir alguma forma de força, em detrimento àqueles que estão em condições inferiores ou indefesos diante da ação, os hipossuficientes. É preciso, então, haver mecanismos de proteção que favoreçam os menos protegidos em situações de fragilidade moral.

Considerações Finais

O homem tornou-se o seu maior adversário. As guerras e a criminalidade denunciam abertamente este fato, mas o assédio moral sorrateiramente abala a base de pessoas no trabalho, sem que a mídia lhe dê o merecido destaque.

O assédio moral é como um inimigo invisível que pouco se pune. Mas, tal estado de coisas pode ser mudado com consciência e solidariedade, caminho sugerido pela psiquiatra Hirigoyen.

O assédio moral é nocivo à saúde do trabalhador e, consequentemente, à da sociedade. É como uma doença que se alastra e que se precisa combater e a arma é a Justiça, que também precisa da solidariedade das pessoas para que possa agir. Testemunhas são necessárias para que algum fato seja dado como verdade. A eficácia jurídica depende da sociedade, precisa de denúncias e de comprometimento.

O combate ao assédio moral pela Justiça é uma questão internacional, portanto, já há um espaço aberto para combatê-lo. Lembramos que a consciência, a percepção da realidade e a luta em grupo estão intrinsecamente ligadas à eficácia jurídica e que o Direito é que garante a estabilidade social e o direito dos indivíduos.

Notas de rodapé convertidas

1. Marie-France HIRIGOYEN é médica psiquiátrica francesa, autora do livro "Harcèlement Moral: la violence perverse au quotidien", traduzido por Maria Helena Hübner, Assédio moral: a violência perversa no cotidiano, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.

2. Marie-France HIRIGOYEN. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral , tradução de Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 17.

3. O que é assédio moral no trabalho. Disponível em www.assediomoral.org, Acesso em 8 ago. 2005.

4. Disponível em www.assediomoral.com.br . Acesso em 24 de agosto de 2004.

5. Vide texto integral no site: http://www.assediomoral.org/site/legisla

6. A Dra. Margarida BARRETO fez a pesquisa para sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, defendida em 22 de maio de 2000, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o título: Uma jornada de humilhações.

7. Atualmente existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios do país. Vários projetos já foram aprovados e, entre eles, destacam-se: São Paulo, Natal, Guarulhos, Iracemápolis (pioneiro), Bauru, Jaboticabal, Cascavel, Sidrolândia, Reserva do Iguaçu, Guararema, Campinas, entre outros. No âmbito estadual, o Rio de Janeiro, que, desde maio de 2002, condena esta prática. Existem projetos em tramitação nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Bahia, entre outros. No âmbito federal, há propostas de alteração do Código Penal e outros projetos de lei.

8. Inclusive muitas empresas têm realizado uma série de atividades, através de vários projetos e programas de incentivo ao bem-estar de seus funcionários, como ginástica, técnicas orientais, etc, o que, independentemente de serem ações que buscam um melhor aproveitamento da mão-de-obra e uma redução dos acidentes de trabalho e conseqüentes custos, não deixam de apresentar um saldo positivo na saúde física e mental do trabalhador.

9. Art. 2º da Resolução n. 1.488/98 do C.F.M.

10. “Burn Out”, expressão inglesa: aquilo que deixou de funcionar, derivado de gíria de rua e significa aquele que se estragou pelo uso.

11. Art. 20 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991.

12. Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? IN FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003, p. 15.

13. Immanuel KANT. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 203.

14. Idem, Ibidem, p. 203.

15. Wilson MENDONÇA. Como deliberar sobre questões morais? p. 15 .

Referências Bibliográficas

BARRETO, M. Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: EDUC, 2001.

BRASILIANO, Cristina Ribeiro. Assédio moral no trabalho: liame para doenças profissionais. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2005.

CARTILHA do SINDICATO dos PETROLEIROS do RIO de JANEIRO, s/d.

CASTRO, C. A. P. Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 2000.

DRUCKER, P. Sociedade Pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1998.

FARIA, J. E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento na transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988.

