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Responsabilidade Civil do Estado por danos provenientes de veiculação de dados nos sites dos Tribunais

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* Mário Antônio Lobato de Paiva  –

Sumário:   I- Introdução;  II- Marco Latino-americano; III- Danos concretos;    IV- Responsabilidade Civil do Estado; V- Conclusão.

 

I- Introdução

O mundo moderno e virtual tem proporcionado uma verdadeira revolução de costumes no mundo real a medida em que os aparatos tecnológicos invadem todos os setores de nossa sociedade.

A comunidade jurídica por estar inserida neste contexto não teve alternativa senão a de adaptar-se as novas tecnologias sob pena de ser taxada de inerte e o que é pior, ineficaz.

No entanto este “caminho sem volta” deve ser trilhado com o máximo de cuidado para que não venha a transformar aquele benefício, facilidade ou utilidade trazida pela tecnologia em sérios prejuízos ao cidadão que necessita do bem chamado Justiça.

Por isso, antes de qualquer implementação a nível institucional (OAB, Ministério Público, Tribunais de Justiça, etc…) de sistemas de informação, principalmente os que possam ser acessados pelo público em geral, devem ser chamados especialistas na área de informática e na área jurídico para a elaboração de pareceres bem como estudos que vislumbrem a menor agressão possível aos direitos constitucionalmente protegidos.

Daí a necessidade da realização de congressos, seminários e encontros que reúnam os profissionais do direito para discutir as questões relacionadas ao chamado Direito Eletrônico possibilitando assim o avanço no estudo da matéria encontrando com isso soluções adequadas os problemas advindos da comunidade cibernética,

No caso específico do Estado a preocupação deve ainda ser maior no sentido de preservar que seus agentes não provoquem por intermédio de seus atos eletrônicos lesões ao direito dos cidadãos sob pena do mesmo vir a responder civilmente por danos provenientes, por exemplo, da veiculação indiscriminada de dados processuais em sites oficiais.

II- Marco Latino-americano

Recentemente participamos do seminário “Internet y Sistema Judicial em América Latina y el Caribe” (Home-page: http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/) realizado pelo Instituto de Investigación para la Justicia Argentina, Corte Suprema da Costa Rica e International Development Research Centre do Canadá onde foram analisados por especialistas e ministros de cortes superiores de justiça de vários países da América Latina os benefícios e dificuldades advindas das home-pages dos Poderes Judiciais na rede, os programa de transparência e proteção de dados pessoais.

O evento foi considerado um marco latino-americano no estudo da difusão de informação judicial na Internet. Nele foram expostas orientações imprescindíveis que devem ser observadas por todos os dirigentes de tribunais que colocam a disposição da população informações institucionais e processuais, como por exemplo a participação da sociedade civil nos programas de transparência, regulamentação da proteção de dados e as sociedades de informação creditícia, acesso a informação judicial proteção de dados sobre a saúde dos envolvidos em processo judicial, dentre outros temas não menos importantes que encontram-se na sua íntegra no site (http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/programa.htm).

Estas orientações foram chamadas de “Regras de Heredia” e encontram-se disponíveis no site (http://www.iijusticia.edu.ar/Reglas_de_Heredia.htm).

A parte que coube a nós explanar referiu-se a difusão de informações judiciais na Internet e seus efeitos a esfera trabalhista disponível no endereço:(http://www.iijusticia.edu.ar/Seminario_Taller/Lobato.rtf).

Expusemos em síntese que, infelizmente, as facilidades advindas do avanço da informática não estão sendo devidamente acompanhadas pelos lidadores do direito que insistem primeiro em aproveitar-se dos benefícios e depois discutir as questões jurídicas que envolvem seus atos.

Alertamos para a busca livre disponibilizada pelo site dos Tribunais brasileiros. Esse recurso traz uma série de implicações negativas no que diz respeito à privacidade e intimidade das pessoas que podem ter seus dados devassados pelo simples acesso a home-page.
No caso dos Tribunais do Trabalho o prejuízo é ainda muito maior para o trabalhador, pois põe em risco a conquista de um novo emprego, pois ao disponibilizar essas informações de forma irrestrita, os Tribunais armam maus empregadores de um banco de informação a respeito dos trabalhadores que possuíram ou possuem algum tipo de ação contra seu empregador ou ex-empregador, motivo pelo qual, poderá funcionar como empecilho para a obtenção por parte dos trabalhadores de novo emprego.

Referida discriminação já existia antes desse banco de dados através de “listas negras” que circulavam e circulam em empresas, porém não com tamanha facilidade e poder de inibição. Assim qualquer empregador que deseje saber se o empregado já ajuizou alguma reclamação na Justiça do Trabalho bastará acessar a home-page do tribunal para constatar e ao mesmo tempo impedir o acesso do empregado ao quadro de funcionários da empresa.

Mencionada discriminação ocorria todos os dias e a princípio não havia como ser exterminada totalmente, porém certos cuidados devem ser tomados para evitar essa atitude. A principal medida a ser tomada (nossa recomendação à época) é a de que o acesso fique restrito apenas aos advogados (de maneira livre pois exercemos uma função de essencialidade para a justiça conforme o artigo 133 da Constituição Federal) e às partes no processo em que estiverem envolvidos, evitando assim uma consulta geral e indiscriminada e portanto, dificultando esta prática abusiva por parte do empregador. Prática esta que dificilmente seria comprovada se viesse a ser suscitada perante a justiça.

Nossa recomendação com absoluta certeza dificultaria de maneira decisiva esta prática abusiva por parte de empregadores mal intencionados dando maiores possibilidades ao trabalhador de conquistar seu tão almejado emprego. Nossa proposição espelhou-se na Resolução do Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região que proibiu as consultas por busca livre pelo nome das partes.

Discriminações que impeçam o acesso livre ao emprego com base em certidões expedidas pelo SERASA ou em virtude do empregado já ter ajuizado reclamação trabalhista contra seu antigo empregador são práticas abusivas e inconstitucionais que devem ser combatidas pela sociedade. A OAB/PA através da Comissão de Estudos de Direito da Informática apresentou projeto encaminhado aos tribunais no sentido de limitar o acesso livre em sites jurídicos apenas aos advogados, restringindo às partes e demais envolvidos o acesso apenas através do número do processo.

Com isso, almejamos assegurar o direito constitucional à liberdade de trabalho estatuído no artigo 5º inciso XIII- “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”

Ressaltamos ainda que todos os direitos fundamentais têm aplicação na relação de trabalho, surgindo diante de nós um novo campo de estudo que é “a proteção dos trabalhadores no que diz respeito ao tratamento automatizado de dados pessoais”.

Assim para não sermos ameaçados com a extinção ou lesão de direitos fundamentais devemos nos posicionar claramente sobre os fatos advindos do caso concreto, estabelecendo diretrizes gerais que não beneficiem apenas umas das partes. Por isso somos favoráveis a interpretações e decisões baseadas no equilíbrio de direitos que permitam resguardar o direito à publicidade das decisões e processos judiciais, bem como a proteção à privacidade e intimidade do trabalhador.

Demonstramos que as autoridades brasileiras já vêm tomando medidas que coíbem a prática discriminatória ensejada pela veiculação de informações processuais por intermédio da internet. O próprio Poder Judiciário através da eliminação da pesquisa pelo nome do trabalhador nos processos em tramitação ou arquivados. O Poder Legislativo com projeto que prevê até mesmo a detenção dos empregadores que discriminem o acesso livre ao trabalho. O Poder Executivo através da Portaria acima mencionada. Medidas que visam resguardar o direito dos trabalhadores de acesso ao emprego assegurando o respeito à legislação constitucional e infra-constitucional que tem sido violada pelo avanço tecnológico.

Vale lembrar que, essas medidas só vieram a ser implementadas após o efetivo sacrifício de diversos trabalhadores que sofreram a humilhação de terem o acesso a um novo emprego vetado simplesmente por ter exercido seu direito constitucional de petição aos órgão públicos, fato este reconhecido pela Justiça do Trabalho, inclusive pelo Tribunal Superior do Trabalho em 30/08/2002 que, conforme ampla reportagem na Revista Jurídica Consulex cancelou a consulta por nome da parte/reclamante, permanecendo apenas a pesquisa pelo nome da empresa e número do processo.

Referida situação danosa, apesar de sanada em parte, não retira o direito daqueles que foram impedidos de conquistar um novo emprego, de pleitear no Judiciário indenização civil contra o Estado, servindo este infeliz episódio como uma espécie de alerta vermelho para os demais Tribunais superiores, estaduais e federais uma vez que a negativa a um emprego não é a única hipótese que poderá gerar, concretamente danos ao cidadão conforme poderemos observar no tópico seguinte.

É preciso te em mente que passamos por uma revolução cibernética que atinge em cheio as relações de trabalho e que, portanto, devem ser estudados e solucionados os conflitos provenientes dessas transformações munindo os atores sociais de arcabouços jurídicos e legais aptos para lidar com esses tipos de relações, com vistas a criar um equilíbrio social entre princípio da publicidade que rege a atividade dos órgãos judiciais com os direitos de livre acesso do trabalhador ao emprego, sem que haja discriminações provenientes pela difusão de informações advindas do Poder Judiciário.

III- Danos concretos

Ao longo dos debates pudemos perceber que, em vários casos ocorridos em tribunais da América Latina, houve prejuízos efetivos com a vinculação indiscriminada de dados pessoais do cidadão que pode ter sua privacidade e intimidade devassadas por qualquer indivíduo que tenha acesso a rede mundial de computadores.

No Brasil não poderia ser diferente, pois como relatados acima vários trabalhadores tiveram o seu direito a livre acesso ao emprego vetado pelo futuro empregador em virtude da disponibilização de consulta por nome dos reclamante nos sites dos tribunais. Tal procedimento trouxe reconhecidos e concretos prejuízos a milhares de trabalhadores tanto que foi admitido pelo próprios tribunais que alguns anos mais tarde resolveram abolir este tipo de pesquisa.

Os tribunais de justiça comuns continuam a trazer prejuízos aos juridicionados ao veicularem em processos judiciais dados que invadem a esfera íntima do indivíduo como por exemplo, seu estado de saúde ou doenças que levam a pessoa a sofrer situações discriminatórias como AIDS.

Sendo assim consideramos que este tipo de violação do direito à intimidade e privacidade daquele que procura a Justiça Estatal para solucionar suas inquietações gera o direito a pleitear uma indenização respectiva e proporcional ao dano causado por intermédio da teoria do risco administrativo que responsabiliza civilmente o Estado a ressarcir o lesado pelo danos ocasionados em virtude de sua conduta.

IV- Responsabilidade Civil do Estado

Teoria adotada atualmente pela grande maioria dos doutrinadores é a de que a responsabilidade Estatal é de natureza objetiva compreendendo atos omissivos ou comissivos que independem de prova de culpa. A Constituição Federal de 1988 não deixa dúvidas quanto a sua responsabilidade quando dispõe que:

“Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Em seu artigo 5º que prevê a indenização por dano moral que deverá ser fixada conforme o prudente arbítrio do juiz:

"Art.5. X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

José Cretella(1) ao abordar a questão da responsabilidade civil do Estado entende que: a) a responsabilidade do Estado por atos judiciais é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público; b) as funções do Estado são funções públicas, exercendo-se pelos três poderes; c) o magistrado é órgão do Estado; ao agir, não age em seu nome, mas em nome do Estado, do qual é representante; d) o serviço público judiciário pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações (cível); ou na qualidade de réus (crime); e) o julgamento, quer no crime, quer no cível, pode consubstanciar-se no erro judiciário, motivado pela falibilidade humana na decisão; f) por meio dos institutos rescisórios e revisionista é possível atacar-se o erro judiciário, de acordo com as formas e modos que alei prescrever, mas se o equívoco já produziu danos, cabe ao Estado o dever de repará-los; g) voluntário ou involuntário, o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo o Estado civilmente pelos prejuízos causados; se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa; h) provado o dano e o nexo causal entre este e o órgão judicante, o Estado responde patrimonialmente pelos prejuízos causados, fundamentando-se a responsabilidade do Poder Público, ora na culpa administrativa, o que envolve também a responsabilidade pessoal do juiz, ora no acidente administrativo o que exclui o julgador, mas empenha o Estado, por falha técnica do aparelhamento judiciário, ora no risco integral, o que empenha também o Estado, de acordo com o princípio solidarista dos ônus e encargos públicos”

Basicamente para a caracterização da responsabilidade deve existir e o nexo causal, ou seja, a relação entre o dano causado a ser reparado e a conduta do agente. A conduta lesiva no caso dos tribunais do trabalho é a disposição do nome do reclamante no site por intermédio do instrumento de pesquisa processual eletrônica e o dano é a vedação de acesso ao emprego em decorrência daquela disposição de dados.

Nos tribunais comuns existem vários exemplos que trazem lesão ao cidadão por intermédio da busca processual pelo nome dos litigantes que vão desde o abalo ao crédito até situações vexatórias que expõe os litigantes como no caso do mesmo ter contraído doença grave que tenha sido ventilada ou discutida no mérito do processo.

Além disso nos casos citados podemos observar uma clara violação da intimidade e privacidade dos juridicionados que tem em muitos casos sua vida invadida em questão de segundos por qualquer pessoa que tenha acesso ao site do Tribunal violando estes direitos assegurados na Constituição Federal, no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5°.

Portanto é plenamente viável a ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado que através dos sites oficiais dos tribunais divulgue indiscriminadamente informações judiciais pela internet que venham a lesar direitos constitucionalmente assegurados ao cidadão como o direito à intimidade, privacidade e livre acesso ao emprego.

V- Conclusão

O novo universo de utilidades e facilidades propiciado pela inserção dos sistemas tecnológicos aos administradores do Poder Judiciário tem gerado avanços importantes que culminam na satisfação de muitos que procuram nesta instituição a solução de suas aflições.

No entanto esta evolução não pode simplesmente ser implementada sem que haja estudos sobre o impacto ocasionado aos direitos de toda população. Portanto, assim da mesma forma com que um estabelecimento antes de abrir novas lojas necessita de um estudo detalhado do mercado, o judiciário necessita primeiramente de estudos que viabilizem a implantação de novas tecnologias sem que haja prejuízos a direitos fundamentais de cidadão assegurados constitucionalmente.

No entanto como isto tem sido feito de forma precária e assim ocasionando todo o tipo de lesão ao direito como, por exemplo, o de livre acesso ao emprego, restrições de crédito, exposição do estado grave de saúde das partes, etc. Resta ao lesionado buscar as portas do próprio Poder Judiciário para pleitear indenização civil contra o Estado por danos materiais e morais causados pela difusão indiscriminada de informações das partes nos sites oficiais dos tribunais.

Por fim cabe a nós alertar mais uma vez que a informática é um poderoso instrumento de efetivação de direitos que propicia grande celeridade na prestação jurisdicional, porém apresenta vícios que devem ser eliminados pelos profissionais do direito, se possível, antes de sua aplicação sob pena de que aquele benefício venha a tornar-se um problema tão grave que seria melhor que não tivesse ocorrido.

Desejamos que o judiciário tome as devidas providências no sentido de resguardar os direitos fundamentais a privacidade e intimidade através de programas de proteção de dados daqueles que o procuram de forma preventiva sob pena de ser alvejado por uma enxurrada de ações de indenização provenientes de da difusão de informações judiciais discriminatórias.

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(1) JÚNIOR, José Cretella. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais, RF, 230:46.

 

 

Referência  Biográfica

Mário Antônio Lobato de Paiva  –  Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática; Membro da Federação Iberoamericana de Associações de Direito e Informática; Membro da Associação de Direito e Informática do Chile; Membro do  Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática e Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.

malp@interconect.com.br


O Princípio da Proporcionalidade e as Sanções Penais nos Contratos Administrativos

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* Fernanda Kellner de Oliveira Palermo 

SUMÁRIO:  1 INTRODUÇÃO; 2 CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, 2.1 Considerações gerais, 2.2 Sanções nos contratos administrativos; 3 RELAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM OUTROS RAMOS DO DIREITO, 3.1 Relação do direito administrativo com o direito constitucional, 3.2 Relação do direito administrativo com o direito penal; 4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, 4.1 Origem do princípio, 4.2 O princípio da proporcionalidade na teoria do direito, 4.3 A intervenção estatal sob a égide do princípio da proporcionalidade, 4.4 Requisitos de empregabilidade do princípio da proporcionalidade, 4.5 Correlações principiológicas; 5 LIMITES À ATIVIDADE DISCRICIONÁRIA NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS; 6 CONCLUSÕES; 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1 INTRODUÇÃO

            Partindo-se da primícia de que um dos papéis que restam à Constituição na atualidade é o de que ela não esteja posta como um olhar sobre os problemas sociais, mas um olhar para estes problemas, com a finalidade de apontar e mostrar os caminhos para o futuro, é de suma importância a perquirição acerca de realidades contrastantes que solapam o ordenamento jurídico pátrio a cada dia.

            Neste ínterim, surge o tema relativo ao princípio da proporcionalidade, resultante da influência positiva do direito alemão, onde foi primeiramente estudado. Este princípio, ao ser inferido num modelo de Estado social e democrático de direito, possui o condão de aprimoramento do sistema de garantias a ele imanente, na busca incessante do interesse social corroborado no interesse público.

            O princípio da proporcionalidade, já obteve o reconhecimento básico de categoria fundante do direito, apesar de ainda não ser um princípio expresso constitucionalmente no direito pátrio.

            O que se espera, através da contribuição que doravante se venha a ter, é que este princípio, elevado à categoria de valor supremo da Constituição, passe a estar explicitado nela, possuindo dessarte, força vinculante para sua plena observância.

            Especificamente, ao se retratar tema de direito administrativo relativo ao contrato, busca-se discorrer a respeito de questões que versam sobre as sanções nele contidas, através da análise de variáveis como, num primeiro plano, a aproximação do direito administrativo com outros ramos jurídicos, para somente após, de modo pormenorizado, tratar-se questões sobre o princípio da proporcionalidade, correlacionando-o com a afirmação de que seria razoável que a Administração Pública regulasse o ato, e conseqüentemente o contrato administrativo, de acordo com a necessidade social e todas as implicações que esta afirmação enseja.

            O objetivo do presente trabalho configura-se na percepção de que a idéia de proporcionalidade está intrinsecamente ligada à idéia de necessidade, fazendo com que a intervenção do Estado na sociedade somente se legitime quando há a salvaguarda das garantias, o que torna esta necessidade indispensável ou inadiável, acerca da profundidade do fato concreto.

 

2 CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

            2.1 Considerações gerais

            A iniciação da Administração Pública na faculdade de contratar, necessitou diferentes modos de conformação, para que se atentasse à vinculação entre entes públicos e privados. O reconhecimento desta capacidade não implica necessariamente que esta se efetive em termos idênticos aos particulares.

            Devido a esta necessidade de adaptação, surgiu a idéia de uma espécie de contrato diferente, daqueles praticados na área do direito privado. A esta nova espécie, conceituada como o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídico-administrativa, deu-se o nome de contrato administrativo.

            De acordo com as lições do eminente professor português João Caupers[1], dos diversos critérios propostos para distinguir os contratos administrativos dos contratos privados, os mais utilizados foram:

            a) O critério da sujeição, assente na idéia de inferioridade do contraente privado;

            b) O critério do objeto, com base no qual se considera contrato administrativo aquele que constitui, modifica ou extingue uma relação jurídica de direito administrativo;

            c) O critério estatutário, que entronca na concepção do direito administrativo como o direito da Administração Pública.

            Trata-se de um fenômeno pelo qual relações e situações que envolvem interesses dos cidadãos privados, que segundo os esquemas clássicos da ação administrativa (baseada tradicionalmente na contraposição entre autoridade e liberdade) eram disciplinados através de procedimentos unilaterais da administração e, atualmente também por via administrativa, tendem cada vez mais a ser regulamentados por via convencional e, portanto, na base de um acordo entre ente privado e ente público. E o instrumento deste novo modelo de ação administrativa, organizado sobre o consenso e não já sobre a imposição é, fundamentalmente, o contrato, embora adaptado às peculiaridades das situações e das funções inéditas com as quais é chamado a confrontar-se.

            O contrato administrativo no Direito Positivo brasileiro encontra-se disciplinado no artigo 22, XXVII, da Constituição Federal, o qual dispõe, in verbis: "compete à União expedir normas gerais sobre contratação, em todas as modalidades, para a Administração Pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu controle". Estados e municípios legislarão para si, respeitadas estas normas gerais.

            Ditas normas gerais, assim como a legislação específica da União, estão consubstanciadas na Lei 8.666/93, com as alterações introduzidas pela Lei 8.883/94. Nesta legislação está previsto o conjunto de prerrogativas em prol da Administração, que são exercitadas nos limites e termos da lei, a saber:

            a) de modificá-lo, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, mas com variações de quantitativos e preços cifrados ao disposto na lei;

            b) extingui-lo, unilateralmente, nos casos especificados em lei;

            c) fiscalizar-lhe a execução,

            d) aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste.

            Por ocasião do presente trabalho, analisar-se-á mais detidamente a aplicabilidade das sanções aludidas acima.

            2.2 Sanções nos contratos administrativos

            A lei 8.666/93 prevê sanções pela prática de comportamentos configuráveis como infrações administrativas (arts. 86 a 88), assim como prevê também, sanções penais tanto para o agente público como para o contrato que incorram em certos comportamentos lesivos ao interesse público por ocasião dos contratos administrativos (arts. 89, parágrafo único, 90, 91, 92 e parágrafo único, 96 e 99).

            Assim, o contratado que injustificadamente atrasar-se na execução de contrato assujeita-se a ser multado pela Administração, na forma e termos previstos no instrumento convocatório ou no contrato (art. 86).

            Além disso, conforme o art. 87, a inexecução total ou parcial do contrato o expõe, garantida sempre a prévia defesa, a sofrer as sanções administrativas de advertência; multa, nos termos do instrumento convocatório; suspensão temporária de participar de licitação e impedimento de contratar com a Administração por dois anos e declaração de inidoneidade para contratar ou licitar enquanto perdurarem os motivos que a determinaram ou até sua reabilitação, que será concedida sempre que ressarcir a Administração pelos prejuízos que lhe haja causado e tenham transcorrido dois anos da aplicação da sanção.

            Tanto a suspensão do direito de contratar quanto a declaração de inidoneidade, só podem ser aplicadas no caso dos atos tipificados na lei como crimes, pois não se admitiria seu cabimento em outras hipóteses sem que existia prévia descrição legal de outros casos de seu cabimento.

            Certos comportamentos, que vão contra o interesse público, praticados em relação a contratos administrativos são qualificados como crime. Na lei estão tipificados hipóteses de contrato efetuado sem licitação, fora das hipóteses legais permissivas; travamento de contrato como resultado de fraude, ajuste ou procedimento gravoso à competitividade que teria de presidi-lo; prorrogação contratual fora das hipóteses admissíveis; fraude, em prejuízo da Fazenda, como fruto de licitação ou contrato, consistente em elevação arbitrária de preços ou venda, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada ou deteriorada; entrega de uma mercadoria por outra; alteração da substância, quantidade ou qualidade da mercadoria devida ou, de qualquer modo, tornar injustamente mais oneroso o contrato.

            As penas estabelecidas são a de detenção, que varia de três meses a seis anos, conforme a figura delituosa, e multa nunca inferior a 2% nem superior a 5% do valor do contrato. A lei prevê que qualquer pessoa poderá provocar o Ministério Público para propositura da competente ação penal (art. 101), admitindo-se, se este não a intentar no prazo legal, ação penal privada subsidiária (art. 103). O procedimento da ação penal é extremamente célere e está regulado nos arts. 104 e seguintes.

            Odete Medauar[2] preleciona que "embora não esteja explícito, parece claro que somente poderão ser aplicadas as sanções previstas na lei e de modo proporcional à gravidade do fato". (grifo nosso).

            O direito administrativo, ao regular institutos como o contrato administrativo, cominando-lhe aspecto sancionador, relaciona-se com outros ramos do direito. Doravante faz-se necessária a análise destas relações.

 

3 RELAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM OUTROS RAMOS DO DIREITO

            3.1 Relação do direito administrativo com o direito constitucional

            Ao se relacionar com outros ramos do direito, o direito administrativo está circunscrito a perceber e definir o sistema ao qual faz parte, assim como com aquele sistema maior, do qual também faz parte.

            Este sistema maior encontra-se indicado através de princípios, que certamente servem de alicerces para embasar todo um conjunto de normas que representam as leis constitucionais de um dado ordenamento jurídico.

            Reconhecidamente, o direito administrativo e o direito constitucional se interpenetram, considerando suas últimas relações com o objeto Estado.

            É através da explicitação dos princípios constitucionais do direito administrativo que se objetiva a evidente inserção conceitual.

            Dentre os principais princípios apontados pelos doutrinadores, destacam-se os seguintes:

            a) Princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado (fundamenta-se na própria idéia de Estado);

            b) Princípio da legalidade (arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV da C.F.);

            c) Princípio da finalidade (mesmos fundamentos do princípio da legalidade);

            d) Princípio da razoabilidade (mesmos dispositivos que os da legalidade e finalidade);

            e) Princípio da proporcionalidade (por estar intrinsecamente ligado ao princípio da razoabilidade, radica-se também nos mesmos dispositivos);

            f) Princípio da motivação (arts. 1º, II e parágrafo único, e 5º, XXXIV, da C.F.);

            g) Princípio da impessoalidade (arts. 37, caput, e 5º, caput, da C.F.);

            h) Princípio da publicidade (arts. 37, caput, e 5º, XXXIII e XXXIV, "b", da C.F.);

            i) Princípios do devido processo legal e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da C.F.);

            j) Princípio da moralidade administrativa (arts. 37, caput e parágrafo 4º, 85, V, e 5º, LXXIII, da C.F.);

            k) Princípio do controle judicial dos atos administrativos (art. 5º, XXXV da C.F.);

            l) Princípio da responsabilidade do Estado por atos administrativos (art. 37, parágrafo 6º, da C.F.);

            m) Princípio da eficiência (art. 37, caput, da C.F.); e

            n) Princípio da segurança jurídica.

            3.2 Relação do direito administrativo com o direito penal

            A atividade sancionadora da Administração Pública manifesta-se pela necessidade de impor aos administrados punições para assegurar o eficaz funcionamento dos serviços que estão a seu cargo.

            Tal se verifica ora com relação a terceiros, quando se está ante o poder de polícia, ou com sujeitos que se encontram vinculados à entidade administrativa por vínculos hierárquicos (servidores) ou negociais (contratos administrativos).

            Ao se deparar com as sanções penais e administrativas nos contratos administrativos, a Administração visa punir, a partir do instante que delas se ocupa, comportamentos que infringem deveres de obediência ou de colaboração dos indivíduos para com a atividade dos entes públicos na busca do interesse geral.

            Esta relação da Administração Pública com seu aspecto sancionador, também se reflete através de lindes principiológicas advindas dos princípios de direito penal, que podem ser agrupados do seguinte modo:

            a) legalidade: somente à lei compete a definição das infrações administrativas e respectivas penas;

            b) tipicidade: a Administração, ao manejar sua competência punitiva, deve ajustar-se com precisão à descrição típica da norma que prevê a infração. A tipicidade enuncia uma das conseqüências da adoção da reserva legal: a taxatividade. Segue-se daí não ser permitida a utilização, pelo administrador, da analogia, a fim de aplicar penas ao cidadão.[3]

            c) culpabilidade: para fins de responsabilidade administrativa, este princípio impõe a ocorrência de dolo ou culpa por parte do agente da infração;

            d) proporcionalidade: como o Poder Judiciário tem considerado este princípio angular na imposição de sanções penais administrativas, a ele será dedicado o próximo capítulo;

            e) retroatividade da norma mais favorável: a lei penal não retroagirá, salvo se para beneficiar o réu;

            f) non bis in idem: é inaceitável a dupla punição pelo mesmo fato;

            g) non reformatio in pejus: a parte vencida não poderá, em decorrência do exercício de sua legítima pretensão em recorrer, ver a sua situação agravada quando para esse fim, nada postulou a Administração processante.

 

4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

            4.1 Origem do princípio

            Como bem preleciona Canotilho[4]:

            O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. Na legislação portuguesa, é com este sentido que a teoria do estado o considera, já no século XVIII, como máxima suprapositiva, e que ele foi introduzido, no século XIX, no direito administrativo como princípio geral de direito de polícia. Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso, foi erigido à dignidade de princípio constitucional.

            É de se destacar o fato de que o princípio da proporcionalidade não encontra guarida expressa na Constituição Federal brasileira, apesar de que esta circunstância não impede seu reconhecimento, pois assim dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados." (…)

            4.2 O princípio da proporcionalidade na teoria do direito

            Ao se considerar o princípio jurídico como o mandamento nuclear do sistema, por

            definir a lógica e a racionalidade da normatividade, depreende-se que seu mecanismo de aplicação é muito mais complexo do que o esquema binário característico das regras.

            Isto ocorre porque os princípios jurídicos não prevêem situações determinadas ou efeitos específicos que delas decorreriam. Os princípios, portanto, não estabelecem que, ocorrendo tal fato, será aplicada determinada sanção ou concedido certo benefício. Possuem um papel estruturante da ordem jurídica e da organização estatal como um todo, ao estabelecerem os pensamentos diretores do ordenamento das instituições, inclusive do próprio Estado, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico.

            A distinção entre princípios e regras torna-se relevante, como assevera Humberto Bergmann Ávila[5], pois:

            A definição de princípios como normas imediatamente finalísticas e mediatamente de conduta explica sua importância relativamente a outras normas que compõem o ordenamento jurídico. Possuindo menor grau de determinação do comando e maior generalidade relativamente aos destinatários, os princípios correlacionam-se com um maior número de normas (princípios e regras), na medida em que essas se deixam reconduzir ao conteúdo normativo dos princípios. Isso explica a hierarquia sintática e semântica que se estabelece entre princípios e demais normas do ordenamento e, conseqüentemente, a importância dos princípios na interpretação e aplicação do Direito.

            Existem ocasiões em que há conflito entre princípios, ou entre eles e regras. O princípio da proporcionalidade é de grande valia nestas ocasiões, pois pode ser usado como critério para solucionar da forma mais conveniente tal conflito, ao balancear a medida em que se aceita prioritariamente um e desatende o mínimo possível o outro princípio.

            É imprescindível que se mencione a importância da difusão do princípio da proporcionalidade pelo ordenamento jurídico, nas considerações de Willis Santiago Guerra Filho[6]:

            O estabelecimento do princípio da proporcionalidade ao nível constitucional, com a função de intermediar o relacionamento entre as duas matérias mais importantes a serem disciplinadas em uma constituição, como são aquelas referentes aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e à organização institucional dos poderes estatais, já implica em aceitar a aplicação generalizada do princípio nos vários ramos do Direito.

            Esta mesma concepção vem de encontro ao pensamento de Karl Larenz[7], que por sua vez, considera o princípio da proporcionalidade como evidente numa posição de primazia, na derivação de diferentes princípios jurídicos gerais do princípio do Estado de Direito, por sua "exigência da medida indicada, da adequação entre meio e fim, do meio mais idôneo ou da menor restrição possível do direito ou bem constitucionalmente protegido que, no caso concreto, tem de ceder perante outro bem jurídico igualmente protegido."

            No posicionamento do aludido autor[8], o princípio da proporcionalidade, na sua formulação mais geral, em que requer ou exige apenas uma relação adequada entre meio e fim e que o dano que sobrevenha não esteja sem relação com o risco que deveria ser afastado, aparece como um princípio aberto, porque nestes casos não é indispensável uma avaliação adicional. Não se trata aqui de outra coisa senão da idéia da justa medida, do equilíbrio, que está indissociavelmente ligada à idéia de justiça.

            Suas idéias e ensinamentos denotam a necessidade prevalecente, na atualidade, de adequação de princípios e cláusulas abertas no ordenamento jurídico às condições de vinculação e discricionariedade, para que, ao se traçarem caminhos paralelos desta dicotomia, conclua-se pelo ponto de intersecção que surge com os denominados conceitos jurídicos indeterminados.

            Ainda sobre divergências de posicionamento com relação ao significado do princípio da proporcionalidade na teoria do direito, Humberto Bergmann Ávila[9] alude aos ensinamentos de Larenz que, ao atribuir um significado mais elástico aos princípios, considera-o um princípio material; atribuição da qual discorda, juntamente com Kaufmann, ao considerar-lhe um princípio formal, que estabelece uma estrutura formal dos princípios envolvidos, ou seja, o meio escolhido deve ser adequado, necessário e não-excessivo.4.3 A intervenção estatal sob a égide do princípio da proporcionalidade

            Após o enfoque introdutório, onde discorreu-se a respeito do princípio da proporcionalidade na teoria do direito, cumpre-se atentar à sua definição. Luis G. Grandinetti Castanho de Carvalho opta por lançar mão das palavras do Professor Nicolas Gonzales – Avellar Serrano[10], que o define do seguinte modo:

            O princípio da proporcionalidade é um princípio geral de direito que, em sentido muito amplo, obriga o operador jurídico a tratar de alcançar o justo equilíbrio entre os interesses em conflito… Exige, utilizando expressões reiteradamente empregadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que as restrições dos direitos fundamentais se encontrem previstas pela lei, sejam adequadas aos fins legítimos a que se dirigem, e constituam medidas necessárias em uma sociedade democrática para alcançá-los. (tradução livre).

            Tendência atual no direito dos países europeus é a convergência dos sistemas de common law e de direito administrativo. Esta convergência faz com que a intervenção estatal dê-se de modo à utilização de um princípio de controle exercido pelos tribunais quanto à adequação dos meios administrativos (sobretudo coativos) à prossecução do escopo e ao balanceamento concreto dos direitos ou interesses em conflito. O princípio da proporcionalidade é, dessarte, aplicado como standard jurisprudencial para recolocar a administração num plano menos distante em relação ao cidadão. Trata-se de controle de natureza equitativa que, não pondo em causa os poderes constitucionalmente competentes para a prática de atos de autoridade e a certeza do direito, contribui para a integração da justiça nos conflitos sociais.

            O princípio da proporcionalidade, como conceito jurídico-administrativo, refere-se a benefícios decorrentes da decisão administrativa para o interesse público prosseguido pelo órgão decisor e os respectivos custos, medidos pelo inerente sacrifício de interesses dos particulares (o que também se pode chamar de racionalidade da decisão).

            Esta racionalidade exsurge-se no campo de aplicação mais importante deste princípio, que é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por atos dos poderes públicos. No entanto, devido principalmente ao escopo do presente trabalho, cumpre-se salientar que no entanto, o domínio lógico de aplicação do princípio estende-se aos conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie. Assim, por exemplo, pode-se fazer apelo a ele no campo da relação entre a pena e a culpa no direito penal.

            A restrição dos direitos, liberdades e garantias colimada através do princípio da proporcionalidade há de se adequar sempre ao pressuposto de legalidade, pois esta restrição não pode existir sem que esteja prevista em lei. Além do pressuposto de legalidade, é mister a adequação ao pressuposto de justificação teleológica, que limita a aplicação de qualquer restrição aos fins objetivados pela lei que a instituiu, ou seja, a restrição deve estar vinculada à proteção de outro interesse jurídico, fim primeiro de qualquer atividade legislativa.

            4.4 Requisitos de empregabilidade do princípio da proporcionalidade

            Os requisitos de empregabilidade do princípio da proporcionalidade devem ser analisados através do enfoque de subprincípios, que para serem melhor compreendidos, devem ser explicitados sob a ótica de alguns autores.

            Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho[11], ao discorrer sobre estes requisitos, assevera que:

            Os requisitos são extrínsecos – judicialidade (requisito subjetivo) e a motivação (requisito formal) – e requisitos intrínsecos – constituídos por subprincípios da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. A idoneidade constitui-se no exame de a medida constritiva ter ou não relação de causalidade ao fim pretendido, ou seja, ser idônea, apta, para atingir aquele fim. A necessidade, também compreendida como intervenção mínima, é a adequação do grau de eficácia das medidas. E, por último, a proporcionalidade em sentido estrito é o exame do confronto direto entre os interesses individuais e estatais, a fim de se estabelecer se é razoável exigir-se o sacrifício do interesse individual em nome do interesse coletivo.

            Willis Santiago Guerra Filho[12], por sua vez, aduz que:

            O princípio da proporcionalidade, entendido como um mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com outro ou outros, na medida do jurídico e faticamente possível, tem um conteúdo que se reparte em três princípios parciais: princípios da proporcionalidade em sentido estrito ou máxima do sopesamento, princípio da adequação e princípio da exigibilidade ou máxima do meio mais suave.

            O aludido autor refere-se ao primeiro como aquele que determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, seja juridicamente a melhor possível. Os outros dois subprincípios; por sua vez, determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se assim, adequado. Além disso, esse meio deve se mostrar exigível, o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais.

            O modo de aplicação correto do princípio da proporcionalidade relaciona-se ao pressuposto de existência de valores estabelecidos positivamente em normas do ordenamento jurídico, principalmente aquelas com a natureza de um princípio fundamental, mas também requer um procedimento decisório, a fim de permitir a necessária ponderação em face dos fatos e hipóteses a serem considerados. Tal procedimento deve ser estruturado e institucionalizado de uma forma tal que garanta a maior racionalidade e objetividade possíveis da decisão, para atender ao imperativo de realização de justiça, que é imanente ao princípio.

            João Caupers[13] elucida que o conceito jurídico-administrativo de proporcionalidade decompõe-se em três níveis de apreciação:

            a) A exigibilidade do comportamento administrativo, tendo este de constituir condição indispensável da prossecução do interesse público;

            b) A adequação do comportamento administrativo à prossecução do interesse público visado;

            c) A proporcionalidade em sentido estrito ou relação custos-benefícios, isto é, a existência de uma proporção entre as vantagens decorrentes da prossecução do interesse público e os sacrifícios inerentes dos interesses privados.

            Após a explicitação dos requisitos de empregabilidade do princípio da proporcionalidade, pode-se sintetizá-los, em face do exposto, da seguinte maneira:

            a) Subprincípio da conformidade ou adequação de meios: impõe que a medida adotada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Conseqüentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o ato do poder público é apto para e conforme os fins justificativos de sua adoção. Trata-se de controlar a relação de adequação medida-fim;

            b) Subprincípio da exigibilidade ou da necessidade: coloca a idéia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não seria possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão. Este subprincípio não questiona, na maior parte dos casos, a adoção da medida (necessidade absoluta) mas sim a necessidade relativa, ou seja, se o legislador poderia ter adotado outro meio igualmente eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos;

c) Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito: quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coativa do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

            4.5 Correlação principiológicas

            Em face do tema em questão, a análise do princípio da proporcionalidade em suas correlações com alguns outros princípios específicos do direito penal torna-se imprescindível.

            Na atualidade, a tendência mundial em termos de direito penal diz respeito à tolerância e à descriminalização. Dois dos principais princípios que corroboram esta tendência são o da insignificância e o da intervenção mínima.

            Francisco de Assis Toledo[14] preleciona que "segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas".

            Seguindo suas explanações, constata-se a importância da proteção do bem jurídico, de acordo com níveis diferenciados de apreciação deste bem, considerado agora como um fim a que se destina a norma protetora.

            Esta proteção se dá em níveis de ingerência mínima para a harmonização da vida social, e através de um juízo de proporcionalidade, adequa-se ao princípio da intervenção mínima. Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira[15] discorre a respeito deste princípio atestando que:

            Toda intervenção, além dos limites da necessidade, desfigura o verdadeiro direito penal, compreendido apenas como uma indispensável atividade sancionatória do Estado. Em conseqüência, há de se entender que o dever do Estado, ao estabelecer as normas penais, deve subordinar-se ao princípio da intervenção mínima, delimitado pelos critérios da necessidade e da realização da justiça substancial, punindo penalmente apenas aqueles que tenham atentado contra bens essenciais à vida social.

            É de bom alvitre que se mencione, a título exemplificativo, que já na década de trinta, do século passado, a Dinamarca, como bem lembra Aníbal Bruno[16], possuía um Código Penal que admitia a analogia em matéria penal, que mesmo sendo usada de forma atenuada, era mantida dentro de limites consentâneos com a garantia dos direitos fundamentais. Atualmente, este país conta com baixos índices de criminalidade, configurando-se como um dos maiores exemplos de efetividade quanto à aplicação de princípios como o da intervenção mínima.

            Ainda com relação aos bens jurídicos, é de suma relevância que sejam inseridos no contexto dos valores fundamentais. Valores fundamentais que correspondem a valores sociais básicos, que por sua importância, são elevados à categoria constitucional.

            Somente a partir desta valoração essencial, estará o legislador apto a discernir entre o que seja realmente objeto de tutela penal estritamente necessária, para que possa usar com correção o critério da proporcionalidade, no intuito de proteger os cidadãos contra uma série de tipos penais desproporcionais ao fim a que se destinam.

            O princípio da proporcionalidade, analisado sob a égide do direito penal, tem sua relevância limitada pela relevância da finalidade da pena para a sua estruturação e fixação. A finalidade da pena não estrutura a relação sem a correlação necessária com outros elementos, como tipicidade e culpabilidade.

            A proporcionalidade só se aplica a um dos elementos do crime. Primeiro, a culpabilidade consubstancia um dos elementos do crime, e a pena pressupõe a culpa. Segundo, deve haver congruência entre a antijuridicidade e a culpa, na medida em que essa deve abranger todos os elementos objetivos do concreto ato antijurídico. Terceiro, a pena deve ser correspondente à culpa, que lhe serve de limite. É somente nesse terceiro aspecto que a proporcionalidade pode ser substitutiva da culpabilidade. Portanto, ela torna-se relevante desde que sejam objetivamente estabelecidos os fins da pena e o elemento material com o qual ela deve estar em relação proporcional.

            De acordo com o posicionamento de Humberto Bergmann Ávila[17], "essa considerações levam à qualificação da proporcionalidade como uma mera estrutura formal de aplicação do Direito a ser necessariamente posta em correlação com elementos substanciais normativos, sem os quais não passa de um esqueleto", opinião da qual extrai-se o mero aspecto formal do princípio da proporcionalidade, e que não encontra respaldo entre muitos dos autores citados, como Guerra Filho e Larenz.

 

5 LIMITES À ATIVIDADES DISCRICIONÁRIA NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

            Primeiramente, é mister que se considere a necessidade de análise quanto aos atos discricionários emanados pela Administração Pública, cuja irrecorribilidade não pode, logicamente, ocorrer.

            Em nenhum instante pode-se conceber uma parte qualquer da Administração Pública fora ou acima do ordenamento jurídico e é por esta razão mesma que se enumeram os princípios de direito, que existem justamente para colimar os abusos que possam advir de determinados atos arbitrários.

            Os princípios configuram-se como limites, apesar de possuírem características não muito bem definidas, que podem ser objeto de inúmeras interpretações.

            A violação de faculdades regradas é sempre mais clara e evidente. Daí exsurge a grande antinomia entre vinculação e discricionariedade, que por ter fortes cominações no modo de interpretação das sanções penais e administrativas constantes nos contratos administrativos, torna-se um ponto relevante, a ser perquirido por ocasião do presente trabalho.

            Agustin Gordillo[18] assevera que "os principais limites que freiam a discricionariedade são os seguintes: a razoabilidade (a proibição de atuar arbitrária ou irracionalmente), o desvio de poder (proibição de atuar com uma finalidade imprópria) e a boa fé".

            Todos estes limites norteiam-se por conceitos jurídicos indeterminados, característica que denota elementos paradoxais, pois como seria possível limitar a discricionariedade através de conceitos que, por sua natureza, são exatamente advindos de categorias imprecisas de definição ?

            A resposta a esta questão surge a partir do momento que se outorga a vinculação normativa àqueles conceitos, através da justificação analógica com referência a paradigmas pré-fixados através da jurisprudência, sempre utilizando-se de um critério de proporcionalidade nesta adequação.

            O princípio da proporcionalidade, nesta seara, é uma importante conquista dos cidadãos no sentido da melhoria da eficácia na fiscalização do exercício dos poderes discricionários, na medida em que permite um controle objetivo destes, bem mais operativo do que o controle subjetivo, restrito à busca dos motivos determinantes da decisão, no quadro da investigação do desvio de poder. Ressalva se faz, aqui, somente no sentido de que este controle objetivo irá se concretizar de modo cada vez mais efetivo, ao estar vinculado aos tipos que lhe são determinantes.

            Manuel de Rivacoba y Rivacoba[19] chama a atenção para a existência de regimes que chegam até mesmo à negação dos principais princípios imanentes ao direito penal, quando aduz:

            Frente a regimes punitivos que sejam estranhos ou contrapostos a tais princípios, faz-se imperativo para a doutrina baseada em e conforme a eles, denunciá-los com insistência e severidade e postular com compelação sua substituição por leis que sejam respeitosas à dignidade humana e de sua própria e verdadeira entidade jurídica. À parte disto, nada de surpreendente tem que ordenamentos legais informados pelos autênticos princípios cardinais incorram em seu desconhecimento ou negação, isto é, que se desviem de suas exigências ou as contradigam, ao regular determinadas instituições, o que uma dogmática prestimosa descubrirá e colocará em relevo sem excessiva dificuldade, propondo de imediato a devida correção. (tradução livre).

            A importância da dogmática para uma livre apreciação principiológica é, destarte, colocada em evidência, não somente pelo autor supracitado, mas por vários outros.

            Quanto mais consistente forem as definições de categorias utilizadas na interpretação e na aplicação do direito, mais se ganhará em certeza e segurança jurídica. Finalidades essas, instituídas pelo ordenamento jurídico pátrio e que não podem ser ignoradas. É imperioso que um sistema jurídico é tanto mais coerente quanto mais específicas forem as conexões entre seus elementos, maior o número de conceitos gerais que possam explicá-lo e maior o número de casos que abranger.

            Finalmente, cumpre-se assinalar algumas peculiaridades relacionadas ao contrato administrativo. Podem ocorrer hipóteses que demonstram que, em um vínculo constitutivo de direitos e obrigações recíprocos, onde deve prevalecer o equilíbrio econômico-financeiro entre as partes, uma entidade pública pode ter o interesse de extrair o máximo de vantagens, eximindo-se de todos os encargos de que conseguisse se evadir. Procedimentos deste cunho denotam o total descaso quanto ao interesse público, finalidade máxima deste tipo de contrato.

            Alexandre Santos de Aragão[20], em recente artigo, faz considerações importantes sobre o princípio da proporcionalidade e a supremacia do interesse público:

            A doutrina contemporânea refere-se à impossibilidade de rigidez na prefixação do interesse público, sobretudo pela relatividade de todo padrão de comparação. Deve-se salientar, contudo, que não se está a negar a importância jurídica do interesse público. O que deve ficar claro, é que mesmo nos casos em que ele legitima uma atuação estatal restritiva específica, deve haver uma ponderação relativamente aos interesses privados e à medida de sua restrição. É essa ponderação para atribuir máxima realização aos interesses envolvidos o critério decisivo para a atuação administrativa.

            Dessarte, o princípio da proporcionalidade traz a justa medida para o critério de ponderação aludido acima, viabilizando, assim, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo.

 

6 CONCLUSÕES

            Cumpre-se, primeiramente, neste escorço conclusivo, atentar ao problema da garantia constitucional no direito punitivo.

            A partir de constatações feitas no final da década de setenta pelo ilustre Francesco C. Palazzo[21], o qual afirmava que já naquele momento:

            A tendência a uma progressiva sobreposição entre o direito punitivo administrativo e o direito criminal traz importantes manifestações também a nível legislativo, se não no sentido de uma oportunidade expressa de posicionamento do legislador favorável à aplicação da disciplina e dos princípios penalísticos ao direito administrativo, naquele sentido, não menos significativo, de uma progressiva redução da sanção administrativa, à exceção que no campo fiscal, há vantagem de um maior recurso à sanção penal. Hoje se assiste, no entanto, a uma inversão nesta tendência, sendo particularmente viva e forte a aspiração à descriminalização. (tradução livre).

 O aspecto sancionatório disciplinado na lei 8.666/93, sobre os contratos administrativos, vai contra a tendência crescente de descriminalização que vem ocorrendo em outros sistemas jurídicos do mundo.

            Desta tendência, extrai-se que a Administração Pública, quando impõe pena ao particular deve, necessariamente, atuar da maneira menos lesiva, pautando-se pelas balizas da necessidade e da adequação. A utilização imoderada da competência punitiva, tendência esta que vem se manifestando de modo até mesmo acirrado diante de inúmeros exemplos de tipificações penais com os quais se deparam os cidadãos brasileiros na atualidade, propende à ilegitimidade, com grande probabilidade ao arbítrio.

            A Administração Pública, ao impor sanções durante o desenrolar dos contratos administrativos, e ao pronunciar pena que não se coadune com a gravidade da falta imputada, deve estar sujeita ao controle do juiz.

            O Poder Judiciário tem reputado a proporcionalidade na perquirição de sanções administrativas, mas esta reputação deve ser mantida quando ocorram imposições de sanções penais nos contratos administrativos.

            É incontestável que a Administração deve observar sempre, nos casos concretos, as exigências de proporcionalidade, principalmente nos casos em que dispõe de espaços de discricionariedade.

            Como nas hipóteses de uma estreita vinculação imposta por lei, o princípio da proporcionalidade deve ser analisado mais a partir da própria lei do que do ato concreto da Administração, os aspectos submetidos à discrição do administrador sofrem redução.

            Estes aspectos devem ser analisados e interpretados, tanto pelo legislador, como pelo administrador e o juiz a partir da apreensão de paradigmas representados pelos princípios correlacionados ao princípio da proporcionalidade em todas as suas inserções (quer sejam no direito constitucional, administrativo e penal).

            Não se torna fundamental, sob este prisma, considerar o princípio da proporcionalidade somente sob a ótica formal, mas principalmente sob o prisma de sua inserção substancial no modo de trazer à tona valores que demonstrem a premente necessidade de adequação de tipos penais à realidade para a qual foram criados.

            O fato de existirem conceitos jurídicos indeterminados nesta seara, é somente mais um motivo para se olvidar à busca incessante de maneiras até mesmo analógicas de se definirem as especificidades não pela sua forma, mas pela sua finalidade.

            A constatação da existência de valores supremos constitucionais que influenciam todos os demais ramos do direito, traz à teoria dos contratos administrativos mais uma certeza na afirmação de sua busca na persecução do interesse público.

            Esta persecução não se efetivará através de percalços advindos de aspectos punitivos que a lei possui. Ela se efetivará somente através de um juízo de proporcionalidade, que tornará a adequação meio-fim um modo de proteção inestimável aos direitos fundamentais dos cidadãos.

            Quando isto ocorrer, o princípio da proporcionalidade poderá ser elevado à categoria de valor supremo da Constituição, possuindo, então, força vinculante para colimar todas as situações de desequilíbrio, inclusive aquelas inerentes às sanções constantes nos contratos administrativos.

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Notas

            [1] CAUPERS, J. Introdução ao direito administrativo. Lisboa: :Ancora, 2000. p.219.

            [2] MEDAUAR, O. Direito administrativo moderno. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.256.

            [3] Esta questão específica vem suscitando controvérsias, pois existem doutrinadores que atestam a invalidade de certas cláusulas abertas que pretendem qualificar como sancionável infração normativa de qualquer espécie. Ao tratar de respectivo tema, NOBRE JÚNIOR aduz que "a exemplo do direito penal, é de bom alvitre a aplicação do princípio da insignificância (ao qual far-se-á alusão adiante). Assim, o aplicador da norma punitiva haverá de relevar as situações de não ocorrência de lesão a bens jurídicos da coletividade, escoimando de pena o infrator". NOBRE JÚNIOR, E. P. Sanções administrativas e princípios de direito penal. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, v.219, jan. – mar., 2000. p.138.

            [4] CANOTILHO, J.J. Direito constitucional e teoria da constituição. 2.ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.259-260.

            [5] ÁVILA, H. B. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, v. 215, jan. – mar., 1999. p.168.

            [6] GUERRA FILHO, W. S. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Celso Bastos, 1999. p.74.

            [7] LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. 3.ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p.603.

            [8] Ibidem, p.684.

            [9] ÁVILA, op. cit., p.169-170.

            [10] SERRANO, N. Gonzales-Avellar apud Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. O processo penal em face da constituição. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.73. "El principio de proporcionalidad es un principio general del Derecho que, en sentido muy amplio, obliga al operador juridico a tratar de alcanzar el justo equilibrio entre los intereses en conflicto… Exige, utilizando expresiones reiteradamente empleadas por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, que las restricciones de los derechos fundamentales se encuentren previstas por la ley, sean adecuadas a los fines legitimos a los que se dirijan, y constituyan medidas necesarias en una sociedad democratica para alcanzarlos".

            [11] CARVALHO, L. G. G. C. de. O processo penal em face da constituição. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.73-74.

            [12] GUERRA FILHO, op. cit., p.67-68.

            [13] CAUPERS, op. cit., p.80.

            [14] TOLEDO, F. A. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.133.

            [15] OLIVEIRA, M. A. C. M. de. O direito penal e a intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, v.17, jan.- mar., 1997. p.152.

            [16] BRUNO, A. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p.142. t.1.

            [17] ÁVILA, op. cit., p.178.

            [18]GORDILLO, A. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p.183.

            [19] RIVACOBA, M. de R. y. Introducción al estudio de los principios cardinales del derecho penal. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, v.32, out. – dez. 2000, p.54. "Frente a regímines punitivos que sean extraños o contrapuestos a tales principios se hace imperativo para la doctrina basada en y conforme con ellos denunciarlos con insistencia y severidad y postular con apremio su substitución por leyes que sean respetuosas de la dignidad humana y de su propria y verdadera entidad jurídica. Aparte de esto, nada de sorprendente tiene que cuerpos legales informados por los auténticos principios cardinales incurvan en su desconocimiento o negación, es decir, que se desvíen de sus exigencias o las contradigan, al regular determinadas instituciones, lo que una dogmática acuciosa descubrirá y ponderá de relieve sin excesivas dificultades, proponiendo de inmediato la debida corrección".

            [20] ARAGÃO, A. S. de. O princípio da proporcionalidade no direito econômico. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, v.223, jan. – mar., 2001. p.214-215.

            [21] PALAZZO, F. C. Il princípio di determinatezza nol diritto penale. Padova: Cedam, 1979. p.199-2000. "La tendenza ad una progressiva sovrapposizione tra il diritto punitivo amministrativo e il diritto criminale eble importanti manifestazioni anche a livello legislativo, se non nel senso di una espressa presa di posizione del legislatore a favore dell’applicazione della disciplina e dei principi penalistia al diritto amministrativo, certamente in quello, non meno significativo, di una progressiva riduzione delle sanzioni amministrative, ad eccezione che nel campo fiscale, a vantaggio di un sempre piú impomente ricorso alla sanzione penale. Oggi si assiste, però, ad una inversione di quella tendenza, essendo particorlamente viva e forte l’aspirazione alla decriminalizzazione."

 


Referência  Biográfica

Fernanda Kellner de Oliveira Palermo  –  Advogada, pós-graduanda em Direito Administrativo pela UNESP de Franca (SP).

fernandapalermo@hotmail.com

A Propriedade Fiduciária e o Novo Código Civil

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* Ana Carolina de Salles Freire  e Mateus Donato Gianeti 

O Novo Código Civil (Lei 10.406/2002) trouxe uma inovação a respeito da alienação fiduciária em garantia, ao regulamentar a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368. 

A alienação fiduciária em garantia de bens móveis, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 4.728/65, conforme alterada pelo Decreto-lei 911/69, tem sido largamente utilizada como instrumento de garantia de financiamentos bancários, acentuadamente no financiamento de automóveis. 

As características básicas do instituto da alienação fiduciária, estabelecidas pelo art. 66 da Lei 4728/65, são idênticas às da propriedade fiduciária. Trata-se, em ambos os casos, da transferência da propriedade resolúvel de bens móveis pelo devedor ao credor, como garantia de obrigações assumidas por aquele junto a este. Com a constituição da propriedade fiduciária ocorre ainda o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa, enquanto o credor permanece com a posse indireta da coisa. 

Essa coincidência autoriza a interpretação de que o Novo Código Civil revogou tacitamente o art. 66 da Lei 4728/65, tendo regulado inteiramente a matéria da alienação fiduciária de bens móveis (a alienação fiduciária de imóveis, regulada pela Lei 9.514/97, permanece inalterada). Dessa forma, as expressões propriedade fiduciária e alienação fiduciária se confundem, podendo ser utilizadas indistintamente para designar o mesmo instituto jurídico. Uma vez admitida referida interpretação, deve-se ressalvar que os dispositivos processuais relacionados com a alienação fiduciária introduzidos pelo Decreto-lei 911/69 permanecem em vigor, de acordo com os termos do art. 2.043 do Novo Código Civil, o qual estabelece que permanecem em vigor as disposições processuais constantes de leis cujos preceitos de natureza civil tenham sido incorporados ao Novo Código Civil. 

Apesar de ser muito utilizada nos financiamentos de bens de consumo, a alienação fiduciária também se configura como um importante instrumento de garantia nas operações de financiamento a empresas. No entanto, sua utilização em referidos financiamentos quando o credor não era uma instituição financeira nacional sofreu questionamentos nos tribunais com o passar dos anos. 

Tendo em vista as vantagens oferecidas ao credor na alienação fiduciária, o STF acabou por determinar que esta somente poderia ser utilizada por instituições financeiras sujeitas à fiscalização do Banco Central do Brasil, o que limitava a utilização do instituto, inclusive nos casos de financiamentos concedidos por instituições estrangeiras. 

Além disso, o parágrafo 1º do art. 66 da Lei 4728/65 estabelecia que o instrumento de constituição da alienação fiduciária devia ser registrado no domicílio do credor, o que seria impraticável caso referido credor fosse uma instituição com sede no exterior. 

Na regulamentação dada pelo Novo Código Civil, a propriedade fiduciária pode ser livremente utilizada em quaisquer financiamentos, independentemente do credor ser brasileiro ou estrangeiro, tendo em vista que o Novo Código Civil é de aplicação genérica e não traz qualquer tipo de diferenciação ou restrição. 

Devido as suas características básicas, a propriedade fiduciária possui algumas vantagens como garantia, influenciando, inclusive, na análise do risco de crédito da operação. Isso porque quando se utiliza a propriedade fiduciária para garantir uma dívida – seja em operações de empréstimo locais ou externas – o devedor transfere ao credor a propriedade, ainda que resolúvel, do bem objeto da garantia. 

Caso ocorra o vencimento da dívida garantida pela propriedade fiduciária sem o devido pagamento por parte do devedor, o credor fica obrigado a vender, seja judicialmente ou de forma amigável, a coisa a terceiros, aplicando o preço no pagamento de seu crédito e das despesas por ele incorridas com sua cobrança, retornando o saldo, se houver, ao devedor. 

Cumpre ressaltar que o Decreto-lei 911/69, ao alterar as disposições da Lei 4728/65 sobre a alienação fiduciária, assim dispõe com relação à falência do fiduciante: “Art. 7º: Na falência do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir, na forma prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciariamente.” 

Assim, no caso de falência do devedor fiduciante, o credor fiduciário tem o direito de exigir a restituição dos bens objeto da alienação fiduciária. Nesse caso, o credor fiduciário não precisará habilitar seu crédito e aguardar o pagamento da dívida nos termos da Lei de Falências, mas sim solicitar a imediata restituição dos bens dados em garantia, para posteriormente vendê-los para saldar seu crédito. 

A regulamentação da propriedade fiduciária pelo Novo Código Civil oferece assim uma modalidade de garantia vantajosa e interessante, cuja utilização não é limitada apenas às instituições financeiras nacionais, podendo ser utilizada em quaisquer operações financeiras, inclusive em operações com credores estrangeiros.  


Referência  Biográfica

Ana Carolina de Salles Freire  –  Sócia na área de Mercado de Capitais e Direito Bancário de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Mateus Donato Gianeti  –  Advogado na área de Mercado de Capitais e Direito Bancário de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Os Transgênicos e a Vida Humana

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* Leon Frejda Szklarowsky

O homem deve pensar, pode divergir, mas antes de tudo deve ser tolerante. Das idéias, nem sempre convergentes, brota a imensa variedade de pensamentos que norteiam a humanidade e lhe abrem o caminho da verdade

A consciência humana dever estar alerta para a degradação da natureza, sem, porém, tornar o homem escravo de suas próprias limitações e ambições, com restrições descabidas e demagógicas

(Publicado na Revista Jurídica CONSULEX, Editora Consulex, número 164, de 15 de novembro de 2003)  –   Professor Leon Frejda Szklarowsky[1]

 


O MUNDO EM CONTÍNUA E PERENE TRANSFORMAÇÃO  

O mundo moderno transforma-se a cada segundo. A ciência também. Em micro-segundos, contata-se com os mais longínquos rincões da Terra e, através dos satélites, com os ônibus espaciais e foguetes, a milhares ou milhões  de anos-luz. Quiçá, em breve, com outras civilizações ou seres de outros planetas, estrelas e universos, até então desconhecidos, mas existentes, sem dúvida.

O que até há pouco parecia impossível, não deixa de ser bastante otimista e sensata a declaração acerca da compatibilidade entre a criação do mundo descrita, no Livro dos Livros, e referenciada em obras ou tradições de tantos povos, e a ciência, com respeito à idade provável do universo e ao Big Bang, e a revolução nos conceitos científicos tidos como imutáveis.

Para Aryeh Kaplan, a religião não se opõe à ciência moderna que ensina ter o universo mais de seis mil anos. Com fundamento em sólidos estudos, traz à baila discussões, sumamente interessantes, e narra ter havido outros mundos, antes de Adão haver sido criado. Está, assim, quebrado o tabu do confronto entre a religião e a ciência.

Fazendo pesquisa sobre esse assunto, oferece estudos notáveis, sobre a idade do universo, considerando os anos divinos e não mais os anos humanos. O simbolismo contido no Velho Testamento não admite uma simples interpretação literal, devendo o exegeta fazê-lo, segundo os diversos métodos de exegese científica.

Destarte, a medição do tempo deve fazer-se tendo em vista o ano divino e não o ano humano. Um dia divino tem a duração de 1000 anos terrestres e um ano divino consiste em 365.250 anos terrestres.

Esses conceitos conduzem a uma nova forma de encarar a evolução do homem na Terra e mostra que não há contradição entre os textos bíblicos e a ciência, conclusão a que chegou também um dos mais famosos estudiosos da Cabala, há sete séculos, em oposição frontal às idéias dos mestres fundamentalistas.

Registra ainda Aryeh Kaplan que os sete dias da Criação, na verdade, teria ocorrido há mais de quinze bilhões de anos antes do Big Bang, correspondendo à criação da infra-estrutura espiritual do universo, referida na Bíblia, como criação do pensamento e conclui que existe perfeita sintonia entre os ensinamentos dos Textos Sagrados e a moderna ciência. [2]

“A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão embora persistente” (Albert Einstein, 1955), ao que ousaríamos acrescentar que o tempo é apenas parte da eternidade que nunca começa, nunca termina.

Um colega asceta indagou de Einstein, como  ele, um cientista famoso, pode ser um religioso e espiritualista. Respondeu, imediatamente: “Por isso mesmo”. Calou-se o interlocutor, cabisbaixo e envergonhado, nada mais lhe indagando.