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HIRIGOYE, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

HIRIGOYE, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral , tradução de Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

HELOANI, R. Gestão e organização no capitalismo globalizado/História da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

MENDONÇA, Wilson. Como deliberar sobre questões morais? In FABRI, Marcelo (org.), DI NAPOLI, Ricardo B., ROSSATO, Noeli. Ética e Justiça. Santa Maria, RS: Palloti, 2003.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de juízo. 2. ed., Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ZIMMERMMANN, Silvia Maria; SANTOS, Teresa Cristina Dunka Rodrigues dos e LIMA, Wilma Coral Mendes de. O assédio moral no mundo do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, n.1. Brasília: LTr, 2003
 


Referência  Biográfica

Mara Vidigal Darcanchy  –  Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais – Direito do Trabalho – PUC/SP; Ex-bolsista CNPq e CAPES; Especialista em Didática do Ensino Superior e em Direito do Trabalho – USP/SP; Pesquisadora Científica; Professora de Direito do Trabalho na Graduação e Pós-Graduação da UNIB e de Cursos Preparatórios para Concursos e Exame da Ordem e Consultora Jurídica na ÁreaTrabalhista.

Aplicação subsidiária do art. 253, II, CPC no Proc esso do Trabalho: uma tentativa de se evitar a escolha do Juízo

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* William de Almeida Brito Júnior –

 

Resumo: Visando evitar a maliciosa escolha do juízo para o julgamento do processo trabalhista é necessário que se aplique subsidiariamente o artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil.

Palavras-chave: desistência – ação trabalhista – prevenção – competência absoluta


            Estes breves apontamentos que aqui se iniciam têm como escopo analisar a eventual aplicação do artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil no âmbito do processo trabalhista.

 

            O artigo em questão preceitua o seguinte:

            Art. 253. Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza:

            I – (…)

            II – quando, tendo havido desistência, o pedido for reiterado, mesmo que em litisconsórcio com outros autores.

            Tal estudo afigura-se importante, considerando que, para que tal dispositivo seja aplicável ao processo do trabalho, é mister que ele cumpra as exigências previstas no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho (omissão na CLT e compatibilidade do dispositivo do direito comum no âmbito do processo do trabalho).

            Para melhor visualização do debate, entendo por bem transcrever o artigo 769 consolidado:

            Art. 769. Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste título.

            Conforme veremos nas linhas abaixo, a adoção do artigo 253, II, CPC visa por fim a uma perniciosa prática corrente na justiça trabalhista: o não comparecimento do reclamante à audiência inicial, com o consectário arquivamento do processo, nos termos do artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho, e a repropositura de ação idêntica, para que seja redistribuída a outro juízo que tenha outro entendimento sobre a matéria.

            Este fato se constitui na abominável tentativa de escolha do juízo para apreciação da reclamação trabalhista. A "estratégia processual" em questão representa na verdade um ato de profunda má-fé por parte do reclamante e evidente desrespeito à ética processual e profissional por parte de seu causídico, podendo sujeitar o responsável à condenação às penas previstas em caso de litigância de má-fé, conforme previsto nos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil.

            Isso ocorre pelo fato de que muitos advogados já conhecem o entendimento pessoal de cada magistrado acerca da solução jurídica dada à matéria que está sendo levada a juízo. Assim, quando percebem que a petição inicial é distribuída para um determinado juiz que possui entendimento diverso do seu, o reclamante é instruído a não comparecer à audiência inicial para que, dessa maneira, o processo seja arquivado (art. 844, CLT) e, assim, possa ser reproposta nova demanda, nos idênticos termos do processo arquivado.

            Esta realidade fática é fielmente retratada por Cândido Rangel Dinamarco, senão vejamos:

            A desistência e ulterior repropositura da demanda é um expediente (abusivo e inescrupuloso – José Rogério Cruz e Tucci) de que às vezes lançam mão os demandantes, em busca de melhor sorte. Não obtida a liminar em um foro ou em uma vara, vamos tentar em outra. Distribuída a causa a um juiz que vem decidindo aquela mesma tese de modo não conveniente ao autor, vamos ver se da segunda vez a distribuição será mais feliz. Isso acontece em relação a causas portadoras de teses que se repetem, com em matéria tributária. [01]

            Para afastar essa prática aviltante, o legislador federal editou a Lei n° 10.358 de 27 de dezembro 2001, que incluiu o inciso II ao artigo 253 do Código de Processo Civil. Trata-se de lei editada no âmbito da denominada "reforma processual", que consiste em um conjunto de leis que vem alterando o Código de Processo Civil de maneira gradativa e fracionada.

            Assim, o Código de Processo Civil, após a alteração legislativa, determina que se for reproposta ação idêntica àquela que foi arquivada, ela obrigatoriamente será distribuída por dependência ao juízo que inicialmente conheceu do processo.

            Comentando o dispositivo em questão, trazemos a abalizada lição de Nelson Nery Júnior:

            A norma determina seja feita a distribuição por dependência, quando se tratar de repropositura da ação cujo processo tenha sido extinto anteriormente por desistência (CPC 267 VIII). Mesmo que o autor desista da ação, o juízo para o qual foi distribuída a ação extinta continua competente para processar e julgar a mesma ação quando for reproposta, ainda que o autor venha acompanhado de outros litisconsortes. [02]

            Nas sábias palavras de Miguel Reale a competência determinada pela dependência é funcional sucessiva e, portanto, absoluta. [03] Assim, o juízo que inicialmente tomou conhecimento do processo arquivado (realizou qualquer ato processual) será o competente para conhecer e apreciar a ação reproposta nos idênticos termos da outra.

            Alexandre Freitas Câmara, invocando lições de Chiovenda, afirma tratar-se do fenômeno da competência funcional ocorrendo em processos diferentes, senão vejamos:

            Há, ainda, o fenômeno da competência funcional ocorrendo entre processos diferentes, quando todos eles são ligados por uma mesma pretensão (ou, como dizia Chiovenda, em trecho de sua obra a pouco citado, a uma mesma vontade de lei). É o que ocorre (omissis) ainda, do juízo para que se distribuiu o primeiro processo quando, extinto este por desistência da ação, pretender o autor ajuizar novamente a mesma demanda, sozinho ou em litisconsórcio (omissis). Em todas estas hipóteses tem-se um juízo competente também para todos os demais processos ligados àquele primeiro por serem destinados à atuação de uma mesma vontade da lei. [04]

            No mesmo sentido do entendimento destes ilustres juristas acima referidos, Cândido Rangel Dinamarco em sua festejada obra "A Reforma da reforma" faz as seguintes ponderações:

            Mas a prevenção de que cuidava o art. 253 era somente aquela relativa a outras causas, desde que conexas à primeira, e não à própria primeira causa, quando reproposta. Ainda assim, certos setores da jurisprudência evoluíram no sentido de considerar prevento o juízo da primeira propositura não somente para o processo que lhe foi distribuído e para as causas conexas, mas também para a própria causa primeira, quando o demandante desistisse e depois voltasse a propô-la. [05]

            Seguindo esta trilha doutrinária, acerca da aplicabilidade do artigo 253, II, Código de Processo Civil ao processo do trabalho, Wagner D. Giglio preleciona, in verbis:

            Deverão ser distribuídos por dependência os feitos de qualquer natureza que se relacionarem, por conexão ou continência, com outros que já houverem sido distribuídos, ainda que tenha ocorrido desistência, segundo a regra inserta no Código de Processo Civil, art. 253 [06]

            Conforme mencionado acima por Cândido Rangel Dinamarco, nossos tribunais, apesar da ainda recente inovação legislativa, já têm se posicionado neste sentido, consoante se vislumbra de julgado extraído do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:

            Voltando ao tema, concluímos que a competência fixada continua a prevalecer, mesmo em relação a processos encerrados. Isso quer dizer, como foi anteriormente frisado, que a competência para julgar os processos entre o mesmo reclamante e reclamado será sempre do mesmo juízo, ressalvadas as hipóteses do art. 87 do CPC, que cuida da exceção à regra. Além do posicionamento jurídico, há o aspecto prático destas conclusões que, se forem adotadas, impedirão a avalancha de reclamações repetidas, muitas vezes fraudando a própria "distribuição", quando alguns reclamantes manipulam o sistema, escolhendo, por quaisquer razões, a vara do trabalho que irá julgar a sua reclamação.(MS n.º 546/2001; Juiz Bolívar Viegas Peixoto; TRT 3ª Região; DJMG 26/04/2002; p.4)

            Este julgado apenas ilustra a orientação jurisprudencial pacífica do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais), tendo em vista que referido Tribunal já até editou a Orientação Jurisprudencial n° 01, litteris:

            ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 01 ORIGEM: TRT/SDI 1ª SEÇÃO ESPECIALIZADA FONTE: DJMG 17.07.2004.

            PREVENÇÃO. ARQUIVAMENTO DA RECLAMAÇÃO. DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA.

            O arquivamento da reclamação equivale à desistência da ação e torna prevento o Juízo, para os efeitos do inciso II do art. 253 do CPC. [07]

            E não há que se falar em inaplicabilidade deste dispositivo ao processo do trabalho. O artigo 769 do texto consolidado, prevendo hipóteses de omissão, invoca a subsidiariedade do direito processual comum, desde que este não seja incompatível com as normas da CLT.