As pesquisas e as descobertas científicas criam para o homem um mundo até então desconhecido e fascinante. Assim, também, a engenharia genética, a biogenética, a biotecnologia agrícola.

É objeto da engenharia genética a reconstrução e a reformulação de estruturas de genes dos microorganismos, plantas e animais, com o objetivo de tornar estes produtos mais econômicos e superiores em qualidade e quantidade, em tempo e velocidade inimagináveis, mercê também do crescimento vertiginoso da população humana e da incapacidade de se alimentarem milhões de pessoas, se rumo novo não for vislumbrado.

Entretanto, é também na biotecnologia agrícola que se centra o temor pelas conseqüências que possam advir, se não houver um estudo sério e responsável, protegido por um severo  arcabouço legal, entrelaçado com os princípios morais, éticos  e religiosos.

As indústrias e os laboratórios se põem a introduzir, numa desenfreada corrida, uma nova geração de lavouras transgênicas na agricultura, visando produzir uma profunda revolução genética, com a inserção de genes de animais em plantas, para aumentar sua resistência às pragas.

Como exemplo desta miscigenação esdrúxula, que vem seguindo o modelo de Frankenstein, cite-se a inserção de genes de galinha em batatas, para terem maior resistência; de genes de vaga-lume no código biológico de pés de milho, como marcadores genéticos ou do hamster chinês no genoma de pés de tabaco, para aumentar a produção de esterol. Ou, ainda,  os animais quiméricos, em que  a mitologia grega é tão rica.

O receio da humanidade é procedente, pois que é impossível prever até onde pode chegar a ciência, se não estiver presa aos princípios éticos.

              É verdade que o homem não pode deixar-se dominar pela ignorância, involuindo para o mundo das trevas, recuando na História, para reviver os momentos insensatos e tristes da escuridão que o envolveu por séculos, porque o obscurantismo consegue impedir a caminhada ou o progresso do homem, por algum tempo, mas não para sempre.

              Todavia, as grandes conquistas e descobertas humanas não podem transformar-se em arma destruidora e mortífera.

AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E OS TRANSGÊNICOS       

            A medida provisória tem força de lei e constitui, segundo a melhor doutrina e a jurisprudência da Mais Elevada Corte Brasileira, lei sob condição resolutiva. É, ao contrário do decreto-lei, um provimento necessário, em determinadas circunstâncias, sumamente democrático, porque o Poder Legislativo pode emendá-lo, apresentar destaque, transformá-lo em projeto de lei de conversão e, ainda, rejeitá-lo no todo ou em parte.

            A conditio sine qua para a edição de medidas provisórias é a caracterização da urgência e relevância (artigo 62 da CF), que deve ser vestibularmente apreciada pelo Congresso Nacional, repudiando-as, in limine, se for o caso, conquanto, quando o Presidente da República edita a medida provisória, deva fazê-lo calcado nesses pressupostos, como senhor desse juízo. E ao Congresso Nacional caberá julgar se ocorreram ou não a urgência e a relevância e, se for o caso, a adequação financeira.

            O que não pode ser objeto das medidas provisórias está relacionado, exaustivamente, no citado dispositivo constitucional. Nem mais nem menos.

Conseqüentemente, desde que configuradas a urgência e a relevância, devidamente motivadas, e não proibida a matéria pela Carta, poderá perfeitamente o Presidente da República (o governador ou o alcaide) editar referido ato legislativo que será, de imediato, examinado pelo Poder Legislativo, quanto à sua constitucionalidade, in limini.

Não haveria óbice constitucional quanto a esses provimentos legais (lei ou medida provisória), para tratar dos transgênicos, matéria não vedada pelo artigo 62 da CF, NÃO FOSSE A POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS E DA LEI ACERCA DOS TRANSGÊNICOS EM FACE DO ARTIGO 225 DA CF/88 E DA LEGISLAÇÃO PERTINENTE.

A CONSTITUIÇÃO, AS LEIS 9638/81 E 8974/95  

A Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, reserva o Capítulo VI do Titulo VIII (Da Ordem Social), para o Meio Ambiente, de forma ampla e incisiva, ao contrário dos Textos de 69, 67 e 46, extremamente parcimoniosos.

O artigo 5º decreta, como valor fundamental encimando todos os demais, o direito à vida. Entenda-se direito à vida em ambiente ecologicamente equilibrado. Esta norma engloba todas as demais, porque o ser humano é o centro do Universo e nada  importa a não ser o seu bem estar e sua vida com qualidade e dignidade. Sem o ser humano, o cosmos seria vazio, tal qual um frasco sem o perfume ou um corpo sem alma.  De que valeria tudo isso?

O artigo 225, complementando o artigo 5º, impõe ao Poder Público o poder-dever de assegurar a efetividade desse direito mediante: I. a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais e manejo ecológico das espécies e ecossistemas. II. Preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético, fiscalizando as entidades destinadas à pesquisa e manipulação de material genético. III. Definição dos territórios e seus componentes que devem ser protegidos. Somente a lei poderá autorizar a supressão ou alteração desses espaços. A Carta veda terminantemente o uso que comprometa a integridade dos atributos que exijam sua proteção. IV. Exigência de estudo prévio de impacto ambiental, para instalação de obra ou atividade que possa causar significante degradação do meio ambiente. A este estudo deve ser dada ampla publicidade. V. Controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias de risco para a vida, para a qualidade e para o meio ambiente. VI. Educação ambiental em todos os níveis escolares e conscientização popular para a preservação do meio ambiente. VII. Proteção da fauna e da flora. Fica proibida terminantemente a prática que coloque em risco a função ecológica e possa provocar a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.

Até as sanções penais e administrativas são objeto de preocupação da Lei Maior.

As disposições constitucionais mais diretamente relacionadas ao meio ambiente vêm a seguir enumeradas: artigos 43, §§ 2º, IV, e 3º; 49, XIV e XVI; 91, § 1º, III; 129, III; 170, II, III e VI; 174, §§ 3º e 4º; 177;186, II; 200, VI a VIII; 225, 231 etc.

Por outro lado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece os  direitos do homem ao ambiente, nos termos em que conhecemos atualmente, ao manifestar expressamente que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar (artigo XXV) e tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (artigo III ).

No Direito Comparado, entre as Constituições, que tratam do tema, distinguem-se as do Equador e Peru, de 1979, Guatemala, de 1985, do Chile e Guiana, de 1980, de Honduras, de 1982, do Panamá, de 1983, do Haiti e da Nicarágua, de 1987, Portugal e Espanha, de 1976 e 1978, respectivamente[1]. A grande maioria dos países mostra-se preocupada com a degradação do meio ambiente e suas conseqüências.

Antes mesmo, da entrada em vigor da Carta de 88, a Lei 6938, de 31 de agosto de 1981[2], já estabelecera a Política Nacional de Meio Ambiente, com fundamento no artigo 8º, item XVII, alíneas c, h e i, da Constituição de 1969 (EC 1/69 e CF/67),[3] visto que o Brasil sempre esteve consciente de suas responsabilidades ambientais e ecológicas.

O artigo 35 da Lei 8028, de 12 de abril de 1990, porém, deu nova redação à citada Lei 6938, para conferir-lhe assento majestoso na Constituição Federal vigente, com fundamento nos artigos 23, VI e VII (competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com o objetivo de  proteger o meio ambiente, combater a poluição em qualquer de suas formas e preservar as florestas, a fauna e a flora) e 225, assegurando a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Como visto, a lei foi recepcionada, in totum.

Esta disposição legal consagra, nas palavras sábias do PRETÓRIO EXCELSO, um típico direito de terceira geração[4].

A Lei 6938, de 31 de agosto de 1981, estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismo de formulação e aplicação. Não proíbe, absolutamente, atividades que visem o desenvolvimento econômico-social nem tampouco desestimula os estudos científicos e a pesquisa de tecnologias avançadas, todavia exige a submissão a determinados princípios, visando a proteção da saúde, a segurança e o bem estar da população. Também não permite ela se criem condições adversas às atividades sociais e econômicas.

O inciso IV do § 1º do artigo 225 da Lei Magna traça um comando de alta intensidade e relevância, ao exigir o estudo prévio de impacto ambiental, dando-se ampla publicidade.

Todavia, a leitura desse preceito conduz a uma questão de sumo interesse. Percebe-se, desde logo, que a instalação da obra ou a atividade deve potencialmente produzir expressiva e agressiva degradação do meio ambiente, mas comete à lei a definição dessa exigência. Portanto, não se trata de um ato discricionário, pois fica, assim, a lei com a incumbência de ditar as diretrizes. É por assim dizer uma norma em branco. Não é qualquer degradação, mas terá que ser expressiva, intensa.

O impacto ambiental é, segundo a definição da Resolução CONAMA 001, de 23 de janeiro de 1986[5], qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante de atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetem a saúde, a segurança e o bem estar da população, as atividades sociais e econômicas, a biota[6], as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente e a qualidade dos recursos ambientais.

Meio ambiente, na expressão legal, é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que abriga e rege a vida em todas as suas formas e degradação da qualidade ambiental é a modificação das características do meio ambiente[7].

A indagação primeira é se a possibilidade de produzir degradação e seu tamanho deverão ser previamente aferidos.  A resposta, sem dúvida, é positiva, por razões óbvias. Se não vejamos.

A Resolução CONAMA 237, de 19 de novembro de 1997, conceitua o licenciamento  ambiental como o procedimento administrativo pelo qual o órgão  ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, tendo em vista as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso.

A licença ambiental é o ato administrativo que fixa, por meio do órgão ambiental competente, as condições, restrições e medidas de controle ambiental, a que estará sujeito o empreendedor, pessoa física ou jurídica, para localizar, instalar, ampliar e operar empreendimentos ou atividades utilizadoras dos recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou as que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental.

Está sujeito ao licenciamento ambiental, dentre outros, o uso de recursos naturais, em que há utilização do patrimônio genético natural[8], e a licença ambiental dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e relatório de impacto do meio ambiente – EIA-RIMA – dando-se publicidade a este ato, com a realização de audiência pública, quando for o caso, segundo as normas regulamentares. 

A Lei 8974, de 5 de janeiro de 1995, regulamenta os incisos II e V do § 1º do artigo 225 do Texto Maior e institui normas de segurança e instrumentos de fiscalização no uso de técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado – OGM.

O objetivo da lei é proteger a vida e a saúde do homem, dos animais, das plantas e do meio ambiente, sem embargar os avanços da ciência, o que seria um descabido contra-senso e um retorno às trevas.

Esse diploma traz várias definições que permitem uma melhor compreensão e conseqüentemente torna seu cumprimento mais fácil, por se tratar de assunto científico e técnico de difícil trato. Ei-las:

Engenharia genética é a atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinantes.

Moléculas de ADN/ARN recombinante são as manipuladas fora das células vivas, pela modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético que possam multiplicar-se em uma célula viva ou as moléculas de ADN/ARN, resultantes dessa multiplicação. Os segmentos de ADN/ARN sintéticos são equivalentes aos naturais.

Organismo é toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético, incluindo vírus, prions e outras classes que venham a ser conhecidas.

Ácido desoxirribunocléico (ADN), ácido ribonucléico (ARN) constituem material genético que contém informações determinantes dos  caracteres hereditários transmissíveis aos descendentes.

A lei não considera como OGM os organismos resultantes de técnicas que permitem a introdução direta, no organismo, de material hereditário, se não envolverem moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, como por exemplo: a fecundação in vitro, a indução, conjugação, transdução,  transformação, poliplóide ou qualquer outro processo natural.

Esta lei não tem aplicação quando se tratar de modificação genética obtida por meio das técnicas que cita, desde que não haja utilização de OGM, como receptor ou doador. As técnicas referidas são: mutagênese, formação e utilização de células somáticas e hibridoma animal, fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida mediante métodos tradicionais de cultivo, autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.

Portanto, qualquer atividade ou obra que possa eventualmente degradar o meio ambiente ou produzir dano à saúde, depende, para o seu exercício, de avaliação prévia das autoridades e dos órgãos competentes. Esta exigência encontra fundamento na Constituição e na legislação regulamentadora.

Repita-se que não é qualquer atividade ou instalação de obra, mas somente aquela apta a degradar o meio ambiente de forma expressiva, significativa.

Só se saberá se ela causará dano e em que quantidade, após o prévio exame. Não há outra forma de detectar. Não cabem conjecturas.

Conquanto alguns juristas aleguem que a Lei 8974/95 não exige expressamente a realização do prévio estudo do impacto ambiental, escoimando-a de inconstitucional, olvidam que a Lei 6938/81 está em pleno vigor e, conseqüentemente, deve ser observada, quanto ao estudo preliminar do impacto ambiental. Ambas as leis estão intimamente entrelaçadas.

Assim, mesmo não havendo menção incisiva à observância da Lei que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, esses diplomas legais convivem, harmonicamente, uma por ser lei geral e a outra, lei especial e, portanto, o prévio estudo do impacto ambiental não poderá deixar de ser exigido, tese esta que defendemos, no artigo Transgênicos[9].

A primeira, sem dúvida, é uma lei geral a regulamentar a política nacional do meio ambiente enquanto que esta última disciplina, de modo especial, o uso de técnicas de engenharia genética e liberação de organismos geneticamente modificados.

A Lei de Introdução ao Código Civil é incisiva, quanto à determinação do § 2º do artigo 2º que contempla uma regra de excepcional importância, ao indicar que a disposição geral ou especial a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior, ou, como ensina Maria Helena Diniz, para a lei nova revogar a lei antiga é preciso que discipline de modo diverso a matéria ou expressamente a revogue, podendo ambas coexistir. E, mais, quando a incompatibilidade se estabelece entre a lei, ato do Poder Legislativo, e um regulamento ou decreto do Poder Executivo, prevalece sempre a disposição legal, conforme se colhe dos ensinamentos de Clovis e de Washington de Barros Monteiro.

Destarte, se a lei que define a política do meio ambiente dispõe que, quando necessário, o CONAMA poderá determinar o estudo do impacto ambiental e a lei nova nada dispôs, porque trata de assunto específico, esta poderá fazê-lo, se for o caso, mesmo que decreto regulamentar faça alguma restrição. Conclui-se que não é sempre, senão quando necessário for.

Ora, não só a Lei 6938 deve ser objeto de atenção, como também as normas regulamentares.

Medidas Provisórias 113 e 131, de 2003, e Lei 10688, de 2003

A Medida Provisória 113, de 2003, transformada na Lei 10688, do mesmo ano, bem como esta Lei, no artigo 1º, dispensaram a comercialização da safra de soja da submissão às exigências da Lei 8974 de 1995, com as alterações da Medida Provisória 2191-9, de 2001. Com relação às safras de 2004 e posteriores, esses diplomas legais determinavam a estrita obediência aos comandos da legislação vigente, isto é, à Lei 8974/85 e legislação pertinente.

A EM Interministerial 20, de 26 de março de 2003, da Casa Civil, que motiva a citada medida provisória, confessa que a urgência desta se deve à “iminente comercialização da safra de soja de 2003, de significativa participação na pauta comercial do País, plantada, conforme relevantes indícios, em desacordo com a Lei 8974 , de 5 de janeiro de 1995, com as alterações da Medida Provisória 2191-9, de 23 de agosto de 2001”.

Discorre, ainda, o documento justificativo, que o consumidor tem o direito de conhecer a origem e a possibilidade da existência da OGM nos alimentos produzidos com a referida soja.

A Medida Provisória 131, de 2003, em vigor, estabelece normas para o plantio e comercialização da produção da soja de safra de 2004 e determina categoricamente a não incidência da legislação pertinente e restritiva (Leis 6938/81, arts. 8º, I e II, 10, caput; 8974/95, c/c com a MP 2191-9/2001e 10688/2003, arts. 1º, § 3º, e 5º) às sementes da safra de soja de 2003, reservadas aos agricultores para uso próprio, segundo o disposto na Lei 10711/2003, art. 2°, LXLIII. Por outro lado, autoriza sua comercialização até 31 de dezembro de 2004, mandando incinerar o estoque existente após esta data.

Esses diplomas legais, ao dispensarem, nos anos de 2003 e 2004, as exigências das Leis 6938, 8974 e da Medida Provisória 2191-9/2001, para o plantio e a comercialização da soja, colidem de frente com a Constituição, porque esta impõe, como condição necessária, o prévio estudo de impacto ambiental, para instalação de obra ou atividade que possam causar grave degradação do meio ambiente e isso somente poderá ser conhecido, como se afirmou antes, após a prévia avaliação.

Com todo o respeito que nos merecem as doutas opiniões em contrário, as citadas Medidas Provisórias 113 e 131 são inconstitucionais não porque regulem matéria referente aos transgênicos, se a urgência e a relevância estiverem demonstradas (a matéria não é vedada pela CF), mas sim por exonerarem o plantio e a comercialização da soja transgênica das restrições constitucionais e legais, sem estar cabalmente comprovado que essa atividade não seria potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, usando as palavras da Carta Constitucional.

Trata-se, pois, de inconstitucionalidade material e não formal. A substância é que foi atingida drasticamente.

A EM 38 CCIVIL, de 25 de setembro de 2003, que capeia a Medida Provisória 131, justifica essa generosa suspensão restritiva e o caráter excepcional desta, em função da situação específica vivida por pequenos produtores, em número expressivo, que reservaram para uso próprio sementes da safra de 2003, e por motivos econômicos e culturais

Não obstante, sequer razões de Estado justificariam o desvio brutal do feixe constitucional e infraconstitucional, visto que pode haver risco não só para o meio ambiente, mas principalmente para o ser humano, se não for demonstrado previamente que não haverá potencial e expressiva degradação ao meio ambiente.

O Poder Público tem a incumbência de exigir o cumprimento da lei e cuidar para que ela  não seja transgredida. É imposição constitucional, passiveis os infratores de sanções penais e cíveis.

Análise do Projeto de Lei do Executivo, de 2003

Projeto de Lei do Executivo 2401, de 2003 (EM nº 50 – CCIVIL-PR, de 30 de outubro de 2003), estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTN-Bio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança e dá outras providências.[10]

O  Chefe do Executivo solicitou urgência ao projeto, com fundamento na Carta, dada a relevância da matéria.

A lei, se aprovado o projeto, entrará em vigor, na data de sua publicação, e revoga a Lei 8974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória 2191-9, de 23 de agosto de 2001.

A Exposição de Motivos nº 50 cit., do Ministro de Estado-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, José Dirceu de Oliveira e Silva, alinhava os principais motivos que levaram o Executivo a propor o projeto, visando revogar a lei regulamentadora dos incisos II e V do § 1º do artigo 225 da CF, exceto o artigo 13 da Lei 8974, de 1995, e a citada MP 2191-9, que alterou esta última lei. Esta MP está em vigor, ex vi do disposto no art. 2º da EC 32/2001, até que outra medida provisória ulterior a revogue explicitamente ou o Congresso Nacional sobre ela delibere definitivamente.

O Congresso Nacional deverá regulamentar, por decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes dessa medida provisórias, não abrangidas pela nova lei, sob pena de serem mantidas, nos termos do artigo 62 e seus parágrafos da CF.[11]

O projeto visa eliminar eventuais divergências entre as diversas normas vigentes e a legislação ambiental, o que, de fato, proporcionará maior segurança jurídica. Este é um ponto realmente positivo, vez que a lei deve ser a mais clara possível, evitando conflitos desnecessários

A Medida Provisória 2191/9 foi também encampada pelo projeto em questão.

As  definições não foram esquecidas. O projeto regula inteiramente a matéria, refletida na Lei 8974, contudo ressalva o artigo 13 que trata dos crimes e das sanções.

Este artigo permanecerá em vigor, contudo fica acrescido de mais um inciso, incriminando o comportamento de construir, cultivar, produzir, transportar, transferir, comercializar, importar, exportar ou armazenar organismo geneticamente modificado, ou seu derivado, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar. A pena cominada é de reclusão de 1 a 3 anos.

O comportamento punível está demarcado por várias situações distintas, in verbis: 1º. a manipulação genética de células germinais humanas. 2º. A intervenção em material genético humano, in vivo. Não constituirá crime, entretanto, se esta intervenção se der para tratamento de defeitos genéticos, desde que não colida com os princípios éticos, v.g.: o princípio de autonomia e de beneficência, e obtenha a anuência preliminar da CTNBio. 3º. A produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível. 4º. A intervenção, in vivo, em material genético de animais, com exceção das hipóteses de tais intervenções servirem para o progresso científico e tecnológico, nas mesmas condições previstas nos crimes catalogadas no inciso 2º e, finalmente, 5º. A liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM, sem observância das regras estatuídas pela CTNBio e na regulamentação da lei.

As penas são severas, variando da detenção, nos casos menos grave, até a reclusão.

Prevê a lei em vigor e, ipso facto, a lei futura, o crime culposo e o doloso.

O artigo 13 da Lei 8974, que não é revogado, prevê que  Ministério Público da União e dos Estados é pessoa legítima para propor a ação de responsabilidade civil e criminal por danos ao ser humano, aos animais, às plantas e ao meio ambiente. Omitiu a lei o Distrito Federal, mas inequívoca é a legitimidade do DF para também agir.

Esta não foi a melhor opção, para tornar mais fácil o manuseio da lei e afastar futuras dúvidas. Deveria esta parte ser transposta integralmente para o novo diploma, corrigindo-se eventuais falhas do projeto, como, por exemplo, a inclusão do Ministério Público do Distrito Federal entre os legitimados para a propositura das referidas ações.

No campo penal, Marcelo Dias Varela, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha[12] chamam a atenção para uma questão de extrema gravidade, pois lembram que a lei desenha preceitos que incriminam as atividades e não figuras de comportamento, o que, ajuízam, tem dado motivo a certa imprecisão.

Ainda com relação ao projeto, faz-se necessária a oitiva urgente de técnicos e cientistas independentes, colhendo-se suas opiniões, para que a lei, que se pretende moderna, não crie mais embaraços e burocracia que a já existente, ao invés de simplificar e agilizar os atos e procedimentos, impedindo e até barrando a pesquisa e o trabalho científico, jogando o País na ribanceira do atraso e do esquecimento.

Assim, a intenção do Executivo de tornar a textura legal insuscetível de interpretações contraditórias não se concretizou, na sua plenitude, apesar das boas intenções. Caberá, destarte, ao Parlamento sanar esses defeitos, para tornar o texto enxuto e direto, sem rodeios inúteis

Se isso não for feito, o País jamais deixará de ser dependente, será sempre o aluno reprovado, porque não teve bons professores. No caso, simplesmente uma legislação não consentânea com a realidade poderá tolher o desenvolvimento técnico e científico.

CONCLUSÃO

Este é o momento exato para o legislador trazer para a lei, também, a parte penal, aperfeiçoando suas normas.

O projeto, de qualquer forma, tem pontos positivos, de sorte que esta é a grande oportunidade para o debate nacional no Congresso, possibilitando aos Pais enriquecer-se com normas modernas e que não engessem a política de desenvolvimento.

A opinião de estudiosos do assunto, não obstante, não pode ser postergada, pois, como lembra o pesquisador Geraldo Eugênio, “mesmo na União Européia, onde há forte resistência aos produtos transgênicos, a pesquisa não foi interrompida. Eles estão pesquisando em grande intensidade, porque sabem ser um mercado estratégico”. Elíbio Rech atesta que, nos Estados Unidos da América, os certificados para a pesquisa são liberados, em no máximo 90 dias [13].

A religião, as ciências e as grandes descobertas convivem sincronicamente. Não há que temer o progresso, desde que o homem saiba compor-se nos limites da ética e da moral e não ultrapasse as barreiras do imponderável.

Jeremy Rifkin escreve que “estamos entrando num novo século e num novo milênio cheios de promessas e expectativas e também com grandes preocupações e dúvidas”[14].

Os benefícios da engenharia genética e da revolução tecnológica, no entanto, superam, sem dúvida, possíveis malefícios que poderiam eventualmente advir.

O homem é dotado de livre arbítrio e, então, o uso para o bem ou para o mal da ciência deverá encontrar limites no Direito e na Moral que lhe servirão como suporte e anteparo.

A sociedade deve ficar alerta e exigir que a Constituição seja cumprida e a legislação sobre os transgênicos, sobre o patrimônio genético e a lei sobre a política ambiental sejam rigorosamente obedecidas, sem, porém, permitir que o fanatismo domine e feche as comportas para o futuro.

Ainda, há a ponderar-se que existem uma medida cautelar e uma ação civil pública, questionando a constitucionalidade das medidas provisórias 113 e 131, de 2003, e da Lei 10688/2003[15].

No entanto, falar-se que estas golpearam o Judiciário, caracterizando-se a desobediência a este Poder, por permitirem o que as decisões judiciais proibiram, é um grande equívoco e um sofisma intolerável, vez que estas ainda estão pendentes de recurso e não transitaram em julgado.

O caminho certo é questionar a constitucionalidade daqueles diplomas, perante o Supremo Tribunal Federal. Há, aliás, três ações diretas pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da Medida Provisória 131/2003 [16].

Não obstante, enquanto o Tribunal não se pronunciar definitivamente ou conceder a suspensão da medida provisória, esta está em pleno vigor, produzindo todos os efeitos.    

BIBLIOGRAFIA

1.                                A Constituição na Visão dos Tribunais, Juiz Diretor Fernando Tourinho Neto, 1997, volume 3, publicação do Tribunal Regional Federal – 1ª Região.

2.                                Agostini de Andrade, A Tutela ao Meio Ambiente e a Constituição, Revista AJURIS, 45, março de 1989.

3.                                Álvaro Lazzarini, Temas de Direito Administrativo, Editora Revista dos Tribunais, 2000.

4.                                Antonio Souza Prudente, decisão nº 260/99, classe 9200, no Processo nº 1998.343.00.027681 – B, Ação cautelar inominada, requerida pelo IDEC – Instituto Brasileiro do Consumidor contra a União e outro.

5.                                Aryeh Kaplan, Imortalidade, Ressurreição e Idade do Universo –  Uma visão cabalística, Exodus Editora, em parceria com a Editora e Livraria Sêfer Ltda., São Paulo, 2003.

6.                                Bíblia Sagrada, Velho Testamento.

7.                                Caio Tácito, Temas de Direito Público, 2 volumes, Renovar, 1997.

8.                                Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Freitas Bastos, 1957.

9.                                Carlos Pinto Coelho Motta. Eficácia nas Licitações e Contratos, Del Rey, 1997.

10.                             Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 9ª edição, 1997.

11.                             Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria, Biodiversidade e patrimônio genético no Direito Ambiental Brasileiro, Max Limonad, 1999.

12.                             Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues, Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, Max Limonad, 1997.

13.                             Celso Bastos, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 11ª edição, 1989.

14.                             Celso de Mello, relator do aresto do STF , RE 134297, SP, 1ª T.

15.                             Chaim Perelman, Ética e Direito, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1999, tradução de Maria Ermantina Galvão.

16.                             Clovis Bevilaqua, Código Civil Comentado, atualizada por  Achilles Bevilaqua e Isaias Bevilaqua, Livraria Francisco Alves – Editora Paulo de Azevedo Ltda., 1956, undécima edição,  volume I.

17.                             Clovis Bevilaqua, Teoria Geral do Direito Civil, atualizada por Achilles Bevilaqua e Isaias Bevilaqua, Livraria Francisco Alves – Editora Paulo de Azevedo Ltda., 7ª edição, 1955.

18.                             Correio Braziliense de 9 de novembro de 2003.

19.                             Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Editora Objetiva, 1ª edição, 2001.

20.                             Diógenes Gasparini, Direito Administrativo, Saraiva, 4ª edição, 1995.

21.                             Ellen Gracie, relatora das ADINs 3011, 3014 e 3017.

22.                             Fábio Konder Comparato, Fundamentos dos Direitos Humanos, Editora Consulex, 1998.

23.                             Guilherme José Purwin de Figueiredo, organizador, Temas de Direito Ambiental e Urbanístico, vários autores, Max Limonad, Publicação do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, nº 3, 1998.

24.                             Ives Gandra da Silva Martins e Celso Bastos,  Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1990.

25.                             Ivo Dantas, Mandado de Injunção, Aide Editora, 1989.

26.                             Jeremy Rifkin, O Século da Biotecnologia, Makron Books, Tradução de Arão Sapiro, 1999.

27.                             Johannes Messner, Ética Social, Editora Quadrante, São Paulo, tradução de Alípio Maia de Castro.

28.                             José Afonso da Silva, Curso de Direito Ambiental Constitucional, Malheiros Editores, 1997.

29.                             José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional, Revista dos Tribunais, 1989.

30.                             José Cretella Júnior, Dos Contratos Administrativos, Forense, Rio, 1998.

31.                             Leon Frejda Szklarowsky, Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade, Editora NDJ, São Paulo, junho de 2003.

32.                             Leon Frejda Szklarowsky, Medidas Provisórias, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991.

33.                             Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes, Fernando Galvão da Rocha, Biossegurança & Biodiversidade, Del Rey, 1999.

34.                             Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil, Saraiva, 1994.

35.                             Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ºª edição, Editora Nova Fronteira 1986.

36.                             Paulo Afonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros Editores, 7ª edição.

37.                             Paulo Bessa de Júnior, Direito Ambiental, Lumen Juris, 1996.

38.                             Robertônio Pessoa, Curso de Direito Administrativo, Editora Consulex, 2000.

39.                             Toufic Daher Deebeis, Elementos de Direito Ambiental Brasileiro, Livraria e Editora Universitária de Direito, 1999.

40.                             Vicente Barreto, Leitura Ética da Constituição, Direito Constitucional, Editora Consulex, 1998.

41.                             Vicente Marotta Rangel, Direito e Relações Internacionais, Editora Revista dos Tribunais, 1997.

42.                             Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, Parte Geral, 18ª edição, Edição Saraiva, 1979.

 

 

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[1] Cf., de Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros, 1999, pp. 45-46.

[2] A Lei 6938/81 foi alterada pelas Leis 7804, de 18 de julho de 1989,  8028, de 12 de abril de 1990, 9960, de 28 de janeiro de 2000, 9966, de 28 de abril de 2000, 9985, de 18 de julho de 2000, e 10165, de 27 de dezembro de 2000. Cf. também as Leis 7661, de 16 de junho de 1988, e 7735, de 22 de fevereiro de 1989.

[3] Cf. artigo 5º, incisos XV, b, l, da CF 46. Acerca do assunto, consultem-se nossos trabalhos: 1. TRANSGÊNICOS,  publicado na Revista Consulex,  34, de 31-10-99, na Internet e, resumidamente, no Suplemento Direito e Justiça do CB, de 1.1.99, e no Jornal da Comunidade de Brasília, de 7 de novembro de 1999, no INFORMATIVO ADCOAS, resumidamente, 22, dezembro, 2000,  Advocacia Pública, IBAD, edição 9, março 2000, na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, 145, janeiro/março 2000; na Revista Portuguesa de Direito do Consumo, da Associação Portuguesa de Direito do Consumo, dezembro de 1999, número 20,  e em outros repositórios jurídicos e em sites jurídicos da Internet.2. PATRIMÔNIO GENÉTICO E A MP 2052/2000 (Publicado na Revista Jurídica CONSULEX –  LEIS & DECISÕES, vol. II, Nº 43, julho de 2000, e no In Consulex 14 de julho de 2000); 3. LEI 9985, DE 2000 – SNUC – SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA (publicado na Revista Jurídica CONSULEX, Leis e Decisões 31 agosto 2000, nº 44, e na Revista L&C 26), de). agosto de 2000, in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,  Série de Direito, Universidade  Lusíada – Porto, Coimbra Editora, 1 e 2, 1999).

A Medida Provisória 2052, de 29 de junho de 2000 (edição originária), foi reeditada inúmeras vezes. A última reedição recebeu o nº 2186-16, de 23 de agosto de 2001, e continua em vigor, ex vi da Emenda Constitucional 32/2001 (cf. site da Presidência da República: www.planalto.gov.br/ – consulta efetuada em 4 de novembro de 2003). 