            Tal artigo consolidado é plenamente aplicável, razão pelo qual cito as lições de Délio Maranhão:

            Processo comum com fonte subsidiária. Nos casos omissos diz o art. 769 da Consolidação – o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, desde que a norma do direito comum não seja incompatível com os princípios do direito especial. [08]

            Primeiramente, para adequação da subsidiariedade do Código de Processo Civil no processo do trabalho, há que existir uma omissão legislativa acerca da matéria.

            No caso em apreço a omissão na lei está patente, pois a legislação trabalhista não possui qualquer dispositivo que trata da distribuição por dependência de ação idêntica ao juízo em que foi distribuída a primeira petição inicial, na hipótese de não comparecimento do reclamante à audiência inicial.

            Configurada a omissão, passamos a analisar o requisito da compatibilidade do dispositivo legal com o processo trabalhista. Pois bem, entendemos ser perfeitamente compatível com o processo do trabalho os ditames previstos no artigo 253, inciso II, do Código de Processo Civil, por óbvios motivos de ética processual e profissional.

            Tal preceito legal visa evitar a malfadada escolha de juízes para o julgamento da lide. Este preceito é profundamente salutar e serve como um instrumento de moralização da atuação processual; de adequação aos preceitos do artigo 14 do Código de Processo Civil e da moderna tendência à busca do processo justo.

            Dessarte, não se visualiza qualquer incompatibilidade do artigo 253, II, CPC com o processo trabalhista, mas sim o contrário, pois tal aplicação subsidiária serve como medida de aperfeiçoamento e modernização do processo do trabalho.

            Além do mais, o não comparecimento do reclamante à audiência possui a natureza jurídica de "desistência do pedido". Trata-se da prática de ato incompatível ao desejo de litigar. Aliás, esta é a opinião esposada por Valentin Carrion:

            Contestada a ação, se o autor não comparecer para prestar depoimento, arquiva-se a reclamação, caso o requeira o réu; a ação poderá ser renovada pelo autor. Se o réu o requerer, a ação terá prosseguimento, pois o contrario seria permitir a desistência da ação pelo autor, depois de contestado o feito. [09]

            Considerando a ausência injustificada do reclamante à audiência inicial como uma verdadeira "desistência do pedido" deduzido na inicial, tal fato atrai a incidência do artigo 253, II, do Diploma Processual Civil.

            Tais as razões acima aventadas, torna-se imperiosa a aplicação do artigo 253, II, Código de Processo Civil ao processo do trabalho, por força do permissivo legal contido no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

            Apesar da alteração legislativa conferida ao artigo 253, II, do Código de Processo Civil ser recente, entendemos por bem que a jurisprudência pátria evolua no sentido de se aplicar este artigo no processo trabalhista, a exemplo do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região ao editar a mencionada Orientação Jurisprudencial n° 01, evitando-se, assim, a maliciosa e inescrupulosa escolha do juízo para se apreciar a demanda do reclamante.

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BIBLIOGRAFIA

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            CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

            DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2002.

            GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2002.

            NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 2003.

            SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 1997

            REVISTA DO TRIBUNAIS, 538/31

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Notas

            01 A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2002.

            02 Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 2003.

            03 Revista do Tribunais, 538/31.

            04 Lições de Direito Processual Civil, Vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003. p.72

            05 Op. cit. p. 74.

            06 Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2002

            07 Disponível em http://www.mg.trt.gov.br. Acesso em 16.ago.2004.

            08 Sussekind Arnaldo.. .[et. al.] – Instituições de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 1997

            09 Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2004
 

 


 

Referência  Biográfica

William de Almeida Brito Júnior  –  Procurador do Estado de Goiás, membro do Conselho de Procuradores da PGE/GO, pós-graduando em Direito Constitucional e Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás

Honorários Advocatícios e sua natureza jurídica

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 * Kiyoshi Harada  –  

            Importante decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário de que foi Relator o Ministro Marco Aurélio.

            Abandonando a interpretação literal do § 1º-A, do art. 100 da CF, que define os créditos de natureza alimentícia, o eminente Ministro, prolator do voto condutor, classificou a verba honorária, resultante de sucumbência, como sendo de natureza alimentícia abrangida pelo caput do art. 100 da Carta Política.

            O argumento invocado para assim decidir foi no sentido de que os salários, vencimentos, proventos etc., enumerados no § 1º-A referido, dizem respeito a relações jurídicas específicas, mas que não afastam outras relações que resultam, por exemplo, do vínculo liberal como os honorários advocatícios, que têm a mesma finalidade dos primeiros, ou sejam, destinam-se a prover a subsistência própria dos advogados e das respectivas famílias.

            De fato, a enumeração do § 1º-A retro mencionado não exaure o elenco de percepções de verbas alimentícias. Tivemos a oportunidade de escrever que ‘alimento, em sentido amplo, abarca toda a percepção em dinheiro ou in natura relativa às despesas ordinárias e extraordinárias a que tem direito o alimentado: habitação, transporte, vestuário, sustento, saúde, educação, instrução e lazer. Não se limita a salários e vencimentos’ (Cf. nosso Desapropriação doutrina e prática, 6ª ed.. São Paulo: Atlas, 2006, p. 136).

            Segue a transcrição do voto proferido pelo Min. Relator do RE nº 470407-DF:

            RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

            RELATÓRIO: O Superior Tribunal de Justiça negou acolhida a pedido formulado em recurso ordinário em mandado de segurança, ante os fundamentos assim sintetizados (folha 338):

            PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DECORRENTES DE SUCUMBÊNCIA. PRECATÓRIO. ART. 100, § 1-A, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

            1. O art. 100, § 1-A, da Constituição Federal dispõe: "Os créditos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado".

            2. A ratio essendi do art. 1º da Emenda nº 30 dirigi-se exatamente àquelas verbas necessarium vitae, que são devidas e em relação às quais as partes não podem praticamente sobreviver, razão pela qual mereceram um tratamento constitucional privilegiado.

            3. Deveras, a verba decorrente dos honorários de sucumbência – cuja retribuição é aleatória e incerta – dependente do êxito da parte a qual patrocina, não podem ser considerados da mesma categoria dos alimentos necessarium vitae previstos na Carta Magna.

            4. Recurso ordinário em mandado de segurança improvido.

            Foram interpostos quatro embargos de declaração, sendo todos desprovidos pelo Colegiado (folha 378 a 385; 398 a 405; 435 a 444; 458 a 467).

            No recurso extraordinário de folha 469 a 478, no qual se evoca a alínea "a" do permissivo constitucional, o recorrente articula com a transgressão dos artigos 5º, cabeça e incisos XXXV, LV e LXIX, 37 e 93, inciso IX, da Carta Política da República. Alega ter a Corte de origem deixado de analisar, mesmo após o julgamento dos sucessivos declaratórios, "nove questões constitucionais que haveriam sido regularmente suscitadas naquele recurso ordinário de ampla devolutividade" (folha 473). Assevera que, nos quatro acórdãos relativos aos embargos, registrou-se, superficialmente, a ausência de vícios no julgado, mas sempre considerando-se o envolvimento de recurso especial e não ordinário, como era o caso. Afirma que os acórdãos possuem o mesmo teor, sendo o último mera reprodução dos dois anteriores, o que confirmaria a negativa de prestação jurisdicional apontada e a inobservância ao devido processo legal.

            O recorrente esclarece haver impetrado mandado de segurança contra ato de natureza administrativa de competência privativa do Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mas praticado ilegalmente e com abuso de poder por servidores da Divisão de Precatórios da Corte, que consistiu na inclusão do precatório na listagem ordinária para pagamento parcelado. Salienta tratar-se de crédito de natureza alimentícia, referente a honorários advocatícios e que, no exame do mandado de segurança, não se apreciou a matéria crucial, relativa "à anulação do ato administrativo irregularmente praticado por servidora que usurpara os poderes hierárquicos do próprio Presidente do Tribunal, ao fazer a extemporânea e equivocada classificação, ignorando-se a existência de um agravo regimental engavetado – para enveredar-se pelos caminhos da interpretação teleológica do novel § 1º-A do artigo 100, que fora acrescido ao texto constitucional pela recente Emenda nº 30, de 13.09.2000" (folha 476). A partir de então, prossegue o recorrente consignando que o enfoque dado à questão foi o concernente à natureza da verba honorária, deixando-se de lado aquele efetivamente impugnado por meio do mandado de segurança.

            A União apresentou as contra-razões de folha 480 a 487, ressaltando o caráter protelatório do extraordinário, por pretender o reexame de matéria exaustivamente analisada na esfera ordinária. Evoca o Verbete nº 284 da Súmula desta Corte, aludindo à deficiente fundamentação do recurso. Entende estar a matéria restrita à interpretação de normas infraconstitucionais e aponta o não-cabimento do recurso contra decisão referente ao processamento de precatório.