Esta medida provisória regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º dos artigos 1º, 8º , j, 10, c, 15 e 16. 3 e 4, da Convenção sobre Diversidade Biológica, ratificada pelo Decreto-legislativo 2, de 1994, e promulgada pelo Decreto 2519, de 16.3.98, publicado no DOU de 17 de março deste ano. Dispõe ainda sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado à repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de  tecnologia para sua conservação. Definições extraídas da citada Convenção estão registradas em nosso artigo antes citado. Estas normas não se aplicam ao patrimônio genético humano.

Sobre os efeitos e vigência das medidas provisória anteriores à EC 32/2001, consulte-se nosso Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade cit., pp. 142/144. Também,  sobre os efeitos das relações jurídicas decorrentes das medidas provisórias não acolhidas ou rejeitadas ou ainda escoadas sem apreciação, consulte-se a obra cit. Idem, sobre a parte não acolhida pela lei,em que se transformou o edito presidencial.

[4] Cf. acórdão relatado pelo Ministro Celso de Mello, no RE 134297, SP, 1ª T, in DJU de 22.9.95, p. 30597.

[5] Resolução baixada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente – IBAMA, publicada no DOU de 17.2.86.

[6] conjunto dos seres animais e vegetais de uma região (cf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição, Editora Nova Fronteira 1986). Também o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Editora Objetiva, 1ª edição, 2001, registra a mesma definição extraída da Biologia.

[7] Cf. artigo 3° , I, da Lei 9638 cit.

[8] Cf. artigos 1º e 2º da Resolução CONAMA cit.

[9] Cf. Revista Jurídica Consulex cit., p. 22.

[10] Cf. site da Presidência da República: www.planalto.gov.br/,visitado, (consultado em 9 de novembro de 2003).

[11] Cf. Nosso Medidas Provisórias cit.

[12] Cf. Biossegurança & Biodiversidade, Del Rey, 1999, pp. 169 e segs.

[13] Cf. manifestação dos pesquisadores, da EMBRAPA, Francisco Aragão e Geraldo Eugênio, e do especialista em genética, Elíbio Rech (cf. reportagem de Sandro Lima, Transgênicos – Pesquisar é quase impossível, in Correio Braziliense, de 9 de novembro de 2003, p. 18).

[14] Cf. O Século da Biotecnologia – A Valorização dos Genes e a Reconstrução do Mundo, tradução de Arão Sapiro, Makron Books do Brasil Editora Ltda., São Paulo, 1999.

[15] Cf. Processo 2000.01.00.014661-1 – RESP 505371, Relator Ministro Peçanha Martins, e Ação Civil Pública 1998.34.00.027682-0.

[16] ADINs 3011, 3014 e 3017. A Ministra Ellen Gracie foi designada relatora.  

  


Referência  Biográfica

Leon Frejda Szklarowsky  –    Mestre e especialista em Direito do Estado, juiz arbitral da American Association’s Commercial Pannel, de Nova York; membro da membro do IBAD, IAB, IASP e IADF, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integra o Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos Tribunais, e o Conselho de Orientação das Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, de Direito Administrativo e Direito Municipal, da Editora NDJ Ltda. É co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Fiscal, que se transformou na Lei 6830/80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de falências e concordatas (no Congresso Nacional) e autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa (Projeto de Lei do Senado 174/96). Dentre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos, pareceres e estudos sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário, civil, comercial e econômico.

leonfs@solar.com.br

www.geocities.com/athens/9100

Direito das Sucessões brasileiro: disposições gerais e sucessão legítima.

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*Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka –

Sumário: 1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845. 2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1. A sucessão do convivente ou companheiro – arts. 1790 e 1834, 2.2. A sucessão do cônjuge – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

 

1. Considerações de preâmbulo relativamente à sucessão em geral, sob a análise de alguns dispositivos do novo Código Civil: arts. 1784, 1786, 1788, 1789, 1845.

           A sucessão que vem disciplinada no Livro V do Código Civil pressupõe, intrínseca e invariavelmente, a morte da pessoa natural. Quer se trate de morte real ou de morte presumida, por conseqüência normal e como decorrência do princípio da saisine, o patrimônio deixado pelo morto seguirá o destino que se estampa nas regras sucessórias do direito civil positivado.

          Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

          A sucessão considera-se aberta no instante mesmo ou no instante presumido da morte de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele figurava. Não se confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A transmissão é conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em termos cronológicos, (1) presumindo a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros (2) no domínio e na posse indireta (3) de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo. Esta é a fórmula do que se convenciona denominar droit de saisine.

          O Código Civil de 1916 foi instituído com a seguinte regra, esculpida no art. 1572: "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Já a nova codificação civil traz a seguinte redação para traduzir o mesmo princípio: Art. 1784 – "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".

          A expressão "aberta a sucessão", que vem repetida em ambas as codificações, faz referência ao momento em que surgem os direitos sucessórios, sem fazer referência, entretanto, aos titulares desses direitos. A atribuição desses mesmos direitos aos sucessores traduz-se pelos vocábulos devolução (4) ou delação, que nada mais representam do que o mesmo fenômeno visto pelo prisma da sucessibilidade. (5)

          Pelo princípio da saisine, a lei considera que no momento da morte, o autor da herança transmite seu patrimônio, de forma íntegra, a seus herdeiros. Ora, o direito atual suprimiu da regra a expressão "o domínio e a posse da herança", passando a prever a transferência pura e simples da herança. Mas é óbvio que tal supressão não vai representar diminuição do alcance objetivo do princípio. Vale dizer, o objeto da transmissão continua sendo a herança, que como já se disse, é o patrimônio do defunto, compreendendo todos os direitos que não se extinguem com a morte, sendo dela integrantes bens móveis e imóveis, débitos e créditos.

          Segundo a norma, enfim, a herança transmite-se aos herdeiros legítimos e testamentários, o que é dizer que ela se transmite por meio do condomínio a todos aqueles que foram contemplados com a atribuição de uma quota parte ideal instituída pelo autor da herança por meio de testamento (herdeiro testamentário), ou aqueles que receberão a quota parte ideal determinada por lei (herdeiro legítimo).

          Convém lembrar que o sucessor legítimo será, nessa condição, sempre herdeiro e nunca legatário. Esse princípio faz com que a ressalva final do atual art. 1784 inclua na transmissão decorrente do princípio da saisine aqueles indivíduos que, beneficiados por testamento, o foram com quota parte ideal e nunca por meio de um bem especificado ou passível de especificação, uma vez que esta forma de disposição testamentária constitui legado e a aquisição do bem sucessível vem disciplinada pelas regras da sucessão testamentária.

          Em suma: o herdeiro recebe, desde o momento da morte do autor da herança, o domínio e a posse dos bens, em condomínio com os demais; o legatário receberá o domínio desde logo e a posse quando da partilha, se beneficiado com coisa certa e receberá o domínio e a posse no momento da partilha, se beneficiado com coisa incerta. (6) Era assim no Código de 1916, prossegue assim no Código de 2002.

          Art. 1.786. A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.

          Este artigo equivale ao anterior 1573 (Código de 1916), onde era possível ler que "a sucessão dá-se por disposição de última vontade, ou em virtude de lei".

          Os dispositivos, se não são idênticos, trazem as mesmas conseqüências práticas. A inversão das formas de sucessão no elenco legal não modifica os institutos nem traz prevalência diversa, relativamente à codificação anterior, de uma forma sucessória sobre a outra em virtude do quanto disposto no restante do Livro. Prevalece, por força do atual art. 1788, a sucessão testamentária sobre aquela que deriva de lei, até o montante que resguarde a parte indisponível – em certas circunstâncias – a fim de se dar, a esta parte, a destinação previamente determinada por lei.

          A legislação anterior, ao determinar que a sucessão se dava por disposição de última vontade, indicava já a prevalência da vontade do testador e, apenas subsidiariamente, na falta de disposição desse jaez, operava-se em virtude de lei. Mas esta última forma de suceder sempre foi a mais difundida no Brasil. "Na verdade, via de regra as pessoas passam pela vida, e dela se vão, intestadas; o reduzido número daquelas que testam, o faz porque não tiveram filhos, ou porque desejam beneficiar, quem sabe, o cônjuge, em desfavorecimento dos ascendentes, ou, ainda, porque desejam beneficiar certas pessoas, por meio de legados, ou, simplesmente, porque desejam reconhecer filhos havidos fora do casamento.

          "Poucos são os que, possuindo herdeiros necessários, testam relativamente à parte disponível, sem prejudicar, com isso, os descendentes ou os ascendentes.

          "Essa espécie de aversão à prática de testar, entre nós, é devida, certamente, a razões de ordem cultural ou costumeira, folclórica, algumas vezes, psicológica, outras tantas.

          "O brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluídos e más agruras…’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda, não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que estas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar…’.

          "Mas, a par destas razões que igualmente poderiam estar a fundamentar a insignificante prática brasileira do costume de testar, talvez fosse útil relatar, como o faz Zeno Veloso, que há certamente outra razão a ser invocada para justificar a pouca freqüência de testamentos entre nós. Esta razão estaria diretamente direcionada à excelente qualidade de nosso texto legislativo que ainda vige – o Código Civil de 1916 – a respeito da sucessão legítima. Quer dizer, o legislador brasileiro, quando produziu as regras gerais relativas à sucessão ab intestato, o fez de maneira muito primorosa, chamando a suceder exatamente aquelas pessoas que o de cujus elencaria se, na ausência de regras, precisasse produzir testamento. Poder-se-ia dizer, como o fez antes, na França, Planiol, que a regulamentação brasileira a respeito da sucessão ab intestato opera assim como se fosse um ‘testamento tácito’ ou um ‘testamento presumido’, dispondo exatamente como o faria o de cujus, caso houvesse testado.

          "Se assim for, compreende-se, então, a escassez de testamentos no Brasil, pois estes só seriam mesmo utilizados quando a vontade do de cujus fosse distinta daquela naturalmente esculpida na diagramação legislativa". (7)

          Seja por qual motivo for, fato é que a sucessão opera-se, na prática, primordialmente em decorrência da lei. Talvez por isso a inversão operada pelo último legislador civil, arrolando a sucessão legítima antes da testamentária no artigo 1786.

          Para além disso, registre-se que o novo Código, se não alterou a ordem de vocação hereditária, fez o cônjuge supérstite passar à classe de herdeiro necessário (art. 1845, CC) e determinou que concorra com os herdeiros das classes descendente e ascendente (art. 1829, incs. I e II, CC). Assim faz parte da primeira classe de vocação em concorrência com os descendentes; da segunda, em concorrência com os ascendentes; e da terceira, com exclusividade, tendo, portanto, retirado o legislador pátrio uma das hipóteses que antes se formulava, a justificar a facção de um testamento, que era exatamente a intenção do testador de privilegiar o seu cônjuge, para depois de sua morte.

          Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.

          Antes de analisarmos o dispositivo, cabe fazer menção ao fato de que o Projeto de Código Civil, quando aprovado pelo Senado Federal, trazia já a locução "transmite a herança", o que fez com que Antônio Cláudio da Costa Machado e Juarez de Oliveira chamassem a atenção em sua obra (8) para a necessidade de substituição por "transmite-se a herança", o que não ocorreu na Câmara dos Deputados. Assim sendo, a interpretação literal do dispositivo pode querer forçar o entendimento de que quem transmite a herança aos herdeiros legítimos é a pessoa que morreu sem testamento. A herança deixa de transmitir-se de forma reflexiva, como ocorria sob a vigência da Lei de 1916, para ser transmitida, passivamente, pelo autor da herança… Certamente não é essa a intenção do legislador de 2002. Portanto, urge a alteração já antes proposta, incluindo-se o pronome reflexivo "se".

          O artigo citado é resultado da união dos artigos 1574 e 1575 do Código de 1916, que tratavam, como trata o atual art. 1788, das hipóteses em que, não existindo testamento ou, existindo este, dever-se-ia operar a sucessão legítima, por se verificar a ausência de possibilidade de produção de efeitos do testamento.

          Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.

          A herança do de cujus, a que o artigo se refere, é composta pelos bens patrimoniais que a ele pertencem de forma exclusiva ou da quota parte que lhe couber, o que equivale a dizer que é composta por seus bens pessoais, bem assim pela parte que lhe cabia no patrimônio do casal, sendo ele casado, e admitindo seu regime de bens matrimonial tal situação, e, ainda, pela parte dos bens que possuísse em condomínio. Dessa forma, para que se verifique se as disposições testamentárias que o de cujus deixou consignadas, para valerem após sua morte, respeitaram o quanto disposto no art. 1789, há de se proceder à divisão decorrente do rompimento dos laços matrimoniais ocasionado por sua morte, bem assim, avaliar a quota parte dos bens condominiais. Somados os valores, chegar-se-á ao valor total do patrimônio transmissível pelo de cujus, reservando-se a metade desse valor aos herdeiros determinados pela lei, coibindo-se a liberdade do testador para dispor de seu patrimônio, sendo certo que, se inexistentes estes últimos, poderá a disposição recair sobre a totalidade da herança.

          Apenas cinqüenta por cento (9) do patrimônio total poderá ser entregue por disposição testamentária sempre que possuir, o testador, descendentes e ascendentes, além de – à luz do novo Código Civil – possuir, o testador, cônjuge sobrevivo e na constância, por óbvio, do casamento.

          O legislador nacional, portanto, sempre buscou preservar os herdeiros necessários que não podem ser afastados da sucessão, exceto se presente uma das causas que determine sua deserdação ou sua exclusão, por indignidade. Mas nem por isso retirou do testador a liberdade de dispor de seus bens, confeccionando testamento, salvo se lhe faltasse, de forma perene, capacidade para a facção da cédula respectiva.

          O novo Código Civil traz, no art. 1845, o elenco daquelas pessoas que o legislador selecionou para que ocupassem a categoria de herdeiros necessários. Diz o dispositivo:

          Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

          Entende-se por herdeiros necessários aqueles herdeiros que não podem ser afastados da sucessão pela simples vontade do sucedido. Quer isso significar que apenas quando fundamentado em fato caracterizador de ingratidão por parte de seu herdeiro necessário, poderá o autor da herança dela afastá-lo, e, ainda assim, apenas se tal fato estiver previsto em lei como autorizador de tão drástica conseqüência.

          A nova legislação não se refere ao fato de serem, tais herdeiros, sucessíveis efetivos, no que anda bem. Com efeito, tanto o excluído por indignidade quanto o deserdado são herdeiros sucessíveis que, tendo cometido ato atentatório previsto em lei, vêem-se, posteriormente, afastados da sucessão. Mas até que sejam afastados, são herdeiros sucessíveis e gozam da proteção legal da reserva dos bens que comporão a legítima. (10)

          Mas, nesta sede agora em exame, isto é, a categoria dos herdeiros necessários, certamente a modificação de maior monta que deve ser referida, e que já há muito tempo era reivindicada pela doutrina nacional (11) é, indubitavelmente, a inclusão do cônjuge na classe dos herdeiros obrigatórios. (12) E nem poderia ser diferente, diante da nova ordem de vocação hereditária instituída pelo legislador civil e que traz o cônjuge concorrendo tanto na primeira quanto na segunda classe dos chamados a suceder. Assim, conseqüência lógica de tal modificação era a proteção da legítima também em seu favor, impedindo que a simples feitura de um testamento que dispusesse sobre a totalidade do acervo viesse a prejudicá-lo.

          Apesar destas benéficas modificações, perdeu o legislador a oportunidade de prever, de forma expressa, tal proteção também para o convivente supérstite, já que garantira a este, por força do art. 1.790 do Código Civil atual, a concorrência com os filhos do de cujus; na falta destes, com os ascendentes do mesmo; e, por fim e na falta de ambos, o recolhimento do total da herança. Tal ordem de vocação, especial para as hipóteses de abertura da sucessão no decorrer de união estável, em muito se assemelha à ordem de vocação do cônjuge supérstite, não se vislumbrando motivo para que as condições do cônjuge e do convivente não se equiparassem também na proteção da legítima, como, aliás, seria de bom alvitre em face das disposições constitucionais a respeito da equivalência entre o casamento e a união estável.

2. Destaque para dois pontos de irrealização da experiência jurídica à face da previsão contida na regra estampada na nova Legislação Civil Pátria, o Código Civil de 2002: 2.1 A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834; 2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

        2.1. A concorrência do convivente ou companheiro com descendentes comuns e com descendentes só do autor da herança – art. 1790, I e II e art. 1834.

          Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

          I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

          II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

          III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

          IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

          Quando da aprovação do projeto pelo Senado Federal, foi acrescido ao Capítulo I do Título I do Livro V um artigo que não constava do Anteprojeto de 1975, por força da Emenda nº 358. Este artigo, ora sob comento, dispõe acerca da sucessão em caso de união estável, sendo certo que o projeto finalmente aprovado modificou a redação original e atribuiu ao artigo o nº 1790, que encerra o presente capítulo.

          Não obstante sua importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situado no capítulo referente à ordem de vocação hereditária.

          Sem firmar atenção ao histórico por que passou a união estável ao longo das últimas décadas em busca de reconhecimento social, judicial e legal, de resto cabível em outra sede, qual seja, a relativa ao direito de família, parece ser mais condizente e necessária uma análise das relações sucessórias entre o companheiro falecido e o supérstite, sem, no entanto, deixar de fazer referências outras que se tornem necessárias à elucidação do tema.

          Assim é que, anteriormente a 1988, quando ainda se falava em concubinato e a reação social era no sentido, ainda que cada vez mais tímido, de se recriminar as uniões de fato entre homens e mulheres desimpedidos de contrair matrimônio, a jurisprudência foi, aos poucos e com base na lei 6858/80, garantindo à convivente supérstite direito sucessório (tratava-se, em verdade de reconhecer o estatuto de dependente) sobre os bens de origem previdenciária, bem como sobre os bens de pequeno valor.

          Quando a atual Constituição Federal entrou em vigor e garantiu, legitimando, uma verdadeira revolução de costumes em que as uniões de fato passaram a ser cada vez menos recriminadas, para serem, já hoje, uma constante, da qual muitas vezes, nem se pergunta a origem da relação entre os membros da família – tudo como parece ter querido o constituinte –, não era demasiado propugnar uma ampla e total igualdade de direitos e deveres entre os conviventes relativamente aos direitos e deveres exigidos dos membros de um casal unido pelo matrimônio.

          No campo do direito sucessório essa igualdade, se não se operou totalmente, chegou muito próximo disso em alguns pontos e avançou muito, inclusive, em outros. (13) Daí porque o convivente adquiriu não só direito à meação dos bens comuns para os quais tenha contribuído para a aquisição de forma direta ou indireta, ainda que em nome exclusivo do falecido (art. 3°), como também adquiriu direito a um usufruto em tudo muito semelhante ao usufruto vidual, isso sem se falar na sua colocação na terceira ordem de vocação hereditária logo após os descendentes e os ascendentes, tudo isto por força da lei 8.971, de 29.12.1994, que em seu art. 2°, assim estabeleceu:

          I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos deste ou comuns;

          II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

          III – na falta de descendentes ou de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

          Tendo se esquecido, o legislador infra-constitucional – sempre no que se refere ao direito sucessório – de garantir o direito real de habitação relativo ao imóvel que servia de residência para a família, sendo o único desta natureza, editou a lei 9278/96 que em seu art. 7°, parágrafo único, assim redigido, o previu: "dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família".

          Assim como a posição do cônjuge sobrevivo melhorou, naquilo que respeita aos problemas de ordem sucessória, nas previsões do novo Código Civil, ampliando-se os direitos que lhe assistem, era de se esperar que o convivente supérstite tivesse sua condição privilegiada, relativamente àquela condição anteriormente descrita, e tivesse garantido a igualdade de direitos relativamente ao cônjuge sobrevivente, fazendo-se, assim, valer o dizer constitucional em sua amplitude.

          Todavia, não foi isto o que aconteceu.

          O anteprojeto de Código Civil elaborado em 1972, bem assim o Projeto apresentado para discussão em 1975 e aprovado na Câmara dos Deputados em 1984, não previam qualquer regra relativamente à sucessão de pessoas ligadas entre si apenas pelos laços do afeto. Foi o Senador Nélson Carneiro, em sua incessante luta pela modernização das relações familiares brasileiras quem apresentou emenda no sentido de se garantir direitos sucessórios aos conviventes. Como lembra Zeno Veloso, (14) a emenda foi claramente inspirada no Projeto de Código Civil elaborado por Orlando Gomes nos idos da década de 60 do século XX, antes portanto da igualdade constitucionalmente garantida. Bem por isso, o artigo em que resultou, este de n° 1790, é de caris retrógrado referentemente à legislação anteriormente sumariada.

          Diferentemente do que ocorre com o cônjuge, que herda quota parte dos bens exclusivos do falecido quando concorre com os descendentes deste, percebendo, quanto aos bens comuns, apenas a meação do condomínio até então existente (e não mais do que isso), o convivente que sobreviver a seu par adquire não apenas a meação dos bens comuns (e aqui em igualdade relativamente ao cônjuge supérstite), como herda quota parte destes mesmos bens comuns adquiridos onerosamente pelo casal, nada recebendo, no entanto, relativamente aos bens exclusivos do hereditando, solução esta que, para adaptar uma expressão de Zeno Veloso a uma outra realidade, "não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema". (15)

          Não estabelece o Código Civil atual o direito real de habitação previsto pela lei 9.278/96, devendo-se, por isso, e em analogia com a situação garantida ao cônjuge e autorizada pela Constituição Federal, ter o dispositivo do art. 7°, parágrafo único, desta lei como não revogado.

          Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovar o dispositivo, da forma como está, por recriar o privilégio dos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrer com o convivente supérstite na 3ª classe da ordem de vocação hereditária. Assim, morto alguém que vivia em união estável, primeiros a herdar serão os descendentes em concorrência com o convivente supérstite. Na falta de descendentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o convivente sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o convivente, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta destes será chamado o convivente remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo. É flagrante a discrepância.

          Bem por isto pede-se autorização para reproduzir neste tópico um trecho de extrema lucidez, tão comum na obra de Zeno Veloso:

          "Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4° grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no 3° milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4° grau do de cujus. Temos de convir. Isto é demais! […]

          "Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?

          "Sem dúvida, neste ponto o C.C. não foi feliz. A lei não está imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que não obedeceu as indicações da histórica e da civilização.

          "Aproveitando que o C.C. está na vacatio legis, urge que seja reformado na parte que foi objeto deste estudo.

          "Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais." (16)

          No que diz respeito à sucessão do convivente, em concorrência com os herdeiros de primeira vocação, isto é, os descendentes, observa-se que o legislador civil atual pretendeu, efetivamente, dar distinto tratamento a essa sucessão concorrente, aplicando distintas imposições matemáticas se os descendentes fossem filhos do convivente supérstite e do convivente falecido, ou se, por outro lado, fossem descendentes exclusivos do autor da herança (incisos I e II do art. 1790 NCC, respectivamente), fazendo-o herdar a mesma porção deferida aos filhos comuns e metade da porção cabível aos descendentes exclusivos do de cujus.

          Deu, portanto, tratamento preferencial ao convivente sobrevivo, quando se trata de concorrência com filhos comuns a ele e ao morto. Esta foi a opção do legislador civil brasileiro e passa ela a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir.

          A atividade do intérprete deve restar, desde já, entregue a uma consideração muito rígida, exatamente para que não reste da tentativa (ou tentativas) de concreção da nova ordem jurídica senão uma inacreditável fonte de desconsideração do espírito do legislador, da formulação axiológica de suas leis ou da principiologia que se pretende seja a paradigmática do novo Texto Civil Brasileiro (17).

         Tudo isso porque – infelizmente, e mais uma vez – não previu, o legislador, a tormentosa hipótese de serem herdeiros do falecido pessoas que guardem relação de parentesco (filiação) com o sobrevivo, em concorrência com outras que fossem parentes apenas dele, autor da herança.

          Vale dizer, o legislador se olvidou mais uma vez da comum hipótese que abarca aqueles que, tendo sido casados em primeiras núpcias, ou tendo mantido uma união estável precedente, tenham se separado, se divorciado ou assistido a morte do companheiro da primeira fase de suas vidas, resolvendo, assim reconstruir sua trajetória afetiva com terceiro, hipótese esta que se qualifica, ainda, pela especial condição de ter advindo prole de ambos os relacionamentos vividos.

          Não há, na nova Lei Civil, uma disposição que regulamente esta situação híbrida quanto à condição dos filhos do falecido (comuns e exclusivos), com os quais deva concorrer o convivente supérstite.

          Neste caso, restou inafastavelmente a dúvida: ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os descendentes de ambas as condições (comuns e exclusivos) como se fossem todos descendentes comuns aos dois, herdando, portanto a mesma quota cabível a cada um dos filhos, ou bem se fazia o convivente supérstite concorrer com os mesmos herdeiros como se fossem todos descendentes exclusivos do autor da herança, percebendo, portanto, a metade dos bens que couber a cada qual.

          Não bastassem essas duas modalidades exegéticas para a apreciação da circunstância híbrida (existência de filhos comuns e de filhos exclusivos, em concorrência com o convivente sobrevivo), outras duas, aos menos, se apresentaram na consideração doutrinária inaugural: uma que buscou compor as disposições contidas nos incisos I e II do art. 1790, atribuindo uma quota e meia ao convivente sobrevivente – equivalente à soma das quotas que a ele seriam deferidas, na hipótese de concorrer com filhos comuns (uma) e com filhos exclusivos (meia) –, e outra que igualmente buscou compor as duas regras, dividindo proporcionalmente a herança em duas sub-heranças, atribuíveis a cada um dos grupos de filhos (comuns ou exclusivos) incorporando, em cada uma delas, a concorrência do convivente sobrevivo.

          Seja qual for a formulação ou critério que se escolha, contudo, a verdade é que parece torna-se impossível conciliar, do ponto de vista matemático, as disposições dos incisos I e II deste artigo 1.790.

          Parece mesmo não haver fórmula matemática capaz de harmonizar a proteção dispensada pelo legislador ao convivente sobrevivo (fazendo-o receber o mesmo quinhão dos filhos que tenha tido em comum com o autor da herança) e aos herdeiros exclusivos do falecido (fazendo-os herdar o dobro do quanto dispensado ao convivente que sobreviver).

          Dessa forma, na realidade, são quatro as propostas de tentativas de composição dos dispositivos do Códio Civil envolvidos no assunto relativo à sucessão de filhos (comuns ou exclusivos) em concorrência com o convivente sobrevivente.

          ► 1ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria à simples regra de igualar os filhos de ambos os grupos, tratando-os como se fossem filhos comuns a ambos os conviventes.

          Certamente não pode prosperar essa solução simplista, pois se, por um lado, trata de manter igualadas as quotas hereditárias atribuíveis aos filhos (de qualquer grupo), conforme determina o art. 1.834 do Código, por outro lado, fere na essência o espírito do legislador do Código Civil que quis dar tratamento diferenciado às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil:

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui, por via desta divisão patrimonial, se chegaria à mesma conclusão, vale dizer, o espírito do legislador do Código Civil restaria magoado, tendo em vista a inobservância da diferença que quis dar às hipóteses de concorrência do convivente sobrevivo com os descendentes do de cujus de um ou de outro grupo (comuns ou exclusivos).

          Nessa hipótese por segundo considerada – e como é possível observar – privilegiar-se-iam os filhos em detrimento do convivente sobrevivo, que seria tido, sob todos os aspectos como não ascendente de nenhum dos herdeiros, recebendo, então, apenas a metade do que aqueles herdariam. Por outro lado, naquela primeira proposta formulada, o convivente sobrevivente acabaria por ser privilegiado, na medida em que participaria da herança recebendo quota absolutamente equivalente às quotas atribuíveis aos descendentes de qualquer grupo.

          ► 3ª proposta: composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente sobrevivente:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: somar-se-ia o número total de filhos comuns e de filhos exclusivos do autor da herança, acrescentar-se-ia mais um e meio (uma quota deferida ao convivente sobrevivente, no caso de concorrência com filhos comuns, e meia quota deferida ao mesmo sobrevivo, no caso de concorrência com filhos exclusivos do falecido), dividindo-se, depois, a herança por esse número obtido, entregando-se quotas de valores iguais aos filhos (comuns e exclusivos), o que atenderia ao comando de caráter constitucional do art. 1834 NCC (que determina que descendentes da mesma classe tenham os mesmos direitos relativamente à herança de seu ascendente), e uma quota e meia ao convivente sobrevivente, o que atenderia aos comandos dos incisos I e II do art. 1790.

           Pode parecer, à primeira vista, que esta solução resolveria – com exemplar facilidade – o problema da partilha, aparentemente atendendo a todas as regras do NCC de regência sobre o assunto.

          Contudo, a pergunta difícil de responder que fica é a seguinte: se esta for a solução buscada, onde residiria, dentro dela, aquele princípio que norteou o espírito do legislador, ao dar diferentes variáveis de concorrência do convivente sobrevivo com descendentes de um e de outro grupo (comuns ou exclusivos)? Porque, afinal, o que se vê das quotas hereditárias e partilháveis entre os filhos todos é que efetivamente elas são iguais, mas a quantia que se abateu da herança, para compor a quota do convivente concorrente, foi retirada do monte-mor a todos eles idealmente atribuível, sem atentar para a diferença entre os filhos (como pretendeu diferenciá-los, para esse efeito, o legislador de 2002, nos incisos I e II do art.1790), diminuindo, igualmente, o quinhão de cada um deles, afinal de contas, para compor a quota hereditária do convivente concorrente.

          O que restou a considerar, num caso como esse, e sob essa solução, é que o tratamento dado ao convivente sobrevivo foi muito mais privilegiado que em qualquer das duas hipóteses singulares (incisos I e II do art. 1790) previstas pelo legislador e vistas cada uma de per se. Confira-se: a) se concorresse apenas com filhos comuns, o convivente sobrevivo herdaria quota igual à que coubesse a cada um deles; b) se concorresse apenas com descendentes exclusivos do autor da herança, o convivente sobrevivo herdaria quota equivalente à metade da que coubesse a cada um deles; c) mas, nessa derradeira, problemática e não prevista hipótese de concorrência com filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos), o convivente se beneficiaria, por herança, com maior quinhão, qual seja o quinhão equivalente a uma quota e meia, enquanto que cada um dos filhos (comuns ou exclusivos) herdaria uma única quota, cada um deles.

          Não me parece que seja isto que tenha querido o legislador, uma vez que diferenciou as espécies de herdeiros descendentes, para efeito dessa concorrência e, em nenhuma das formulações legislativas, deferiu, ao convivente sobrevivo, uma quota hereditária maior do que a que coubesse a qualquer dos herdeiros com quem concorresse. Na melhor das hipóteses (inciso I), o legislador pensou em igualar o quinhão do convivente sobrevivo ao quinhão do herdeiro, desde que fosse filho seu e do autor da herança, mas nunca pensou em privilegiar o convivente com quota maior do que a deferida ao herdeiro.

          Assim – segundo quer me parecer – se aplicado esse critério aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado do espírito do legislador de 2002.

          Penso não ser possível produzi-lo assim simplesmente, tout court.

          ► 4ª proposta: composição dos incisos I e II pela sub-divisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo:

          Por esta via, a divisão patrimonial obedeceria a seguinte regra: primeiro se dividiria a herança a ser partilhada entre filhos comuns e filhos exclusivos em duas partes (sub-heranças) proporcionais, cada uma delas, ao número de filhos de um ou de outro grupo. A seguir se introduziria, em cada uma dessas sub-heranças, a concorrência do convivente, conforme a determinação do inciso I ou do inciso II do art. 1790, respectivamente. Depois disso, se somariam as quotas do convivente supérstite – obtidas em cada uma dessas sub-heranças – formando o quinhão a ele cabível. Aos filhos herdeiros caberia a quota que houvesse resultado da aplicação das regras legais em cada uma das sub-heranças, conforme proposto.

          É fácil verificar, se esse fosse o critério a ser utilizado, que os quinhões dos filhos de um grupo seriam proporcionalmente maiores que os quinhões dos filhos do outro grupo. Quinhões desigualados equivalem, entretanto, ao desatendimento do art. 1834 NCC, dispositivo de caráter constitucional.

          Assim – segundo quer me parecer, nesta nova proposta de partição da herança – se aplicado o critério matemático aqui desenhado, o resultado obtido ao final de uma partilha seria um resultado absolutamente dissociado, não apenas do espírito do legislador de 2002, mas também da principiologia constitucional de fundo (18).

        2.2 A concorrência do cônjuge com descendentes – arts. 1829, I, 1832 e 1834.

          Depois de tratar das regras gerais respeitantes à sucessão, no sentido de serem regras que se aplicam tanto à sucessão testamentária, quanto àquela que se processa tendo falecido o de cujus ab intestato, passa o legislador a editar regras especialmente desenhadas para aqueles casos em que a morte se dá com ausência de testamento ou de testamento válido, com testamento incompleto, enquanto um testamento que não abrange a totalidade do acervo hereditário disponível, ou mesmo com um testamento que, não obstante completo, encontra limitação na existência de herdeiros necessários, que são aqueles que necessariamente devem ser chamados a herdar ou, ao menos, deliberar a respeito da quota que lhes é deferida.

          Esta chamada se organiza, em níveis de preferência por certas classes de pessoas consoante a regra do art. 1829 do novo Código Civil:

          Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

          I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

          II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

          III – ao cônjuge sobrevivente;

          IV – aos colaterais.

          Impõe o legislador uma ordem de vocação hereditária, em que divide os chamados a herdar em classes, impondo entre eles uma "relação preferencial" (19) em que uns excluem os outros, segundo a ordem estabelecida no ordenamento.

          O novo Código Civil, apesar de manter a ordem de vocação hereditária tradicionalmente aceite pelo ordenamento jurídico brasileiro, (20) garante ao cônjuge supérstite uma dada posição de igualdade, e por vezes até de primazia, relativamente aos descendentes e ascendentes – que continuam a compor a primeira e a segunda classes de vocação hereditária – chamados a herdar.

          Outra conseqüência trazida pela nova legislação foi a revogação, por falta absoluta de previsão neste sentido, bem assim por perda de necessidade prática, da instituição em favor do cônjuge sobrevivo dos direitos reais de uso ou usufruto, uma vez que este passa a herdar sempre que não lhe faltar legitimidade para tanto. Assim, se herda, adquire o direito de propriedade sobre uma parte do acervo, direito real este de amplitude quase ilimitada, e isto torna desnecessária a herança de direitos reais limitados. Manteve-se, entretanto o direito real de habitação sobre a residência familiar, limitado ao fato de ser este o único bem com esta destinação.

          O cônjuge sobrevivo encontra-se, por força desta listagem preferencial de chamamento a herdar, em terceiro lugar, mas posiciona-se favorecido também nas duas primeiras e antecedentes classes, já que o novel legislador dispôs que ele concorre com aqueles primeiro chamados a herdar, isto é os descendentes e os ascendentes

          A imissão do cônjuge nas classes anteriores à terceira, se faz de forma gradativa e proporcional à importância que o legislador empresta aos descendentes e aos ascendentes em relação ao apreço e carinho que o morto presumidamente guardaria para cada qual. Por isso é que a quota do cônjuge vai aumentando dependendo da classe em que se encontre, como se verá.

          Por força do art. 1845 do novo Código Civil, o cônjuge sobrevivo – já se o mencionou, antes – passa à categoria de herdeiro necessário, tornando-se impossível ao cônjuge que primeiro falecer afastar o supérstite de sua sucessão, o que antes era possível pela simples facção de cédula testamentária que abrangesse todo o patrimônio do de cujus, inexistindo descendentes e ascendentes do testador. Tornar o sobrevivente herdeiro necessário da pessoa com quem conviveu e convivia até período próximo ao da morte deste é medida que se coaduna com a colocação daquele nas duas primeiras classes de vocação sucessória, em concorrência com descendentes e ascendentes. Com efeito, seria ilógico fazer do sobrevivente herdeiro preferencial, concorrente dos necessários e, ao mesmo tempo, negar-lhe tal condição. Daí a regra do art. 1845 referido.

          Todavia, a aquisição de fração da herança pelo cônjuge supérstite depende da verificação de certos pressupostos que garantam, do ponto de vista social, a harmonia e a continuidade da vida em comum, como que a legitimar a presunção de que o cônjuge participou da construção do patrimônio familiar, "seja pela cooperação direta de trabalho, seja pela participação direta de apoio, de economias, da harmonia, e até de sacrifícios" (21), apenas para ficarmos na enumeração expendida por Caio Mário da Silva Pereira, um dos maiores defensores do reconhecimento do cônjuge não só como herdeiro preferencial, mas também como herdeiro necessário.

          O primeiro destes pressupostos exigidos pela lei é o do regime matrimonial de bens. Bem por isso o inc. I do art. 1829, anteriormente reproduzido, faz depender a vocação do cônjuge supérstite do regime de bens escolhido pelo casal, quando de sua união, uma vez que o legislador enxerga nessa escolha uma demonstração prévia dos cônjuges no sentido de permitir ou não a confusão patrimonial e em que profundidade querem ver operada tal confusão.

          Assim, não será chamado a herdar o cônjuge sobrevivo se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens (arts. 1667 a 1671 do atual Código Civil), ou pelo regime da separação obrigatória de bens (arts. 1687 e 1688, combinado com o art. 1641).

          Por fim, aqueles casais que, tendo silenciado quando do momento da celebração do casamento, optaram de forma implícita pelo regime da comunhão parcial de bens, fazem jus à meação dos bens comuns da família, como se de comunhão universal se tratasse, mas passam agora a participar da sucessão do cônjuge falecido, na porção dos bens particulares deste.

          Pode-se concluir, então, no que respeita ao regime de bens reitor da vida patrimonial do casal, que o cônjuge supérstite participa por direito próprio dos bens comuns do casal, adquirindo a meação que já lhe cabia, mas que se encontrava em propriedade condominial dissolvida pela morte do outro componente do casal e herda, enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrente de primeira classe, uma quota parte dos bens exclusivos do cônjuge falecido, sempre que não for obrigatória a separação completa dos bens.

          De outra feita, se concorrer na segunda classe, tirante a meação que lhe couber, herda não apenas fração dos bens particulares do de cujus como também fração dos bens comuns ao casal, uma vez que o inciso II do art. 1829 não faz quaisquer das ressalvas feitas no inciso I do mesmo artigo em clara demonstração de que as exceções deste último inciso só servem para proteger os descendentes do falecido e não os ascendentes deste, sempre que em concorrência com o cônjuge supérstite.

          Outro pressuposto para a participação do cônjuge sobrevivo na herança do falecido é a constância jurídica e fática do casamento (art. 1830).

          Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

          A primeira classe a ser chamada à sucessão será a dos descendentes do de cujus, em concorrência com o cônjuge supérstite que satisfaça às exigências relativas ao regime matrimonial de bens (quanto a este tema, veja-se, supra, os comentários ao art. 1830).

          A regra geral é a de que o cônjuge supérstite e os descendentes recebem a mesma quota hereditária. Todavia, esta regra encontra exceção na parte final do artigo reproduzido sempre que a concorrência se der entre o cônjuge supérstite e quatro ou mais dos descendentes que teve em comum com o de cujus.

          A sucessão que se resolva na vocação da primeira classe para receber a parte disponível, ou mesmo a totalidade da herança verá o acervo hereditário ser dividido em tantas partes quantos forem os filhos, netos, bisnetos ou demais descendentes do de cujus, sempre que todos sucedam por direito próprio, o que equivale a dizer que todos os descendentes devem guardar, relativamente ao morto, o mesmo grau de parentesco, e mais uma parte, esta destinada ao cônjuge supérstite.

          Todavia, se a quota parte cabível a este último for menor do que a quarta parte do monte-mor e se todos os chamados a suceder forem também seus herdeiros, então a lei reserva ao cônjuge supérstite este montante, que será então descontado do acervo hereditário, repartindo-se os outros setenta e cinco por cento entre os descendentes que com este concorrem à sucessão.

          Por outro lado, se à sucessão concorrerem descendentes apenas do de cujus, então a reserva da quarta parte ao sobrevivo não prevalecerá e a herança dividir-se-á em tantas partes quantos forem os descendentes, mais uma a ser entregue ao cônjuge.

          Questão mais tormentosa de se buscar solucionar, relativamente a essa concorrência prevista pelo dispositivo em comento, é aquela que vai desenhar uma hipótese em que são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) e os descendentes exclusivos do autor da herança, todos em concorrência com o cônjuge sobrevivo. O legislador do Código Civil de 2002, embora inovador na construção legislativa de hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros de convocação anterior à sua própria, infelizmente não fez a previsão da hipótese agora em apreço, de chamada de descendentes dos dois grupos, quer dizer, os descendentes comuns e os descendentes exclusivos. E é bastante curioso, até, observar essa lacuna deixada pela nova Lei Civil, uma vez que em nosso país a situação descrita é comuníssima, envolvendo famílias constituídas por pessoas que já foram unidas a outras, anteriormente, por casamento ou não, resultando, dessas uniões, filhos (descendentes, enfim) de origens diversas.

          A dúvida que remanesce, à face da ausência de previsão legislativa para a hipótese, diz respeito, afinal, ao fato de se buscar saber se prevalece, ou não, a reserva da quarta parte dos bens a inventariar, a favor do cônjuge sobrevivo, em concorrência com os descendentes herdeiros.

          Ora, a maneira que escolheu o legislador para redigir o art. 1832 não deixa qualquer dúvida acerca da intenção de se dar tratamento preferencial ao cônjuge sobrevivo, quando se trata de concorrência com descendentes do de cujus que sejam também seus descendentes, exatamente reservando-lhe esta quarta parte da herança, como quinhão mínimo a herdar, por concorrência com aqueles. Observe-se que não fez idêntica referência, o legislador, para a hipótese distinta, vale dizer, de serem os herdeiros, com quem concorre o cônjuge sobrevivo, descendentes exclusivos do falecido. Logo, essa foi a opção do legislador civil brasileiro – a de privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva da quarta parte da herança, apenas no caso de concorrência com herdeiros dos quais fosse ascendente – e, por essa razão, essa opção passa a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir. (22)

          Se este foi o espírito que norteou a concreção legislativa no novo Código Civil – e trata-se de uma formulação bastante elogiável – entendo que ele deva ser preservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótese híbrida antes considerada, de chamamento de descendentes a herdar, de ambos os grupos, isto é, de descendentes que também o sejam do cônjuge concorrente, e de descendentes exclusivos do autor da herança. Qualquer solução que pretenda deitar por terra essa postura diferencial consagrada pelo legislador deveria estar consignada em lei, ela também, exatamente para evitar a variada gama de soluções que terão que ser, obrigatoriamente, organizadas pelo aplicador e pelo hermeneuta, formulando paradigmas jurisprudenciais que não guardem qualquer correlação com aquele espírito do legislador, claramente registrado no artigo em comento (1832).

          Mas porque não há, na nova Lei Civil, uma disposição específica para a hipótese híbrida (descendentes comuns e descendentes exclusivos), soluções alternativas poderão ser levantadas para os casos que se apresentarem nesse interregno de tempo que se estenderá entre a entrada em vigor do Código e a necessária alteração legislativa, no porvir.

          Se assim for, então, parecem ser três as mais prováveis propostas de solução para as ocorrências híbridas de sucessão de descendentes dos dois grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

    ► 1ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente.

          Por esta via, que considera todos os descendentes do de cujus como sendo descendentes também do cônjuge sobrevivo, a solução possível seria apenas aquela de reservar a quarta parte da herança para ser amealhada pelo cônjuge que sobreviveu.

          Solução desse jaez representaria, no entanto, um certo prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido, os quais, por não serem descendentes do cônjuge com quem concorrem, restariam afastados de parte mais ou menos substanciosa do patrimônio exclusivo de seu ascendente morto.

          Não se satisfaz, portanto, o espírito do legislador no novo Código Civil, que pretendeu privilegiar o cônjuge supérstite – nestas condições de reserva de parte ideal – tão somente quando tal cônjuge fosse também ascendente dos herdeiros de primeira classe com quem concorresse. Por esse motivo tal proposta não deve prevalecer, não obstante garantir quinhões iguais aos filhos de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e ao cônjuge sobrevivente.

          ► 2ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido.

          Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior, também aqui se pode chegar à mesma conclusão de inobservância do espírito do legislador do Código Civil. Mas, aqui, tal inobservância se verifica na exata medida em que o tratamento de todos os descendentes do de cujus como seus descendentes exclusivos, acabaria por afastar a reserva da quarta parte do monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, como forma de lhe garantir um maior amparo em sua viuvez.

          Trata-los, aos descendentes todos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que fecha os olhos a uma verdade natural (descendentes por laços biológicos) ou civil (descendentes em razão de uma adoção verificada) que é a única verdade que o legislador tomou como autorizadora de uma maior proteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.

          ► 3ª proposta: composição pela solução híbrida, subdividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

          Por esta via de raciocínio (que bem poderia ser intentada pelo intérprete, à face da lacuna do legislador), a divisão patrimonial do acervo hereditário obedeceria às seguintes regras: primeiro se dividiria a herança em duas sub-heranças, proporcionalmente ao número de descendentes de cada um dos grupos (comuns e exclusivos). A sub-herança que fosse destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes exclusivos seria dividida em tantas quotas quantos fossem os herdeiros desta classe, mais uma (correspondente à quota do cônjuge concorrente, conforme determinação do art. 1832, 1ª parte), entregando-se a cada um dos herdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. A seguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, a sub-herança destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes comuns, pelo número deles, mais uma, destinada ao cônjuge que com eles concorre. Supondo que a somatória desta quota deferida ao cônjuge sobrevivente (em concorrência com descendentes comuns) e da quota igualmente deferida a ele (em concorrência com descendentes exclusivos) fosse menor que uma quarta parte da herança, então se reorganizaria a divisão, para que esse preceito do legislador ordinário pudesse ser observado. Para tanto, a sugestão seria a de se abater da sub-herança atribuível aos descendentes comuns o quanto fosse necessário para – somando-se ao quinhão do cônjuge obtido já da sub-herança deferida aos descendentes exclusivos – consolidar o equivalente a 25% do total da herança (atendendo, assim, ao que dispõe a segunda parte do mesmo dispositivo legal em comento, o art. 1832).

          Ora, é muito fácil observar que, senão em circunstância real excepcionalíssima, essa composição matemática não conseguiria atender aos preceitos legais envolvidos (art. 1829, I e 1832), e não garantiria a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes da mesma classe, conforme determina o art. 1834, de caráter constitucional. Quer dizer, nem se conseguiria obter – por esta proposta imaginada conciliatória – iguais quinhões para os herdeiros da mesma classe (comuns ou exclusivos), nem seria razoável que a quarta parte garantida ao cônjuge fosse complementada por subtração levada a cabo tão-somente sobre a parte do acervo destinada aos descendentes comuns.

          De qualquer das formas, ao que parece, na ocorrência de uma hipótese real de sucessão de descendentes que pertencessem aos dois distintos grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivo, não haveria solução matemática que pudesse atender a todos os dispositivos do Código Civil novo, o que parece reforçar a idéia de que, para evitar uma profusão de inadequadas soluções jurisprudenciais futuras, o ideal mesmo seria que o legislador ordinário revisse a construção legal do novo Diploma Civil brasileiro, para estruturar um arcabouço de preceitos que cobrissem todas as hipótese, inclusive as hipóteses híbridas (como as tenho chamado) evitando o dissabor de soluções e/ou interpretações que corressem exclusivamente ao alvedrio do julgador ou do hermeneuta, mas desconsiderando tudo aquilo que, a princípio, norteou o ideal do legislador, formatando o espírito da norma. (23)

NOTAS

GOMES, Orlando. Sucessão, p. 11.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões, p. 14.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Volume 7, p. 13.

CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Interpretado. Direito das Sucessões. Volume XXII, p. 7.

GOMES, Orlando. Ob. cit., p. 11.

Walter Moraes deixa claro que: "Vale para os legados o princípio geral da aquisição imediata. A regra básica é a de que o legatário adquire a deixa desde a morte do testador. O que impede a instantaneidade da aquisição são as seguintes circunstâncias: 1) existência de condição suspensiva; 2) a indeterminação do objeto; 3) a inexistência do objeto no patrimônio deixado; 4) a inexistência da personalidade do legatário" (MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima, p. 48). A primeira hipótese determina que se aguarde a verificação da condição que, em não ocorrendo, acarreta a devolução do bem aos herdeiros legítimos. A segunda obriga que se espere o final da partilha. A terceira possibilita a aquisição do bem quando da partilha com posterior entrega ao legatário, sempre que possível tal providência, sendo que, se impossível, dá-se por caduca a disposição. A quarta hipótese, por fim, refere-se à instituição de prole eventual de terceiro como legatário, determinando-se que se aguarde sua superveniência.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6, p. 277-278.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa; OLIVEIRA, Juarez de. Novo Código Civil, p. 363.

"Perante o nosso direito positivo, a porção disponível é fixa, invariável. Em qualquer hipótese, seja qual for a qualidade e o número dos herdeiros, compreenderá sempre a metade dos bens do testador. Assim não acontece, todavia, em outras legislações." (MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 10) E elenca, o saudoso escritor, ali, uma série de hipóteses verificáveis na legislação comparada.

Na deserdação, o herdeiro é "privado de uma vocação legitimária, por meio da vontade imperial do testador", ao passo que a exclusão por indignidade resolve "uma vocação hereditária existente no momento da abertura da sucessão" (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, v. 6, p. 384).

Em especial por Caio Mário da Silva Pereira, como este relata à p. 17 de seu Instituições de direito civil, v. VI, em perspectiva histórica.

"Compreendido o fenômeno da sucessão como uma exigência social de busca do melhor continuador da personalidade patrimonial do de cuius, conforme a sua vontade, e baseado o critério dessa busca em presuntiva proximidade pessoal do sucessível com o sucedido, justifica-se e explica-se o iter ascendente da vocação do cônjuge, dada a natural intimidade que da união do casal se espera resultar. Tal visão e tal critério estão a sugerir, ao mesmo tempo, que a evolução da ordem de vocação ainda está a obrar à procura de uma situação definitiva para o cônjuge, que satisfaça socialmente, sob todos os aspectos" (MORAES, Walter. Ob. cit., p. 138).

O que foi motivo para acerbadas críticas por parte da doutrina. Veja-se, por último, VELOSO, Zeno. Direito sucessório dos companheiros, in Direito de Família e o novo Código Civil, p. 225-237.

Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., passim.

VELOSO, Zeno. Ob. cit., ps. 236-237.

A respeito, vale a pena recuperar a cuidadosa lição de Gustavo Tepedino na mais recente obra sob sua coordenação e intitulada A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional (verificar "Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002", p.XXI): "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto".

O legislador brasileiro, de alguma forma, já se apercebeu da inviabilidade de conexão entre o enunciado genérico contido no art. 1790, I e II e a norma descritiva de valores que descreve o art. 1834, todos do novo Código Civil Brasileiro. O Projeto de Lei nº 6960/2002 (do Deputado Ricardo Fiúza) intenta uma nova redação para o art. 1790, deixando-o com a seguinte sugestão de redação: Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641); […] A alteração de fundo é significativa, pois todo o contorno e conteúdo do dispositivo é alterado. Mas não esteve preocupado o legislador do substitutivo em compor matematicamente a possibilidade de aplicação dos dispositivos do Código Civil tal como estão, hoje. Na substanciosa obra denominada Novo Código Civil Comentado, coordenada pelo próprio Deputado Ricardo Fiúza (Editora Saraiva, 2002, 1843 ps.), o jurista encarregado de comentar esse art. 1790 e de demonstrar a sugestão legislativa de alteração que o acompanha (Projeto de Lei 6960/2002) foi exatamente o insigne Zeno Veloso, que assim descreveu a razão da sugestão legislativa sob comento: "Consciente disso [referia-se aos inúmeros problemas originais do dispositivo], e considerando o posicionamento assumido no Congresso Nacional, em vez de oferecer ao Deputado Ricardo Fiúza minha própria proposta, vou apresentar – com algumas alterações, a meu ver necessárias – a que foi oferecida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, colocando-a de acordo com as limitações à concorrência dos cônjuges com os descendentes (art. 1829) e com a emenda que estou propondo ao art. 1831, que regula o direito real de habitação. Transijo, enfim, para que o art. 1790 não fique como está."

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Direito das Sucessões, p. 61. Ou, ainda, como deixou consignado Itabaiana de Oliveira, tratar-se-ia de verdadeira "coordenação preferencial dos grupos sucessíveis" (ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. Vol. I, p. 169).

É a seguinte a redação do art. 1603 do Código Civil de 1916: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge supérstite; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União".

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob. cit., p. 76.

Essa mesma consideração, com a mesma natureza argumentativa, já foi levantada pela autora em comentários anteriores (art. 1790), relativamente à sucessão, por concorrência, do convivente sobrevivo.

A respeito, a autora solicita licença para repetir lição já anteriormente citada, de Gustavo Tepedino, também em nota de rodapé, nos comentários ao art. 1.790: "Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana […], bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto" ("Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002". A Parte Geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. XXI).

 

Bibliografia Citada

 

          CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

          GOMES, Orlando. Sucessão. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

          Itabaiana DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de direito das sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952. vol. I.

          HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil – Volume 6. São Paulo: Ed. RT, 2000.

          MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – 6º volume – Direito das Sucessões. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

          MORAES, Walter. Programa de Direito das Sucessões. Teoria Geral e Sucessão Legítima. São Paulo: Ed. RT.

          PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 13. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001. vol. VI.

          RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 22. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. 7 vol.

          TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

          VELOSO, Zeno. "Direito sucessório dos companheiros". Direito de Família e o novo Código Civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey e IBDFam, 1ª ed.: 2001; 2ª ed.: 2002.

  


Referência  Biográfica

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka  –  Procuradora Federal em São Paulo (SP); Doutora em Direito pela USP; Professora doutora de Direito Civil da USP e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

hironaka@uol.com.br

Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei n.º 10.792, de 1º de dezembro de 2003

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* Renato Flavio Marcão 

Sumário:  1. Introdução; 2. Considerações sobre algumas das modificações; 2.1. sobre o novo artigo 185; 2.2. sobre o novo art. 186; 2.3. sobre o novo art. 187; 2.4. sobre o novo art. 188; 2.5. sobre o novo art. 189; 2.6. sobre o novo art. 190; 2.7. sobre o novo art. 191; 2.8. sobre os arts. 192, 193 e 195; 2.9. sobre o novo art. 196; 2.10. curador ao réu menor; 3. Incidência imediata; 4. Conclusão.

 


1.  Introdução

            Entrou em vigor no dia 02 de dezembro de 2003, por força do disposto no seu artigo 9º, a Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, alterando a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

            No tocante a Lei de Execução Penal a Nova Lei determinou alterações em relação aos artigos 6º; 34 (§§ 1º e 2º); 52 (incisos I/IV, §§ 1º e 2º); 53 (inc. V); 54 (§§ 1º e 2º); 57 (caput e parágrafo único); 58; 60 (caput e parágrafo único); 70 (inc. I); 72 (inc. VI); 86 (§§ 1º e 3º); 87 (parágrafo único); 112 (§§ 1º e 2º).

            Além das modificações nos dispositivos acima indicados, também no que pertine a Execução Penal estabeleceu outras providências em seus artigos 3º/8º.

            No que tange ao Código de Processo Penal a Nova Lei determinou modificações sensíveis, relacionadas ao interrogatório (art. 185 e seguintes); resvalando na questão da defesa técnica (art. 261) e na citação do réu preso (art. 360), aqui, para determinar que “se o réu estiver preso, será pessoalmente citado,” afastando a antiga discussão sobre tal necessidade ou sobre a regularidade da simples requisição ao Diretor do estabelecimento penal.

2. Considerações sobre algumas das modificações

            2.1. Sobre o novo artigo 185

            Dispunha o artigo 185 do CPP: “O acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado”.

            Dispõe o caput do novo artigo 185 do CPP: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”.

            Como se vê, persistindo a necessidade de interrogatório do acusado sempre que possível sua realização, até o trânsito em julgado da sentença final,[1] a nova regra assegura maior amplitude de defesa na medida em que passa a exigir que o interrogatório se verifique na presença de defensor, constituído ou nomeado.

            Já não prevalece o posicionamento anteriormente calcificado, embora duramente combatido por vários doutrinadores, no sentido de que o interrogatório é ato exclusivo do juiz.[2]

            Anteriormente era tranqüilo o entendimento no sentido de que a presença do defensor não era exigida no ato do interrogatório, porquanto não prevista em lei,[3] o que agora restou contrariado por disposição expressa.

            Ao artigo 185 a Nova Lei acresceu um parágrafo único com a seguinte redação: “O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal”.

            Assim, comparecendo em Juízo espontaneamente ou em razão de ter sido preso,[4] a necessidade do interrogatório é manifesta, até porque, agora, mais do que antes, está evidenciado na lei, embora não expresso, que tal ato constitui especial meio de defesa,[5] conforme analisaremos mais adiante.

            Outra inovação trazida com a nova redação do artigo 185 decorre do disposto em seu parágrafo segundo, que assim determina: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor”.

            Salutar a previsão, que contém regra impositiva, a indicar uma obrigação e não mera faculdade conferida ao Magistrado.

             Salientada a nova orientação do interrogatório com maior amplitude na atuação defensória, era imprescindível assegurar o direito de entrevista reservada, ocasião em que o acusado poderá receber orientação técnica de seu defensor, nomeado ou constituído, a lhe propiciar maior segurança e meios de defesa.

            2.2. Sobre o novo art. 186

            A regra anterior continha a seguinte redação: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

            Segundo o regramento novo: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.

            Ao referido dispositivo foi acrescido um parágrafo único com a seguinte redação: “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.

            Nesse passo é importante destacar que desde 05 de outubro de 1988 o art. 5º, inc. LXIII, da Constituição Federal, passou a assegurar aos acusados o direito ao silêncio. Trata-se do que se convencionou chamar “silêncio constitucional”.

            Desde então já se tem por certo na doutrina e jurisprudência que a regra do art. 186 do CPP não prevalecia no ordenamento, no tocante à possibilidade do “silêncio ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Mesmo assim, na prática, muitas vezes não é isso o que se vê.

            Cuidou o legislador, agora, de deixar expresso o que já estava claro para aqueles que haviam deitado reflexões sobre o texto constitucional, que não é de data recente.

            2.3. Sobre o novo art. 187

            O art. 187 do CPP, que foi derrogado, tinha a seguinte redação: “O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”.

            A matéria que era tratada no art. 187 passou a ser tratada no atual art. 188, e a que estava no 188 passou a ser cuidada no atual art. 187, também com modificações.

            A nova redação do art. 187 vem nos seguintes termos: “Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos. § 1o Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais. § 2o Na segunda parte será perguntado sobre: I – ser verdadeira a acusação que lhe é feita; II – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela; III – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta; IV – as provas já apuradas; V – se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; VI – se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido; VII – todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; VIII – se tem algo mais a alegar em sua defesa”.

            2.4. Sobre o novo art. 188

             Cuidava o antigo art. 187 de não permitir o contraditório no interrogatório, e tal impossibilidade fora reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal,[6] sendo que tal posicionamento agora deve ser revisto, porquanto mitigada a rigidez anteriormente expressa.

             Conforme asseverou Damásio E. de Jesus ao tempo da antiga redação, não era de se admitir a intervenção da defesa no interrogatório, tampouco do Ministério Público.[7] Mesmo assim diversos autores ousaram atacar com fortes e inteligentes argumentos a inflexibilidade da regra, existindo sobre o assunto excelentes trabalhos publicados, cumprindo destacar dentre eles substancioso artigo do advogado Renato de Oliveira Furtado.

            Outro excelente trabalho publicado sobre o tema segue assinado pelo então Promotor  de Justiça, o Jurista Dr. Fernando Yukio Fukassawa, intitulado: Interrogatório judicial e o contraditório.[8]

            A Nova lei diz que a redação do art. 188 do CPP passa a ser a seguinte: “Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.

            De logo se vê que agora o defensor e também o Ministério Público ou o querelante (“…o juiz indagará das partes…”), poderão influenciar, de algum modo, ao menos nas perguntas.

            É bem verdade que não se deve entender que a Lei autoriza às partes “intervir ou influir” diretamente nas perguntas feitas pelo juiz ou nas respostas apresentadas pelo acusado, de forma a procurar mudar uma ou outra.   Também não se autorizou a formulação de perguntas pelas partes ao acusado.

            O que está autorizada legalmente, no momento indicado e na forma evidente, é a indicação de fato a ser esclarecido, decorrendo de tal indicação a possibilidade de nova formulação de perguntas ao acusado, sempre pelo magistrado que presidir o ato.

            Seja como for, é inegável que agora a lei passou a admitir, de algum modo, que as partes influenciem nas perguntas…

            Muito embora caiba ao juiz apreciar a pertinência e relevância da(s) pergunta(s) formulada(s), para depois refazê-la(s) ou não ao acusado, é certo que uma vez indeferida(s) deverá cuidar-se para que conste(m) do termo exatamente como formulada(s) pela(s) parte(s) e as razões do indeferimento, como garantia da ampla defesa, visto abrir-se a possibilidade de discussão em eventual ataque recursal sobre tal particularidade.

             2.5. Sobre o novo art. 189

             Diz o novo artigo 189: “Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimento e indicar provas”.

            Tal regra vinha disposta anteriormente no parágrafo único do art. 188 do CPP, e houve modificação não só na disposição topográfica, mas também na redação.

            A mudança torna a regra mais flexível e ajustada à nova conotação que se dá ao interrogatório dentro do processo. Antes, negando a imputação no todo ou em parte, o acusado deveria ser convidado a indicar as provas da verdade de suas declarações. Era como que se tivesse que provar que não havia praticado a conduta, total ou parcialmente, inobstante a presunção constitucional de inocência e o inegável ônus de provar a acusação que pertence ao Ministério Público, na ação pública, e ao querelante, na ação penal privada.

             Afastada qualquer discussão sobre as decorrências que a regra impunha, e seus efeitos, tem-se agora que não há para o acusado qualquer ônus de indicar provas “da verdade de suas declarações”. Poderá, entretanto, prestar esclarecimentos a tal respeito e indicar provas. Trata-se, agora, de uma mera faculdade, quando antes parecia um dever, disfarçado pela quase suavidade da palavra “convidado”.

              2.6. Sobre o novo art. 190

              A redação antiga era nos seguintes termos: “Se o réu confessar a autoria, será especialmente perguntado sobre os motivos e circunstâncias da ação e se outras pessoas concorreram para a infração e quais sejam”.

            Agora, diz o novo art. 190 do CPP: “Se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam”.

            Antes, confessando a autoria, o réu era especialmente perguntado sobre os motivos e circunstâncias da ação. Agora, nas mesmas condições, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato.

             Retirou-se a palavra “especialmente”, extraindo-lhe a importância anteriormente dada em detrimento de outros questionamentos, e reconhecendo-se que uma infração penal pode ser praticada não só por “ação”, ajustou-se o  texto trocando a palavra ação pela palavra fato, que aqui tem a conotação de ação ou omissão.

            De relevante, ainda, cumpre destacar, por aqui, a delação não premiada, e é cediço que a delação de co-réu que, confessando a prática do delito indica seu comparsa, tem validade como prova em detrimento deste último.[9]

             2.7. Sobre o novo art. 191

            Dispõe o novo art. 191 do CPP que “havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”.

            Tal regra vinha prevista no antigo art. 189, nos seguintes termos: “se houver co-réus, cada um deles será interrogado separadamente”.

            Aprimorada a redação, nada de substancioso se modificou em termos jurídicos. 

            2.8. Sobre os arts. 192, 193 e 195[10]

           O novo artigo 192 estabelece regras para o interrogatório do mudo, do surdo ou do surdo-mudo. A matéria era tratada por artigo de igual numeração.

            O art. 193 trata do interrogatório daquele que não fala a língua nacional, e enquanto pela redação antiga, ditada pelo artigo de igual numeração, o interrogatório era feito por intérprete, agora ele passa a ser feito por meio de intérprete. Assim, cumprirá ao juiz competente proceder ao interrogatório, por meio de intérprete.

             Acrescente-se que mesmo que o juiz tenha o domínio da língua estrangeira falada pelo réu, a presença de intérprete será imprescindível caso a defesa não disponha de igual conhecimento e formação, sob pena de violação do princípio constitucional da ampla defesa.

            Por fim, o art. 195 diz que “se o interrogado não souber escrever, não puder ou não quiser assinar, tal fato será consignado no termo”.

             2.9. Sobre o novo art. 196

             Dispõe o novo art. 196 que: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”.

            De extrema valia defensória a nova regra.

           Com efeito, antes não se facultava expressamente às partes a possibilidade de pedir a realização de um novo interrogatório. Restava ao juiz, apenas e tão-somente, agir de ofício, e é preciso reconhecer que, embora muitas vezes recomendado e necessário diante da prova colhida no curso da instrução processual, quase nunca se procede a um segundo e mais esclarecedor interrogatório, decorrendo de tal omissão, no mais das vezes, prejuízos irreparáveis.

            Agora a lei permite a postulação, que deverá ser feita de forma fundamentada, como fundamentada deverá ser a decisão que a apreciar, por imperativo constitucional, a teor do disposto no art. 93, inc. IX da CF, sob pena de nulidade.

            É bem verdade que a lei diz que o juiz poderá proceder a novo interrogatório, a revelar tratar-se de uma faculdade. De ver-se, entretanto, que se justificada a postulação, trata-se de um poder-dever, inclusive em homenagem ao princípio que determina a busca da verdade real.

            Feito o pedido, de forma fundamentada, e havendo indeferimento, entendemos deva a decisão ser atacada em sede de preliminar em apelação, por constituir matéria relacionada a cerceamento de defesa, se o pedido for defensório.

            Se o pedido negado tiver sido formulado pelo Ministério Público, também na mesma ocasião e pela mesma via poderá ser alegado eventual cerceamento de acusação.

             Entendemos que a questão não poderá ser apreciada em sede de habeas corpus, como por certo muitas vezes se pretenderá, por envolver valoração de prova, a escapar do âmbito estreito do remédio heróico. 

              2.10. Curador ao réu menor

              Dispunha o art. 194 do CPP que se o acusado fosse menor (maior de 18 e menor de 21 anos, obviamente), seu interrogatório deveria ser realizado na presença de curador.

            Com o advento do Novo Código Civil a maioridade civil que por idade era alcançada aos 21 (vinte e um) foi rebaixada para os 18 (dezoito) anos de idade.

            Desde então, notáveis juristas, dentre eles Luiz Flávio Gomes e Fernando da Costa Tourinho Filho, passaram a sustentar que a regra determinou efeitos na legislação penal e processual penal. Um deles seria exatamente a revogação do art. 194 do CPP, situação agora confirmada, expressamente, pelo art. 10 da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, onde está expresso: “Revoga-se o art. 194 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941”.

             Superada a discussão, já não subsiste a necessidade de nomeação de curador ao réu menor de 21 (vinte um) anos.

3. Incidência imediata

            Conforme estabelece o art. 2º do CPP, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

            Na lição de Manzini, citado por Eduardo Espínola Filho,[11] “os problemas de direito transitório processual penal não se devem confundir com os de direito transitório penal substantivo (Trattato di diritto processuale penale italiano secondo il nuovo Códice, vol. 1º, 1931, página 162)”.

            O mesmo Espínola Filho acrescenta que “o princípio da aplicação imediata da lei processual penal, consagrado no Código, está na mais absoluta coerência das regras norteadoras do instituto do direito intertemporal, pelas quais não se sustenta a irretroatividade de leis processuais”.[12]

            O art. 9º da Lei 10.792/2003 dispõe que a mesma entra em vigor na data de sua publicação, tendo esta ocorrido em 02 de dezembro de 2003.[13]

            Pela regra geral estabelecida no art. 2º do CPP, aplicável à espécie, todos os atos processuais anteriormente praticados e que ela regula estão a salvo, não precisam ser renovados nos moldes da Lei Nova. Contudo, após a vigência do Novo Diploma, os atos praticados deverão observar a tipicidade, guardar conformidade com os modelos previstos, sob pena de nulidade.

4. Conclusão

          Embora passível de críticas em razão da não observância de uma melhor técnica de elaboração legislativa,[14] já que a Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, tratou de modificar textos da Lei de Execução Penal e também do Código de Processo Penal em seu corpo único, primeiro dispondo sobre modificações na Lei de Execução Penal, depois sobre modificações no Código de Processo Penal, para depois estabelecer outras regras que interessam à Execução Penal e já ao final, em seu art. 10, revogar dispositivo do Código de Processo Penal, é certo que se revela um valioso instrumento de defesa, na medida em que cuida de estabelecer, no que tange ao tema acima abordado, mecanismos que possibilitam efetivamente uma maior movimentação defensória, justamente em um dos primeiros e mais importantes momentos do processo penal: o interrogatório.

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[1] Sobre o tema, confira-se: STF, HC 51.913, DJU 2.9.74, p. 7012.

[2] STJ, RT 721/534.

[3] STJ, RT 683/359.

[4] Caso “o Juízo” não vá até sua presença, e na prática acreditamos que no mais das vezes tudo continuará como está, ou seja, os interrogatórios continuarão a ser feitos no Fórum, em Juízo, e não nos estabelecimentos, isso em face da inegável ausência de segurança. Aliás, no Estado de São Paulo o Poder Judiciário baixou regra desobrigando os Juízes de Execução Penal de comparecer mensalmente nos estabelecimentos penais, contrariando, inclusive, a Lei de Execução Penal (art.66, inc. VII).

[5] O que não afasta dizer que também é meio de prova, até porque a defesa se movimenta nos autos produzindo prova em benefício do acusado.

[6] RT 731/542.

[7] JESUS, Damásio E. de. Código de Processo Penal Anotado, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 154.

[8] RT 676/403.

[9] RT 536/309.

[10] “Art. 194 – revogado”.

[11] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Rio de Janeiro: Borsoi, vol. I, 3ª ed., 1954, p. 163.

[12] Ob., cit., p. 165.

[13] D.O.U. de 02 de dezembro de 2003, p. 2.

[14] Não se observou, por exemplo, o disposto no art. 7º, inc. I, da Lei Complementar 95/98.

  


Referência  Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mestre em Direito Penal, Político e Econômico; Especialista em Direito Constitucional; Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós); Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo; Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia; Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP); Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP); Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal; Membro da Comissão Regional de Bioética e Biodireito da OAB/São José do Rio Preto-SP e Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001) e Tóxicos – Leis 6.368/76 e 10.409/02 anotadas e interpretadas (Saraiva, no prelo).

rmarcao@terra.com.br

O Direito, as funções do Estado e a importância do Poder Judiciário

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* Marco Aurélio Paganella          

            A despeito de evolução, Charles Darwin (1809-1882), naturalista e biólogo inglês, legou a huma-nidade a chamada teoria evolucionista ou seleção natural. Por analogia, FERREIRA (1999:606) explica que "Darwinismo social é a corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do séc. XX, ou a doutrina por ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia darwinista de evolução (como as de seleção natural, luta pela existência e sobrevivência do mais apto) ao estudo e interpretação de vida humana em sociedade."

            Por falar em sociedade – sempre tendo em vista os aspectos evolutivos que permitiram o surgimen-to, a proliferação e a consolidação da posição do homo sapiens sapiens no planeta Terra perante todos os outros seres vivos –, BASTOS (1998:03) diz que "É um truísmo (é uma verdade) afirmar-se que o homem é um animal social. Com efeito, tem sido esta sua situação em todos os tempos, a de viver em sociedade."

            Destarte, decorrido o período marcado pelo nomadismo, os seres humanos passaram a viver em es-tado gregário e relativamente unidos pelo sentimento de consciência de grupo em certa faixa de tempo e de espaço. A partir de então, as relações interpessoais emergiram sobremaneira, vale dizer – sem entrar propriamente no mérito e, tampouco, objetivando-se esmiuçar o assunto –, viver em coletividade sig-nificava respeitar limites impostos por normas comuns a todos. BRUNO NETO (1999:402) ensina que "os elementos constitutivos ou essenciais da sociedade são: materiais = homem e base física. O homem é o elemento fundamental da sociedade. A base física é a sede, o lugar onde se desenvolvem as relações sociais; formais = normas jurídicas ou poder. Essas normas organizam as sociedades e disciplinam o comportamento de seus associados. O poder é natural a todas as formas de organização social, como imperativo de coordenação e de coesão. As normas seriam inócuas, se desprovidas de força capaz de executá-las. Sem o poder, a sociedade descambaria para o caos."

            A história, em numerosas passagens, mostra que o poder não foi exercido da melhor forma, ao contrário! Déspotas, tiranos, ditadores e outros cognomes pejorativos denotam o uso inadequado do poder, isto é, somente para a satisfação pessoal dos mesmos, entre outras ‘benesses’. Noutra parte, como salienta BASTOS (1998:03), "é inegável que, tornando-se os homens responsáveis não só pela sobrevivência pessoal, mas também pela resolução dos problemas que permitissem a manutenção e a sobrevivência do grupo social, deu-se lugar aí a uma função voltada aos interesses da coletividade, à resolução dos problemas que ultrapassam os indivíduos, os problemas transpessoais, os problemas coletivos enfim. Trata-se do aparecimento do político", este, ago-ra, nesta acepção, visto com bons olhos.

            No que concerne ao exercício do poder, o mesmo CELSO BASTOS (1998:04) assevera que "Com o surgimento do problema do poder emerge também o daqueles que vão desempenhar a função política. É certo que nessa época se poderia estar muito longe da institucionalização do poder tal como conhecido no mundo moderno; o processo do exercício do poder afigurava-se entremeado com outros aspectos da vida social, por exemplo, o aspecto guerreiro e o aspecto religioso. Não se havia ainda ganho a autonomia do político. Mas o fato de ele não ter nessa época se destacado plenamente de outras funções não quer dizer que já não existisse uma função política."

            Sobre poder, CRETELLA JR. (1992:55) completa, dizendo que "o vocábulo "poder" é vocábulo equívoco, significando "Poder" (com "P" maiúsculo) e "poder" (com "p" minúsculo), o primeiro equivalente ao "Pouvoir", francês, o segundo equivalente ao "puissance". "Poder", com "P" maiúsculo, é cada um dos três Poderes – o Poder (Legisla-tivo, Executivo, Judiciário) –, e "poder", com "p" minúsculo, é uma "força que irradia de determinada fonte."."

            Ubi societas, ibi jus. Ora, como bem diz o brocardo, onde há sociedade, aí há direito. É óbvio a-firmar, pois, que sociedade, poder e direito são conceitos inalienáveis à estruturação humana em forma de agrupamentos. Desta maneira, é de bom alvitre conceituar o direito – de modo sintético, evidentemente –, tal como se fizera logo atrás com ‘sociedade e poder’. SILVA (2002:268) é claro ao dizer que "em seu sen-tido objetivo, propriamente derivado do directum latino, o direito, a que se diz de norma agendi, apresenta-se como um complexo orgânico, cujo conteúdo é constituído pela soma de preceitos, regras e leis, com as respectivas sanções, que regem as relações do homem, vivendo em sociedade. A característica dominante do direito, no seu sentido objetivo, está, portanto na coação social, meio de que se utiliza a própria sociedade para fazer respeitar os deveres jurídicos que ela mesmo instituiu, a fim de manter a harmonia dos interesses gerais e implantar a ordem jurídica."

            Na esteira do estudo logo atrás delineado acerca da sociedade, do poder e do direito, exsurge a questão do denominado Estado. Segundo MALUF (1995:19), o "conceito de Estado vem evoluindo desde a antigüidade, a partir da Polis grega e da Civitas romana. A própria denominação de Estado, com a exata significação que lhe atribui o direito moderno, foi desconhecida até o limiar da Idade Média. Foi Maquiavel quem introduziu a expressão, definitivamente, na literatura científica." Após diversas e pertinentes observações, o mesmo autor (1995:21) acentua que "O Estado, democraticamente considerado, é uma instituição nacional, um meio destinado à realização dos fins da comunidade nacional. De acordo com estes princípios, considerando que só a nação é de direito natural, enquanto o Estado é criação da vontade humana, e levando em conta que o Estado não tem autoridade nem finalidade próprias, mas é uma síntese dos ideais da comunhão que ele representa, formulamos o seguinte conceito simples: O Estado é o órgão executor da soberania nacional."

            BASTOS (1998:05) assevera que "O Estado – entendido portanto como uma forma específica da sociedade política – é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder." O mesmo BASTOS (1995:10) complementa, descrevendo que "O Estado é a organização política sob a qual vive o homem moderno. Ela caracteriza-se por ser a resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente."

            Prosseguindo-se na redução epistemológica a que se propôs, no sentido de ‘comentar a noção de Poder Judiciário…’, tem-se, com TAVARES (2002:727), que "O "poder" ou, mais rigorosamente, as funções podem estar divididas entre diversos entes políticos dentro de um mesmo Estado. Trata-se da repartição vertical do "poder", como comumente é chamada e pela qual é possível identificar um Estado federal. O Estado denominado federal apresenta-se como o conjunto de entidades autônomas que aderem a um vínculo indissolúvel, integrando-o. Dessa integração emerge uma entidade diversa das entidades componentes, e que incorpora a federação." O autor põe termo ao pensamento, declarando que "No federalismo, portanto, há uma descentralização do poder (aqui é possível vislumbrar claramente a presença do aspecto democrático peculiar à federação suscitado no bojo da questão em comento), que não fica represado na órbita federal, sendo compartilhado pelos diversos integrantes do Estado. Todos os componentes do Estado federal (sejam Estados, distritos, regiões, províncias, cantões ou Municípios) encontram-se no mesmo patamar hierárquico, ou seja, não há hierarquia entre essas diversas entidades, ainda que alguma seja federal e outras estaduais ou municipais."

            ARAÚJO (1999:178) explica que "Todas essas entidades são dotadas de autonomia (pautada na já reconhecida soberania no plano do Direito Internacional) e possuem o mesmo patamar hierárquico no bojo da Federação." O mesmo (1999:179/197) escreve que "a manutenção dessa autonomia como o exercício dela serão objeto do acordo federalista, que, ao menos, deve vir vazado nas cláusulas a seguir expostas: repartição constitucional de competências e rendas; possibilidade de auto-organização por uma Constituição própria; rigidez constitucional; indissolubilidade do vínculo/pacto federativo; participação da vontade das ordens parciais na elaboração da norma geral; representação pelo Senado Federal; intervenção federal nos Estados/nos Estados-membros; existência de um tribunal constitucional/o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição."

            Não obstante todas estas entidades e subdivisões, ARAÚJO (1999:227) é enfático ao afirmar que "O Poder é uno e indivisível. Em outras palavras, o poder de determinar o comportamento de outras pessoas não pode ser fracionado. Assim, a edição de uma lei, de um ato administrativo ou de uma sentença, embora produto de distintas funções, emana de um único pólo irradiador do poder: o Estado". Com efeito, continua o autor, "a função legislativa pode ser definida como a de criação e inovação do ordenamento jurídico; a função executiva tem por objeto a administração da coisa pública; a função jurisdicional é a voltada para a aplicação da lei ao caso controvertido."

            A respeito da independência e da harmonia entre os poderes, depois de já estabelecer que o poder é uno e indivisível, mas ‘dividido’ em funções, ARAÚJO (1999:228) narra que "Essas funções do Estado, depois de identificadas enquanto tais por Aristóteles, foram ao encontro do pensamento de Montesquieu, em seu célebre trabalho O espírito das leis. A grande inovação na obra de Montesquieu consistiu exatamente em demarcar que tais funções deveriam ser exercidas por órgãos distintos, estabelecendo uma divisão orgânica do Estado. A idéia subjacente a essa divisão era criar um sistema de compensações, evitando que uma só pessoa, ou um único órgão, viesse a concentrar todo o poder do Estado…. , estaria criado, portanto, o sistema de "freios e contrapesos", pois, tais poderes – os órgãos do Estado – deveriam inter-relacionar-se de forma harmônica, mas cada qual mantendo o respectivo âmbito de independência e autonomia em relação aos demais." KARL LOEWESTEIN (In MARTINS:1992, 54) mostra que "La dicotomía fundamental aquí propuesta de distribuición y concentración en el ejercicio del poder político sugiere un examen crítico de uno de los dogmas políticos más famosos que constituye el fundamento del constitucionalismo moderno: la así llamada ‘separación de poderes’, esto es, de los ‘poderes’ legislativo, ejecutivo y judicial."

            No dizer de MORAES (2002:1276), "O Poder Judiciário é um dos três poderes clássicos previstos pela doutrina e consagrado como poder autônomo e independente de importância crescente no Estado de Direito, pois, como afirma Sanches Viemonte, sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais, pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da Constituição, com a finalidade de preservar basicamente os princípios da legalidade e da igualdade, sem os quais os demais se tornariam vazios. Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado democrático de direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois, a chave do poder do judiciário se acha no conceito de independência. Assim, é preciso um órgão independente e imparcial para velar pela observância da Constituição e garantidor da ordem na estrutura governamental, mantendo em seus papéis tanto o Poder Federal como as autoridades dos Estados Federados, além de consagrar a regra de que a Constituição limita os poderes dos órgãos da soberania." Esclarece que "A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, i. é, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses. Portanto, a função jurisdicional consiste na imposição da validade do ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez que houver necessidade." Este pensamento sintetiza com maestria a noção de Judiciário e, inegavelmente, é o parâmetro que contextualiza este Poder perante todos os outros aspectos trazidos à baila neste trabalho, desde o caráter evolutivo da sociedade humana, passando pelos conceitos de Direito, de Estado e de Poder, até chegar nas Funções, especialmente a do Poder Judiciário, na perspectiva de sua centralidade e no sentido de constituir o Brasil num Estado Democrático de Direito.

            Não resta a menor dúvida de que o Judiciário encerra em si um papel de vital importância na cons-trução supra delineada. Entretanto, ficou patente, também, que ele não é ‘o salvador da pátria’, vale dizer, sua relevância é proporcional aos outros elementos que compõem a Federação e a Democracia brasileiras. É um pilar, mas, não a base toda! Haja vista que andou muito bem na questão da ADI 1.439-DF, quando ‘omitiu-se’, por duas vezes, no que se refere à contenda do salário mínimo. Na primeira, por compreender que está equiparado ao Legislativo e este, como Poder Político do Estado, tem a sua própria autonomia, não sendo passível, pois, de sofrer este tipo de ingerência. Na segunda situação, porque respeitou o Poder Executivo quanto ao aspecto orçamentário, ou melhor, o aritmético. É sabido que o salário mínimo do/no Brasil é irrisório: para quem recebe! E para quem paga? Como ficariam as empresas e o próprio Estado, como empregadores, se o salário fosse o que todos desejam? Seria possível, ou estar-se-ia ‘legislando’ so-bre ‘coisas irreais’, do mesmo modo que no processo civil não são possíveis os ‘pedidos impossíveis’?

            É plausível que o Judiciário possa, um dia, determinar que o ganho mínimo de cada um seja tanto quanto for necessário, do modo como está determinado na CF/88. Mas, neste caso, é necessário ponderar, com bom senso, entre o ideal e o ‘real’. No caso em tela, infelizmente, esta realidade ainda prevalece em detrimento do que diz o inc. IV, do art. 7.º, da CF/88. Ademais, não é o ideal, mas é o real: os que conse-guem bom êxito em seus ganhos, os auferem em face a outros cálculos que não os vinculados ao salário mínimo, mas acima deste. É uma constatação e é um retrato cruel do que ocorre realmente: mas é fato.

            A jornalista MARIANA SGARBONI (Revista Superinteressante/Jun-03, p.30.) dá números à tese a-presentada ao descrever que "se tivéssemos uma distribuição de renda perfeita, é importante saber que ninguém seria rico (não seria necessário tanto, bastaria o suficiente a todos para uma existência digna). Pelo atual padrão de renda no país, se toda riqueza produzida em um mês fosse dividida pela população economicamente ativa, dariam 600 reais para cada trabalhador". Quem se habilita a ‘dividir’ a sua renda? Rememora-se, pois, aquela ‘velha história’ de que ‘falar é fácil, fazer é que é difícil’! E o Judiciário, certamente, não tem o condão de transformar o mundo e, tampouco, promover o bem social somente por via de sentenças: há que se respeitar os limites do bom senso, da aritmética, dos mecanismos da lógica racional e a inteligência de todos. Somente assim o Poder Judiciário atuará – não obstante, como disse o Ministro Moreira Alves (In II Fórum Jurídico: 1990, 194), a presença dos "demônios da Justiça: a demora e a carestia" – como verdadeiro instrumento no sentido da construção do Brasil como um Estado Democrático de Direito.

            É preciso, pois, ter uma visão de futuro como a que teve o Prof. Ives Gandra há mais de 10 anos (In II Fórum Jurídico: 1990, 01), isto é, "com integração cada vez maior do direito, da economia, da sociologia, da política, de todas as ciência sociais que compõem o chão, o patamar, onde afloram os princípios constitucionais nossos." É preciso prosperidade, produção, tributação condizente, investimento, honestidade, seriedade, trabalho, poupança, moral, segurança institucional, não submissão aos países mais bem aquinhoados,….

            Para que seja possível ao Judiciário dizer o direito em todos os sentidos (para que todos ganhem o suficiente, inclusive) é necessária uma mudança positiva de todas as instituições, não só a do Judiciário.

            Precisa-se manter o que está correto e mudar o sistema no que for necessário! Somente assim haverá evolução, fazendo-se jus, pois, aos conceitos pertinentes à teoria de Darwin!

            Destarte, ter-se-á o Brasil como um real e verdadeiro Estado Social Democrático de Direito.

 

BIBLIOGRAFIA

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            ________, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. 942p.

  


Referência  Biográfica

Marco Aurélio Paganella  –  Advogado, Membro do Escritório Tancredo Advogados Associados S/C, Assistente em Direito Constitucional na Universidade de Santo Amaro – UNISA, Pós-graduando em Direito Constitucional e Tributário no Centro de Extensão Universitária – CEU

marcopaganella@adv.oabsp.org.br

Fecundação “In Vitro” com transferência embrionária: principais aspectos éticos e legais

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* Juliana Frozel de Camargo

Resumo: Surgindo para auxiliar os problemas de esterilidade, as tecnologias reprodutivas, especialmente a técnica da fecundação “in vitro” com transferência embrionária, têm trazido desafios aos estudiosos dos mais diversos campos do conhecimento. No campo jurídico, os progressos não atingiram somente o casamento em si mesmo considerado, privilegiando a relação marido e mulher, mas afetaram a filiação que vincula uma criança a seu pai e a sua mãe. Até que ponto a biotecnologia “age” em benefício da humanidade? Quando parar? Surge a verdade afetiva no lugar da verdade biológica. No Brasil, percebe-se a lacuna jurídica nesta matéria, pois a única norma a respeito é a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Há uma disparidade entre a Ciência e o Direito o que tem gerado insegurança no âmbito familiar já que não existe, até o momento, um critério que  estabeleça a maternidade e paternidade no caso de utilização desta técnica. Diversos questionamentos éticos têm sido levantados e a discussão e conscientização em matéria reprodutiva deve ser incentivada para que os recursos tecnológicos sejam postos realmente em favor de toda a humanidade.

Palavras-chave: reprodução humana, filiação, lacuna jurídica, dignidade humana.


A família , desde a Antigüidade, é matéria de muita discussão e o modelo herdado do século XIX de uma família nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal vem sofrendo inúmeras transformações.

Um dos aspectos substanciais  da alteração do Instituto familiar se deu com a posição jurídica da mulher, que deixou de exercer a função de simples colaboradora do marido na direção da família , através do poder doméstico, para estar ao lado dele tomando em conjunto as decisões. Essa realidade foi confirmada pela Constituição Federal de 1988, que adotou o princípio da igualdade entre os cônjuges e não discriminação entre os filhos, alargando o conceito de família que ganhou destaque não só no casamento, mas também na união estável e ambientes monoparentais. Ressalte-se, também, o crescimento das relações homossexuais.

A esterilidade, reconhecida como uma doença que merece tratamento, sempre foi um grande problema na história da humanidade. Os casais que passam por este sofrimento psicológico e a angústia de não realizarem o sonho de ter um filho ainda enfrentam a discriminação da sociedade.

Com o surgimento das mais variadas técnicas da reprodução  humana assistida, esse problema tem sido contornado, mas outros surgiram e necessitam de rápida solução.

As transformações mais recentes sofridas no universo familiar, e que fizeram surgir a “Nova  Família”, são, sem sombra de dúvida, os avanços da biotecnologia, dando início à procriação  artificial,  tornando  realidade  o  sonho  de  milhões de pessoas estéreis – ter um filho. Embora a reprodução humana assistida tenha se iniciado há muito tempo com a prática da inseminação artificial, nos últimos anos conseguiu grande impulso a partir da prática, cada vez mais freqüente, da fecundação “in vitro” com transferência embrionária (FIVET).

Esta técnica supõe a união do óvulo e o espermatozóide em um laboratório; a fecundação se pratica em uma placa de cultivos sobre um óvulo previamente extraído, procedente da própria mulher ou de uma doadora e do sêmen que também pode ser procedente de um doador. Em seguida, transfere-se o embrião resultante ao útero materno através de um cateter.

Foi no ano de 1978 – mais precisamente em 25 de julho – fruto do trabalho da equipe inglesa, que nasceu na clínica Oldham de Londres, Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta” do mundo. No Brasil, esse sucesso foi alcançado em 7 de outubro de 1984, com o nascimento de Ana Paula, no laboratório de Fecundação “in vitro” do Hospital Santa Catarina em São Paulo.

Importante ressaltar que somente oito anos depois deste nascimento é que foi instituída norma a respeito dessas técnicas, a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Trata-se de uma norma ética-médica.

Apesar dos aspectos positivos desses avanços, como a felicidade do casal de ter filhos, percebe-se a transformação nos conceitos de maternidade e paternidade. Há crianças com três mães – uma genética (provedora do óvulo), uma de nascimento (que deu à luz) e outra chamada de social ou intencional (que efetivamente cria o bebê) – e dois pais – um genético (provedor de sêmen) e outro intencional. Casais estéreis podem trocar a paternidade biológica pela intencional e escolher as características dos pais genéticos e da mulher que vai gerar seu filho.

É neste ponto, dizem os especialistas em ética, que começam os problemas pois a prática está fazendo surgir, especialmente nos Estados Unidos, uma indústria da vida.

No Brasil, a obtenção de sêmen, óvulos e mães substitutivas ainda não virou indústria. Além disso, a Resolução do Conselho Federal de Medicina, que orienta os especialistas em reprodução, determina que a mãe substitutiva deve pertencer à família da doadora genética e proíbe também a venda de óvulos e sêmen.

Assim, os benefícios desses avanços têm trazido também problemas éticos e neste aspecto, entram as diversas indagações sobre o direito dos indivíduos sobre a vida, o direito de serem pais, a transformação do corpo em material de exploração e o ponto máximo em que se pode avançar nesta matéria.

O assunto leva a uma reflexão, sobre qual a prioridade que deve haver entre o biodireito e a bioética , deixando o próprio legislador perplexo diante das incertezas das decisões científicas. Percebe-se que os conceitos são transdisciplinares.

A questão é polêmica justamente porque diz respeito ao direito de reprodução. Diante deste contexto, a grande problemática é, sem dúvida, o descompasso entre o desenvolvimento das técnicas com as regras jurídicas, ou seja, quanto mais crescem as soluções para casos de esterilidade, maior se torna o problema jurídico.

Comprova-se a lacuna jurídica, a incompletude da ordem jurídica nesta matéria. Os adágios mater semper certa est e pater semper incertus est tornaram-se relativos conduzindo o jurista a se interrogar sobre a validade de certos princípios tidos como adquiridos e absolutos. Assim, o progresso científico também trouxe dúvidas sobre as regras de parentesco e sucessão.

O início da vida humana é um marco decisivo para a verificação da legitimidade ou ilegitimidade moral da manipulação de seres humanos, qualquer que seja seu estado de desenvolvimento. Acreditando que a vida humana tem início no próprio momento da concepção, ou seja, com o início da fertilização ou fecundação, começa, por sua vez, uma nova vida humana, única e irrepetível – as coisas então se complicam.

A difusão das novas tecnologias de intervenção sobre o processo da procriação humana nos faz pensar nos aspectos da filiação que agora se divide em filiação de fato e filiação de direito. Tudo isso gera problemas morais relativos ao respeito ao ser humano desde sua concepção: pode-se e deve-se desenvolver tudo que é científica e tecnicamente possível, em matéria de experiência sobre o homem e sua procriação? Como utilizar esses conhecimentos e técnicas em benefício da sociedade sem discriminações? Até onde podemos chegar? Dignidade humana?

Sem dúvida, é um desafio para a Justiça. Mais ainda, um desafio à ciência, a todo o passado e ao presente do gênero humano.

Percebe-se que a técnica em si já foi dominada no campo médico, e, ainda que haja pequenos problemas, esses com certeza serão superados pela ciência em pouco tempo. A grande polêmica está nos questionamentos ético-legais dela advindos. Será que também em pouco tempo esses problemas estarão resolvidos?

A saída para os problemas éticos é, sem sombra de dúvidas, a utilização desses conhecimentos de forma racional, respeitando-se os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, levando-se em conta todos os envolvidos e principalmente o novo ser que não pediu para nascer. Sem dúvidas, é preciso uma resposta comum para os problemas da biotecnologia que devem ser baseadas nas exigências de uma ética global.

Deve-se destacar que ao fazer referência à aplicação das técnicas de reprodução  assistida, sempre se fala do casal, nunca da vida humana futura, ignorando-se, com ou sem intenção, que todo ser humano tem direito a nascer dignamente.

É importante lembrar que os procedimentos para a técnica da fecundação "in vitro" com transferência embrionária possibilitaram outros benefícios, como por exemplo, a possibilidade de pessoas portadoras de HIV recorrerem a essas tecnologias tendo em vista o risco de contaminação através dos "meios naturais" de procriação, ou ainda, pessoas com doenças de natureza oncológica que deverão se submeter a tratamentos de quimioterapia e radioterapia, podendo perder a capacidade de fertilização, pudessem congelar seus gametas para uma futura utilização e realização de um sonho que poderia desaparecer não fossem os avanços da ciência reprodutiva. Daí a importância da divulgação e esclarecimento à população sobre as tecnologias reprodutivas e os benefícios que elas podem trazer à humanidade, se utilizadas de forma responsável e ética.

Embora existam algumas normas éticas, como a Resolução do Conselho Federal de Medicina, não há uma legislação específica para o assunto, deixando, muitas vezes, decisões muito sérias mercê dos médicos e leigos envolvidos. Ressalte-se, porém, a existência de diversos Projetos de Lei em andamento, mas que estão longe de manifestar uma posição pacífica e eficiente para a regulamentação das técnicas reprodutivas.

É claro que, paralelamente a uma legislação específica, deve existir um programa de divulgação e conscientização sobre as tecnologias reprodutivas para que fique esclarecido quando da indicação para seu uso, os benefícios que ocasionam e, principalmente, para que se evite o uso criminoso delas, já que toda pesquisa deve ter por objetivo não só uma relevância científica, mas, especialmente, relevância e contribuição social.

O Brasil carece de uma legislação apropriada para a questão da reprodução  assistida. A falta de disciplina nessa matéria põe em risco a saúde das mulheres e das futuras crianças, desorganiza parte substancial do Direito de Família e das Sucessões, bem como incentiva os pesquisadores às novas técnicas sem qualquer parâmetro de ética .

Diante de tantas transformações, o direito não pode “fechar os olhos” e manter a convenção tradicional de governo da família. É preciso que um novo direito surja e caminhe junto com essas mudanças, preocupado em criar as condições elementares à estabilidade dos grupos familiares, constituídos ou não, segundo o modelo oficial.

Os progressos científicos da prova da filiação paterna fizeram evoluir o critério da verdade afetiva, e o desenvolvimento genético nos afasta, paradoxalmente, da verdade biológica, tão somente considerada pelo mundo jurídico.

Outro ponto polêmico é saber se o embrião gerado “in vitro” pode ser equiparado e, portanto, ter os mesmos direitos que o embrião gerado “in vivo”, ou seja, no útero materno, já que o artigo 2º do Código Civil Brasileiro preceitua: “a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.

Não é pacífica a questão da equivalência do embrião ao nascituro. O Projeto de lei do Senado nº 90/99, apresentado pelo Senador Lúcio Alcântara, bem como seu Substitutivo de 2001, apresentado pelo Senador Tião Viana, estabelecem que não se aplicam aos embriões originados “in vitro”, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher, os direitos assegurados ao nascituro.

Embora a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº1358/92 não admita a destruição dos embriões excedentes, eles devem ser criopreservados, mas até quando?

O assunto, que antes fazia parte da intimidade das famílias, tornou-se interesse público, não podendo mais ser ignorado.

 As regras devem surgir não para coibir e impedir o progresso da biotecnologia  mas, sim, evitar abusos, discriminações e atos que tragam conseqüências ainda mais sérias, já que a inexistência de disciplina legal dá margem para a atuação de profissionais e clínicas inidôneas, e mesmo de meros agenciadores de vida humana, pelo desvirtuamento das técnicas reprodutivas, cujo essencial objetivo é socorrer a infertilidade humana.

É necessário que se crie uma legislação devendo, especialmente, preservar os valores éticos socialmente aceitos. Porém, uma norma legal para a utilização dessas técnicas deve acompanhar a sua modernidade, não podendo ficar vinculada a dogmas jurídicos ultrapassados, sob pena de incentivar processos clandestinos.

Há necessidade de se estabelecer vinculação e controle estatal junto aos laboratórios de pesquisa médica na área de reprodução  humana assistida, como forma de inibir a comercialização da técnica, promoção médica, e restrição do acesso aos métodos disponíveis, bem como proibir a formação de banco de gametas e embriões  sem uma fiscalização do Ministério da Saúde.

Antes de iniciar o procedimento das técnicas reprodutivas é imprescindível uma declaração, através de documento público, dos doadores de gametas e embriões , bem como da doadora do útero para expressar a concordância com a doação irretratável, renunciando da mesma forma a qualquer direito sobre a criança que venha a nascer, evitando um futuro embate entre  pais genéticos ou intencionais.

Este é um tema extremamente complexo e que no Brasil ainda é tratado como um problema privado, e não de ordem pública, o que parece ser um grande erro, tendo em vista tratar-se de vida! Envolve questões etiológicas que merecem reflexão, sem falar nos problemas sociais envolvidos e interesses mundiais de controle da população.

A linha básica das razões morais e jurídicas atuais parte da idéia da proteção dos direitos da pessoa. Se for possível melhorar a condição humana, curar enfermidades e aliviar o sofrimento, não parece haver razão para não seguir tal linha de atualização e investigação desde que não sejam violados os direitos de terceiros.

Ademais, a idéia de família moderna  não se restringe ao ato da procriação  ou revelação dos laços de sangue; há necessidade de outro elemento, caracterizado pelos laços de afeto. A idéia de pai e mãe passa a ser não só ato físico, mas, principalmente, ato de opção.

Embora a legislação pátria não adote de forma explícita a "posse de estado de filho", muitos doutrinadores acreditam que este pode ser o caminho para concretizar os elementos essenciais da relação filial.

Através destes novos desafios trazidos pelos avanços da ciência, percebe-se um processo de descentralização do Código e uma importante função da jurisprudência nestes casos.

As novas técnicas de reprodução assistida são altamente custosas, o que significa que muitos países de escassos recursos econômicos não apresentam essas técnicas na ordem de prioridades da política de saúde do Estado, e, por outro lado, as pessoas de baixa renda também não têm acesso a referidos recursos.

Diante de tantas mudanças surgem mais dúvidas que soluções e repensar a família  e a filiação  é um desafio que sugere refletir sobre a própria razão de ser do Direito.

Ponto quase pacífico é a necessidade de uma orientação psicológica para todos os envolvidos, esclarecendo-se as intenções e expectativas de cada um, para o sucesso da técnica. Como exemplo, os CECOS (Centros de Estudos e Conservação de Óvulos e Espermas Humanos) na França, que têm uma Comissão Psicológica para saber se o casal está realmente preparado para assumir tamanha responsabilidade, e, posteriormente, analisando-se, também, o desenvolvimento físico, psíquico e intelectual da criança.

O desenvolvimento tecnológico nesta área, de fato revoluciona nossas coordenadas de tempo e espaço. Podem existir “gêmeos” com anos de diferença, pode-se gerar vida após a morte, mulheres destinadas a serem “avós”, podem ser mães.

São imensas modificações que podem causar sentimentos de felicidade, mas também de indignação e terror se tais tecnologias forem utilizadas de maneira egoísta e errônea. Afinal, constatar que a humanidade possui em suas mãos a possibilidade efetiva de criar e manipular a vida é algo realmente assustador.

No entanto, apesar da medicina estar evoluindo a passos largos, os Tribunais brasileiros praticamente ainda não se manifestaram sobre casos concretos envolvendo questões decorrentes dessas técnicas.

A jurisprudência, em nível mundial, é paupérrima e a doutrina começa, apenas, a engatinhar. Em particular, no caso brasileiro, o novo Código Civil (art. 1.597, III, IV e V), apesar de reconhecer a realidade das técnicas reprodutivas, não contempla de maneira satisfatória as regras sobre essa temática.

Mas se é verdade que essas técnicas não são mais novidade para a medicina atual, então é indispensável discuti-las, questioná-las, despertar a consciência de todos para a necessidade de discipliná-las sob o prisma da legalidade, moralidade e ética .

Neste momento, todos os caminhos parecem perigosos, pois poderão nos levar a uma série de manipulações com os mais diversos fins. É fundamental que se estabeleça uma discussão séria em torno do assunto para que não se obstaculize o progresso de uma ciência que realmente esteja vinculada a fins positivos.

De tudo o que foi dito, não se deve inferir, de maneira alguma, a existência de qualquer atitude negativa para com a ciência, ou seja, com uma regulamentação o que se pretende não é subverter a ciência e o desejo do casal estéril, mas, sim, uma atitude positiva, consciente e não discriminatória com vistas a algo muito mais importante: o HOMEM e sua DIGNIDADE.

 
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[1] Artigo baseado na obra: CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana: Ética e Direito. Campinas: Edicamp, 2003.

  


Referência  Biográfica

Juliana Frozel de Camargo  –  Advogada; Mestre em Direito Civil; Professora de Direito Civil das Faculdades Integradas de Itapetininga; Membro da Comissão Organizadora e Revisora da Revista “Cadernos de Direito” – Mestrado em Direito – UNIMEP;  Membro do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental, Empresarial e Propriedade Intelectual – UNIMEP.  2004

camafroju@hotmail.com

O Direito como meio de pacificação social: em busca do equilíbrio das relações sociais

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* Marcos André Couto Santos

Sumário: 1. Introdução – 2. O direito e a sociedade: suas inter-relações – 3. O Direito, as formas de resolução de conflitos e a produção normativa: busca de alternativas – 4. O Direito na busca da semelhança e paz nas relações sociais: conclusões – 5. Bibliografia Referencial.

 


1. INTRODUÇÃO

            O direito, dentro do contexto atual, é mais observado pela maioria como um instrumento para manutenção da ordem e segurança do que como um meio efetivo de implementação da paz, harmonia e igualdade dentro da sociedade.

            Note-se, assim, que em especial o direito legislado/legal visa a perpetuar um status quo vigente, dando apenas guarida e preservando uma elite político-econômica dominante.

            Por exemplo, a mera análise dos diversos diplomas legais sobre crimes contra o sistema financeiro, crimes contra a ordem econômica atesta a suavidade das penalidades aplicadas se comparados a um pequeno furto de um pão para alimentação de uma família carente. (1)

            Esta e tantas outras distorções (2), baseadas na vigência de um direito dogmático, arcaico e cientificamente não desenvolvido com base em dados empíricos, conduzem a um desvirtuamento do fenômeno jurídico que acaba por se concretizar como uma maneira de controlar as classes menos apaniguadas, servindo para aumentar a distância entre os diversos atores sociais.

            No presente trabalho, objetiva-se tecer considerações sobre uma nova forma de produzir, aplicar, pensar e entender o Direito, enquanto fenômeno social, atestando algumas modificações que já vem sofrendo os ordenamentos jurídicos centrais e periféricos.

            Procurar-se-á, enfim, através deste estudo, mostrar que a principal função do direito é reduzir desigualdades, solucionando conflitos com base em dados empíricos cientificamente comprovados, plasmando em toda a comunidade um sentimento de agradabilidade (3) para o desenvolvimento da humanidade, com a perpetuação de sentimentos que aproximem cada vez mais os indivíduos e atores sociais, garantindo a paz, equilíbrio, segurança e harmonia. (4)

 

2. O DIREITO E A SOCIEDADE: SUAS INTER-RELAÇÕES

            O direito é um dos meios de resolução de conflitos existentes no seio de um grupo, sociedade, Estado. A presença do direito dentro da sociedade é tão sentido que já vem desde a época dos romanos expressa no brocardo: "ubi societas, ibi jus." (5)

            Deve o direito refletir os valores e sentimentos básicos a serem preservados dentro da contextura social. Aqueles valores e sentimentos que não podem ser afrontados sob pena de perturbar o equilíbrio das relações sociais, deixando um sentimento de desagradabilidade entre os atores sociais.

            Em sua evolução histórica, como produto da cultura humana, o direito, no início das civilizações, era bastante confundido com a religião e moral, adquirindo feições até místicas a serem respeitadas, sob pena até de banimento ou morte do indivíduo que as descumprisse. (6)

            Com o passar do tempo, cada grupo construiu suas regras e padrões de comportamento desejados visando à manutenção especialmente da ordem e da segurança. Não se tinha muito a idéia de justiça. As normas estabelecidas muitas vezes pela tradição cultural secular eram um meio de manter o grupo coeso com finalidade de enfrentar as guerras e produzir o sustento econômico. (7)

            O direito, nestes períodos primordiais da sociedade humana, tinha um cunho bem individualista, procurando não interferir tanto nas relações humanas, só atuando em casos de conflitos latentes, em especial aqueles ofensivos aos antepassados e às figuras veneradas como deuses.

            Bom exemplo disto reside na civilização greco-romana, onde surgiu o velho adágio: " dar a cada um o que é seu". Não se pensava tanto em interesses coletivos que não tivessem um conteúdo bem amplo, tais como: guerras, jogos.

            Com a Idade Média, as normas jurídicas passaram a ser impostas pelo Senhor Feudal, dono das terras e dos meios de produção, que ditava as regras dentro dos limites de suas propriedades, havendo enormes levas de servos que se submetiam com o objetivo de receber proteção e segurança. (8)

            Aparecendo o Estado Moderno, deu-se a esta estrutura estatal, burocrática e centralizadora a função precípua de produzir as normas jurídicas que eram reduzidas a leis e códigos. Este Estado teria também o monopólio da jurisdição. (9)

            O direito, que se reduzia à lei, ganha neste momento a feição de dogma que não pode ser discutido, mas cumprido por todos. Este direito de início imposto pelo Rei (Monarca) passa depois a ser produzido pelas Assembléias ditas Populares, dentro da ideologia contemporânea da participação de todos no poder; restando, assim, refletida ideológica e topicamente a vontade popular na produção das normas jurídicas que irão salvaguardar os valores e sentimentos mais fundamentais para manutenção e continuidade das relações sociais dentro da evolução do grupo/Estado. (10)

            Entretanto, esta democracia é bem relativa, já que não se têm espaços efetivos/reais para que os menos favorecidos e culturalmente dotados de conhecimentos manifestem-se sobre o direito produzido e a ser elaborado por estas Assembléias Legislativas/Parlamentos, ditos redutos da democracia. (11)

            A forma como o direito desde a modernidade até os dias atuais vem sendo produzido, refletido, pensado e aplicado acaba tornando-o também um instrumento perverso da manutenção das diferenças, dessemelhanças e desigualdades. O direito, na maioria reduzido à lei, torna-se excludente, apenas voltado para iludir uma classe menos favorecida e estimular uma elite dominante. (12)

            Na maioria dos diplomais legais atuais, em especial em Estados Subdesenvolvidos, percebe-se um efeito meramente ideológico e simbólico das normas jurídicas. (13)

            Por exemplo, a Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu art. 7º, VI, estabelece que o salário mínimo deverá atender a todas as necessidades do trabalhador e do povo nas áreas de saúde, alimentação, cultura, habitação, etc… Esta norma ilude os menos esclarecidos, tendo um efeito simbólico ao tentar demonstrar que o Estado Brasileiro garante uma vida digna aos seus trabalhadores com base em uma remuneração que atende a todos os anseios. O que na realidade fática não ocorre, levando o direito a um descrédito e perplexidade.

            Normas, como a acima relatada, têm um latente cunho programático (14), enquanto delimitam objetivos do Estado e buscam garanti-los, não se efetivando na prática (eficácia social) por falta de cientificidade em sua elaboração e ausência de reflexão crítica quanto à sua aplicação e conseqüências.

            O efeito que estas normas acabam produzindo é de um sentimento de desagradabilidade, dessemelhança, exclusão, afastamento, exploração dentro do contexto social, servindo como meio de contenção de avanços sociais maiores, simbolizando uma ideologia de uma sociedade excludente, reacionária e extremamente desigual.

            A própria redução do direito à lei; o excesso da produção legislativa e suas anomalias; a demora na solução dos conflitos pelo Poder Judiciário; bem como a forma como são elaboradas as leis pelos Parlamentos, criam um direito sem cunho de cientificidade e de difícil implantação que serve mais para manutenção do status quo do que para redução de desigualdades entre os indivíduos e entes que compõem o corpo social. Vejam-se estas razões de desequilíbrio e descrédito acerca do fenômeno jurídico, abaixo delineados:

            Primeiro, o fato de reduzir-se o direito à lei é algo extremamente irracional, porque as relações sociais tem uma dinamicidade, uma evolução temporal e tecnológica cada vez maior que não se adaptam bem a uma realidade jurídica cristalizada em Códigos/Leis de dezenas de anos atrás.

            O direito tem de se adaptar rápido às mudanças para realizar seu objetivo basilar de manter em ordem, segurança e com paz a coletividade. Assim, reduzir o fenômeno jurídico só a lei é algo conservador e ultrapassado.

            Segundo, há um excesso de produção legislativa. No Brasil, por exemplo, milhares de normas de diferentes graus, níveis e espécies estão em vigor. O cidadão e operador do direito não sabem empiricamente o conteúdo de tantas leis e normas que servem como forma de impor valores e regras muitas vezes em total dissonância com a realidade fática subjacente, apenas servindo para estabelecer um controle através de uma elite político-econômica.

            Não bastasse isto, no Estado Brasileiro, ainda têm-se as famigeradas medidas provisórias que são uma imposição do Poder Executivo que cria estas normas jurídicas, muitas de cunho geral, sem discussão e análise prévia do Parlamento (povo em tese).

            Terceiro, o Judiciário é o principal ente procurado para resolver conflitos sociais existentes. Este muitas vezes demora anos para solver as pendências que lhes são apresentadas, decidindo por demais com base em leis já totalmente defasadas e contra o "espírito" e vontade popular, já que apegados a um legalismo fetichista e estrito.

            Quarto, as normas jurídicas de cunho geral (leis) são elaboradas pelos Parlamentos (Assembléias, Câmaras), formados por representantes escolhidos pelo povo. Entretanto, o processo de escolha já torna difícil o acesso a pessoas de todos os ramos/classes sociais, acabando-se por serem eleitos na maioria indivíduos da elite econômica ou com esta comprometida (vejam-se os custos para eleger um deputado/vereador/senador).

            Logicamente, estes parlamentares irão refletir as idéias e anseios desta elite dominante, produzindo leis que beneficiem e aumentem as diferenças existentes; deixando mesmo de produzir normas que beneficiariam as classes menos favorecidas.

            Neste aspecto, o Brasil oferece muitos exemplos. Existe aqui a tendência do Parlamento em criar normas mais favoráveis a elite, e mesmo omitir-se na produção de outras que afetariam as classes controladores/dominantes. Analise-se: Primeiro, as leis que disciplinam e tipificam os crimes contra a previdência social; crimes contra a ordem econômica e financeira são extremamente lacônicas e de difícil aplicação, podendo-se contar o número de empresários que estão presos por crimes cometidos contra estes bens jurídicos que afetam milhares de brasileiros (veja-se o caso da ENCOL, do Juiz Nicolau, dos anões do orçamento). Segundo, a legislação, além de frágil e de não se basear em dados de ciência empírica, muitas vezes recebe interpretações literais de Magistrados que não percebem o dano social que cometem ao manter em liberdade indivíduos que cometem tão grandes abusos contra a população brasileira. (15)

            Outra situação de deturpação do fenômeno jurídico ocorre quando o Poder Público produz normas e regras para salvar organizações financeiras falidas e mal geridas, utilizando-se para tanto de milhões de reais, quando alguns programas sociais não recebem sequer pequenas ajudas para desenvolver um papel relevante junto aos mais necessitados do Brasil.

            Um exemplo de omissão do Legislativo Brasileiro para favorecer as elites está na não regulamentação do art. 7º, I, da CF/88 (despedida arbitrária), nem do imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII). O primeiro que deveria ser regulamentado para evitar abusos em despedidas de trabalhadores, protegendo a grande massa de brasileiros. E o segundo que regulamentado traria mais numerário/dinheiro aos cofres públicos com uma maior redistribuição de renda, dando e implantando um efeito psicológico de monta para diminuição das desigualdades sócio-econômicas existentes.

            Enfim, a redução do direito à forma legislada (legal), com aplicação restrita por parte do Judiciário para solução das contendas, não atende ao anseio social, não atuando significativamente no sentido de diminuir as dessemelhanças existentes. (16)

            O direito legislado é imposto pelo Estado, atestando-se que mesmo em regimes ditos democráticos não se baseia o fenômeno jurídico em elementos empíricos que dêem ao direito cientificidade para refletir os reais valores e sentimentos de todo o grupo social. Servem precipuamente as normas jurídicas para atender a interesses desarrazoados de uma elite dominante, em sua maioria conduzindo a relações sociais de afastamento entre os indivíduos e grupos de uma sociedade.

3. O DIREITO, AS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS E A PRODUÇÃO NORMATIVA: BUSCA DE ALTERNATIVAS

            Pelo anteriormente visto, o Direito deve ser dotado e informado por elementos de ciência empírica que atestem quais os valores a serem preservados dentro de cada grupo social/estatal na busca de soluções para os conflitos subjacentes, visando a manter o equilíbrio nas relações sociais. (17)

            Destaque-se que a forma de resolução de conflitos a ser estimulada contemporaneamente não é mais a judicial. O Juiz, mesmo dito um ser imparcial, está bem distante faticamente da realidade das partes litigantes, aplicando um direito oficial também muitas vezes desconexo com os anseios sociais atualmente prevalecentes, não satisfazendo e acalmando empiricamente as partes que sentem nas decisões judiciais um "mal-estar", dito por alguns como necessário.

            Quantas vezes pragmaticamente fica-se desiludido e sem esperanças na resolução de uma pendência levada ao conhecimento do Judiciário ?? Quantas vezes não se questiona a respeito da utilidade desta forma de resolução de conflitos, debatendo-se sobre a justiça e coerência das decisões ??

            Popularmente, o Juiz é distante, conservador, conhecedor de todas as leis. Mas qual o Magistrado que conhece efetivamente a contextura social na qual se desenvolveu empiricamente um conflito ?? Na maioria das vezes, não conhecem mesmo !!!

            Além desta desilusão e falta de confiança no Judiciário, acrescente-se a própria lentidão dos procedimentos judiciais, ainda se questionando se só cabe ao Estado produzir as normas jurídicas a merecem guarida e proteção.

            O questionamento central pode ser o seguinte: consegue o Estado regular toda a vida social impondo normas gerais a uma realidade humana tão multifacetada e que se altera por demais tendo em vista o ambiente altamente tecnológico, globalizado e culturalmente diversificado vivenciado atualmente ??? (18)

            Realmente, o Estado avocou o monopólio da jurisdição e da elaboração das normas jurídicas há mais de dois séculos; não tendo, todavia, este modelo de um direito dogmático, impositivo e aplicado pelo Judiciário mais respaldo nos dias atuais.

            Atualmente, deve-se buscar a solução dos conflitos de um modo menos traumático possível, sempre tentando a composição das partes de forma amigável com base na realidade social que informa a pendência existente.

            Por isso, tem-se de valorizar as conciliações, arbitragem, comissões prévias de resolução de conflitos. Estas formas de resolução de pendências são mais coerentes, justas e democráticas. Isto porque as partes deverão resolver compor o conflito com base em uma conciliação na qual vão tentar evitar maiores tumultos e relações de afastamento e desagradabilidade, recompondo de imediato o equilíbrio social. (19)

            Caso não seja possível a composição, deverá o conflito ser submetido a julgamento por parte de comissões existentes dentro das empresas formadas por trabalhadores e empregadores (questões trabalhistas); comissões formadas por consumidores e lojistas (questões de consumo); comissões de bairro/comunitárias (questões de vizinhança, família). Estas comissões aplicariam o direito mais justo a cada caso concreto com base nos valores plasmados na legislação vigente e na realidade social subjacente.

            Estas Comissões aplicariam normas de equilíbrio, tentando resolver o conflito com base em regras jurídicas, éticas e morais que se apresentam perante o grupo com objetivo de manter a paz e a harmonia entre todos.

            Ao Judiciário, só se levariam as questões mais intrincadas e que exigissem realmente a análise tópica de dispositivos legais, tais como questões de controle de constitucionalidade das leis. Além disto, o Estado e o Judiciário também serviriam para conter abusos de poder na composição dos litígios através das formas conciliatórias, convencionais e de comissões.

            As normas a serem aplicadas nas conciliações, comissões e arbitragem não precisariam ser necessariamente as estatais, poderiam ser as normas previstas e prescritas por cada segmento específico, respeitando apenas o núcleo mínimo de direitos e garantias estabelecidas nas Constituições e Cartas Fundamentais de cada Estado.

            Este modelo (20) proposto é essencialmente científico, porque as normas aplicadas a realidades específicas refletiriam indubitavelmente os valores e sentimentos de cada segmento social. Além disto, a aplicação e adaptação das regras gerais às contexturas sociais reais conduziriam a uma maior aproximação, estampando um sentimento de agradabilidade perante o grupo, resolvendo-se os conflitos de uma forma coerente e justa, analisando a riqueza da lide em toda sua amplitude e complexidade.

            A resolução dos conflitos, com aplicação de normas gerais e específicas pela própria coletividade, conduziria a soluções mais eqüanimes e céleres dos conflitos, resultando numa pacificação ampla com conseqüente maior equilíbrio das relações sociais. (21)

4. O DIREITO NA BUSCA DA SEMELHANÇA E PAZ NAS RELAÇÕES SOCIAIS: CONCLUSÕES

            O objetivo precípuo do direito deve ser, então, a garantia da paz e do equilíbrio das relações sociais, evitando conflitos com fins de promover o desenvolvimento do grupo social (sociedade) com redução das desigualdades existentes.

            As regras jurídicas surgem no meio social, sendo testadas, comprovadas e baseadas em dados de ciência empírica que atestem a conformidade das normas com a realidade social posta, em especial refletindo os reais valores e bens jurídicos a merecer proteção por todos os que compõem o seio social. (22)

            A solução de conflitos deve se basear neste tipo de normas que surgem do contexto social, e refletem a própria essência do homem e do grupo em toda sua riqueza empírica. Os conflitos devem ter uma solução próxima da realidade (23) para não se criarem decisões artificiais, impostas e dissociadas da realidade empírica, distantes de dados de ciência que devem informar o direito.

            O direito deve ir além da dogmática, buscando aproximar as pessoas, implementado e permitindo desenvolver sentimentos de agradabilidade entre os diversos atores sociais.

            Um direito, delineado desta forma, acaba por ser um instrumento transformador da realidade social, pacificando conflitos por ventura existentes e mantendo o equilíbrio do grupo que atinge um nível maior de satisfação.

            Importante notar, todavia, que a produção de um direito legislado, com base empírica e em dados de ciência, que reflita o sentimento social de semelhança e ajude a produzir relações de interação social positivas de cooperação, só é possível no momento em que a sociedade tem interesse em reduzir as desigualdades existentes entre os diversos indivíduos, entes sociais.

            É necessário para surgimento deste direito real e vivo, estabelecedor da paz, harmonia e equilíbrio social, que não haja grandes distâncias sociais e econômicas entre os indivíduos que compõem a sociedade, para que possam todos compartilhar de semelhantes anseios e sentimentos de altruísmo e cooperação para se desenvolverem.

            Não havendo esta redução de desigualdades materiais, as classes sociais tendem cada vez mais ao afastamento, construindo a elite um direito imposto que refletirá apenas os anseios de uma pequena parcela do grupo, qual seja: os dotados de capacidade econômica e política. (24)

            Assim, para aplicar as idéias aqui expostas, com vistas à construção de um direito transformador e real, necessário se faz a diminuição das distâncias sócio-econômicas existentes. (25)

            No Brasil, já começa haver a tentativa de adotar um direito mais voltado à realidade social, desenvolvendo-se formas de composição de conflitos baseadas em conciliações, comissões, arbitragem, já referidos no item anterior, tendo também vários Juizes tomado consciência de seu papel, aplicando um direito alternativo, que, na realidade, é o direito formado por sentimentos gerais de agradabilidade que emergem do seio da sociedade.

            Como já ressaltado, a sociedade e o direito estão umbilicalmente ligados, sendo o direito uma forma de controle e solução de conflitos, visando a manutenção da harmonia, paz e equilíbrio das relações sociais.

            Este direito não pode se restringir ao Estado, nem tampouco à lei, é bem mais amplo (26), devendo ser informado por dados empíricos de ciência que reflitam processos sociais de aproximação, promovendo sentimentos de agradabilidade.

            A aplicação das normas que emergem dos grupos e dos valores fundamentais informadores de toda a sociedade, obtidos através de dados de ciência empírica e fatos, associada a soluções alternativas dos conflitos, em especial através de composições, conciliações, arbitragem, fazem surgir um direito novo, no qual se estabelece um sentimento geral de agradabilidade, paz e harmonia, apoiado em elevado grau de solidariedade humana.

            Espera-se que o direito, a sua formação e aplicação sofram influência destas premissas, para que efetivamente ocorra a transformação da realidade posta em benefício de todos os seres humanos, com uma evolução social, mental e espiritual.

5. BIBLIOGRAFIA REFERENCIAL

            ADEODATO, João Maurício. Pressupostos e diferenças de um direito dogmaticamente organizado in Boletim da Faculdade de Direito – Stvdia Ivridica, nº 48, Coimbra: Coimbra Editora, 1999/2000.

            AFTALIÓN, Enrique R. & VILANOVA, José. Introduccion al Derecho. 2. ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998.

            ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1994.

            BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.

            GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999.

            KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado (tradução de Luís Carlos Borges). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

            MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.

            ___________________________. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975.

            NEVES, Marcelo da Costa Pinto. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

            SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

            SOBRINHO, Elicio de Cresci. Justiça Alternativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

            SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992.

            ______________. Tempo do Direito Alternativo : uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

            SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981.

            SOUTO, Cláudio e FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito – leituras básicas de sociologia jurídica. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1980.

            WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

            _________________. Introdução Geral ao Direito – vol II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.

 


NOTAS

            01. Luís Alberto Warat afirma que as tradições e costumes jurídicos já trazem uma grande carga de dominação e controle social, sendo certas crenças e valores jurídicos tomados como verdades que só servem para iludir e subjulgar: " Resumindo: os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder." (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 15).

            02. Aqui, não se prega o fim da dogmática jurídica ou da filosofia diante de sua superação pela sociologia do direito. Ao contrário, os diversos âmbitos do estudo do direito devem ser analisados em busca de um maior amadurecimento teorético-científico. Esta opinião é coadunada com a de Machado Neto: " (…) o problema já não mais se coloca em termos de substituição, mas de coexistência pacífica entre a compreensão empírica da sociologia, a sistematização normativa da dogmática e a problemática estimativa da filosofia jurídica." (MACHADO NETO, Antônio Luís. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 59).

            03. Esta idéia de agradabilidade, a que tantas vezes nos reportaremos nesta monografia, está ligada ao postulado da semelhança entre os sentimentos, e idéias e vontades dos atores sociais, privilegiando as interações sociais de aproximação e coesão, gerando conseqüentemente uma maior conexão do direito com a realidade social posta, cf. SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 124.

            04. Deve-se buscar ao contrário do distanciamento uma aproximação, entendendo-se o direito enquanto regras de acordos sociais com base em dados de ciência. Cláudio Souto sintetiza a necessidade de interações sociais positivas para que possa o direito se desenvolver plenamente: " O princípio geral teórico seria o de que quanto maior a aproximação (ou menor a distância, o que é o mesmo) entre pólos de interação social, maior a favorabilidade ao direito. Basta notar que, essencialmente, um grupo social qualquer só o é na medida em que seus indivíduos se considerem semelhantes no que aceitam, e se aproximam, e não o é, na medida em que eles se consideram dessemelhantes no que aceitam, e se afastam. (…)" (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 24).

            05. Sobre uma evolução das idéias jurídicas ao longo da história da humanidade desde os tempos primitivos até a modernidade, entendida como o momento atual e não necessariamente o melhor, cf. AFTALIÓN, Enrique R. & VILANOVA, José. Introduccion al Derecho. 2. ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998, pp. 203 a 298.

            06. O Código de Hamurabi é um exemplo típico deste direito primitivo mesclado com a religião. As penalidades contidas são bem radicais, cultuando-se a chamada Lei de Talião. Vejam-se algumas penalidades: " se um homem furar o olho de um homem livre, ser-lhe-á furado o olho; se um médico tratar ferida grave do paciente com punção de bronze, e se ele morrer, terá as mão decepadas; se um arquiteto construir para outrem uma casa e não a fizer bastante sólida, se a casa ruir, matando o dono, o arquiteto deverá ser morto. Se o morto for o filho do dono da casa, deverá ser morto o filho do arquiteto." (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 290/291).

            07. Outros exemplos de cultura primitiva regulada por um direito arcaico são o Código de Manu e a Lei Hebraica que já trazem uma conotação mais humanista nas penalidades aplicadas, mas sofrem ainda extensamente a influência da religião, cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 290 e segs.

            08. O direito em qualquer momento histórico reflete a contextura social latente, em especial na Idade Média, conhecida como "Idade das Trevas". Cappelletti bem observa isto: " há razões e condicionamentos sociais e culturais que, em determinado contexto histórico, estão e operam na norma e na instituição, na lei e no ordenamento, e também na interpretação e em geral na atividade dos juizes e dos juristas." apud SOBRINHO, Elicio de Cresci. Justiça Alternativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 89.

            09. cf. ADEODATO, João Maurício. Pressupostos e diferenças de um direito dogmaticamente organizado in Boletim da Faculdade de Direito – Stvdia Ivridica, nº 48, Coimbra: Coimbra Editora, 1999/2000.

            10. A partir da Idade Moderna, as mudanças sociais passam a ser crescentes na sociedade humana e o direito sofre influências e também influencia tais modificações na contextura político-sócio-econômica. Machado Neto bem destaca esta mudança: " Outro aspecto da mudança cultural que afeta profundamente o direito é aquele de inovação, da criação de novas relações e formas de vida, seja que tenham sido trazidas pelo contato cultural ou pelo desenvolvimento imanente à própria cultura local. (…) Se o direito atua como conservação e modificação da cultura assimilada ou inovada, é um fomentador criador de novas leis, de novos institutos jurídicos e até de novos ramos do direito. Os exemplos são, nesse sentido, abundantes, particularmente através da inteira história moderna do Ocidente em que uma nunca vista aceleração do tempo histórico tem determinado um surto incomparável de mudança cultural." (MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 161).

            11. Warat entende não existir democracia atualmente, devido ao caráter excludente dos regime vigentes. Este autor assevera que faltam espaços para debates e efetiva participação, conduzindo o grupo a um totalitarismo evidente: " Enfim quero lembrar que o autoritarismo é sempre a ausência de teatro. Quando nos reconhecemos socialmente através de ordem, de identidades autoritárias, está faltando o palco, o espaço público para a grande atmosfera de festa que é a democracia como processo participativo. Daí que não se possa pensar em deslocar a ordem imaginária e discursiva do processo autoritário de reconhecimento das identidades sociais, sem fazer do lugar onde se fala, mas do que é falado, uma festa coletiva que prefigura o acesso autônomo do indivíduo como ator político." (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 357).

            12. Cláudio Souto, mesmo destacando as virtudes da filosofia da justiça, reproduz crítica ao direito posto, asseverando que este reflete mais o interesse do poder constituído: " As ideologias e as filosofias da justiça, da liberdade e da igualdade procuram há séculos explicar os desequilíbrios sociais, visando-se à construção, pela prática, de sociedades harmonicamente coesas. Mas seu discurso tem sido vago e, desse modo, pouco apto a contribuir para deslocar os centros reais do poder econômico e político, que, ao contrário, retiram desse caráter vago a possibilidade do uso da bandeira liberal a serviço de seus interesses. Assim é que defrontamos com concepções que – em nome mesmo da justiça e de um liberalismo de pretensos resultados populares – têm legitimado aquele poder real de poucos." (SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 19).

            13. Cf. NEVES, Marcelo da Costa Pinto. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

            14. Sobre a aplicabilidade das normas constitucionais e o caráter programático de boa parte delas, cf. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

            15. Kelsen em posição diametralmente oposta afirma que não pode o Juiz decidir os casos concretos com base em análise de particularidades e dados de ciência empírica. Veja-se a crítica do Mestre de Viena: " O que certo juiz decidirá num caso concreto depende, na verdade, de um grande número de circunstâncias. Investigá-las todas está fora de questão. Sem levar em consideração o fato de que, hoje, ainda estamos inteiramente desprovidos dos métodos científicos para realizar tal investigação." (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado (tradução de Luís Carlos Borges). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 251). Acredito estar equivocado o citado autor porque a análise empírica com base em dados de ciência permite a aferição de soluções mais justas perante cada caso concreto, por exemplo: o problema dos transgênicos; casamento de homossexuais, enfim os chamados "hard cases", na linguagem da doutrina norte-americana, só auferem soluções justas com a utilização de dados de ciência que apoiem e sirvam para fundamentar as decisões/sentenças.

            16. Infelizmente, a formação dos operadores do direito ainda se apoia numa visão do direito enquanto fenômeno restrito à lei. Deve-se mudar este paradigma para se apoiar o entendimento e aplicação do direito dentro de uma contextura social nova, veja-se a opinião de José de Oliveira Ascensão: " (…) cabe ao jurista, justamente porque ergue o sistema do direito que é, revelar as contradições que nele se inserem em relação aos princípios que exprime ou para que deveria tender; pôr a nu dissonâncias menos visíveis; desvelar os pontos em que a pretensa racionalidade do sistema é afinal a expressão de interesses espúrios e não de qualquer exigência superior. O que significa que o verdadeiro jurista é e só pode ser incômodo para os interesses instalados; e que a retórica dos lobbies é radicalmente incompatível com a construção científica do direito." (ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1994, pp. 179/180).

            17. Para superar as crises existentes, não é suficiente a edição de leis formais distantes da realidade social e de dados científicos. As normas jurídicas, para produzirem efeitos, devem ser baseadas em dados de ciência empírica. Bem claro é Cláudio Souto a este respeito ao asseverar que: " Na verdade, tudo indica que o desenvolvimento de uma ciência empírica do direito (que seja ciência não apenas de formas sociais, mas de conteúdos sociais) a estará conduzindo a esquemas conceituais menos imprecisos e, mesmo, a proposições genéricas, onde não se desconsidere a realidade empírica do ‘sentimento de justiça’ (sentido de agradabilidade em face ao que se acha que deve ser) operante socialmente." (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 20).

            18. Realmente, a complexidade das relações sociais atualmente é evidente; os interesses dos diversos atores sociais são bem divergentes, havendo relações de distanciamento bem fortes em especial diante das grandes diferenças sócio-econômicas existentes. Por isto, é vital a reintrodução do direito dentro destas relações complexificadas, superando o mito da estabilidade e aceitando até uma práxis alternativa de resolução de conflitos: " uma práxis jurídica alternativa significa, simplesmente, reintroduzir o direito no interior das relações sociais, isto é, analisar empiricamente e estruturar normativamente os interesses sociais. Isto supera a ilusória visão da estabilidade da ordem de imutáveis situações privilegiadas, sem distanciar-se o aplicador do justo." (SOBRINHO, Elicio de Cresci. Justiça Alternativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 100).

            19. Acaba-se com estas soluções breves e céleres resgatando a paz e a harmonia, produzindo uma maior interação social entre os entes, conduzindo a uma maior realização/efetivação do direito. Veja-se a lição de Cláudio Souto: " Interações sociais de competição, de conflito ou de hierarquização (todas implicando a preponderância da idéia de dessemelhança entre os interagentes), são, em si mesmas, processos de afastamento no espaço social. Assim, nelas não se forma clima favorável ao direito – a não ser quando essas interações previnam afastamento ainda maior (que passaria a existir sem elas). Já as interações sociais onde prepondera a idéia de semelhança e, pois, a aproximação entre os pólos interagentes (a exemplo das interações de cooperação), são sempre favoráveis ao jurídico." (SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo : uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 49).

            20. Quanto à expressão modelo, deve-se entendê-la como conjunto de valores e idéias aplicadas ao disciplinamento do fenômeno jurídico dentro de uma determinada realidade posta.

            21. Interessante observar que a busca da resolução dos conflitos no âmbito social através de formas alternativas, como arbitragem, conciliação, deve-se à crescente mudança social existente na contemporaneidade. Mudança social aqui é encarada como alteração de padrões de comportamento em face do estabelecimento de novos tipos de interação social. Bem ressaltam tal fato Lawrence Friedman e Jack Ladinsky: " A mudança social ocorre quando há alterações reconhecíveis nos padrões correntes de interação das relações pessoa-a-pessoa, ou quando emergem e se estabelecem novas relações." (SOUTO, Cláudio e FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito – leituras básicas de sociologia jurídica. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1980, p. 229).

            22. Cláudio Souto bem destaca a necessidade de um direito informado por dados de ciência empírica que, mesmo sendo formalmente estatuído, abra-se cognitivamente para a realidade empírica existente: " Como o direito é forma e conteúdo ao mesmo tempo, e inseparavelmente, se se lhe quer atribuir o máximo possível de segurança cognitiva, é preciso informá-lo de lógica em sua forma, e de ciência substantiva em seu conteúdo. E quanto mais rigorosa seja a ciência substantiva que informe o jurídico, maior, evidentemente, a segurança cognitiva deste." (SOUTO, Cláudio. Ciência e Ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 90).

            23. A evolução do conhecimento e o próprio progresso sócio-econômico geram maiores cobranças e conflitos multifacetados, impensados em outros tempos históricos. Tais conflitos clamam por soluções também diversas das estampadas em realidades pretéritas.

            24. Bem assevera Cláudio Souto sobre as dessemelhanças econômicas que ensejam uma ruptura e desequilíbrio nas relações sociais, sendo desfavoráveis à idéia de justiça/agradabilidade: " Naturalmente, o problema do desenvolvimento econômico e social não se coloca apenas em nível internacional – nível das dessemelhanças acentuadas entre os chamados países ‘desenvolvidos’ e ‘subdesenvolvidos’ ou ‘em desenvolvimento’- mas em nível nacional, com referência às nítidas dessemelhanças quanto ao ritmo de desenvolvimento entre regiões de um mesmo país (…) Essas dessemelhanças acentuadas, que provocam processos de afastamento nos seus espaços sociais, e que são típicas do mundo de hoje, conduzem internacional e nacionalmente a um equilíbrio social instável porque fechado a um desenvolvimento não só econômico, mas a serviço de semelhança social objetiva e subjetivamente mais profunda, capaz de, correspondentemente, provocar uma profunda aproximação nos espaços sociais internos e internacionais e, com isso, a estabilidade do equilíbrio nesses espaços. Entende-se aqui por espaço social simplesmente o espaço da interação social." (SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 175).

            25. A diminuição das distâncias sócio-econômicas conduziria a uma alteração de paradigmas existentes, tendo um efeito transformado no seio social. Veja-se: " Assim, o tipo ideal de um macrossistema social de maior abrangência, no sentido da favorabilidade ao direito, seria aquele em que houvesse um máximo de semelhança objetiva e subjetiva entre todos os seus interagentes e em que fossem todos esses interagentes socializados na idéia da semelhança essencial entre todos os homens. Desse modo, o sistema macrogrupal apresentaria o máximo de estabilidade e de abertura à mudança em seu equilíbrio." (SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1981, p. 133).

            26. A multivocidade do direito e sua relação com a sociedade não podem ser escamoteadas, mas reificadas constantemente dentro do contexto em que se realizam: " A sociedade então não pode ser definida como uma unidade substancial, mantendo-se, assim, indeterminada a natureza da sociedade. Uma sociedade democrática exige uma permanente reinvenção simbólica, baseada num trabalho de interrogação sobre as significações intertextualmente dadas."(WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 363).

  


Referência  Biográfica

Marcos André Couto Santos  –  Procurador Federal junto ao INSS em Recife (PE); Professor da FIR; Professor da Especialização em Direito Empresarial da UNICAP e Mestrando em Direito Público pela UFPE.

marcos@fir.br

Algumas linhas críticas sobre direito sucessório em face do NCC

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* Gisele Leite

A sucessão na técnica jurídica significa a transmissão de bens decorrente da substituição de uma pessoa por outra na titularidade de direito, pode operar-se a título gratuito, inter vivos ou causa mortis.  

Quando se refere aos direitos das sucessões relaciona-se àquela sucessão decorrente da morte e, excepcionalmente em vida, quando trata de partilha em vida e doações. 

Define-se o direito das sucessões como o conjunto de princípios jurídicos que disciplina a transmissão do patrimônio de uma pessoa que morreu, ou que é presumida morta, a outros, que são considerados seus sucessores.  

A razão de ser do direito sucessório existe em função do direito real, isto porque o patrimônio de alguém não pode se converter em res derelicta apenas com sua morte. A coisa não poderia simplesmente perecer sem ter seu titular. 

A expressão patrimônio como bem salienta Carlos Maximiliano envolve tanto o ativo como o passivo do falecido, requerido ou inventariado. Não há de se confundir e pretender enxergar no patrimônio todos os direitos existentes.  

Corroborando com tal entendimento, temos a existência dos direitos da personalidade, os direitos personalíssimos, os direitos de família puros que são intransmissíveis.  

Por tal razão, alguns doutrinadores preferem cogitar em patrimônio sucessível e não-sucessível.  

A sucessão pactícia é vedada tendo em vista o art. 426 do NCC dispositivo legal com idêntica redação do art. 1.089 do CC/1916. Todavia, tanto no velhusco Código Civil como também no Novo Código Civil há hipóteses que excepcionavam e, ainda excepcionam, como as doações aos nubentes (art. 314 CC/1916) e, a possibilidade de inclusão de sucessão de sócio no contrato social das sociedades (art. 1.042 CC/1916) que não foram repetidos pelo novo codex.  

No entanto, a partilha em vida é permitida e era pré-existente (no art. 1.778 do CC/1916) e foi relembrada pelo art. 2.018 do NCC e até mesmo ampliada, pois antes era faculdade do pai e agora dos ascendentes.  

A aversão aos atos jurídico causa mortis, só é excepcionada através do testamento e, em outras espécies contratuais como o seguro de vida.  

De qualquer maneira vige a vedação aos contratos causa mortis onde o evento morte atua como elemento acidental doa to jurídico. Nada impede que a morte seja até elemento necessário ao negócio.  

Para Carvalho Santos é proibida a disposição total patrimonial inter vivos, pois o declarante restaria privado de sua liberdade de testar. Também os que envolvem promessa que não deva ser executada, a não ser após a morte do promitente. Mas em função do art. 425 do NCC o caso foca fora da hipótese legal de proibição.  

Outra exceção é o usufruto vitalício onde há permissão legal (art. 1.400 § único do NCC) e outra exceção, a regra do art. 426 do NCC.  

Assim pontifica Carvalho Santos que é proibido:

Quer sejam realizados por alguém que disponha sobre sua própria herança;

Quer sejam realizados por alguém que disponha sobre os bens que irá herdar;

Quer sejam realizados por terceiros estranhos à herança;  

A razão da proibição dos pactos sucessórios é o fato de ser imoral vincular um ato jurídico à morte de alguém. O que produziria no beneficiário um interesse na morte do outro contratante. O pacto corvina até por segurança é vedado.  

No Direito Antigo havia várias espécies de pactos: o de simples instituição de herdeiros, pata de sucedendo; o pacto de sucessão mútuo de herdeiro, pacta mutua sucessione; e os pactos de disposição de herança (pacta de tertui dispositione); e, finalmente os pactos renúncia de herança (pacta de non sucedendo).  

No Direito pátrio desde as Ordenações do Reino tais espécies de pactos sucessórios são vedados havendo a exceção estipulada no contrato antenupcial que versava sobre a sucessão recíproca dos contraentes.  

A sucessão brasileira não admite em regra a forma contratual, mas em outros países é permitida como na Alemanha, Suíça e Áustria.  

As doações realizadas aos descendentes são computadas como adiantamento da legítima e não gozam da aversão legal, e inovando o Código Civil, atribuiu a mesma eficácia as doações de um cônjuge ao outro (art. 544 NCC).  

No entanto, o novo codex civil cometeu um pecadilho capital ao instituir a colação obrigatória dos descendentes beneficiados com doação, mas não ao cônjuge.  

O convivente também, não está sujeito à colação posto que é herdeiro necessário. Entretanto, pode sofrer verificação para efeito de excesso por via de doação inoficiosa (art. 548 NCC). É nítido o retrocesso que faz o novo codex ao desproteger a união estável, que passou ser chamada de entidade familiar.

Surge aparente um conflito entre o art. 544 e art. 1.829 do NCC, pois só há colação quando existe concorrência sucessória, somente alguns cônjuges estarão obrigados a cumprir o disposto do art. 544 do NCC.  

Difere a concorrência dos cônjuges com a herança dos ascendentes (art. 1.829, II NCC), pois não se fez distinção dos regimes matrimoniais. Em qualquer regime de bens matrimonial, o cônjuge que recebe a doação é obrigado a leva-la à colação quando concorre com ascendente do autor da herança.  

No entanto, quando concorre com descendentes é de se ressaltar que em havendo comunhão universal de bens que já garante parcela considerável da herança (cinqüenta porcento) dos bens do falecido, não participa da herança e, não se subordina à colação de bens doados com evidente prejuízo à prole.  

Também o parágrafo único do art. 551 do NCC que repete o art. 1.178 do CC/1916 traz a hipótese de pacto sucessório onde se vincula a transferência patrimonial da doação que os cônjuges recebem em comum em caso de morte, à parte deste acresce à do sobrevivente.  

Também são casos de pactos sucessórios a reserva vitalícia de usufruto (art. 1.400, parágrafo único NCC) a instituição de acréscimo de usufruto extinto pela morte de um dos usufrutuários (art. 1411 NCC), a cláusula de retorno de bens na doação (art. 547 NCC) e de fideicomisso (art. 1.951 e seguintes do NCC).  

Se tais situações não estivessem expressamente permitidas em lei, acarretariam nulidade ao ato jurídico face englobarem condições jurídicas impossíveis, o que pelo art. 123, I NCC é vício grave capaz de eivar de nulidade todo ato jurídico.  

Já em partilha em vida (art. 2.018 NCC) também apesar de representar outra exceção ao art. 426 do NCC há perfeita validade desde que respeitadas as regras sucessórias e, principalmente o respeito ao quinhão da legítima reservado aos herdeiros necessários.  

A sucessão anômala é aquela não regulada pelas regras normais do direito sucessório e, estão presentes no direito previdenciário (Lei 8.391/91) que prevê no art. 74 que a pensão por morte do segurado pela Previdência Social deverá ser rateada entre seus dependentes cujo rol é disposto no art. 16 do mesmo diploma legal que bem difere daquele da ordem de vocação hereditária da lei cível prevista no art. 1.829 NCC.  

É assim também com relação ao fundo de garantia por tempo de serviço (art. 20, IV, da Lei 8.036/90). A partilha do seguro de vida também se utiliza o conceito de beneficiário que não é herdeiro, e, sim o indicado como tal em contrato (art. 792 NCC).  

Dá-se, outrossim, sucessão anômala com a propriedade intelectual matéria atualmente regulada pela lei 9.610/98 e diferente da legislação anterior que beneficiava os filhos, pais, ou cônjuge por toda a vida.  

A transferência do direito autoral não se dá de forma absoluta, mas somente por setenta anos. E se não houver parentes sucessíveis cai a obra em domínio público. Assim não há sucessões nos moles cíveis e nem há o recolhimento do Estado no caso de direito autoral visto que cai em domínio público. Daí a presente onda de regravações para aplacar a eventual falta de criatividade contemporânea.

A sucessão dos concubinos é outro exemplo de anômala, pois é regida ainda pelas leis 8971/94 e 9.278/96 e, ainda pelos dispositivos do NCC(art. 1.790 NCC). Interessante notar que parecer ser possível então haver a concorrência sucessória entre o cônjuge e o companheiro pelos arts. 1.830 e 1.723 § 1o, combinado coma rt. 1.790 todos do NCC.

Separado de fato há mais de dois anos, sem culpa sua, o cônjuge sobrevivo tem direito hereditário (art. 1.830NCC), mas havendo entidade familiar, permitida pelo art. 1.723 NCC o companheiro sobrevivo também goza de direito hereditário. Então, nessa hipótese o famigerado concubinato impuro pelo lapso de tempo passará a ser puro.

Se concorrentes o cônjuge e o companheiro, a este, deve recolher apenas um terço dos bens conseguidos durante entidade familiar da qual participou.Se na concorrência com quem recebe em quarto lugar na vocação hereditária, merece igual solução.

A sucessão legítima é a que decorre de lei, e baseia-se na suposta (ou presumida) vontade do falecido quando deixa de testar, ou na hipótese de sucessão testamentária expressa.

Assim em função do art. 1786 as espécies de sucessão causa mortis são duas:

“a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”.

Enquanto a sucessão legítima possui vinte artigos, a testamentária possui 133 dispositivos legais. Deve-se ressaltar, todavia a maior regulamentação não significa, no entanto, sua maior utilização.

A sucessão testamentária não impede a sucessão legítima sendo as duas passíveis de coexistirem. Funcionando a legítima sempre como subsidiária à sucessão testamentária.

Desta forma, prevalecerá a sucessão legítima se o testamento é inválido ou ineficaz ou quando não se regula por ele toda a transferência patrimonial do sucedido (art. 1.786 NCC).

Não basta a vontade para verter em obrigatória a sucessão testamentária, deve esta ser a manifestada de forma solene, ou seja, por meio de um testamento ou de um codicilo.

Aliás, a definição codificada do testamento conforme preceitua o art. 1.626 CC/1916 é ato revogável pelo qual alguém, de conformidade coma lei dispõe, no todo ou em parte seu patrimônio, para depois da sua morte.”

Tal dispositivo não repetido no novo codex, embora sejam mantidas suas principais características conforme se depreende dos arts. 1.857 e 1.858 do NCC.

Já o codicilo não exige tantas formalidades como o testamento, aliás, a autora possui um pequeno artigo a respeito chamado “Considerações sobre o codicilo” (art. 1.881 NCC).

Grande repercussão é a inclusão do direito à herança como garantia constitucional ex vi o art. 5o, XXX da CF estando, portanto invalidades todas as excludentes de capacidade sucessória prevista no código civil. Ressalte-se que a regra é a capacidade, e a incapacidade, é a exceção.

Interpreta-se que a regra constitucional em tela visa não só prover o direito de propriedade de maior tutela como também de proteção absoluta o direito de herdar.

Questão assaz intrigante é o conflito existente entre o ditame constitucional que proíbe qualquer espécie de pena perpétua (art. 5o, XLVII e XLVI CF) a existência da indignidade e deserdação que são espécies de pena civil aplicadas de forma permanente, o que provoca uma calorosa discussão a respeito da validade da legislação infraconstitucional.

Também a paridade constitucional equiparando todos os filhos (art. 227, § 6o, da CF) implica na possibilidade de um filho ter dupla posição para recebimento de herança, é o caso do incestuoso que aparentemente pode disputar por direito próprio e, ainda por direito de representação pela mãe pré-falecida, o que afronta totalmente o princípio da igualdade dos quinhões hereditários.

O legislador pátrio optou pela capacidade sucessória do momento da abertura sucessória (art. 1.884 e 1.787 do NCC) e, art. 1.041 do NCC que manda que se regulem pelo Código Civil de 1916 as sucessões abertas durante sob sua vigência.

Algumas situações ensejaram maior ponderações, pois enquanto vigente o velhusco código de 1916 e, em face da equiparação dos filhos, é vexata quaestio o direito sucessório do filho cujo pai faleceu antes da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Resta indagarmos se haverá a aplicação do princípio da igualdade em relação às sucessões abertas e, em andamento. Constam, em direito pátrio, casos em que a lei modificativa de capacidade sucessória se fez aplicar às sucessões já abertas como aconteceu com os colaterais, principalmente por ser mais benéfica.

A aberta de sucessão é o momento da transmissão da herança, na sucessão causa mortis é com o falecido do sucedido e, nesse momento exato, ocorre o droit de saisine previsto anteriormente pelo art. 1.572 do CC/1916 e que encontra correspondente no art. 1.784 do NCC.

Silencia o novo codex quanto à transmissão do domínio e da posse, expressando doravante apenas transmissão de herança que abarca todas as espécies de direito e, não apenas os relativos à propriedade.

Não estabeleceu com precisão quando exatamente a transferência de direitos se opera, atinando somente com a abertura da sucessão.

A Lei 6.015/73 (a Lei de Registros Públicos) alterou a sistemática impondo a obrigatoriedade do registro também os atos de entrega de legados, de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento sumário quando não houver partilha (art. 167, I, 25).

Assim restou instituída a transferência instantânea da propriedade dos bens hereditários pelos arts. 1.784 e 1.791, parágrafo único do NCC, aos herdeiros legítimos e testamentários.Desta forma parece solucionada a questão suscitada pela Lei de Registros Públicos.

A transmissão imediata à abertura da sucessão dando à continuidade das qualidades contidas na posse, assim se a posse é indireta é deferida desta maneira quando não possa ser direta (art. 1.784 c/c/ 1.791 NCC).

É diversa a transferência do domínio e da posse da herança se diferente for sucessão, assim se legítimo o herdeiro recebe a posse e o domínio dos bens transmitidos imediatamente à abertura da sucessão, já os legatários não é transferida a posse dos bens que lhes cabem, por força do art. 1.791 do NCC, mas o domínio lhes é transmitido desde a morte do testador.

O texto de 1916 era mais preciso quanto à especificação de que o inventariante, no caso exercido pelo cônjuge sobrevivente, em regra tenha a posse dos bens até a partilha. O art. 1.991 NCC não cogita em posse e, sim, administração.

Quanto aos bens fungíveis (onde a posse e o domínio andam inseparáveis) sequer o domínio é transferido, só com o integral cumprimento do testamento. O mesmo ocorre com relação ao legado de coisa de ser adquirida pelo testamenteiro do de cujus somente quando adquirida, é que o legado é cumprido.

As disposições CC/1916 dispunham os animais silvestres podiam ser apropriados se feridos e perseguidos, embora apreendidos (art. 595 CC/1916), ou se ingressarem em imóvel particular (art.597 do CC/1916) dispositivos suprimidos e ausentes no NCC.

Existe em verdade uma falsa dificuldade em considerar aqueles que não tendo personalidade jurídica à época da abertura da sucessão, possam ser titulares de direitos hereditários nesse momento (art. 1.798, 1.799, I do NCC).

Expressa o art. 1.784 NCC que a herança é transmitida aos herdeiros, legítimos e testamentários. Na sucessão universal há transmissão da totalidade do patrimônio do de cujus, ou uma quota-parte ideal dele; já na sucessão particular ou singular apenas transmite-se apenas direito certo e, individuado só tem aplicação na sucessão testamentária.

A diferenciação conceitual entre herdeiro e legatário não é absoluta no art. 1.723 CC/1916 permitia no sucedido se transformasse herdeiro e legatário. O que, mormente está proibida pelo art. 1.884 do NCC e, reafirmada pelo art. 1.857, parágrafo primeiro do NCC.

O direito português e o italiano permitem o legado em substituição da herança legítima. Porém manteve o novo codex a partilha em vida art. 2.018, e o fato de serem herdeiros ex re certa os que desqualifica como herdeiros.

A mulher possui o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, sendo este o único direito a inventaria (art. 1.831 NCC), igual direito se estende à companheira por força da Lei 9.248/96, mas infelizmente assim não manteve o NCC.

Para Antonio Junqueira de Azevedo que enuncia o herdeiro que se caracteriza como continuador das relações jurídicas pelo sucedido.

Enquanto que o legatário recebe bens circunscritos, porém, não é um continuador patrimonial do de cujus. Tal diferença é relevante para a aferição da posse para fins de usucapião e, neste sentido o NCC em seus arts. 1.206 e 1.207 traz que a posse do sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor para os efeitos legais.

O legatário para alguns doutrinadores, é mero adquirente, apesar de que testamento de dar continuidade em suas relações jurídicas que deixa ao morrer. Portanto, a tese francesa de que somente o herdeiro é continuador patrimonial do de cujus é mais fantasiosa do que real.

O herdeiro ainda que necessário (legitimário ou reservatário) pode receber obrigatoriamente a herança salvo em caso de indignidade ou de deserdação. O lugar da abertura de sucessão é o último domicílio do falecido onde normalmente se encontram bens e negócios.

Excepcionalmente será competente o lugar onde se situam estes bens (art. 96 do CPC) e todas as questões sucessórias cingem-se ao local da abertura da sucessão. A unidade e a universalidade da sucessão exigem a concentração dos direitos hereditários em um só lugar.

Se, no entanto, se o falecido não tem domicílio certo se segue à regra contida no art. 12§ 1o, da LICC, o lugar da situação dos bens, e, se este variado, opta-se finalmente pelo lugar de seu falecimento (art. 96, parágrafo único, II do CPC). Todas essas regras não devem ser utilizadas de forma inflexível.

O Código Civil não permite a disposição da totalidade dos bens se existirem parentes na linha reta com capacidade sucessória.

Radbruch sublinha que o atual direito sucessório não passa afinal dum compromisso entre sistemas e princípios opostos.

Desta forma, não prospera a liberdade de testar que se opõe a legítima dos herdeiros necessários, a idéia de função econômica que justificaria a sucessão pela continuidade da unidade de bens apresenta-se em contrário, a regra da partilha que impõe divisão; e, principalmente, ao herdeiro, muitas vezes visto como continuador do de cujus, apresenta-se o legatário como mero recebedor de bens.

Tudo isto contribui para que o direito das sucessões seja muito complexo mais até do que é usualmente apresentado nos compêndios didáticos de direito civil.

Porém, nunca houve absoluta liberdade na indicação dos agraciados com a herança, a exemplo disto, temos a concubina impura. E o novo codex restringiu ainda mais a liberdade de testar, pois à parte que deve caber aos herdeiros necessários, a legítima, não pode mais constar do testamento (art. 1.857, § 1o, do NCC).

Porém, paradoxalmente manteve a partilha em vida (art. 2.018. NCC), se a sucessão é legítima apenas as pessoas físicas podem ser contempladas enquanto que na sucessão testamentária tanto as pessoas físicas como jurídicas podem ser beneficiadas desde que dotadas de personalidade jurídica que corresponde à qualidade para ser sujeito de direitos e obrigações e, naturalmente herdar.

O atual codex ao invés de mencionar capacidade utiliza erroneamente o vocábulo legitimação, mas convém elucidar que os termos não são sinônimos.

A capacidade em termos genéricos está ligada à aquisição ou exercício de direito e à peculiar situação em face de certos bens, pessoas e interesses.Já a legitimação está mais ligada ao gozo e, não à aptidão para receber herança.

A questão é meramente semântica e redacional em nada alterando com relação ao disciplinamento legal anterior que continua intacto.

Verifica-se a aptidão dos beneficiados há de ser apurada exatamente, por causa da transmissão imediata do domínio e posse da herança (art. 1.791, parágrafo único do NCC).

Há dois momentos distintos para se aferir capacidade; com relação ao falecido no momento da feitura do testamento e o momento da abertura de sucessão. E, entre esses momentos pode haver alteração da lei a ser aplicada.

A lei vigente na data da feitura do testamento vai regular a capacidade do testador e forma extrínseca do ato.

A incapacidade superveniente do testador não invalida o ato testamentário, nem o testamento do incapaz se convalida com a aquisição a posteriori de sua capacidade (art. 1.861 NCC). É a famosa regra tempus regit actum.

Assim a lei vigente na abertura da sucessão regula e a eficácia dos testamentos e a capacidade sucessória.


Referências 

Almeida, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: artigos 1.784 a 1.856, volume XVII, Coordenador Álvaro Villaça Azevedo, São Paulo, Editora Atlas, 2003.

Cahali, Francisco José. Curso avançado de direito civil, volume 6: direito das sucessões arts. 1.572 a 1.805, São Paulo, Editora RT, 2000.

Gonçalves, Carlos Roberto. Direito das Sucessões, volume 4 da Série Sinopses Jurídicas, 3 ed., 2000, São Paulo, Editora Saraiva.

Venosa, Sílvio de Salvo, organizador. Novo Código Civil: texto comparado, Editora Atlas, 2002..

  


Referência  Biográfica

Gisele Leite  –   Mestre em Direito; Professora Universitária e Articulista dos sites: www.direito.com.br, www.mundojuridico.adv.br, www.estudando.com, www.apoena.adv.br e www.oguiadodireito.hpg.ig.com.br.