            O recurso foi admitido mediante o ato de folhas 489 e 490.

            A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 499 a 501, preconiza o provimento do recurso, considerando o caráter alimentar dos honorários.

            É o relatório.

            VOTO: Na interposição deste recurso, foram observados os pressupostos gerais de recorribilidade. A peça, subscrita por profissional da advocacia que atua em causa própria, restou protocolada no prazo assinado em lei. A notícia do acórdão atinente aos últimos embargos foi publicada no Diário de 22 de agosto de 2005, segunda-feira (folha 468), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 6 de setembro imediato, terça-feira (folha 469). Os documentos de folha 471 evidenciam a regularidade do preparo.

            Cumpre frisar, por oportuno, que, quando da interposição dos diversos embargos declaratórios, sempre esteve em questão, considerado o fenômeno da interrupção, o objeto respectivo, ou seja, o prazo referente ao extraordinário. No mais, se de um lado é certo que a Corte de origem não emitiu entendimento sobre as matérias veiculadas nos sucessivos embargos declaratórios, de outro, o tema de fundo propriamente dito deste extraordinário, ou seja, a natureza jurídica dos honorários advocatícios para efeito de expedição de precatório foi objeto de debate e decisão prévios.

            A Corte de origem teve como exaustiva a definição de crédito de natureza alimentícia constante do artigo 100, § 1º-A, da Constituição Federal, apenas tomando sob tal ângulo salário, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenização por morte ou invalidez, fundada na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado. O enfoque não merece subsistir. Se por um aspecto verifica–se explicitação do que se entende como crédito de natureza alimentícia, por outro, cabe concluir pelo caráter simplesmente exemplificativo do preceito. É que há de prevalecer a regra básica da cabeça do artigo 100 e, nesse sentido, constata-se a alusão ao gênero crédito de natureza alimentícia. O preceito remete necessariamente ao objeto, em si, do crédito alimentar visado. Ora, salários e vencimentos dizem respeito a relações jurídicas específicas e ao lado destas tem-se a revelada pelo vínculo liberal. Os profissionais liberais não recebem salários, vencimentos, mas honorários e a finalidade destes não é outra senão prover a subsistência própria e das respectivas famílias.

            Conforme explicitado no voto do relator no Tribunal Regional Federal, não sendo sufragado pela ilustrada maioria, o precatório, embora rotulado de comum, versa apenas os honorários advocatícios. Então, há de se concluir pelo caráter alimentar, ficando afastado o enquadramento até aqui prevalecente. Ao julgar, perante a Segunda Turma, o Recurso Extraordinário nº 170.220-6/SP em 19 de maio de 1998, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 7 de agosto de 1998, tive a oportunidade de consignar que a jurisprudência consolidou-se no sentido de dar-se ordem especial de precatórios quando envolvida prestação alimentícia, em que pese o artigo 100 da Constituição Federal conter expressão, em bom vernáculo, excluindo o hoje famigerado sistema de execução.

            Consoante o disposto na Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, os advogados têm direito não só aos honorários convencionados como também aos fixados por arbitramento e na definição da sucumbência – artigo 22 – sendo explícito o artigo 23 ao estabelecer que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido a seu favor. Repita mais uma vez que os honorários advocatícios consubstanciam, para os profissionais liberais do direito, prestação alimentícia. Daí se considerar infringido o artigo 100 da Constituição Federal, valendo notar que, no recurso extraordinário, embora explorado em maior dimensão o vício de procedimento, revela-se inconformismo com o julgamento no que tomada a parcela como a indicar crédito comum.

            Provejo o recurso extraordinário para conceder a segurança e determinar a retificação da classificação do precatório, tomando-o como de natureza alimentícia com as conseqüências próprias’ (DJ de 19-5-2006, Ata nº 13 de 9-5-2006).

            Com se vê, se a verba de sucumbência pertence ao advogado, nos termos do Estatuto da Advocacia, independentemente, de essa verba representar uma retribuição aleatória e incerta, dependente do êxito da parte para a qual patrocina o advogado, não se pode negar a ela a natureza alimentícia, pois o profissional liberal não percebe salários, nem vencimentos, mas vive exclusivamente de honorários contratuais e sucumbenciais. Daí o absoluto acerto da decisão supra transcrita.
 
 


Referência  Biográfica

Kiyoshi Harada  –  Advogado em São Paulo (SP), professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos