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Lar: Lugar de Afeto e Respeito

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* Maria Berenice Dias

            O ideograma chinês, que representa o lar, é o mesmo que significa a paz e consta de um telhado abrigando um homem e uma mulher.

            Esta foi a imagem que inspirou a criação do projeto LAR: Lugar de Afeto e Respeito, lançado pelo JusMulher nesta data, 8 de março – Dia Internacional da Mulher, com o apoio do movimento de mulheres que, pela vez primeira faz uma junção de forças para obter mais ressonância à extensa pauta de reivindicações.

            O Afeto que norteia o surgimento da união não pode, quando deixa de existir o amor, se transformar em ódio. O Respeito entre homens e mulheres, tem de sempre persistir face a singela constatação de que são seres complementares, cujas poucas diferenças não os transforma em sexos opostos.

            O Lar não pode tornar-se um campo de batalha, palco de pequenez e vinganças, que acaba se traduzindo em violência física ou psicológica, manifestada por demonstrações de desprezo e menosprezo, e onde brigas e desavenças chega em muitos casos à morte.

            A paz é um dos valores mais buscados pela humanidade, não sendo uma dádiva, mas uma verdadeira conquista que em muito depende do bom uso de outro dos grandes valores – talvez só superado pelo valor vida – que é a liberdade, conceituada como o pleno uso da inteligência e da vontade, respeitando a inteligência e a vontade do outro. A liberdade também não é uma graça que nos é dada mas um estado a ser conquistado, através de um processo de construção diuturno.

            A paz tão desejada entre um homem e uma mulher, tem como pressuposto a coexistência do afeto, encontrando-se condicionada ao respeito mútuo, através do exercício da liberdade e tendo seu lugar de realização plena dentro do lar.

            Mesmo parecendo utópico, haverá um dia em que o efetivo reconhecimento da igualdade fará o Dia Internacional da Mulher perder seu significado, passando a festejar-se, quem sabe, o Dia Internacional do Lar – Lugar de Afeto e Respeito. Neste data se estará comemorando a conquista, não do maior valor da humanidade, mas da sua meta ideal: a felicidade.


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam. – 1999

www.mariaberenice.com.br

Foro especial por prerrogativa de função: o novo artigo 84 do Código de Processo Penal

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* Renato Flávio Marcão 

Sumário: 1. Algumas definições de competência; 2. A divisão de competências; 3. O foro especial por prerrogativa de função; 4. Os parágrafos do artigo 84 do Código de Processo Penal; 5. A inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal; 6. A inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal; 7. Considerações finais.

   


1. Algumas definições de competência 

            Na precisa lição de Luigi Lucchini, a competência vem a ser a medida da jurisdição distribuída entre os vários magistrados, que compõem, organicamente, o poder judiciário do Estado.[1]

            Dizia Vincenzo Manzini que “la competenza, oggettivamente considerata, è la cerchia legislativamente limitata entro la quale um giudice, avente giurisdizione ordinária o speciale, può esercitare la sua giurisdizione”. Arrematando que: “Riguardata soggettivamente, essa è il potere-dovere di um giudice di esercitare la giurisdizione, che gli è propria, in relazione a un determinato offare penale”.[2]

            Entre nós, João Mendes considerava a competência como determinação de atribuições dos tribunais e juizes[3], sendo que para Eduardo Espínola Filho, “a competência vem, pois, a ser a porção de capacidade jurisdicional, que a organização judiciária atribui a cada órgão jurisdicional, a cada juiz”.[4] 

2. A divisão de competências 

            É da tradição do Direito Processual Penal brasileiro a divisão ou distribuição de competências entre seus diversos órgãos de jurisdição, de tal sorte que o atual Código de Processo Penal[5], cuidando da matéria em seu Livro I, Título V, artigos 69/87, estabelece regras específicas, trazendo disposições gerais nos artigos 88/91, sendo certo que na sistemática adotada, a regra base de fixação de competência leva em consideração o lugar da infração, conforme disposições contidas nos artigos 69, inc. I, e 70/71. Tem-se, ainda, outras regras, sendo elas: competência pelo domicílio ou residência do réu (arts. 72/73); competência pela natureza da infração (art. 74); competência por distribuição (art. 75); competência por conexão ou continência (arts. 76/82); competência por prevenção (art. 83), e competência por prerrogativa de função (arts. 84/87).

            Justificando as razões determinantes da divisão de competências no ordenamento jurídico, Vincenzo Manzini asseverou que: “Ragioni d’interesse pubblico e d’interesse privato, motivi di economia funzionale, presunzioni di maggiore o minore capacità tecnica o attitudine psichica, necessità d’ordine, comodità di prova, criteri di garanzia e d’equa agevolazione difensiva, ecc., hanno indotto lo Stato a limitare l’esercizio della potestà di giurisdizione entro certi confini, mediante il regolamento della competenza di ciascuna categoria di giudici, di ciascuna sede giurisdizionale, di ciascun giudice impersonalmente considerato”.[6]

            Importa para o estudo que ora se pretende, a análise das regras que disciplinam a competência por prerrogativa de função, ou, como também denominado, o foro especial por prerrogativa de função.  

3. O foro especial por prerrogativa de função 

            A matéria relativa ao foro especial por prerrogativa de função não se vê regulamentada apenas no âmbito infraconstitucional, nos limites do Código de Processo Penal, sendo de relevância constitucional, tanto assim que o art. 29, inc. X, da Constituição Federal, estabelece a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados para o julgamento de Prefeitos.

            O art. 105 da Constituição Federal cuida do rol de competências do Superior Tribunal de Justiça, passando pelo tema do foro especial por prerrogativa de função.

            De igual maneira, o artigo 102 da Constituição Federal estabelece o rol de competências do Supremo Tribunal Federal com as hipóteses em que lhe compete julgar originariamente (inc. I); julgar em cede de recurso ordinário (inc. II), e em razão de recurso extraordinário (inc. III), tratando, entre outros temas, do processo e julgamento, nas infrações penais comuns, do Presidente da República, do Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, de seus próprios Ministros[7] e do Procurador-Geral da República, ou ainda, como se vê na alínea c do inc. I do mesmo artigo 102.

            No plano infraconstitucional, dispõe o artigo 84 do Código e Processo Penal que: “A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns ou de responsabilidade”, arrematando, o artigo 86 do mesmo Diploma que compete ao Supremo Tribunal Federal, privativamente, processar e julgar os seus ministros, nos crimes comuns (inc. I); os ministros de Estado, salvo nos crimes conexos com os do Presidente da República (inc. II); o procurador-geral da República, os desembargadores dos Tribunais de Apelação, os ministros do Tribunal de Contas e os embaixadores e ministros diplomáticos, nos crimes comuns e de responsabilidade.  

4. Os parágrafos do artigo 84 do Código de Processo Penal 

            Como nos tempos da ditadura admitida oficialmente, sem se preocupar com outros temas que estão por exigir cuidado e pressa do legislador, em meio aos jogos finais da Copa do Mundo de Futebol de 2002 se fez tramitar no Congresso Nacional, quando as atenções da Nação e da imprensa estavam voltadas para as questões futebolísticas, o Projeto de Lei n.º 6.295/02, inteiramente lesivo ao interesse público, estendendo o benefício do foro privilegiado aos ex-ocupantes de cargos públicos e também para as ações de improbidade administrativa.

            Parte da matéria tratada já era objeto de discussão em um Projeto de Lei com contornos mais amplos, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em 1996, ao qual se convencionou chamar “Lei da Mordaça”, tendo por objetivo, entre outros, cercear a divulgação de informações relativas a procedimentos e processos envolvendo agentes políticos. Uma forma de evitar que a criminalidade e os desmandos políticos cheguem ao conhecimento público, sendo que os objetivos de tal cerceamento são evidentes. Aliás, não são de hoje os ataques oficiais contra instituições como o Ministério Público, hoje, mais do que nunca, considerado o maior guardião dos interesses da sociedade. Tentativas as mais variadas de tolher as atividades do Ministério Público que incomodam a classe política fluem sem remorso e sem assombro pelos Gabinetes e Comissões do Congresso Nacional, como se fosse esse o desejo do Povo brasileiro. Fala-se, ainda, em democracia representativa, fazendo bater no peito a pancada heróica…

            Como advertiu Roberto Delmanto, “os maiorais da República nunca aceitaram a autonomia do Ministério Público, pois ela assegura que todos os prevaricadores serão punidos”.[8]

            Com celeridade incomum nos casos em que há interesse público, aprovado na Câmara dos Deputados[9], o Projeto 6.295/02 chegou ao Senado no dia seguinte e, no mesmo dia, o plenário aprovou requerimento dando urgência à tramitação, apresentado pelo vice-líder do governo, o Senador Romero Jucá.

            Toda eficiência e celeridade demonstradas pelo Congresso Nacional visou apenas preservar interesses do então presidente da república, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, cujas idéias um dia expostas a título de sua formação universitária[10] não condizem com grande parte dos atos que patrocinou em seu governo, o que realmente não impressiona, pois o mesmo já havia advertido no início de seu primeiro mandato junto ao comando supremo da Nação que era preciso esquecer o que ele havia escrito…

            Rosa Costa noticiou em seu artigo publicado no jornal Estado de São Paulo[11] que o líder do PMDB à época, Senador Renan Calheiros, ex-chefe da campanha de Fernando Collor de Melo à Presidência da República e ex-Ministro da Justiça, orientou toda a bancada a aprovar a proposta.

            É necessário dizer que no tocante a competência para as ações de improbidade o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça nomeado por Fernando Henrique Cardoso, já havia concedido liminar suspendendo a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o Ministro Ronaldo Sardenberg, ao argumento de que os agentes políticos não podem ser responsabilizados por improbidade, com base na Lei 8.429/92, porquanto a mesma teria por destinatários unicamente os agentes administrativos. De acordo com a decisão, a responsabilidade do agente político, quando ao mesmo é imputado ato de improbidade, deve ser apurada pelo meio próprio, que é a ação por crime de responsabilidade, promovida no foro especial fixado constitucionalmente.[12]

            Como já era de se esperar, o Projeto 6.295/02 foi convertido em Lei, que recebeu o n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002, acrescentando dois parágrafos ao art. 84 do Código de Processo Penal. O § 1º estabelece a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da função pública e o § 2º determina que: “a ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º”.  

5. A inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal. 

            A matéria atinente ao foro especial após a cessação do exercício da função pública já fora objeto de longa discussão que terminou com o cancelamento da Súmula 394[13] pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em 1999, ficando soberanamente decidida a questão, porquanto manifesto o pensamento da mais Alta Corte de Justiça da Nação.

             Revigorada a discussão, da forma como veio ao mundo jurídico a fixação do foro especial aos ex-exercentes de funções públicas padece de inconstitucionalidade.

            Aliás, referindo-se ao Projeto 6.295/02 ao tempo de sua tramitação, Dalmo de Abreu Dallari já advertia que “embora seja escandalosamente inconstitucional esse projeto foi estranhamente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, onde se supõe que haja conhecedores da Constituição”.[14]

            Na mesma ocasião o Ilustre Jurista apontava, ainda, a existência de enorme incongruência na proposta, pois, dizia ele referindo-se ao projeto: “ao mesmo tempo em que se fala que a competência privilegiada é ‘por prerrogativa de função’ acrescenta-se que tal privilégio permanece ‘após a cessação daquele exercício funcional’, ou seja, quando a pessoa já não está mais exercendo a função, não havendo, portanto, qualquer interesse público na concessão do privilégio”.[15]

            A inconstitucionalidade decorre evidente, já que nos precisos termos do art. 5º, caput, da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”, e a ampliação decorrente do disposto no § 1º do art. 84 do CPP cria aos ex-exercentes de funções públicas tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos, cumprindo anotar que as razões que justificam e legitimam o foro especial por prerrogativa de função aos que estão no exercício de determinadas funções públicas visam o interesse público, pois, conforme lembra Dalmo de Abreu Dallari, referindo-se à competência delimitada pelo art. 102 da CF: “Esse privilégio de somente ser processado perante o Supremo Tribunal Federal impede que os que estejam no exercício daquelas funções sofram processos em diferentes pontos do país, o que poderia ser contrário ao interesse público, uma vez que todos esses personagens estão sediados na Capital da República e a necessidade de irem a outros pontos do País para se defenderem em processos poderia prejudicar o bom exercício da função. O artigo 84 do Código de Processo Penal reafirma esse privilégio, que denomina prerrogativa de função, pois, como dispõe a Constituição, só beneficia pessoas por estarem no exercício de certas funções, concedendo-lhes foro privilegiado”.[16]

            Não é por outra razão a lição de Luiz Flávio Gomes no sentido de que “esse foro especial só tem sentido, portanto, enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo o sentido o foro funcional, que se transformaria (em caso contrário) em odioso privilégio pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito”.[17]

            Os malipuladores da Lei se esqueceram que o privilégio é em razão do exercício da função pública e não do cidadão. Deturparam o fundamento de base da regra, em benefício próprio. Advogaram em causa própria. Usaram das funções para estabelecer em benefício próprio privilégios injustificados, inconstitucionais, o que por si só resvala no art. 37 da Constituição Federal, ferindo de morte princípios como o da legalidade, impessoalidade e moralidade, estando tal conduta a reclamar as conseqüências jurídicas decorrentes.

            Na feliz expressão de Roberto Delmanto, a nova regra “desmoraliza a igualdade cidadã”.[18]

            Deixando as funções públicas, as ex-autoridades voltam a ser cidadãos comuns, devendo, em razão da igualdade constitucional, se submeterem a processo e julgamento como qualquer outro cidadão comum. Trata-se de ex-exercente de função pública, não havendo qualquer interesse público legitimador de modificação da regra.

            Note-se, por derradeiro, que a competência dos Tribunais vem delimitada no texto constitucional e a norma infraconstitucional não pode ampliar o rol de competências dos Tribunais conforme estabelecido, inclusive em razão de princípios como os da hierarquia e verticalidade das normas.

            A título de exemplo, frise-se que a Constituição Federal estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República e o Vice-Presidente,[19] não mencionando qualquer possibilidade de processar e julgar ex-Presidente ou ex-Vice.

            Diante de tais circunstâncias, é flagrante a inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do Código de Processo Penal, decorrente da Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002.  

6. A inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal. 

             Conforme dispõe o art. 37, § 4º, da Constituição Federal, “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

            É de todo perceptível, ante a literalidade e clareza do texto constitucional, que as sanções decorrentes da prática de atos de improbidade não se confundem com as de natureza penal. Evidentemente, e por conseqüência, não há que se confundir improbidade administrativa com ilícito penal. O inverso constitui erro grosseiro, data maxima venia.[20]

            A doutrina é tranqüila a respeito do tema; nesta seara não reinam disceptações.

            Bem por isso autores de nomeada[21] e os Tribunais sempre entenderam que, sendo a ação de improbidade administrativa cuidada na Lei 8.429/92 de natureza civil, ainda que proposta contra autoridades que gozem de foro especial por prerrogativa de função para efeitos penais, “deve ser processada e julgada em primeira instância, por não caber o deslocamento de foro para o Supremo Tribunal Federal sem expressa previsão constitucional”.[22]

            Por ser a competência originária do Supremo Tribunal Federal de direito estrito, não se admite o foro especial por prerrogativa de função para as ações civis de improbidade administrativa.

            Nesse sentido Wallace Paiva Martins Júnior traz à colação em sua preciosa obra o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme segue: “A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito e decorre da constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstâncias de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da corte, para os efeitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade” (STF, TP, AgRg em Petição 693-4-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, 12-8-1993, DJU, 1º mar. 1996, p. 5013)”.[23]

            Em sua conhecida obra, Marino Pazzaglini Filho destaca o voto do Min. Celso de Mello, que com clareza solar elucida a matéria nos seguintes termos: “Com efeito, não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida – não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os rígidos limites fixados, em numerus clausus, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política, consoante adverte a doutrina (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira de 1998, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a jurisprudência desta própria Corte (RTJ 43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/776)”.[24]

            Diante de tal quadro, resta evidente que não pode o legislador ordinário ampliar o âmbito estrito de competências da Suprema Corte.

            Como se vê, distinguindo a Constituição Federal os âmbitos de incidência da improbidade administrativa e do direito penal, não pode o intérprete, o juiz, e tampouco o legislador, confundi-los impunemente, e para a lei que não observa tais limites a sanção inevitável é o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

            Não é por outra razão que após a edição da Lei 10.628/02 a Egrégia Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo expediu recomendação[25] aos Membros do Ministério Público, em caráter normativo, para que arguam, “nos processos de sua atribuição porventura alcançados pela nova lei, a inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, a fim de possibilitar o exercício do controle difuso de constitucionalidade, pelos órgãos do Poder Judiciário”, e no texto da referida recomendação se fez constar o entendimento jurisprudencial a respeito do tema, no sentido de que “A competência do STF é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os efeitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade” (STF, Pleno, RJ 159/28, rel. Min. Ilmar Galvão).

             Também consta da referida recomendação: “O mesmo raciocínio vale para os demais Tribunais Superiores (com a única exceção do TST – CF, art. 111, § 3º, o que obviamente não interfere no raciocínio aqui exposto, dada a absoluta especificidade da jurisdição trabalhista). Nesse contexto, o STF julgou inconstitucional artigo do Código Eleitoral (lei ordinária) que pretendia atribuir competência ao TSE para conhecer de mandado de segurança contra ato do Presidente da República, em matéria eleitoral (RTJ 109/909)”. E segue: “Também os Tribunais Regionais Federais (e bem assim os próprios juízes federais) têm prevista na Constituição, de forma taxativa, a sua competência, que ‘somente pode ser ampliada ou reduzida por emenda constitucional, contra ela não prevalecendo dispositivo legal hierarquicamente inferior’”. “Quanto aos Tribunais de Justiça, é também expressa a Constituição Federal, ao estatuir que sua competência ‘será definida na Constituição do Estado’ (art. 125, § 1º). Não pode esta ser ampliada pelo legislador ordinário. Tanto é assim que o STF considerou revogados os dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura que dispunham sobre competência dos tribunais estaduais (HC 77.583-1-PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 18.9.98, p. 7)”.

            Ao cuidar da competência do Supremo Tribunal Federal o art. 102, inc. I, alínea a, da Constituição Federal, não incluiu em seu rol as ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, não sendo demais relembrar que o art. 37, § 4º, da Constituição Federal cuidou de expressar a impossibilidade de confusão das jurisdições civil e penal, para os atos de improbidade e para os ilícitos penais, respectivamente. De tal sorte, a confusão proposta não se justifica dentro de um raciocínio lógico e inteligente, fazendo concluir que razões outras, diversas da técnica jurídica, e distantes do interesse público, é que empolgaram a malfadada disposição legal ora combatida.

             Historicamente, as hipóteses de foro privilegiado sempre foram objeto de previsão constitucional, não se deixando a regulamentação da matéria para a legislação de menor envergadura.  

7. Considerações finais 

             Comentando o tema sob análise Hugo Nigro Mazzili asseverou, com a inteligência de sempre, que: “Não se pode esconder que o objetivo desse jogo de força é tentar jogar para o Procurador-Geral da República e as maiores Cortes, de investidura política (indicação do Presidente da República e aprovação do Senado), a decisão sobre o processo e julgamento das mais altas autoridades… Acresce que, em vista da notória incapacidade material dessas Cortes de processarem e julgarem os milhares de casos de improbidade neste País, estariam assim, até involuntariamente, contribuindo para a ineficácia da lei”.[26]

            Trata-se, a bem da verdade, de um duro golpe contra os princípios republicanos de igualdade; fomento à criminalidade política, à corrupção, e é sabido que muitos têm se valido de prerrogativas asseguradas pelas funções para delinqüir impunemente.

            A Lei 10.628/02 contraria a Constituição Federal; todo e qualquer senso de Justiça; princípios constitucionais basilares; o interesse social, e não corresponde, em absoluto, com as idéias e ideais da sociedade brasileira contemporânea, representando, sem sombra de dúvida, ranço primitivo e ditatorial, e os homens primitivos, conforme Lucien Lévy-Bruhl, “vivem, pensam, sentem, se movem e agem num mundo que em numerosos pontos não coincide com o nosso”.[27]

            Não se deve esquecer a lição de Niklas Luhmann no sentido de que “apesar de toda a autonomia e do desenvolvimento continuado das diferentes noções jurídicas, as mudanças fundamentais do estilo do direito permanecem condicionadas pela mudança estrutural da sociedade, ou seja: são por ela incentivadas e possibilitadas”.[28]

            É preciso estar atento à vontade coletiva, de que falava Hans Kelsen.[29]

            Como escreveu Jean-Jacques Rousseau: “Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, subsiste apenas por uma fórmula ilusória e vã, quando o liame social está rompido em todos os corações, quando o mais vil interesse se apossa afrontosamente do nome sagrado do bem público, então a vontade geral torna-se muda, todos, guiados por motivos secretos, não mais opinam como cidadãos, como se o Estado jamais tivesse existido, e são aprovados, falsamente sob o nome de leis, decretos iníquos que apenas visam o interesse particular”.[30]

            No Brasil, é cada vez mais acertada a afirmação de John Kenneth Galbraith no sentido de que a mudança socialmente desejável é regularmente negada devido a interesses pessoais bem conhecidos.[31]

 
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[1] Elementi di procedura penale, 3ª ed., Florença, 1908, p. 209.

[2] Trattato di Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[3] Processo Criminal Brazileiro, Livro III, p.163

[4] Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, 5ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, v. II, p. 51.

[5] Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.

[6] Trattato di Diritto Processuale Penale Italiano, 6ª ed., Torino: UTET, v. II, 1968, p. 37.

[7] Do Supremo Tribunal Federal.

[8] Desaforo privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[9] “A tramitação do foro privilegiado na Câmara foi beneficiada por um acordo firmado entre o PT – que tinha interesse na aprovação da Medida Provisória 66 – e o governo, que pretendia evitar futuros problemas políticos para o presidente Fernando Henrique Cardoso”, conforme escreveu Paulo de Tarso Lyra em artigo publicado no “Jornal do Brasil”, em 13.13.02, p. A-4.

[10] Embora difíceis de se encontrar.

[11] Senadores aprovam urgência para votação do foro privilegiado, 13.12.02, p. A-12.

[12] Cf. A Mobilização contra o foro privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 24.

[13] “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

[14] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 26.

[15] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[16] Privilégios Antidemocráticos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 27.

[17] Reformas penais : foro por prerrogativa de função. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br, 24.12.2002.

[18] Desaforo privilegiado, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 29.

[19] Art. 102, inc. I, alínea b, da CF.

[20] Mesmo assim o Ministro Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso, concedeu a liminar acima mencionada, suspendendo a eficácia da sentença condenatória proferida na ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o Ministro Ronaldo Sardenberg, abrindo o caminho para o infeliz Projeto[20] que deu origem à Lei 10.628/02, que inseriu o § 2º no art. 84 do Código de Processo Penal.

[21] Cf. Marino Pazzaglini Filho, Lei de improbidade administrativa comentada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 173-175.

[22] TRF – 1ª Região, Ag. 01000132274-DF, DJ 4-5-2001, p. 640.

[23] Probidade administrativa, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 369.

[24] Lei de improbidade administrativa comentada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 174.

[25] D.O.E. 03 de janeiro de 2003, p. 22.

[26] Privilégio para julgar corruptos, Conamp em Revista, out./dez. 2002, n.º 1, 1ª ed., p. 32.

[27] La mentalité primitive, 14ª ed., Paris, 1947, p. 47.

[28] Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, trad. de Gustavo Bayer, 1983, p. 225.

[29]Problemas capitales de la teoria jurídica del Estado, trad. de Wenceslao Roces, México: Porrúa, 1987, p. 139.

[30] Do contrato social, trad. de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima, 7ª ed., São Paulo: Hemus, s/d., p. 112.

[31] Sociedade justa, trad. de Ivo Korytowski, Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 5.

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Referência Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Penal, Especialista em Direito Constitucional, Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal, Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Núcleo de São José do Rio Preto-SP, Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)

Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

A produção antecipada de prova no art. 366 do Código de Processo Penal

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* Renato Flávio Marcão 

Sumário:  1. A previsão legal;  2. Sobre a resistência à produção antecipada de provas;  3.  Doutrina e jurisprudência a respeito do tema;   4.   Anulação do processo, de ofício, em decorrência da produção antecipada de prova;  5.  Nossa posição a respeito do tema;  6.  Conclusão. 

 

 

1. A previsão legal

                        Nos precisos termos do art. 366 do Código de Processo Penal, com a redação da Lei 9.271/96, se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.

                        Na precisa lição de Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly: “A nova redação do art. 366 do CPP condicionou o prosseguimento da instrução probatória a um evento futuro. No entanto, esse mesmo dispositivo admitiu a produção antecipada de provas, desde que consideradas urgentes e acompanhadas pelo Ministério Público e pelo defensor dativo”.[1]

2. Sobre a resistência à produção antecipada de prova

                     Não obstante a redação acima transcrita, é reincidente a resistência à produção antecipada de prova na prática forense.

                        Muitos Juízes de 1º grau e Instâncias recursais, aos olhos muitas vezes conformado do Ministério Público, têm feito tabula rasa da necessidade inquestionável de se providenciar a produção antecipada de prova visando evitar o perecimento da mesma e em homenagem ao princípio processual penal que determina a busca da verdade real como fundamento do provimento jurisdicional, seja qual for o resultado do processo.

                        O debate doutrinário e jurisprudencial está posto desde o advento da nova redação do dispositivo processual penal que alberga a matéria discutida.

3. Doutrina e jurisprudência a respeito do tema

                       Convém ressaltar, aqui, o entendimento jurisprudencial que entendemos deva prevalecer, no sentido de que:

                        “O art. 366 do CPP, ao determinar que ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional quando o réu, citado por éditos, não atender ao chamamento da Justiça, nem constituir advogado, facultou ao Magistrado ordenar a produção antecipada das provas consideradas urgentes. Regulamentada pelo art. 225 do referido diploma, a produção antecipada da prova testemunhal está sujeita ao princípio da urgência, que se entende pelo fundado receio de que, ao tempo da instrução processual, as testemunhas já não existam ou se tenham mudado do território da comarca. Nesta matéria, como no mais, o prudente arbítrio do Juiz é que haverá de ditar a forma de proceder” (TACRIM-SP. – 6ª C. – HC 312.098/3 – rel. Almeida Braga – j. 01.10.97).

                        “Consideram-se urgentes, para os efeitos do art. 366 do CPP, as provas que, em razão do decurso do tempo – consumidor de todas as coisas (tempus edax rerum) -, poderiam perecer, tornando impossível sua realização quando acaso comparecesse o réu a Juízo, sendo forçoso preservá-las ‘ad perpetuam rei memoriam’” (TACRIM-SP. – 1a C. – HC 312.226/8 – rel. Eduardo Goulart – j. 9.10.97).

                        Portanto, é inconteste que, em se tratando de provas urgentes, o juiz pode, e deve, a teor do disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal, determinar sua produção antecipada.

                        Para tanto, necessária a conceituação de provas urgentes, vez que a suspensão do processo, por prazo ad infinitum, induz à incerteza quanto a retomada do curso processual.

                        Elucidando tal conceito, a lição de Tourinho Filho[2]:

                        “Que provas são estas? Depende do caso concreto. Todavia, em se tratando de perícias, busca e apreensão, e até mesmo de audiência de testemunhas, não se lhes pode negar o caráter de urgência, à semelhança do que ocorre com o art. 92 do CPP, ao dispor que, sendo suscitada questão prejudicial, séria e fundada, a respeito do estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente”.

                        “Ora, se o pronome adjetivo ‘outras’, num discurso, retoma sempre a idéia ou conceito dado anteriormente, parece claro que o legislador reputou o testemunho como prova de natureza urgente. E, com efeito, considerando a imprevisibilidade da morte, a inquirição de testemunha é providência que deve ser tomada com certa urgência. Não são apenas os testemunhos das pessoas elencadas no art. 225 deste Código que apresentam a marca da urgência. É claro que a testemunha pode mudar de endereço, sem que se saiba onde foi morar, pode ausentar-se do Estado ou do País, ficar gravemente enferma, de molde a nem poder comunicar-se com o mundo exterior, falecer. Tais circunstâncias já indicam que, suspenso o processo, na hipótese de o Juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes, uma destas será a testemunhal. Na verdade, se com a simples suspensão do processo, em face de uma questão prejudicial, cuja solução no cível não dura mais que três ou quatro anos, o legislador determinou a ‘ouvida das testemunhas e de outras provas de natureza urgente’, é sinal de que considerou a prova testemunhal como urgente. De se concluir, pois, a nosso juízo, que, em se tratando de réu que não atendeu à citação editalícia nem constituiu Advogado, não deve o Juiz limitar-se a inquirir as testemunhas que estejam enfermas ou idosas. E se o réu comparecer dez ou quinze anos depois? As testemunhas seriam capazes de relatar pormenores? Não poderiam morrer nesse espaço-tempo? Mudar de endereço sem que se possa localizá-las? Evidente que o Juiz, em hipóteses dessa natureza, deve não só colher antecipadamente os depoimentos, como, inclusive, determinar perícias e busca e apreensão, se for o caso”.[3]

                        Por oportuno, vale ressaltar entendimento jurisprudencial no sentido de que:

                        “Na hipótese de suspensão do processo em face da revelia do réu, a memória testemunhal deve ser colhida no tempo mais próximo do fato, em face do fenômeno humano do esquecimento, sendo de rigor a sua produção antecipada. Exegese dos arts. 82 e 366 do Código de Processo Penal” (STJ – 6ª T. – RESP nº 169.324/SP – Rel. Min. Vicente Leal – DJU nº 195, de 9.10.2000, p.207).

                        “Tratando-se do art. 366 do CPP, é lícita a produção antecipada da prova testemunhal, por estar presente o caráter de urgência, em face da incerteza quanto à prorrogação na retomada do curso processual, uma vez que eventual demora pode vir a apagar da memória das vítimas e testemunhas o fato criminoso, bem como dar ensejo às mudanças de endereços, falecimentos etc” (TACRIM – SP – 14ª Câmara – Mandado de Segurança – Rel. Oldemar Azevedo, v. u., j. em 14.12.1999).

                        “Em se tratando de suspensão do processo por prazo indeterminado, nos termos do artigo 366 do CPP, é possível que o Juiz se valha do seu poder geral de cautela, com base na lei, para autorizar a produção antecipada de prova testemunhal, em face da imprevisibilidade do momento em que o feito retomará seu curso, com a ressalva de sua eventual repetição, a pedido do réu, pois é previsível a impossibilidade de sua produção em razão do decurso do tempo, quer pela fatalidade da morte, quer pelo esquecimento dos fatos distanciados do tempo de sua prática, como também por causa do fenômeno de desgastes ou de reforçamento, e ainda por motivo das várias doenças da memória, assegurando, assim, a perquirição da verdade” (TACrimSP – MS nº 354.540/4 – São Paulo – 7ª Câm. – Rel. Corrêa de Moraes – J. 20.01.2000 – v.u).

                         “Inocorre cerceamento por afronta ao princípio constitucional da ampla defesa na determinação da produção antecipada de provas, uma vez suspenso o processo nos termos do artigo 366 do CPP, pois é providência de interesse comum, tanto do réu quanto do Órgão Acusatório, e bem assim do Juiz, que não é mais um espectador inerte da produção das provas, podendo até mesmo determinar, no exercício do poder cautelar que lhe é ínsito, a realização das que lhe parecerem úteis, velando para que não se diluam ou se percam, porque no processo penal o que se busca é a verdade real” (TACrimSP – HC nº 317.248/0 – 5ª Câm. – Rel. Nogueira Filho – J. 11.02.98 – RJTACRIM 37/410).

                        “A produção antecipada de provas (C. P. P., artigo 366) é medida que a sensatez abona e a prudência recomenda, em face da imprevisibilidade do momento em que o processo retomará seu curso. Se próximo, caberá na ocasião deferir à Defesa a renovação da prova. Se distante, ter-se-á acertadamente obviado à eventualidade de apresentar-se dificuldade intransponível na produção longamente protelada. Em ambos os casos, ver-se-á assegurada a perquirição da verdade, objetivo último do esforço processual” (TACrimSP – RSE nº 1.102.971/7 – 7ª Câmara – Rel. Corrêa de Moraes – J. 30.07.98 – RJTACRIM 41/400).  

4. Anulação do processo, de ofício, em decorrência da produção antecipada de prova

                        A 10ª Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo julgou a apelação n.º 1.312.505/9[4], de que foi relator o Excelentíssimo Juiz Vico Mañas, apontada em processo por crimes de furto qualificado, praticados em continuidade delitiva, onde o Insigne Magistrado João Alexandre Sanches Batagelo determinou a produção antecipada da prova testemunhal com supedâneo no art. 366 do Código de Processo Penal, fundamentando sua decisão de forma a justificar a providência que se revelou imprescindível aos olhos do Juízo, considerando a suspensão do processo por tempo indeterminado, a colocar em sério e grave risco a busca da verdade real.

                        Julgado o processo, que seguiu depois de certo tempo, após a prisão preventiva do réu, a Douta Defesa recorreu da sentença condenatória sustentando insuficiência probatória.

                        O processo foi anulado em grau de recurso, ex officio, em razão da realizada produção antecipada da prova oral.

                        Eis as razões invocadas na fundamentação do v. Acórdão, as quais pedimos vênia para transcrever em parte:

                        “A nova redação do art. 366 do Código de Processo Penal procura dar validade ao preceito constitucional que assegura aos acusados o exercício da ampla defesa e do contraditório. A primeira pressupõe defesa técnica e autodefesa. Esta, por sua vez, consiste no direito de audiência e no direito de presença, inconciliáveis, à toda evidência, com a revelia decorrente de citação ficta.

                        A lei nada exclui da apreciação do Poder Judiciário, mas apenas condicionou a sua atuação à estrita obediência de garantia fundamental, com assento constitucional.

                        Com efeito, a autodefesa significa a participação pessoal do acusado no contraditório, mediante sua contribuição para a função defensiva. Divide-se, como visto, no direito de audiência e no direito de presença. Este último representa a possibilidade de o réu tomar posição a todo momento sobre o material probatório produzido, comparecendo aos atos da instrução.

                        Por tal motivo, afirma-se que a participação do acusado nos atos de processo-crime a que responde ‘é uma conseqüência dos princípios constitucionais que ao acusado garantem o direito de ampla defesa e o de contrariedade na instrução criminal, pois é certo que, presente o réu no ato de inquirição da testemunha, poderá ele esclarecer o seu defensor acerca de um ou outro ponto do depoimento, ensejando, assim, a formulação de reperguntas explicativas’ (RTJ 80/4).

                        Assim, suspenso o processo pela revelia do acusado, a produção antecipada da prova testemunhal só será cabível, respeitada a garantia constitucional da ampla defesa, prestigiada com a recente alteração legislativa, em caráter excepcional, traduzido na exigência da medida, que se configura nas hipóteses do art. 225 do mesmo diploma legal, em nenhum momento ventiladas no caso em tela.

                        A prevalecer o procedimento adotado neste feito, a colheita antecipada da prova testemunhal sempre seria possível, o que não se concilia com o espírito que norteou a reforma processual introduzida pela Lei 9.271/96, desvirtuando-o por completo”.

                        Com tais fundamentos anulou-se o processo por cerceamento de defesa, entendendo-se que a r. sentença encontrava-se fundada em provas colhidas com ofensa a garantias constitucionais básicas.

5. Nossa posição a respeito do tema

                         A busca da verdade real é princípio fundamental do Direito Processual Penal brasileiro.

                         Conforme ensina Mirabete, “com o princípio da verdade real se procura estabelecer que o jus puniendi somente seja exercido contra aquele que praticou a infração penal e nos exatos limites de sua culpa numa investigação que não encontra limites na forma ou na iniciativa das partes. Com ele se excluem os limites artificiais da verdade formal, eventualmente criados por atos ou omissões das partes, presunções, ficções, transações etc., tão comuns no direito processual civil. Decorre desse princípio o dever do juiz de dar seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo de determinar, ex officio, provas necessárias à instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos objetos da ação penal”.[5]

                         Segundo Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, na Justiça Penal “o juiz não é mero espectador das provas produzidas pelas partes. Tem o dever de investigar a fundo a realidade do fato. Tão largo é o alcance desse princípio que até mesmo a confissão, no processo penal, tem valor relativo (art. 197) e deve ser valorada de acordo com as demais provas coligidas, enquanto, no processo civil, esse mesmo ato, quando não se cuidar de direitos indisponíveis, tem importância definitiva e absoluta (art. 341, § 1º, CPC), autorizando desde logo o julgamento da lide”.[6]

                        Após a prática do crime, conhecedor de sua real situação frente a Justiça Penal, não raras vezes o réu se põe em fuga, indo à lugar incerto e não sabido, daí a necessidade de sua citação ficta, conforme determina o artigo 361 do Código de Processo Penal.

                         Ausenta-se do distrito da culpa por opção, e assim procede no mais das vezes acreditando estar se furtando à aplicação da lei penal, e caso assim não fosse, buscaria informar o Juízo processante sobre seu atual paradeiro, o que sabemos quase nunca ocorrer, e se ocorresse não seria citado por edital e nem haveria, de conseqüência, a necessidade de se produzir prova antecipadamente.

                        É inegável que, por assim dizer, age o réu maliciosamente, buscando ludibriar a Justiça.

                        Aliás, em tais casos seu proceder está por autorizar, sem sombra de dúvida, a decretação de sua prisão preventiva, pois é cediço que a custódia preventiva para assegurar a aplicação da lei penal é a que tem encontrado maior acolhida na doutrina, sustentando alguns que essa é a principal finalidade da medida. O perigo de fuga do acusado justifica por si só a cautela, como decorre do artigo 312 do Código de Processo Penal.

                        De regra, os processos suspensos com fundamento no art. 366 do Código de Processo Penal só retomam seu curso após a prisão do réu, quando decretada a prisão preventiva, o que também não tem sido comum na prática forense na hipótese de que cuidamos.

                        Muitas vezes as implicações protelatórias decorrentes do artigo citado são “comemoradas”, e a partir de então é como se o processo deixasse de existir; de merecer atenção, cuidados e lugar em pauta de audiência. Sai do mundo dos vivos e cai no imenso vazio do descaso e do esquecimento, contribuindo sensivelmente para o descrédito da Justiça Penal; constituindo verdadeiro estímulo à criminalidade alimentada pela sensação de impunidade. É como se seu resultado deixasse de interessar à sociedade. Passa a ser um “não-processo”.

                        Entendemos que, suspenso o processo, a regra deve ser a produção antecipada das provas disponíveis, visando a busca da verdade real, o que não quer dizer, exatamente, prova para a condenação do réu, como muitas vezes se tem entendido de forma equivocada.

                        “A verdade é a concordância entre um fato real e a idéia que dele forma o espírito”, na exata conceituação de Mittermaier.[7]

                        A busca da verdade real interessa tanto ao Ministério Público quanto ao Poder Judiciário e ao próprio réu. Interessa à segurança das decisões judiciais. Não se pode concluir num juízo apriorístico que a produção antecipada de prova seja instrumento de violação da ampla defesa, notadamente em casos onde sequer houve alegação de prejuízo por parte do réu em seu desconformismo.

                        De se ressaltar, ainda, que o réu, mesmo na produção antecipada de prova sempre estará amparado por defesa técnica. Ocorrendo o contrário a nulidade do processo será absoluta, evidentemente.

                        A busca da verdade real, garantia constitucional e processual que é, não pode ser considerada, sob tal enfoque, instrumento gerador de nulidade por cerceamento de defesa.

                        O Douto entendimento esposado no v. Acórdão que anulou o processo, conforme acima indicado, permite concluir que a produção antecipada de prova nos termos em que regulada no art. 366 do Código de Processo Penal sempre acarretará a nulidade do processo por quebra da ampla defesa e conseqüente inconstitucionalidade, e não há como se sustentar o entendimento contrário.

                        Com efeito, se acolhidos os fundamentos do decisum em destaque, é forçoso concluir que, sendo a ampla defesa um princípio constitucional, não é possível encontrar qualquer razão justificadora para a produção antecipada de prova, baseada em preceitos infraconstitucionais, resultando inaplicável, por flagrante incompatibilidade com a Carta Magna, qualquer preceito que a autorize.

                        Se a ausência voluntária e injustificada do réu à audiência de instrução viola sua amplitude defensória de plano, a ponto de justificar a anulação do processo ex officio pelo E. Tribunal, não se pode invocar qualquer justificação jurídica para a colheita da prova exposta à indefinição do processo, qualquer que seja a situação.

                        O que se dizer, então, da hipótese em que o réu é citado pessoalmente e opta pela revelia, quando é cediço que toda a prova será colhida normalmente, sem a sua presença, e sabidamente os Tribunais não reconhecem em tal proceder qualquer violação à ampla defesa?

                        Dir-se-á que a nova redação do artigo 366 do Código de Processo Penal determina a suspensão do processo nas hipóteses em que regula exatamente para preservar o réu que está ausente, inclusive em razão do princípio nemo inauditus damnari potest, segundo o qual ninguém pode ser julgado sem ser ouvido.

                        Ocorre, entretanto, que a nosso ver e sentir, a ausência de possibilidade para a oitiva e participação do réu na colheita da prova em processo penal é que faz incidir o raciocínio exato que envolve o princípio acima indicado, o que não se confunde com a hipótese de permitir ao réu que se apresente em Juízo para se ver processar, sendo a chance por ele desprezada.

                        O réu ausente, citado por edital, submete-se a tal condição por deliberação própria, e por assim dizer não está por merecer benefícios; ser premiado pela malícia com a paralisação indefinida do processo e perecimento da prova que no mais das vezes lhe é desfavorável.

                        O que se falar, ainda, da possibilidade de colheita de prova por precatória quando ausente o réu, cuja defesa só precisa ser intimada da expedição da carta?[8]

                        Como se justificar a possibilidade inconteste do réu ser retirado da sala de audiências quando da oitiva de vítima(s) e/ou testemunha(s) que se sintam constrangidas ou temerosas de depor na presença do mesmo, conforme autoriza o artigo 217 do Código de Processo Penal?[9]

                        Por fim, o que se dizer das hipóteses de julgamento no Tribunal do Júri sem a presença do réu, conforme autoriza o art. 451, § 1º, do Código de Processo Penal, nos crimes de infanticídio e de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, onde inegavelmente ocorrerá ampla produção probatória?

                        Em tais hipóteses também ocorrerá violação à ampla defesa?

                        Claro que não.

6. Conclusão

                        Pelas razões acima expostas, e reconhecendo a complexidade da matéria, não podemos concordar, data máxima vênia, com a r. decisão a que chegou a 10ª Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo no que diz respeito ao instigante tema ora colocado em debate.

                        A produção antecipada de prova é uma necessidade inafastável nos casos em que se verificar a suspensão do processo com fundamento no artigo 366 do Código de Processo Penal.

                        Tal proceder, em homenagem à verdade real, revela-se instrumento vigoroso de salvaguarda dos direitos da sociedade e do cidadão-réu, que em razão do passar dos tempos e do inevitável esquecimento que apaga da memória fatos pretéritos relevantes, não raras vezes se vê submetido ao constrangimento de uma sentença judicial absolutória por falta de provas suficientes para a condenação, a imprimir em sua história muitas vezes honrada a pergunta que provavelmente jamais se apagará perante todos:

                         Cometeu ou não o delito?

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 [1] Curso de Processo Penal. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 335.

 [2] TACRIM – SP –  9ª Câm. – D.J. 13.08.1997 – Rel. Moacir Peres.

 [3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, vol. 1, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, págs. 628/629.

 [4] Em 14 de agosto de 2002.

 [5] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 44.

 [6] Curso de Processo Penal. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 28.

 [7] Mittermaier, C.J.A. Tratado da prova em matéria criminal; trad. Herbert Wüntzel Heinrich, São Paulo: Bookseller, 3ª ed., 1996, p. 59.

 [8] Conforme anotações de Damásio E. de Jesus (Código de processo penal anotado. São Paulo: Saraiva, 17ª ed., 2000, p. 170): “Intimada a defesa da expedição de precatória, desnecessária nova intimação da data designada para a realização da audiência no juízo deprecado. Essa providência não é tida por lei como essencial ao exercício da defesa, por considerar que, primordialmente, cabe ao defensor inteirar-se naquele juízo sobre a data escolhida para a realização da prova (TJSP, RT 525/352)”.

 [9] “Se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará retirá-lo, prosseguindo na inquirição, com a presença de seu defensor”.

 


 

Referência Biográfica

Renato Flávio Marcão  –  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Especialista em Direito Constitucional. Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP. Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

rmarcao@terra.com.br


Exceção de pré-executividade ou não executividade

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*Clovis Brasil Pereira

1. Generalidades  2. Posição da doutrina  3. Entendimento da jurisprudência      4. Conclusão     5.  Bibliografia  

 
Generalidades  

O presente trabalho visa, de forma sucinta, examinar o instituto processual denominado de exceção de pré-executividade, e que vem ganhando força no dia a dia em no direito pátrio, embora não tenha definição legal definida em nosso ordenamento jurídico.

Preliminarmente, é de se ressaltar que por força de nossa lei adjetiva, o processo de execução, independente da modalidade de execução, exige do credor, como pressuposto de admissibilidade, a exibição de título executivo, judicial ou extrajudicial – art. 583, do CPC   – devendo   este,  ser revestido das  características de certeza, liquidez e exigibilidade, conforme norma inserta no artigo 586 do Estatuto Processual.

Assim, se o título executivo não exibir essas três características, não pode o credor manusear o processo executivo para exigir o cumprimento da obrigação pecuniária.

Por sua vez, o mesmo Código de Processo Civil, coloca como pressuposto indispensável para acolhimento da defesa do devedor, mediante a oposição de embargos à execução, a garantia do juízo, que deve ser,  pela penhora de bens, na execução por quantia certa, (art. 737, inciso I), ou pelo depósito da execução para entrega de coisa (art. 737, II).

Assim, se infere da disposição contida no Código de Processo Civil, que o devedor só pode se defender no processo executivo, se dispuser de bens passíveis de constrição.

Existem todavia algumas hipóteses, em que a execução não está assentada em título executivo que preenche todos os requisitos tidos como indispensáveis, notadamente o da exigibilidade.  Por exemplo, pode faltar a memória do cálculo, na liquidação de sentença, em desalinho com o art. 604, ou a via original do título, quando este for extrajudicial, dentre outras hipóteses. Nesse caso, tratando-se por vezes até de nulidade da execução, se for levado ao extremo a exigência prevista no Código de processo Civil, não pode o devedor oferecer defesa, sem que constitua previamente a penhora.

Por outro lado, todos sabem que a penhora trás conseqüências imediatas ao executado, uma vez que constituído em depósito judicial,  torna o bem indisponível para alienação ou nova oneração pelo  executado, penalizando-o, inclusive, por vezes,  com a medida extrema da prisão civil, quando o mesmo for o  depositário do bem, e houver por qualquer modo, desvio da garantia.

No mais, temos ainda o executado que não dispõe de patrimônio disponível e desembaraçado para ser oferecido à penhora.

Aí nos deparamos com o choque entre dois interesses, que parecem intransponíveis, à luz da análise fria do Código de Processo Civil, entre o autor da execução – o exeqüente – , e o réu na execução –  o executado, quais sejam:  de um lado, a execução exige título executivo certo, líquido e exigível. E se eventualmente uma execução é aparelhada com documento que não preenche tais requisitos?  de outro lado, o devedor, mesmo sofrendo uma execução injusta, alicerçada em documento não dotado de executividade, portanto, tratando-se de  execução nula, só pode se defender se disponibilizar bens à penhora.  Nesse caso não pode ele se defender?

Reportemo-nos ainda, que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV, trás como um princípio constitucional básico, o direito à ampla defesa e ao contraditório, que vêm em socorro dos réus em geral, para assegurar a efetiva prestação jurisdicional, dentro do devido processo legal. E obstaculizar a defesa do executado, numa execução injusta, somente porque não dispõe de bens para  penhora, certamente não se coaduna com a essência de tais princípios.

É certo ainda, que tal exceção, encontra muitas resistências na própria doutrina. Tais doutrinadores vêm na medida, mais uma forma de retardamento do resultado no processo de execução, sem portando desnecessária, uma vez que os devedores já tem os embargos à execução à  socorrê-los.

Assim, no dizer de José Ysnaldo Alves Paulo, “na prática, a exceção de pré-executividade tem sido mais uma arma engendrada para a procrastinação do feito. Tal qual os embargos, dormita nas prateleiras tanto quanto estes até que seja apreciada”.  Parece-nos uma posição por demais extrema, uma vez que na prática, nem sempre a medida é utilizada com tal finalidade.

Por outro lado, é de todos sabido os reflexos imediatos que o ajuizamento de uma execução traz aos executados, que figuram no pólo passivo das demandas. A globalização das informações, levam a notícia à todos os bancos de dados, atualizando os cadastros de inadimplentes, tais como SPC, SERASA, etc., com reflexos imediatos junto aos estabelecimentos bancários, administradores de cartões de créditos, e operações de crediário em geral.  Conseqüentemente, o executado deve procurar um meio idôneo para protegê-lo, desde que, a execução se mostre inapropriada ao pretenso credor.

É para preencher essa lacuna, que ao longo do tempo, ao desamparo da lei, a  doutrina construiu a hipótese da chamada exceção de pré-executividade, o que veio depois, a encontrar amparo na jurisprudência pátria, que passou a admitir em casos excepcionais, a nova medida sem exigência da prévia segurança do juízo, preconizada literalmente no aludido artigo 737, e seus incisos, como pressuposto para defesa do executado.

Discute-se, aliás, a respeito da propriedade ou impropriedade da utilização da medida como exceção de pré-executividade. Parece-nos que a expressão mais adequada, seria mesmo exceção de não executividade, uma vez que é a falta de executividade do título,  que torna inviável a ação executiva. No mais, muitas vezes, um título  era executável, pois preenchia os requisitos legais, e ao longo do tempo perdeu tal característica (pela prescrição, por exemplo), e nesse caso a expressão pré-executividade não nos parece a mais aconselhável. Todavia, essa é uma discussão doutrinária que não merece destaque neste trabalho, que tem pretensão e caráter mais práticos.

Posição da Doutrina  

Examinaremos a seguir, alguns posicionamentos na doutrina, a respeito da viabilidade da exceção de pré-executividade, como meio de defesa do devedor, independentemente da garantia do juízo, onde destacamos:

Araken de Assis, que trata do assunto, às páginas 425 a 428, de seu Manual, 3ª edição, da Editora Revista dos Tribunais,  1996, onde vaticina:

“Embora não haja previsão legal explícita, tolerando o órgão judiciário, por lapso, a falta de algum pressuposto, é possível o executado requerer seu exame, quiçá promovendo a extinção da demanda executória, a partir do lapso de 24 hs. assinado pelo art. 652. Tal provocação de matéria passível de conhecimento de oficio pelo juiz independe de penhora, e, a fortiori, do oferecimento de embargos”.

Cássio Scarpinella Bueno, in Atualidades sobre Liquidação de Sentença, coordenação de Teresa Arruda Alvim Wambier, Ed. Revista dos Tribunais,  1997, p. 111,  destaca, ao admitir a medida no caso de erro de cálculo na liquidação de sentença:

 “Com efeito, a exemplo do que a doutrina identifica para as hipóteses de cabimento das objeções de pré-executividade, toda a vez que para identificação do extravasamento do valor efetivamente reconhecido no título judicial ou constante no título extrajudicial (ver infra), não houver a necessidade da produção de prova ou de manifestação das partes, tem cabimento a atuação ex officio do magistrado e, portanto, a manifestação do  executado nos autos do processo de execução, independentemente do depósito de qualquer bem, seja para fins liberatórios, seja para fins de garantia do juízo, para discussão do indevido (abusivo) excesso de execução”.

Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil, vol. II, 1998, página 95, nº 720, diz:

“Se, eventualmente, o executado não aceitar o cálculo do credor, terá que impugná-los em seus embargos, invocando excesso de execução”.

Mais adiante, página 146, nº 774, ao tratar da argüição de nulidade no processo de execução, assevera:

“… nulidade é vício fundamental e, assim, priva o processo de toda e qualquer eficácia. Sua declaração, no curso da execução, não exige forma ou procedimento especial. A todo momento o juiz poderá declarar a nulidade do feito tanto a requerimento da parte como ex officio. Não é preciso, portanto, que o devedor utilize dos embargos à execução. Poderá argüir a nulidade em simples petição, nos próprios autos da execução”.

J.J. Calmon de Passos, no livro Inovações do CPC, 2ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1995, página 137, ao comentar sobre a falta da “memória do cálculo”, diz:

"Caso passe despercebido pelo juiz a irregularidade, citado o réu, pode ele objetar, independentemente de seguro o juízo, pois a  a matéria escapa ao objeto dos embargos do devedor, dizendo respeito à relação processual da execução, denunciando a irregularidade, para que seja corrigida, só após o que correrá seu prazo para pagar ou nomear bens à penhora". 

Nelson Nery Júnior trata da questão em sua obra Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, página 139 a 140, afirmando:

“No entanto, mesmo antes de opor embargos do devedor, o que somente pode ocorrer depois de seguro o juízo pela penhora, o devedor pode utilizar-se de outros instrumentos destinados à impugnação no processo de execução, notadamente no que respeita às questões de ordem pública por meio da impropriamente denominada exceção de pré-executividade.

A expressão é imprópria porque “exceção” traz ínsita a idéia de disponibilidade do direito, razão porque não oposta a exceção ocorre a preclusão. O correto seria denominar esse expediente de objeção de pré-executividade, porque seu objeto é matéria de ordem pública decretável ex officio pelo juiz e, por isso mesmo, insuscetível de preclusão.

Assim, a possibilidade de o devedor, sem oferecer bens à penhora ou embargar, poder apontar a irregularidade formal do título que aparelha a execução, a falta de citação, a incompetência absoluta do juízo, o impedimento do juiz e outras questões de ordem pública, é manifestação do princípio do contraditório no processo de execução”.                            

No mesmo caminho, em sólida construção doutrinária, a admitir a exceção de pré-executividade, denominada também de não executividade, ou objeção de pré-executividade, destacam-se dentre outros, Pontes de Miranda – o primeiro doutrinador a discutir a matéria,  Ovídio Baptista da Silva, José Rogério Cruz e Tucci e Galeno Lacerda.

Entendimento da Jurisprudência 

O entendimento de nossos Tribunais, a nível de 2ª Instância ou Instância Superior (STJ), já se pacificou no acatamento da exceção ou objeção de pré ou não executividade, como meio de defesa do devedor, em determinadas situações, prescindindo da garantia do juízo.

Assim, para ilustração, passaremos a examinar alguns casos concretos, em que a exceção teve acatamento.                           

1º exemplo: Exceção de pré-executividade – cabimento: julgamento do REsp 221.202-MT, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo, em 09.10.2001, STJ:

“A objeção de pré-executividade pressupõe que o vício seja aferível de plano e que se trate de matéria ligada à admissibilidade da execução, e seja, portanto, conhecível de ofício e a qualquer tempo”.

2º Exemplo: Nulidade da execução – RT 671/187 – REsp 3.264–PR,  3ª turma, rel. Ministro Eduardo Ribeiro,  j. 28.6.90,  STJ:

Ementa oficial:  “Execução. A nulidade do título em que se embasa a execução pode ser argüida por simples petição, uma vez que suscetível de exame, ex offício, pelo juiz. O inadimplemento do contrato, a que se vincula o título, entretanto, constitui matéria que, para ser conhecida, requer seja alegada pela via de embargos.”

3º Exemplo: No mesmo sentido, conforme jurisprudência constante no Código de Processo Civil, de Theotônio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa, 35ª edição, Editora Saraiva:

“A nulidade da execução pode ser alegada a todo tempo, desde que ausentes os requisitos do art. 586 (RT 717/187)”.

4º Exemplo:  Segurança do juízo – dispensa:  julgamento do Resp 7.410-MT, publicado no Bol. AASP 1.746/187, com citação encontrada no voto do Ministro Athos Carneiro:

“A segurança do juízo não pode ser imposta naqueles casos em que o título em execução não se reveste das características de título executivo, porque, destarte, a própria execução estaria sendo ajuizada com abuso de direito por parte do credor, utilizando uma via processual que a lei, em tese, lhe não concede, Outra hipótese, em que creio não ser o caso de se exigir a segurança do juízo, é aquele caso em que o executado, pobre, não dispõe de bens para oferecer à penhora. Não é possível, dentro do sistema jurídico constitucional brasileiro, em que se assegura o pleno contraditório, limitá-lo, desta maneira, contra pessoas economicamente carentes.”

5º Exemplo: Alegação de Prescrição, independente de embargos – possibilidade: julgamento do Resp. 59.351-4-PR, 1ª TURMA, J. 11.04.1996, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, RT 732/203 – STJ, onde se lê na ementa oficial:

“Inexistindo bens penhoráveis, circunstância certificada pelo meirinho (e, em conseqüência, suspenso o processo de execução), desnecessária e prejudicial à economia processual, a indefinida espera para que o Juiz se manifeste sobre a extinção do crédito, em face da prescrição, cuja decretação foi requerida pelo executado, se este se encontra em absoluta impossibilidade de oferecer embargos.

A execução forçada se ultima com a satisfação do seu objeto, que é o pagamento ao credor. Pode, porém, estancar diante de empeços inarredáveis, como, adexemplum, nos casos de extinção do próprio direito do crédito exeqüendo, podendo em hipóteses excepcionais, o juiz extinguir o processo executório, antes mesmo de seguro o juízo com a penhora…”.

Embora para determinadas questões processuais no processo de execução, a jurisprudência, e mesmo a doutrina, exijam a oposição de embargos pelo devedor,  para  tais  questões serem discutidas, é certo que ao longo do tempo, a tendência em nossos Tribunais, tem sido a de dar maior alcance à objeção ou exceção de pré-executividade, embora de maneira não unânime, em algumas situações.

6º Exemplo:   trata da alegação de que a dívida foi paga.  Nesse passo, temos um Acórdão,  proferido no STJ, 1ª Turma, no Resp. 371,460-RS, cujo rel. foi o Ministro José Delgado, em 05.02.02, cuja ementa afirma que:

“a exceção de pré-executividade está limitada a questões relativas aos pressupostos processuais e às condições da ação, incluindo-se a alegação de que a dívida foi paga”.

7º Exemplo: quanto a oportunidade para alegação da exceção de pré-executividade, temos manifestação do STJ, 4ª Turma, REsp. 220.100-RJ, que teve como rel. o Ministro Ruy Rosado, j. em 02.09.99, que assim deliberou:

“ … a defesa que nega a executividade do título apresentado pode ser formulada nos próprios autos do processo de execução e independe de o prazo fixado para os embargos de devedor”.

8º Exemplo:  Finalmente, e ainda sobre a oportunidade de ser alegada a exceção, temos decisão do mesmo STJ, 4ª Turma, REsp. 419.376-MS, rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j. 16.05.02, que assim decidiu:

“Em se tratando de matéria conhecível de ofício, como é o caso da alegada falta de higidez do título cobrado, pode ela ser objeto de exceção de pré-executividade, ainda que não suscitada, antes, em sede de embargos à execução. Coisa julgada inexistente”.

Conclusão 

Temos que, regularmente, à luz do que dispõe o Estatuto Processual vigente, no processo de execução forçada, em que o credor é detentor de título de crédito judicial ou extrajudicial, o meio de defesa oponível pelo devedor, é o de embargos à execução.  E para oposição de embargos, é de rigor  a prévia segurança do juízo, conforme disposição expressa no artigo 737, incisos, do mesmo codex.

Situações existem, no entanto, relacionadas à falta de atendimento, por parte do credor, em seu pedido inicial, no tocante aos pressupostos processuais e as condições da ação, tidos como de ordem pública, em que o próprio juiz, responsável pela efetivação da prestação jurisdicional,  jurisdição, pode declarar ex officio, a impossibilidade de prosseguimento da execução.

Nessas hipóteses, e quando o juiz não observar de plano tais irregularidades, cabe ao devedor, independente da garantia do juízo, e conseqüentemente, de embargos,  alegar tais questões por meio de exceção de pré-executividade ou como preferimos, de exceção de não executividade. Tal possibilidade, embora não conste expressamente na legislação adjetiva, foi construída ao longo do tempo pela melhor doutrina, e recepcionada pela jurisprudência, notadamente no Superior Tribunal de Justiça, Instância maior para analisar questões dessa natureza.

Certamente, não se pode estimular a utilização de tal incidente, como medida procrastinatória, apta à mitigar o direito líquido e certo do credor regularmente habilitado ao processo de execução. Mas, em determinadas situações, se mostra o meio hábil e adequado, para estancar um verdadeiro abuso de direito, ensaiado por pretensos credores, que inabilitados ao processo de execução, tentam receber seus crédito, pelo meio mais rápido, qual seja, o processo executivo, obrigando o devedor à constrição de bens, que os torna por um bom tempo  indisponíveis, ou ainda, impossibilitando ao devedor pobre, que não dispõe de patrimônio penhorável, de se defender.

Negar-se, por fim, em situações específicas, a possibilidade de defesa ao  devedor, por meio do incidente denominado exceção de pré-executividade ou não executividade, ou outro meio processual qualquer, porque este é pobre e não tem bens à penhorar, contraria princípios constitucionais basilares em países democráticos e civilizados,  e certamente, não será essa  a melhor forma de se distribuir justiça.

BIBLIOGRAFIA
 

1.      ASSIS, Araken  de,  Manual do Processo de Execução, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996.

2.      LACERDA, Galeno, “Execução de Título Extrajudicial e Segurança do Juízo”, in Estudos  de Direito Processual, Ed. Saraiva, São Paulo, 1982.

3.     MOREIRA, José Carlos Barbosa, Novo Processo Civil Brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

4.      NERY JR., Nelson, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000.

5.      OLIVEIRA NETO, Olavo de Oliveira, A defesa do executado e dos terceiros na execução forçada, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo,  2000.

6.      PASSOS, J.J. Calmon de, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III, 8ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

7.      PAULO, José Ysnaldo Alves, Pré-Executividade Contagiante no Processo Civil Brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2000.

8.      THEODORO JR.,  Humberto, Curso de Direito Processo Civil – Processo de Execução e Processo Cautelar, vols. I e II, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998.

 

Referências Bibliográficas

CLOVIS BRASIL PEREIRA  –  Advogado, Especialista em Processo Civil e Mestre em Direito, Professor Universitário, Editor e Coordenador do Site Jurídico www.prolegis.com.br.   2003.

Contato: prof.clovis@terra.com.br

 


“Tutela Antecipada X Procedimento Cautelar”

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* Hélcio Benedito Nogueira –

                                            O Instituto da Tutela Antecipada, é novo no ordenamento jurídico brasileiro, advindo ao nosso sistema jurídico através da Lei número 8.952, de 13 de dezembro de 1994, com as modificações que lhe deu a Lei número 10.444, de 07 de maio de 2002; leis que deram ao artigo 273 do Código de Processo Civil, um novo “plus”, inserindo-lhe primordialmente dois incisos e cinco parágrafos e posteriormente, ressaltando-se que a chamada 2ª fase da reforma do Código de Processo Civil (Lei nº 10.444/02), trouxe substanciais modificações ao § 3º do referido artigo 273 e inseriu-lhe, ainda, mais dois parágrafos ; assim o atual texto do artigo 273; ficou constituído de dois incisos e sete parágrafos; mais do que nunca, ao que tudo indica o legislador processual civil, quis estabelecer, um divisor de águas entre a antecipação da Tutela e o procedimento Cautelar  (previsto à partir do artigo 796 do CPC).

                                               Em virtude de tais alterações legais (a de 1994 e a de 2002), esta relevante mudança, que se estabeleceu no ordenamento jurídico brasileiro, deixou clara a intenção do legislador processual em estabelecer diferenças entre a Tutela Antecipada e o Procedimento Cautelar. 

                                               Primordialmente, observa-se que a Tutela Antecipada, nunca se confundiu com o processo Cautelar; porquanto, através daquela, busca-se como o próprio nome já diz, obter por antecipação, o provimento parcial ou total, do pedido exordial, desde que existentes os requisitos para a antecipação da Tutela; quais sejam prova inequívoca do alegado na inicial, dano irreparável ou de difícil reparação, abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório em combinação com a sua não permissão de concessão, toda vez que houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipatório (art. 273 pár. 2º CPC).                                               

                                               Naquilo que pertine ao Procedimento Cautelar, através dele, não se busca obter o deferimento de antecipação da tutela pretendida , mas apenas e tão somente, uma ordem judicial, que garanta o resultado útil e eficaz da decisão que será proferida no processo de conhecimento ou de execução, assim, consoante exautivamente discorrido pela doutrina, somente cabíveis as Medidas Cautelares, quando haja fundado receio de lesão ou ameaça de lesão a direitos, através de atos ou fatos, que possam vir a causar danos irreparáveis ao processo (principal).

 

                                               Por conseguinte, é de se destacar que em alguns pontos ou aspéctos, referidos institutos se assemelham em outros evidenciam as diferenças.

                                               Quanto às semelhanças podemos destacar : ambas têm caráter provisório, porquanto nenhuma delas, visa a declarar, constituir ou condenar, nem criam ou modificam ou extinguem obrigações ou direitos. Ambos os Institutos são portanto coerentes com a modificabilidade e revogabilidade, fato inconteste que evidencia o caráter provisório.

 

                                               Ressalte-se que tanto em um, como em outro caso, o juízo que se instaura é de cognição sumária portanto não exauriente, pois, o magistrado ao analisar os pressupostos para a concessão tanto da Tutela Antecipada ou das Medidas Cautelares, levará em consideração a aparência e não a certeza do direito, objeto do pedido de proteção judicial. Assim, o juiz, ao conceder qualquer das ações distribuídas com fulcro nesses institutos, não estará, evidentemente decidindo nada na causa; apenas  e tão somente estará protegendo um direito, que segundo a sua subjetividade, “é bom” e  é “merecedor”, da proteção do Estado (nas Medidas Cautelares) ou antecipando provisóriamente e com possibilidade de revogação, o provimento jurisdicional. (nas ações com pedido de Tutela Antecipada).

 

                                               Logo, se há pontos convergentes e que traçam similitudes, existem também pontos diferenciadores, os quais se assentam no seguinte :

                                               Tutela Antecipatória , não é Tutela Cautelar, porque, não se limita a assegurar o resultado prático do processo, muito menos, visa a assegurar  a viabilidade da realização do direito afirmado pelo autor; porém, tem por escopo precípuo, buscar a concessão antecipada do provimento jurisdicional pretendido ou os seus efeitos. Portanto, a tutela antecipatória, é satisfativa, quando gera a concessão, desde logo, da efetiva prestação jurisdicional pretendida pelo seu autor.    

 

                                               As Medidas Cautelares, apesar de autônomas assim entendidas enquanto procedimento, guardam relação, de dependência com o processo principal (art. 796 CPC), existem em razão dele e para preservar o direito que ele contém. Já a Tutela Antecipada, independe de outro processo; porquanto já se encontra inserida no mesmo processo no qual se discute o direito substantivo perseguido.

 

                                               Na hipótese de Medida Cautelar preparatória, tem-se ainda, as predisposições legais insertas no artigo 806 do CPC; pois, após a concessão, a sua existência  está condicionada a propositura da ação principal, no prazo do trintídio. Já a tutela Antecipada, dura enquanto durar o processo; independendo de quaisquer outras providências, salvo se ocorrer motivo para a sua  revogação. 

                                               Quanto às Medidas Cautelares, é imperioso ressaltar que, não produzem coisa julgada material; pois a sentença aí prolatada, refere-se apenas ao direito que a parte tem ou não, de receber uma prestação jurisdicional preventiva do Estado; hábil a preservar um direito que será amplamente discutido no processo principal. Já no pedido de Tutela Antecipada, há que se falar em coisa Julgada Material, porquanto, pelo fato de estar inserida no próprio processo de conhecimento, o provimento jurisdicional, que é prestado assume a forma efetiva, sinalizando ao final o direito, das partes litigantes.  

                                               Outro ponto extremamente relevante a destacar, é que as ações pelo procedimento cautelar, podem ser concedidas ex offício, pelo magistrado, circunstância decorrente, do poder geral de cautela, que lhe é atribuído por lei (art. 798 CPC). Já a Tutela Antecipada, deve ser provocada pela parte interessada (caput do artigo 273 CPC), o que é coerente com a vedação de sua concessão de ofício; subordinando-se ao requerimento da parte.

                                               Considere-se ainda que nas Medidas Cautelares, não existe exame de mérito material; visto que, verifica-se apenas se o autor, possui o direito que diz ter  no processo principal, e que necessita de forma urgente ser preservado para que não se perca de forma a gerar danos irreparáveis. Já na tutela Antecipada, o deferimento do magistrado, está adstrito, aos pressupostos de sua concessão, intrinsecamente ligados ao direito material perseguido, e advêm de uma decisão interlocutória; a qual enfrenta ainda que de forma provisória e sumária o mérito da própria ação.

 

                                               Destaca-se ainda que as Medidas assecuratórias, buscam, a obtenção de proteção ao provimento final, enquanto que as medidas antecipatórias, antecipam a satisfação do direito pleiteado.

 

                                               As ações pelo procedimento Cautelar, apesar da característica da autonomia processual, têm função eminentemente auxiliar e acessória, pois, as Medidas Cautelares, existem em função de um processo chamado de principal (conhecimento ou de execução). Quanto à tutela Antecipada, deferida no processo de conhecimento, tem os caracteres da antecipação do próprio provimento jurisdicional solicitado; resultado que somente seria alcançado no final da lide, acaba portanto sendo adiantado mediante a permissão legal.

 

                                               Quanto ao perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, requisito comum em ambos os Institutos, é imperioso que se diga : para as Medidas Cautelares, o perigo deve estar ligado obrigatoriamente a ato da outra parte; para as ações com pedido antecipatório : o perigo vincula-se a “não concessão antecipada do pedido”, sendo facultativo estar ou não ligado a atuação da parte contrária.   

 

                                               Podemos asseverar ainda que no tocante à “urgência”, característica em princípio comum a ambos os Institutos, na prática tem-se ainda que ela, a urgência, é obrigatória no procedimento Cautelar; não sendo por conseguinte plena a obrigatoriedade na Tutela Antecipada, pois, segundo previsão legal do artigo 273, inciso II, do Código de Processo Civil, pode referida tutela ser concedida quando ficar caracterizado no processo o abuso do direito de defesa e o propósito meramente protelatório do réu; fato que por si só, descaracteriza a urgência nessa hipótese.

 

CONCLUSÃO

 

                                     É imperioso ressaltar, que a par do Código de Processo Civil italiano , ter de alguma forma inspirado o legislador brasileiro, quanto à implantação em nosso sistema jurídico, da Tutela Antecipada, o qual registra existência nas principais fontes do direito europeu contemporâneo, bem como o reconhecimento de que além da Tutela Cautelar, destinada a assegurar a efetividade do resultado final do processo principal, deveria mesmo existir em determinadas circunstâncias, o poder do juiz de antecipar provisoriamente a própria solução definitiva esperada no processo principal .

 

                                     No Brasil, referido Instituto, que representou um incrível avanço ao nosso direito processual,  tem estrutura singular, totalmente dispare no que se reporta à extensão e profundidade dos provvedimenti d’ urgenza , do sistema italano  (CPCItal.700) que é requisito basilar para a concessão do  que entendemos como tutela antecipada naquele ordenamento jurídico.

                                               Portanto no Brasil, o Instituto da Tutela Antecipada ganhou uma amplitude diferenciada, que denota com maior rigor quanto à finalidade social do processo; porquanto, na hipótese do interessado, não conseguir demonstrar a prova inequívoca ou a verossimilhança da alegação, a priori, não estará vedado de demonstrar os demais requisitos (art. 273,I e II), possibilitando-lhe a esperada antecipação da tutela, ressaltando-se que na hipótese do inciso II do artigo 273, o juiz, excepecionalmente, utilizando-se do poder sancionatório pode ainda conceder de ofício a antecipação da tutela .  

 

        

BIBLIOGRAFIA

 

MACHADO, Antônio Cláudio Da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Saraiva, 1997;

 

MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Campinas. BookSeller, 1997;

 

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Tereza Arruda Alvim, Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil: São Paulo: Revista dos Tribunais 2002.                                        

 


Referências Bibliográficas

Hélcio Benedito Nogueira  –  Advogado, Mestre pela Universidade Mackenzie, professor de Direito do Consumidor, Direito Civil e Processo Civil  na UnG em Guarulhos e Unicsul em São Paulo, Capital.

Direito do Consumidor e Gerações de Direitos

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*Sergio Resende de Barros

Muito se tem falado de gerações de direitos. Na realidade histórica, em vez de gerações estanques, há uma geração contínua, uma constante ampliação, subjetiva e objetiva, dos direitos humanos oponíveis ao poder político, passando por saltos qualitativos, que desencadeiam fases, que podem ser ditas gerações. Nesse crescimento e ampliação, na medida em que se torna necessário avançar objetiva e subjetivamente para proteger o ser humano contra as agressões antijurídicas, os direitos vão compreendendo cada vez mais objetos e estendendo-se a cada vez mais sujeitos.

Inicialmente, no processo histórico das revoluções liberais, sobretudo na Revolução Francesa de 1789, foram os direitos humanos (Droits de l’Homme et du Citoyen) concebidos como direitos Individuais. Naquele momento revolucionário, a necessidade histórica era a de extremar o indivíduo (individualismo) para contrapor sua liberdade a outro extremo: o poder político do rei (Absolutismo). No entanto, já alguns desses direitos – como o de trabalhar e o de ter a assistência da sociedade no caso de desemprego, que constam da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 – revelam um evidente sentido econômico e social, ainda que não tenham sido declarados, naquele momento histórico, com o fim de demandar a intervenção do Estado na ordem econômica e social.

A liberdade, nascida da transformação do Estado absoluto em Estado de direito pela revolução liberal, favoreceu o desenvolvimento da economia no curso da transformação do mercantilismo em capitalismo pela Revolução Industrial. Dessa evolução, no mesmo passo em que progrediu o capitalismo industrial, as massas operárias surgiram. Não livres. Mas sem meios concretos e materiais (econômicos e sociais) de gozar da liberdade. Essa foi assim reduzida a uma liberdade abstrata e formal (jurídica e política), acessível somente à elite social, cujo núcleo eram os senhores dos capitais e das terras. O desregramento das relações de emprego e o aviltamento do salário e das condições de trabalho chegaram a tal extremo, que sobreveio a instabilidade social, chegando até à desordem pública quebra-quebras, revoltas, rebeliões, revoluções. A exploração dos operários pelo capitalismo selvagem gerou o que o Papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), chamou a questão social.

Para resolver a questão social, duas linhas de pensamento evoluíram no mundo ocidental no século XIX: a linha moderada, visando a disciplinar o capitalismo e diminuir a injustiça social, sem abolir a ordem econômica capitalista, e a linha radical, propondo superar o capitalismo por uma nova ordem econômica, considerada socialmente mais justa, o socialismo, com variantes de radicalismo, entre as quais o comunismo e o anarquismo.

Na mesma oportunidade histórica (o final da I Guerra Mundial) e portanto, na mesma época (o fim da segunda década do século XX), essas linhas de pensamento foram postas em prática na Rússia e na Alemanha, dando início a superação, ou radical, ou moderada, do capitalismo desregrado.

Na Rússia, com a Revolução Bolchevique de 1917, adveio a total conversão do capitalismo a uma ordem econômica e social provisoriamente socialista, tida como preparatória de um socialismo integral e definitivo, o comunismo. O Estado liberal de direito foi substituído por um Estado – o soviético – que logo resvalou para o totalitarismo, sobretudo após a morte de seu fundador, Lênin.

Na Europa ocidental, a Alemanha, arrasada pela II Guerra, precisava reconstruir rapidamente e retomar em plenitude sua vida econômica e social, bem como reconstruir-se juridicamente: elaborar uma nova Constituição. Porém, não mais segundo o princípio de deixar fazer, deixar passar (laisser-faire, laisser-passer), mas sim de ensejar ao Estado intervir na ordem econômica e social, para reconstruir o que a Guerra destruíra.

Com esse ânimo inovador, reuniu-se a assembléia constituinte na histórica cidade de Weimar, onde vivera e morrera o maior dos poetas alemães, Johann Wofgang Von Goethe. Apesar de pequena, a cidade de Weimar se tornara um excelente centro cultural, desde o fim do século XVIII, na esteira do governo de um duque jovem e empreendedor, Karl August, que para ela atraiu diversos intelectuais e artistas. Tornou-se cidade famosa. Tanto que, em diferentes épocas, lá viveram Wieland, Goethe, Herder, Schiller e por lá passaram outros poetas, literatos, filósofos, etc. Goethe residiu e exerceu cargos administrativos em Weimar, nos dez últimos anos de sua vida. Por tudo isso, foi Weimar – em atenção à sua história e às suas raízes, fimes no mais puro germanismo – escolhida para sede da assembléia constituinte pós-guerra, da qual se esperava que fosse inovadora, mas também que reconstruísse a Alemanha com as suas próprias cinzas, de tal modo que – por haver perdido uma guerra internacional – não perdessem os alemães a sua autenticidade nacional.

Em 11 de agosto de 1919 foi promulgada a Constituição (ou Lei Fundamental, como dizem os alemães) de Weimar, que logo se tornou célebre, por ser a primeira Constituição escrita no mundo ocidental que, além da ordem política, cuidou da ordem econômica e social. Isso, a fim de interpor a ação do Estado para conter os excessos do capitalismo e promover a justiça social por uma efetiva igualdade social, concreta e material, buscando para todos igual oportunidade de gozar da liberdade e demais direitos humanos.

O anterior Estado liberal de direito se fazia reger rigorosamente pelo princípio da isonomia, igualdade meramente formal: todos são iguais perante a lei, assim como alei é igual para todos. A lei trata os indivíduos da mesma forma, sem levar em conta suas condições pessoais ou sociais. No Estado social de direito, posto pela Constituição de Weimar, a idéia de igualdade formal (de direito) foi completada pela noção de igualdade material (de fato), tendo-se compreendido que realizar a verdadeira igualdade não é tratar igualmente os desiguais, mas tratá-los desigualmente na proporção em que se desigualam, apoiando aquelas categorias ou partes da sociedade que, por sua condição social ou física, são mais fracas e precisam de uma especial atenção do Estado, a fim de que se possam equiparar às categorias mais fortes com que se relacionam e, enfim, igualar-se no possível com o restante da sociedade.

Esse princípio, bem formulado entre nós por Rui Barbosa, orientou os direitos econômicos sociais e culturais que – ditos abreviadamente direitos sociais – cresceram no século XX para proteger cada vez mais tais categorias sociais mais fracas, por isso ditas hipossuficientes. No curso desse desenvolvimento, tendo começado com o Direito do trabalho, protegendo a categoria dos empregados, uma vez que a questão social nascera da opressão do trabalho pelo capital, os direitos sociais alcançaram cada vez mais objetos e sujeitos. Assim, evoluíram de direitos categoriais – que protegem especificamente certas categorias sociais, como o empregado, o menor, a mulher, o idoso, o deficiente físico etc. – para direitos difusos – que protegem genericamente a sociedade em si mesma, difusamente, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à paz, o direito à saúde, o direito à educação etc.

É exatamente no cume dessa transição de direitos sociais categoriais para direitos sociais difusos que se situa o direito do consumidor ou, pelo prisma subjetivo, os direitos do consumidor. É direito categorial, sem dúvida. Protege uma categoria social, o consumidor, que é parte mais fraca na relação que tratava com categorias economicamente mais fortes: o fornecedor, o produtor, o comerciante. Mas, também, é direito difuso, porque protege uma categoria social tão ampla, que na prática alcança toda a sociedade humana, na qual ninguém há que não seja consumidor.

Os direitos do consumidor compõem um direito social que é ao mesmo tempo categorial e difuso. Óbvio que o direito do consumidor resguarda uma categoria social. Mas, por amparar uma categoria social que é praticamente irrestrita, ainda que teoricamente seja restrita à relação de consumo, ele é uma passagem – um momento de transição – dos direitos sociais categoriais aos direitos sociais difusos. Vale dizer: subjetiva e objetivamente, o direito do consumidor é um instante de evolução na qualidade – salto qualitativo – da segunda para a terceira geração de direitos.

Daí resulta uma peculiaridade importante, que marca esse recente ramo do Direito: protegendo especialmente a categoria dos consumidores, protege difusamente toda a sociedade. Essa bivalência – típica dos momentos de transição, em que se dá o salto qualitativo – explica porque a doutrina tem enquadrado os direitos (subjetivos) do consumidor como interesses difusos de toda a sociedade, no mesmo passo em que considera o direito (objetivo) do consumidor como direito social, integrado entre as categorias de direitos econômicos, sociais e culturais típicos da segunda geração de direitos. Na verdade, melhor é dizer que o direito do consumidor é ao mesmo tempo categorial (segunda geração) e difuso (terceira geração), por ser um tempo de transição da segunda para a terceira geração de direitos humanos fundamentais.

Essa peculiaridade aumenta a importância do direito do consumidor para as sociedades industrializadas, nas quais, entre a produção e o consumo, se inserem complexos meios de comércio e distribuição, assim como múltiplos intermediários de crédito e financiamento. Mas também – e igualmente – é importante o direito do consumidor para a s sociedades em industrialização. Aqui, as relações entre fornecedores e consumidores, por serem mais diretas e imediatas, refletem de perto a s contradições sociais do próprio país.

Nos países em industrialização, freqüentemente, em certos aspectos, as contradições atingem níveis críticos, instaurando gravíssimas crises econômicas e sociais que afetam a sociedade no seu todo; tal como vem ocorrendo com a crise econômico-financeira que aflige a Argentina e com a crise de energia elétrica, o apagão, que sobressalta o Brasil. Nesses momentos críticos, as relações gerais de consumo (como na Argentina) ou uma relação especial de consumo (como a de eletricidade no Brasil) assumem particular importância e, por via de conseqüência, também o direito do consumidor. Na Argentina trata-se de diminuir o déficit fiscal e, sobretudo, estimular o consumo geral que está retraído em face da incerteza da economia. No brasil, a preocupação é diminuir um consumo em especial: o de energia elétrica. Mesmo sendo assim solicitado em sentidos contrários por situações contraditórias, o direito de consumidor sempre comparece, servindo à causa do consumidor, para protegê-lo, tanto no aumento quanto na diminuição do consumo.

No Brasil, particularmente, hoje se vive o fim do ciclo de transição de economia agrária para a industrial. Ao longo do século XX, o êxodo rural levou a maioria da população do campo para as cidades. A concentração desordenada das metrópoles, ampliando a base social de menor poder aquisitivo, gerou condições especiais de consumo. Ora da euforia, ora de apatia da massa de consumidores, resultam problemas diários para o direito do consumidor: publicidade enganosa, preços abusivos, juros extorsivos, crédito ardiloso, qualidade inferior, entrega irregular, garantia sonegada e outros. Da parte dos próprios consumidores, surgem problemas como a superestimação do fator preço, a inadimplência do pagamento, a minimização ou a exacerbação do consumo, a busca do comércio informal, o descuido com a qualidade etc. Sem contar crises de serviços públicos, como greves nos transportes e restrições como o apagão, que repercutem imediatamente sobre a produção e o consumo, tumultuando as relações jurídicas entre produtores, comerciantes, financiadores, distribuidores, transportes, consumidores, etc.

Tais crises – que muitas vezes se somam às que são freqüentes na economia monetária, como as crises de câmbio ou de inflação – acarretam a edição de normas jurídicas – ora apressadas, ora inconseqüentes – que violentam os direitos do consumidor e do fornecedor, tolhendo a segurança jurídica, sem a qual a produção, o consumo e os setores intermediários entram em desordem ou em recessão.

Nessas horas críticas, seja no caso de expansão, seja no de retração do consumo, o direito do consumidor entra em cena – e atuando até contra o Poder Público – para garantir ou restabelecer os padrões de justiça nas relações jurídicas de consumo, que são fundamentais para toda a sociedade.

Nos momentos de crise cresce a desigualdade entre os que têm poder e os cidadãos comuns. Estes, sem poder político ou econômico, de nada mais de pode socorrer senão do Poder Judiciário, a partir dos Juízes de primeiro grau. Nesse sentido, o Judiciário brasileiro tem sido o pronto-socorro da cidadania. Previne ou cura lesões causadas pelo desatino do poder político ou do econômico. Há nesse pronto-socorro remédios processuais, como o mandado de segurança e a ação civil pública. Mas, também. há remédios substanciais. Destes, um dos mais vigorosos é o direito do consumidor. Seu vigor ficou evidente há pouco tempo, quando serviu de fundamento para refrear – e até prevenir – as pretensões excessivas do governo, na recente decretação do apagão.

Nada mais é preciso acrescentar para mostrar que a natureza bivalente do direito do consumidor – simultaneamente categorial e difuso – dá-lhe uma eficácia social redobrada, pois, ao mesmo tempo, lhe enseja proteger juridicamente uma categoria – o consumidor – , e também, por esse meio, defender a própria sociedade contra os riscos de abalo ou ruína que acompanham a deterioração das relações jurídicas de consumo, seja pelo crescimento, seja pelo definhamento desordenados.

Publicação: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 40, p. 278-282, out./dez. 2001.


Referências Bibliográficas

Sérgio Resende de Barros   –  Mestre, Doutor e Livre Docente pela Faculdade de Direiro da USP, Professor de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Ciência Política nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da USP, UNIMEP em Piracicaba, UnG em Guarulhos, FAAP, Faculdade Módulo de Caraguatatuba e da Escola Superior de Direito Constitucional.

www.srbarros.com.br

Avanços e retrocessos das Sociedades Limitadas no Novo Código Civil

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* Marlon Tomazette  –

1 – AS SOCIEDADES LIMITADAS E SUA IMPORTÂNCIA.

As sociedades por quotas de responsabilidade limitada representam mais de noventa por cento das sociedades comerciais existentes no Brasil, desempenhando papel fundamental no dia a dia comercial do país. Conquanto, não representem tanto investimento quanto às sociedades anônimas, é certo que tal tipo societário desempenha uma posição de destaque na vida econômica do país, sobretudo pelo elevado número de relações nas quais está presente.

O elevado número de sociedades limitadas se justifica pelas vantagens de tal tipo societário, unindo as vantagens das sociedades anônimas e das sociedades regidas pelo Código Comercial, isto é, tais sociedades possuem a limitação de responsabilidade das anônimas, e a simplicidade de constituição e administração das sociedades do Código Comercial, representando a forma ideal de exercício da atividade econômica por pequenas e médias empresas. Sem maiores formalidades ou complicações e com riscos limitados de prejuízo, é indubitável que é esta é a forma mais aconselhável para os pequenos e médios empreendimentos.

Tal tipo societário foi introduzido no Brasil pelo Decreto 3.708/19, o qual tem força de lei, e possuía apenas dezenove artigos, incluído o décimo nono que revoga as disposições em contrário. A concisão de tal decreto deixa enormes lacunas, as quais são normalmente supridas pela atuação dos próprios sócios. Todavia, nem sempre os sócios disciplinavam todos os assuntos necessários, dando margem a inúmeras discussões na doutrina sobre a solução para tais casos, demonstrando a imperfeição da disciplina de tão importante tipo societário[2].

Apesar das inúmeras críticas recebidas, tal decreto não sofreu nenhuma alteração em seus artigos, mantendo-se íntegra a disciplina original. Com o advento do novo Código Civil, as sociedades, doravante denominadas apenas limitadas, passam a ser disciplinadas mais detalhadamente.

No presente trabalho, analisaremos as inovações de tal disciplina, a luz da experiência brasileira e do direito comparado, mostrando que em alguns pontos, na verdade chegamos a um retrocesso.

 

2 – A LEGISLAÇÃO SUPLETIVA

Mesmo com o advento do novo código civil, a legislação sobre as sociedades limitadas se mostra insuficiente, sendo necessário o recurso à outra legislação, que será aplicada supletivamente.

Com o advento do novo Código Civil, a questão recebe um novo tratamento, ao se afirmar que nas omissões do capítulo sobre as limitadas, incidem as regras sobre a sociedade simples, salvo se no contrato social, os sócios preferirem a aplicação da lei das sociedades anônimas[3].

O novo Código Civil afasta a discussão doutrinária, assegurando aos sócios a liberdade de adotar as regras das sociedades simples ou das sociedades anônimas. Ao invés de disciplinar toda a matéria, o contrato social pode simplesmente fazer referência à lei das sociedades anônimas, ou silenciando, buscar a solução nas normas sobre as sociedades simples.

Todavia, tal regime peca em inúmeros sentidos.

Em primeiro lugar, o ideal seria que a sociedade limitada possuísse toda uma regulamentação própria, não necessitando do socorro a nenhuma legislação supletiva. Em segundo lugar, as normas sobre as sociedades simples nem sempre se adequam à velocidade das relações empresariais da atualidade, na medida em que não foram feitas para disciplinar as sociedades empresárias.

Ora, as sociedades simples não se destinam ao exercício de atividade empresarial, ao contrário das sociedades limitadas que exercem basicamente tal tipo de atividade. Assim sendo, é um contra-senso buscar nas sociedades simples soluções, para as sociedades limitadas[4]. Melhora seria a inexistência de remissões, ou ainda a remissão simplesmente à lei de sociedades anônimas, que melhor se coaduna com a natureza das atividades desenvolvidas na limitada.

Além disso, a dualidade de regimes legislativos da sociedade limitada é extremamente perigosa, pois pode gerar uma grande insegurança, sobretudo no que diz respeito às relações da sociedade com terceiros, matéria esta que não está sujeita a disciplina pelos sócios, nem é disciplinada especificamente em relação às limitadas, e possui tratamento diverso nas sociedades anônimas e nas sociedades simples.

 

3 – FORMAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL

O capital social é formado pela soma das contribuições dos sócios, que são destinadas à realização do objeto social. Assim, o capital social é aquele patrimônio inicial, próprio da sociedade, indispensável para o início das atividades sociais.

O capital social só pode ser alterado mediante uma alteração do contrato social, daí falar-se também em capital nominal, vale dizer, trata-se de um valor fixado no contrato social, cuja variação é condicionada a uma alteração desse contrato. De outro lado, há o patrimônio da sociedade, que não se confunde com o capital social, pois o patrimônio está sujeito a oscilações a todo instante. Normalmente, o capital social se identifica com o patrimônio inicial da sociedade[5].

Conquanto represente a princípio, um valor nominal, as contribuições dos sócios devem ser efetivas, não podendo ser fictícias, dada a importância do capital social, como garantia dos credores e também para a determinação da responsabilidade dos sócios perante terceiros. Por isso, não se pode incorporar ao capital social um bem por um valor superior ao seu valor efetivo. A fim de proteger a integridade do capital social, o novo Código Civil afirma que os sócios respondem solidariamente pela exata estimação dos bens conferidos, pelo prazo de 5 anos (art. 1.055), vale dizer, se houve uma super avaliação de bens em prejuízo da efetividade do capital social, os sócios serão obrigados a desembolsar a diferença de seu patrimônio pessoal.

 

4 –A VONTADE DA SOCIEDADE

A sociedade limitada regular é uma pessoa jurídica e como tal é dotada de uma vontade própria, expressa pelos sócios em reunião ou assembléia. Há que se ressaltar que tais reuniões ou assembléias devem deliberar sobre as matérias de maior importância para a sociedade, pois no dia a dia, quem exprime e põe em prática a vontade da sociedade são os administradores[6], em função da sua capacidade gerencial.

Para as matérias de maior relevância exige-se um encontro formal dos sócios para a deliberação. Tais matérias são aquelas indicadas nos artigos 1.071, 1.066 § 1º, e 1.068, como por exemplo, a aprovação de contas, modificações do contrato, fusões, nomeação de administradores e fixação de sua remuneração, dentre outras matérias relevantes.

Nesses casos, as deliberações dos sócios serão tomadas em reuniões ou assembléias. Todavia, em qualquer caso, dispensa-se a assembléia ou a reunião se houver pronunciamento por escrito de todos os sócios (art. 1.072, § 3º), tal qual ocorre no direito português[7]. Trata-se de uma questão de lógica, pois em tais já houve a manifestação prévia da unanimidade dos sócios, vale dizer, a vontade social já se exteriorizou.

 

4.1 – REUNIÕES

As reuniões dos sócios não possuem maiores regras no corpo do código civil, sendo aplicadas às mesmas as disposições do contrato social, e no silêncio as regras sobre a assembléia. A reunião será utilizada em sociedades dotadas de poucos sócios, menos de dez, havendo uma grande margem de liberdade para sua disciplina no contrato social[8], pois em tais sociedades não seria razoável impor os requisitos e formalidades de uma assembléia[9], as quais são obrigatórias para as sociedades com mais de 10 sócios.

 

4.2 – ASSEMBLÉIA DOS SÓCIOS

Em relação às assembléias, órgão que exprime a vontade da sociedade, o novo código desce a inúmeros detalhes, esclarecendo a obrigatoriedade da realização da mesma nos primeiros quatro meses após o final do exercício social, a fim de apreciar as contas dos administradores, deliberar sobre o balanço patrimonial e sobre o balanço econômico, e eventualmente designar administradores, e quaisquer outras matérias incluídas pelos sócios. Institui-se no âmbito das limitadas algo muito similar a assembléia geral ordinária da sociedade anônima. Além de tal assembléia ordinária, outras podem ser realizadas para tratar dos mais diversos assuntos.

Não sendo caso de dispensa da realização da assembléia geral, a mesma deve ser convocada, pelos administradores, e subsidiariamente pelos sócios ou pelo conselho fiscal, se houver (Art. 1.073).  A convocação deve ser realizada de forma a dar ciência inequívoca aos sócios da data, hora, local e relação das matérias a serem tratadas, para que os mesmos compareçam e possam defender seus interesses na formação da vontade social. Em face disso, deve haver um procedimento legal para a convocação da mesma. Neste particular, andou mal o novo código civil, ao estabelecer que a convocação será realizada por meio de publicações na imprensa (art. 1.152, § 3º), o que é muito dispendioso para a sociedade, além de dar uma ciência presumida da realização da assembléia.

Tentando contornar as dificuldades da convocação pela imprensa, o próprio código admite a sua dispensa, desde que compareçam todos os sócios, ou que todos dêem a ciência por escrito da realização da assembléia. Melhor seria estipular de imediato a mesma regra dos direitos italiano e português, que determinam a convocação mediante aviso postal para os sócios nos endereços constantes dos livros sociais, com uma antecedência mínima que varia de legislação para legislação[10], a qual além de menos dispendiosa, conseguiria de forma mais razoável atingir a finalidade de cientificar os sócios da realização da assembléia[11].

Não havendo a ciência escrita da realização da assembléia, deve haver a publicação por três vezes de editais na imprensa oficial e em jornal de grande circulação, com antecedência mínima de 8 dias contada da primeira publicação.  Regularmente convocada, a assembléia deve ser instalada, isto é, deve iniciar seus trabalhos, para tanto se a presença de titulares[12] de três quartos do capital social, em primeira convocação.

Não atingido tal quorum, haverá uma segunda convocação, pelo mesmo modo, com antecedência mínima de 5 dias contada da primeira publicação, e a assembléia poderá funcionar com qualquer número. Entrando em funcionamento, à mesma compete deliberar sobre as matérias constantes da ordem do dia, devendo a assembléia ser presidida e secretariada por sócios, escolhidos entres os presentes (art. 1.075).

 

4.3 -DELIBERAÇÕES

As deliberações da sociedade serão tomadas pelos votos dos sócios, contados de acordo com a participação no capital social (art. 1.010). O exercício do direito de voto poderá ser efetivado pessoalmente ou por meio de procurador, exigindo-se que tal procurador seja outro sócio, ou um advogado. Haverá aqui a constituição de um mandatário, que deve ter poderes especiais, para votar todas as matérias da ordem do dia, ou apenas algumas, tal qual se entende em relação às sociedade anônimas[13].

Em se tratando de mandato sem uma delimitação de prazo exigida na lei, ao contrário do que ocorre na Sociedade anônima, acreditamos que se aplicam as regras gerais atinentes a tal contrato, admitindo-se sua estipulação por prazo indeterminado, e a revogação a qualquer tempo pelo mandante.

No regime do Decreto 3.708/19 foi estabelecido o regime majoritário, o qual não mais prevalece para o novo código civil, que estabelece quoruns diversificados para as deliberações. Assim, para a modificação do contrato social, a fusão, a incorporação da sociedade por outra, sua dissolução, ou a cessão do estado de liquidação exige-se a aprovação de três quartos do capital social. Em relação à nomeação, destituição ou fixação de remuneração dos administradores, bem como ao pedido de concordata, exige-se mais da metade de todo o capital social. Exige-se a unanimidade para a designação de administrador não sócio, enquanto o capital não estiver integralizado. Há ainda o quorum de dois terços do capital social para a destituição de administrador sócio, nomeado pelo contrato social, e para a nomeação de administrador não sócio, quando o capital já estiver totalmente integralizado. Por fim, em relação às demais deliberações exige-se a maioria dos votos dos presentes à assembléia, salvo quorum maior exigido pelo contrato social.

Acreditamos que um quorum qualificado estabelecido rigidamente na lei em três quartos do capital social é injustificável, porquanto poderá gessar a atuação das sociedades limitadas maiores, praticamente inviabilizando tais providências. Seria mais aconselhável estabelecer o quorum qualificado de mais da metade do capital social apenas, que já representaria efetivamente a vontade social, permitindo ao contrato social estipular um quorum maior. Desta forma, se atentaria para as peculiaridades de cada sociedade.

 

5 – ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE

A ausência de substrato concreto das pessoas jurídicas, torna imprescindível a intermediação de um órgão, para a exteriorização da vontade daquelas, bem como para a gestão da sociedade, isto é, para a condução dos negócios sociais de acordo com as linhas traçadas pelos sócios. Esse órgão é o órgão administrativo da sociedade, que pode ser composto por uma, ou por várias pessoas, que podem ter competências conjuntas ou separadas, ou ainda ter um regime complexo similar ao que ocorrer nas sociedades anônimas[14].

No regime do Decreto 3.708/19, nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada tal “presentante” da vontade social deveria ser necessariamente sócio[15], porquanto o Decreto 3.708/19 ao se referir ao gerente, sempre o faz juntamente à palavra sócio, o que nos leva a conclusão de que só existem sócios – gerentes, não podendo haver gerentes alheios ao quadro social. Tal sócio deveria ser indicado no contrato social, e no silêncio deste a gerência será exercida por todos os sócios conjuntamente (art. 302, 3 do Código Comercial).

Com o novo Código Civil, a sistemática da gestão da sociedade limitada é profundamente alterada, sendo aperfeiçoada pelo novo diploma legal.

Em primeiro lugar, admite-se que o contrato social expressamente permita a nomeação de administradores estranhos ao quadro social, facilitando a profissionalização da gestão. Entretanto, caso exista a permissão contratual, ainda assim, exige-se um quorum qualificado para a nomeação de tais estranhos, qual seja, a unanimidade enquanto o capital não estiver totalmente integralizado, e dois terços do capital social após sua integralização, em função dos maiores riscos que podem advir da nomeação de um estranho.

Além disso, admite-se a nomeação dos administradores no contrato social ou em ato separado, neste caso pela maioria do capital social (art. 1.071, II e 1.076, II).  Conquanto se aconselhe a nomeação no contrato social[16], é certo que a nomeação em ato separado não acarretará nenhuma insegurança nas relações da sociedade, pois tal administrador além de tomar posse na escrituração da sociedade, deverá averbar sua nomeação no registro competente (art. 1.062, § 2º). Assim, diante do registro sempre se terá certeza de quem é o administrador da sociedade.

 

6 – AS RELAÇÕES DA SOCIEDADE LIMITADA COM TERCEIROS

Diante do poder de “representação” que toca aos administradores da sociedade, são eles os responsáveis pelas relações da sociedade com terceiros, obedecendo-se aos limites impostos pela própria sociedade na organização do exercício desse poder.

Praticando atos que não extrapolem tais limites, os administradores praticam atos regulares de gestão, os quais são imputados à sociedade e não a eles, uma vez que são meros órgãos que fazem presente a vontade da sociedade. Tais atos são de responsabilidade exclusiva da própria sociedade, não havendo que se cogitar de responsabilização do patrimônio do administrador.

Todavia, nem sempre tais administradores agem da maneira correta, vale dizer, nem sempre eles exercem seus poderes em benefício exclusivo da sociedade, respeitando os limites de seus poderes. Em determinados casos, movidos por vicissitudes pessoais, eles podem agir violando a lei ou o contrato social, vale dizer, em exorbitância aos poderes que lhe foram atribuídos pelo contrato social.

Nesses casos, não há dúvida que o administrador assumirá responsabilidade pessoal por tais atos. De acordo com  José Lamartine Corrêa de Oliveira “há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou o gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) – a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ilícito seu, por fato próprio”[17].

E a sociedade? Ela se vincula por tais atos? A sociedade terá responsabilidade perante os terceiros, e posteriormente responsabilizará o administrador que extrapolou seus poderes? Ou, a responsabilidade será exclusiva dos administradores?

Entendia-se antes do advento do novo Código Civil que as meras restrições contratuais aos poderes de gerência não são oponíveis perante terceiros de boa fé, uma vez que  não se pode obrigar que os terceiros toda vez que forem contratar com a sociedade examinem o contrato social da mesma, para verificar os exatos limites dos poderes de gerência.

A dinâmica das relações contratuais, aliada a proteção da boa fé, impõe a aplicação da teoria da aparência, para vincular a sociedade. “É exigir demais, com efeito, no âmbito do comércio, onde as operações se realizam em massa, e por isso sempre em antagonismo com o formalismo, que a todo instante o terceiro que contrata com uma sociedade comercial solicite desta a exibição do contrato social, para verificação dos poderes do gerente…”[18]

A modernidade e a massificação das relações nos impõe neste caso a aplicação da teoria da aparência, pela qual se o ato parece regular é dessa forma que ele deve ser tratado. A boa-fé dos terceiros que contratam com a sociedade em situação que acreditam perfeitamente regular deve ser prestigiada. A sociedade e os sócios que escolheram mal o gerente não podem se beneficiar em detrimento da boa –fé de terceiros[19].

Tal posição vem sendo acolhida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que afirma expressamente que “é válida a fiança prestada por sócio-diretor de empresa com poderes de administração, sendo certo que a existência de vedação no contrato social pertine às relações entre os sócios, não tendo o condão de prejudicar o terceiro de boa-fé”[20].

Com o advento do novo Código Civil, há uma nova solução em detrimento dos terceiros de boa-fé.

Não há uma solução clara a tal questão nas normas relativas às sociedades limitadas. Todavia, os artigos 42 e 1.174 do novo Código Civil, que são normas gerais aplicáveis a todas as sociedades regidas por tal Código, afirmam que as restrições aos poderes do administrador podem ser opostas aos terceiros, desde que estejam averbadas no registro da sociedade, ou quando sejam conhecidas do terceiro com quem se tratou.  Tais dispositivos denotam a ausência de responsabilização da sociedade pelos atos dos administradores, que extrapolem seus poderes, protegendo a sociedade em detrimento dos terceiros que de boa fé contratem com a sociedade.

Acolhe-se neste particular uma orientação que vem sendo abandonada no direito comparado[21], o qual tende a prestigiar o tráfico jurídico, não aplicando mais teorias como a dos atos ultra vires, que é reavivada com o advento do novo Código Civil (art. 1.015, parágrafo único; 42 e 1.174). Ademais, pune-se o terceiro de boa fé inclusive nos casos em que a aparência denota a regularidade do ato praticado

Além disso, mesmo que se fosse buscar a solução nas normas supletivamente aplicáveis às limitadas, quais sejam, as normas relativas às sociedades simples, e as normas relativas às sociedades anônimas, se chegaria a uma solução muito similar, pois o tratamento da matéria em relação às sociedades simples é diferente daquele dado às sociedades anônimas. Nestas, protege-se a boa fé dos terceiros, vinculando a sociedade sempre que a boa-fé estiver presente[22]. Naquelas, de acordo com o retrocesso que ocorrerá no novo código, o ato não vincula a sociedade se o terceiro estiver de má fé, se a restrição constar do contrato social, ou se o ato praticado for alheio ao objeto social (art. 1.015, parágrafo único).

Assim, com o novo regime, seria sempre necessária a consulta ao contrato social para saber se a sociedade neste particular é regida pelas normas das sociedades simples, ou pelas normas relativas às sociedades anônimas, o que dificulta, diminui a velocidade e torna mais inseguras as relações com a sociedade.  No caso de aplicação das normas sobre as sociedades simples, a consulta ao contrato é necessária também para saber a real extensão dos poderes dos administradores. De outro lado, no caso de aplicação das regras sobre as sociedades anônimas, seria necessária a consulta ao contrato para se chegar a tal conclusão, o que já permitiria o conhecimento da exata extensão dos poderes dos administradores.

 

7 – DIREITO DE PREFERÊNCIA

No regime do Decreto 3.708/19 não havia nenhuma regra sobre o direito de preferência dos sócios, isto é, sobre a prioridade para a subscrição das novas quotas decorrentes do aumento do capital social.

Com o novo Código Civil, passa a haver uma disciplina expressa nesse sentido, assegurando-se aos sócios o direito de participar com prioridade no aumento do capital social, na proporção de suas quotas. Seguindo o exemplo das sociedades anônimas,  é fixado o prazo decadencial de 30 dias para o exercício do direito de preferência. Transcorrido em branco tal prazo, será livre a negociação das quotas, condicionando-a, todavia, a uma posterior aprovação da modificação contratual que decorrerá de tal negociação.

 

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TOMAZETTE, Marlon. As sociedades por quotas de responsabilidade limitada e os atos dos sócios gerentes. Universitas Jus, Brasília, nº 5, p. 119-129, jan-jun 2000.

——————————————————————————–

[1] Professor de Direito Comercial no Centro Universitário de Brasília – UniCeub e na Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Distrito Federal, Procurador do Distrito Federal e Advogado, autor do Livro “Direito Societário” da editora Juarez de Oliveira.

[2] MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 268.

[3] Texto do artigo 1.053: “A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”

[4] ARAÚJO, Paulo Barreto de. Aspectos da sociedade limitada no projeto do Código Civil. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 67, v. 517, nov/78, p. 28; TEIXEIRA, Egberto Lacerda. As sociedades limitadas e o projeto do código civil. Revista de direito mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, Ano XXXIV, nº 99, jul-set/95, p. 69.

[5] LAURINI, Giancarlo. La societá a responsabilitá limitata: tra disciplina attuale e prospettive di riforma. Milano: Giuffré, 2000, 49.

[6] LAURINI, Giancarlo. La societá a responsabilitá limitata, p. 107.

[7] FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 414.

[8] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 2, p. 427.

[9] GARRIGUES, Joaquín. Curso de derecho mercantil. 7. ed. Bogotá: Temis, 1987, v. 2,  p. 258.

[10] FERRARA JÚNIOR, Francesco; CORSI, Francesco. Gli imprenditori e le societá.11. ed. Milano: Giuffrè, 1999, p. 879; FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de direito das sociedades, p. 400.

[11] TEIXEIRA, Egberto Lacerda. As sociedades limitadas e o projeto do código civil, p. 71

[12] Em tal quorum devem ser incluídos os procuradores dos sócios.

[13] CARVALHOSA, Modesto, Comentários à lei de sociedades anônimas, v. 2, p. 579

[14] LAURINI, Giancarlo, La societá a responsabilitá limitata, p. 142.

[15] REQUIÃO, Rubens, op. cit., p. 435; COELHO, Fabio Ulhoa, op. cit., p. 423; CRISTIANO, Romano Cristiano, Sociedade Limitada no Brasil, p. 139; LUCENA, José Waldecy, Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, p. 317

[16] ANDRADE JUNIOR, Átila de Souza Leão. O novo direito societário brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 200.

[17] OLIVEIRA, José Lamartine Côrrea. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979,  p. 520

[18] REQUIÃO, Rubens, Curso de direito comercial, Vol. 1, p. 397

[19] TOMAZETTE, Marlon. As sociedades por quotas de responsabilidade limitada e os atos dos sócios gerentes. Universitas Jus, Brasília, nº 5, p. 119-129, jan-jun 2000.

[20] STJ – 5ª Turma – RESP 180.201/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 13.09.99.

[21] HAMILTON, Robert W, The law of corporations, p. 97; GALGANO, Francesco, Diritto civile e commerciale, v. 3, tomo 2, p. 277; FERRARA JÚNIOR, Francesco; CORSI, Francesco. Gli imprenditori e le societá.11. ed. Milano: Giuffrè, 1999, p. 315; JAEGER, Pier Giusto e DENOZZA, Francesco, Appunti di Diritto commerciale, v. 1, p. 357.

[22] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 3, p. 155; PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 219; TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. O conselho de administração na sociedade anônima. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 72.

 


Referências Bibliográficas

Marlon Tomazette  –  Professor de Direito Comercial no Centro Universitário de Brasília – UniCeub e na Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Distrito Federal, Procurador do Distrito Federal e Advogado, autor do Livro “Direito Societário” da editora Juarez de Oliveira.

marlon@apendf.com.br

DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

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* Volúsia Aparecida Sales

A Constituição Federal vigente determina implicitamente em seu conteúdo os princípios de tributação e os elementos delimitadores da atividade de tributar, funcionando como elemento disciplinador do poder de tributar, nos artigos 145 a 159.

Destarte, a Constituição traduz no tópico das “limitações do poder de tributar”, os princípios que amparam direitos fundamentais do cidadão, como ressalta Luciano Amaro. Princípios basilares como o direito a segurança jurídica, dentro outros que, protegem uma série de princípios constitucionais não estritamente tributários, como o da legalidade e evidentemente traça outros dedicados  especificamente à proteção da condição de contribuinte e do poder estatal em arrecadar tributos na conformidade da Lei maior.

Como disserta o Prof. WALTER GASPAR, os princípios que norteiam e informam a ordem jurídico-tributária se encontram de forma expressa ou tácita na Constituição, podendo ser gerais ou específicos.

No entanto, serão agora, objeto de nossa análise suscinta, os princípios gerais expressos, a saber: Princípio federativo; Princípio da Legalidade; Princípio da igualdade tributária; Princípio da anterioridade e da Irretroatividade: Princípio da Vedação do Confisco; Princípio da Imunidade Tributária; Principio da Uniformidade Geográfica, dentre outros de igual importância, como o Principio da  Capacidade Contributiva.

No capítulo I, do título VI, da Constituição da República Federativa do Brasil, está prescrita toda a regulação do sistema constitucional tributário, nos artigos 145 a 169, reservando o artigo 150 e seus incisos, ênfase aos princípios constitucionais tributários dos entes federativos, bem como, no artigo 151 a uniformidade geográfica a ser observada pela União Federal.

Em verdade, alguns Autores afirmam que o sistema constitucional tributário é um verdadeiro subsistema, que trata dos aspectos da imposição tributária pelo Estado, dos poderes exercidos por este na esfera tributária e das garantias dos contribuintes perante estes poderes.

Roque Carrazza, conceituando o tema concernente ao Sistema, exterioriza que:

“Sistema, pois, é a reunião ordenada das várias partes que formam um todo, de tal sorte, que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras”.

Paulo de Barros Carvalho, analisando o sistema constitucional tributário como um verdadeiro subsistema, nos traz seu entendimento:

“Pertencendo ao fundamento da Constituição, da qual se destaca por mero expediente lógico de cunho didático, o subsistema constitucional tributário realiza as funções do todo, dispondo sobre os poderes capitais do Estado, no campo da tributação, ao lado de medidas que asseguram as garantias imprescindíveis à liberdade das pessoas, diante daqueles poderes. (…)“

DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS  

Antes mesmo de adentrarmos nos princípios tributários propriamente ditos, acreditamos relevante para maior compreensão deste texto, traçarmos modestos conceitos de distinção entre princípios e regras.  

Estes são categorias do conceito norma, que podem vir revestidas ou de um preceito de caráter geral, enunciador de uma pauta de valores ou de um mandamento sistêmico – princípio – ou de um comando prescritivo, específico, de natureza concreta – regra.

A doutrina estrangeira e nacional de direito constitucional, tem em boa medida, partindo para a distinção entre princípio e regra, incluindo-os no círculo da norma jurídica, porém ocupando as duas, espaços diferenciados justamente em razão de sua distinção.

Conquanto não seja fácil proceder a esta distinção, brilhantes  doutrinadores, elucidam  estes institutos, dentre esses, Celso Antonio Bandeira de Mello  que nos ensina:        

“Princípio – como já averbamos alhures é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo’’.

Avaliando e analisando entendimentos doutrinários e especialmente o proferido por Celso Antonio Bandeira de Mello, compreendemos que os princípios jurídicos são verdadeiros comandos ordenadores do sistema.

Os princípios constitucionais são aqueles consagrados expressa ou implicitamente no sistema, que tem por função inspirar a compreensão das regras jurídicas, informando o seu sentido e atuando como mandamentos a serem seguidos no exercício do direito, em consonância com as normas previstas na Lei Maior. 

PRINCÍPIOS GERAIS E PRINCÍPIOS INERENTES AO SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

Evidente, que há princípios implícitos que de igual forma tem valor em sua normatividade que, analisados na interpretação dos que especificamente protegem o exercício do direito financeiro, somam maior efetividade e aplicabilidade das normas constitucionais.

Dentre eles o PRINCIPIO FEDERATIVO:

O artigo 4. da Constituição Federal estabelece:

 “A República Federativa do Brasil, rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”:

(…)

V – igualdade entre os Estados.

Neste diapasão, é a lição do artigo 1:

“A Republica Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e o Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito(…)

Elencados como estão os artigos em referencia, claro que o principio federativo de igual forma acaba por refletir no campo do direito tributário.

PRINCIPIO DA ISONOMIA 

Indubitavelmente, esse é principio basilar em nosso sistema constitucional, ressaltando o espírito do regime democrático, demonstrando em sua imperatividade o verdadeiro espírito da Federação e democracia como preceitos de cláusulas pétreas.

O princípio da igualdade expresso no artigo 5. da Carta Magna, em seu “caput” determina que: “Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza……”

Por outro lado, no artigo 150, II da Constituição Federal, encontramos dentre as limitações de tributar o ali previsto:

Art. 150 – II – “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

Sem dúvida esse principio interliga-se à esfera tributaria de modo integral, sendo inclusive inspirador de alguns princípios constitucionais tributários, como o principio da capacidade contributiva, ressaltando Roque Carraza, que tal principio está diretamente ligado ao princípio Republicano de forma acentuada.

Por tal dispositivo é que costumeiro a afirmativa de que no campo tributário conservar a isonomia é tratar os iguais como iguais e desiguais como desiguais.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE 

O princípio da legalidade tributária está previsto no art. 150, I, da Constituição Federal de 1.988 e tem por objetivo resguardar os direitos dos contribuintes em relação ao poder de tributar da Fazenda Pública, impedindo-a de instituir ou majorar tributo a não ser através da lei.

O precitado artigo reproduz o enunciado contido no art 5º, II, da Carta Magna que, de uma forma genérica, estabelece a regra de que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Em complemento a análise desse principio, convém lembrarmos que o Poder Estatal em seu papel normatizador, regulador e repressor agirá sempre em consonância com a lei, de igual forma determinado em outros artigos constitucionais como o contido no artigo 37 da Constituição Federal.

O principio da legalidade tributária há que ser analisado sob dois aspectos: legalidade formal, onde a regra tributária há que ser inserida no ordenamento jurídico em concordância com os devidos trâmites instituídos para a sua criação e no tocante ao aspecto material, como explicita a maior doutrina, ligado a tipicidade tributária, exigindo que a lei forneça os elementos que determinam o fato jurídico e os elementos que prescrevem o conteúdo da relação obrigacional tributária.

Controvérsias existem na doutrina quando trata das exceções ao principio da legalidade, nos casos previstos em situações de emergência e relevância, como por exemplo: nos empréstimos compulsórios em caso de guerra e calamidade pública e as exceções previstas no artigo153, parágrafo 1. da Constituição, com possibilidade de alteração de alíquotas de determinados tributos.

Luciano Amaro observa, que mesmo sendo esse ato do Executivo, um instrumento de alteração de alíquota, não podemos desprezar que o ato anteriormente deve ter sido criado por lei formal, não configurando, pois hipóteses de atuação discricionária da autoridade administrativa.

PRINCÍPIOS DA ANTERIORIDADE

O princípio da anterioridade está previsto no art. 150, III, b, da Carta Maior.           

O enunciado no artigo referido, determina que  os tributos só podem ser cobrados com exercício financeiro posterior ao do exercício em que foi publicada a nova lei, que  tenha criado um tributo ou majorado seu recolhimento.

O artigo 104 do Código Tributário Nacional explicita de igual forma o conteúdo do principio da anterioridade, preceituando que abrange: a) instituição e majoração de tributos, b)- a definição de novas hipóteses de incidência que equivale à instituição de tributo; c)- a extinção e a redução de isenções, que equivalem, respectivamente, a criação ou aumento de tributo.

Como previsto, as revogações de eventuais isenções concedidas pelo ente tributante também devem obediência ao primado da anterioridade. Assim, se caso um contribuinte estiver em gozo de isenção de um determinado tributo e esta venha a ser retirada pelo ente tributante, a nova incidência (ou reincidência) do tributo deve respeitar o princípio em tela.

Conforme já oportunamente ressaltado, alguns tributos não obedecem necessariamente ao principio da anterioridade, como o Imposto de Importação, Imposto de Exportação, IOF (Imposto sobre operações de credito, cambio, seguro e operações com títulos e valores mobiliários), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), além das contribuições sociais que também devem obedecer ao postulado da anterioridade da lei instituidora, mas neste caso o período a ser observado para a entrada em vigor da lei instituidora é o prazo de 90 dias, em conformidade com o estabelecimento no art. 195, § 6º da Constituição.

Finalmente, a própria Constituição excetua determinados tributos da regra da anterioridade, dando à  União instrumentos para o desenvolvimento e incentivos à política econômica, monetária e nas exceções que sejam primordiais as rápidas alterações, conforme a própria Constituição determina.

PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI

Na verdade, esse princípio constitucional atinente aos direitos fundamentais, contém previsão no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.

Assim, acontecimentos já devidamente constituídos sob a égide anterior, não podem ser modificados pela nova lei sob pena de o fazendo exterminar-se a segurança jurídica existente entre as pessoas.

De qualquer forma, a regra é excepcionada pelo Código Tributário Nacional que, no art. 112, estabelece a retroatividade dos efeitos das leis interpretativas (Inciso I), bem como das leis que beneficiem o contribuinte (Inciso II, e suas alíneas).

Neste caso, conceituam os doutrinadores, como a aplicação da norma mais benéfica em favorecimento do contribuinte, como exceção ao principio da não retroatividade da lei (princípio da norma benigna).

PRINCIPIO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA

A imunidade tributária conceitua-se como a  proibição constitucional de tributar determinados fatos ou pessoas  e neste caso, o fato gerador não chega nem mesmo a se constituir.

È diferente do instituto da  isenção,  pois neste caso (isenção) ocorre o fato gerador mas dispensa-se o pagamento do tributo, embora a obrigação tributária tenha nascido.

Na imunidade, nem o fato gerador se forma, nem a obrigação tributária. Não há incidência.

Os casos de imunidade constam da Constituição Federal, no artigo 150, inciso VI.

Conforme Walter Gaspar nos explicita, as características da imunidade são as seguintes:

–    não é uma renuncia ao poder de tributar, não são favores fiscais, são excluídas a prioridade do   elenco de fenômenos possíveis de tributação.

–    A imunidade é uma limitação da competência tributária vinda da própria Constituição.

–     A imunidade é sempre ampla e indivisível, não são imunidades parciais ou fracionadas.

–    Só se aplica aos impostos, não sendo aplicável a outras espécies de tributos.

PRINCIPIO DA UNIFORMIDADE GEOGRÁFICA

Este princípio determina que não podem ser instituídos pela União Federal, tributos que não sejam uniformes em todo o território nacional ou que implique em destinação ou preferência em relação ao Estado, Distrito Federal ou Município, em detrimento de outro.

O enunciado no artigo 151 da Constituição Federal prevê a necessidade de atendimento à uniformidade, embora excetuando a possibilidade de concessão de incentivos fiscais destinados a promover o desenvolvimento sócio econômico entre as diferentes regiões do País.

Em suma, ao instituir o tributo, a União deverá ter como meta à uniformidade para que todos enquadrem-se, entretanto, poderá incentivar as regiões que necessitam de estímulo para o desenvolvimento. Isto significa não instituir o tributo previamente para beneficiar ou distinguir, mas podendo incentivar nos casos que se fizerem necessários.

Dentre outros princípios, importante, ressaltarmos o PRINCIPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA elencado no artigo 145, § 1º. da Carta Magna que assim prescreve:

“Artigo 145 – Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributaria, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

O princípio da capacidade tributária gera polêmica, haja vista que os defensores dos interesses precípuos do Estado, entendem que não poderia o poder estatal ficar a mercê da condição financeira e econômica do contribuinte para instituir seus tributos e atender com a receita as atividades públicas e coletivas.

Entretanto, o princípio tem o traço de moldar a necessidade do Estado na tributação com a real condição do contribuinte em arcar com o ônus do pagamento sem prejuízo de sua própria subsistência, com recursos que lhe sejam compatíveis.

Assim, nos casos concretos, onde o contribuinte sente-se lesado e discriminado nas exações confiscatórias e oneração excessiva da carga tributária, busca melhor adequação entre o poder de tributar dos entes federativos e sua real condição de arcar com a pesada carga tributaria. Usualmente, o Poder Judiciário termina por tutelar excessivos processos de contribuintes em busca da proteção ao direito de impor sua capacidade contributiva.

Alguns autores, ao declinarem suas análises com referência a capacidade contributiva, nos trazem, nestes casos que até mesmo traduz a possibilidade de alegar o principio do não confisco quando o contribuinte sente-se  escorchado no tributo que lhe está sendo determinado à arcar.

Neste aspecto, de bom alvitre lembrarmos que o confisco tributário ocorre quando, pela utilização de tributo, o Estado retira a totalidade ou parcela considerável da propriedade do cidadão contribuinte, sem qualquer retribuição econômica ou financeira por tal ato.

A Constituição Federal preceitua no artigo 150, inciso IV, a proibição em utilizar tributo com efeito de confisco. 

Há imperiosa necessidade de que o Poder Legiferante possibilite a norrmatização de mais justo critério entre a tributação e a realidade do contribuinte em arcar com o que lhe está sendo imposto.                           

Em breve análise aos princípios constitucionais tributários, entendemos que o Estado necessita de recursos financeiros para consecução de seus fins e que os tributos representam por certo a maior receita do País.

Entretanto, para o equilíbrio entre o poder de império do Estado, a limitação do poder de tributar, primordial se faz a reforma tributária, que venha a gerar maior cumplicidade e justiça entre o critério da tributação e a realidade do contribuinte em arcar com o ônus da carga tributaria, sem o excessivo sacrifício de sua própria subsistência, o que por certo propiciará o real desenvolvimento econômico, financeiro e social do país, alcançando a verdadeira aplicabilidade de muitos dos princípios constantes da Lei Maior, aqui analisados.

Bibliografia.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Editora Saraiva

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Editora Malheiros

CARVALHO, Paulo de Barros.Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva

CARRAZZA. Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Editora Malheiros

 


Referências Bibliográficas

Volúsia Aparecida Sales  –  Advogada, Mestre pela Universidade Mackenzie,  Professora Universitária.   2004

Empregado doméstico

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* André  Luiz Silveira Vieira 

1.1 Denominação

A palavra doméstico provém do latim domesticus, da casa, da família, de domus, lar. Lar é a parte da cozinha onde se acende o fogo, mas em sentido amplo compreende qualquer habitação. O doméstico será a pessoa que trabalha para a família, na habitação desta.

1.2 Conceito

A Lei  5.859/72, no seu artigo 1º estabelece  que empregado doméstico é “ aquele que presta serviços de natureza continua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas ”.

O inciso II do artigo 12 da Lei nº 8.212/91 preconiza que o empregado doméstico é “aquele que presta serviço de natureza continua à pessoa ou família, no âmbito residencial desta, em atividade sem fins lucrativos”. O inciso II do artigo 9º do Regulamento da Previdência Social afirma que o empregado doméstico é “aquele que presta serviço de natureza continua, mediante remuneração mensal, à pessoa ou a família, no âmbito residencial destas, em atividades sem fins lucrativos”. Nota-se de todos esses conceitos  que o doméstico não deixa de ser um empregado.O que caracteriza o empregado doméstico é o contexto do serviço que realiza, devendo ser considerados inicialmente, dois requisitos: finalidade não lucrativa – a prestação de seu serviço é destinada somente à pessoa ou a família, sem contudo gerar renda aos seus contratantes o trabalho é desenvolvido no âmbito residencial de uma pessoa ou família, não importando a atividade desempenhada.

Se o empregador doméstico tiver finalidade lucrativa, deixa o contrato entre as partes de ser doméstico, para ser regido pela CLT. Seria aplicada a regra mais benéfica ao empregado, que é a CLT.

A expressão no âmbito residencial deve ser interpretada num sentido amplo, pois, do contrario, somente o empregado que prestasse serviços dentro da residência seria considerado doméstico. A residência é o local em que a pessoa mora com ânimo definitivo, ou seja, permanece em suas horas de descanso ou onde faz suas refeições e repousa durante a noite.

Assim, mais correto seria dizer que o empregado doméstico deve prestar serviços à pessoa ou família para o âmbito residencial destas,  pois, caso contrário, aquele que prestasse serviços externos a casa não poderia ser considerado empregado doméstico, como o motorista e o jardineiro. O serviço prestado pelo doméstico não é apenas no interior da residência, mas pode ser feito externamente, desde que, evidentemente, ou seja para pessoa ou família. Assim, deve-se empregar a expressão para o âmbito residencial visando abranger, também, a situação dos domésticos que prestam serviços externamente, como o motorista. Mesmo um piloto de avião, que presta serviços apenas para seu patrão, que possui uma fazenda pode ser considerado empregado doméstico, desde que o serviço seja feito apenas para o patrão, e não para a fazenda. Nesse caso, o fato de o piloto prestar serviços com avião e externamente não o descaracteriza como doméstico, pois é a mesma situação do motorista. O que importa é que o serviço seja prestado para o âmbito residencial, isto é, para a pessoa ou família, e não, no caso, para a fazenda. Já decidiu o TRT da 5ª Região, em caso semelhante, que “ marinheiro de barco particular, usado para recreio do proprietário, seus familiares e amigos, sem qualquer fim lucrativo, é doméstico ”.[1]

Âmbito residencial é algo mais amplo que residência, pois compreende tanto o trabalho interno como o externo, mas para a residência. Pouco importa qual a função do doméstico, pois o que interessa é se o trabalho é realizado para o âmbito residencial. Se o professor, enfermeiro ou outra pessoa presta serviços para o âmbito residencial, o trabalho será doméstico.

A definição de empregado doméstico precisa, assim, ser mais bem enunciada, da seguinte forma : empregado doméstico é a pessoa física que presta serviços de natureza continua à pessoa ou família, para o âmbito residencial destas, desde que não tenham por objeto atividade lucrativa.[2]

O serviço contínuo de que trata a Lei do Empregado Doméstico é o trabalho efetuado sem intermitência, não eventual, não esporádico e que visa atender as necessidades diárias da residência da pessoa ou da família, ou seja, é o trabalho de todos os dias do mês.

São exemplos de empregados domésticos : o mordomo, a cozinheira, o jardineiro, o motorista, a copeira, a governanta, a arrumadeira, a babá, a lavadeira, a passadeira, a enfermeira ou enfermeiro particular que cuida do doente, damas de companhia, guardas, caseiro, vigia, piloto de avião, segurança pessoal, etc…

Antigamente, dividia-se a doutrina e a jurisprudência no sentido do enquadramento ou não dos empregados do condomínio de apartamentos nos mandamentos insertos na CLT ou na Lei dos empregados domésticos, pois o condomínio não tem finalidade lucrativa e é composto de  pessoas  ou   famílias, que nele residem. A  Lei  2.757,  de  23.04.1956,  dirimiu  a referida situação, mencionando que os empregados porteiros, zeladores, faxineiros e serventes de prédios de apartamentos residenciais são regidos pela CLT, desde que a serviço da administração do edifício, e não de cada condômino em particular ( artigo 1º ). Não são, portanto, empregados domésticos. Ao contrário, se estiverem a serviço de condômino em particular, serão considerados empregados domésticos. Se no edifício só há apartamentos destinados a aluguel e são de propriedade de uma única pessoa, também há vinculo de emprego regido pela CLT em relação aos empregados que prestem serviços ao proprietário, pois há intuito de lucro com o aluguel.

2. EMPREGADOR DOMÉSTICO

2.1 Empregador doméstico

O Decreto 71.885, de 09/03/73, que regulamenta a Lei nº 5.859/72, define no mandamento inserto no artigo 3º, II, como empregador doméstico “a pessoa ou família que admita a seu serviço empregado doméstico”.

A Lei 5.859 não define expressamente o que vem a ser empregado doméstico. Apenas seu artigo 1º estabelece o que vem a ser empregado doméstico. A contrário sensu : “empregador doméstico é a pessoa física ou família que recebe a prestação de serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa por parte do empregado doméstico, par seu âmbito residencial.” [3]

O âmbito residencial da pessoa ou família pode ser compreendido também  em relação ao sitio de recreio ou chácara, à casa de campo ou de praia, pois não deixam de ser uma extensão da residência da pessoa. Residência tem, aqui, um sentido amplo, podendo ser entendida uma residência provisória, como o sitio, a casa de campo, em que o empregador passa alguns dias do ano. Âmbito residencial quer dizer todas as propriedades residenciais do empregador, mesmo que nelas ele não fixe moradia ou domicilio de forma permanente. O fato de o empregado doméstico realizar seu trabalho fora do âmbito residencial não descaracteriza essa situação, como ocorre com o motorista, com a própria empregada doméstica que vai ao banco pagar contas do patrão ou vai à feira, ao supermercado, ao sapateiro etc. O importante não é o local em que o serviço seta sendo prestado, mas se o é para o âmbito residencial.

O empregador doméstico não é apenas a família, como o conceito de família é extremamente complexo, entende-se que família é um conjunto de indivíduos que vivem juntos sob a autoridade ou responsabilidade de um de seus membros unidos por vínculos legais ou naturais de parentesco e afetividade necessariamente, mas também um grupo de pessoas que se reúnem para viver conjuntamente, é o que ocorre numa residência ou apartamentos ocupado por estudantes universitários ( “ república ” ), que necessitam de uma pessoa que faça comida, lave roupas e cuide da casa. O mesmo ocorre em relação a pessoas que não tenham parentesco entre si, mas necessitem de alguém que faça os serviços domésticos. Apesar de o grupo não ser uma família, pois cada membro não tem parentesco com os demais integrantes do grupo, será considerado empregado doméstico o  trabalhador que prestar serviços, até porque o serviço é prestado para pessoas; além de não deixar de ser uma espécie de situação que envolve a reprodução da vida familiar. Qualquer membro da família pode, porém, registrar o doméstico, não precisando necessariamente ser a mulher, como normalmente ocorre.

O trabalho doméstico prestado a pessoa jurídica descaracteriza a condição de doméstico, passando a ser empregado regido pela CLT, pois o empregador doméstico só pode ser pessoa física ou família.

2.2 Sucessão de Empregadores Domésticos

Se o contrato de trabalho da doméstica começa com a mãe e posteriormente passa para a filha, sem que haja uma solução de continuidade do trabalho, pode-se entender que o empregador é a família, como se depreende da definição legal. O certo seria entender que existem dois contratos de trabalho, principalmente se há constituição de famílias distintas da mãe que vive, por exemplo, com o pai, e da filha que vive com seu marido e filhos. No caso, deveria haver a rescisão do primeiro contrato de trabalho, com o pagamento dos direitos trabalhistas ao doméstico.

No caso de morte do empregador doméstico, seus herdeiros não passarão a ser empregador doméstico, salvo se morarem na mesma casa, onde o empregador doméstico será considerado a família. Aqui, se o doméstico presta serviços para as mesmas pessoas da família que moram na casa, mesmo com o falecimento da mãe, que era a empregadora, o contrato de trabalho, é firmado com a família, substituindo com os demais membros desta, permanecendo o mesmo contrato de trabalho, com a continuidade da prestação dos serviços. O empregador é a família, e não um de seus membros isoladamente. O empregador que  vende seu imóvel à terceiro, que fica com sua empregada, não assume o contrato de trabalho anterior, pois apesar do contrato de trabalho ser celebrado na mesma residência,  há dois empregadores domésticos diferentes, descaracterizando assim o contrato.    

3. Espécies de Trabalhador Doméstico

3.1 Caseiro

Entende-se por caseiro os trabalhadores em propriedades rurais ( sítios de recreio ou de veraneio ) sem finalidade lucrativa, principalmente quando o patrão não está no local. Na hipótese de empregado que presta serviços para chácara, há necessidade de se verificar se esta tem finalidade lucrativa ou não, pois para ser empregado doméstico é mister que não haja atividade lucrativa. Se a chácara se destina apenas a lazer ou recreio, em que não há plantação de produtos para efeito de comercialização, o empregado será doméstico. Nesse caso, pode haver até mesmo a plantação, porém o empregador não poderá comercializá-la; poderá dar os produtos agrícolas aos vizinhos ou amigos, porém não será possível vendê-los. É o que ocorre também com a arrumadeira ou a cozinheira que prestam seus serviços apenas para o âmbito residencial da casa. Se a chácara tem produção agro-pastoril que será comercializada, o empregado será rural. Mesmo na fazenda, o empregado que só cuida da residência do proprietário e não desenvolve atividade para a primeira será considerado empregado doméstico; porém, se trabalhar também para a fazenda, será empregado rural, pois esta tem natureza de atividade econômica com o objetivo de lucro. São empregadas domésticas a cozinheira e a arrumadeira que prestam serviços apenas para o âmbito residencial do empregador, em não para toda a fazenda. A cozinheira que, além de prestar serviços no âmbito residencial do empregador, também faz comida para os empregados da fazenda será considerada empregada rural. O mesmo ocorre com o “ peão ” que, além de fazer serviços relativos a casa, também os faz em relação à fazenda, sendo considerado empregado rural, e não doméstico. Seria o caso do caseiro que trabalha na chácara que vende leite, ovos etc., que seria considerado empregado rural.

A chácara não deixa de ser, à primeira vista, uma extensão da residência da pessoa, como a casa de praia ou de campo. Nesse local trabalham, muitas vezes, pessoas que tomam conta do referido lugar, que são chamadas de caseiros. Na jurisprudência encontramos acórdãos no mesmo sentido :

 “ Empregado doméstico – Propriedade destinada ao lazer – É empregado doméstico o trabalhador em sitio destinado exclusivamente ao recreio, sem atividade econômica. Recurso provido para julgar a ação improcedente”.[4]

“Não figura como empregada rural aquela que trabalha em sitio, sem destinação comercial de sua produção, toda ela voltada para o consumo do proprietário e familiares”.[5]

 Pouco importa o local em que o trabalho é prestado, se na área urbana ou na área rural; o que importa é se o empregador tem ou não atividade lucrativa. Se a possuir, o empregado será urbano ou rural; caso contrário, doméstico.

3.2 Diarista

Há uma distinção no direito do trabalho entre o trabalhador diarista e o trabalhador doméstico. O trabalhador doméstico tem uma série de direitos que o diarista não tem. A obrigação de quem contrata o serviço do diarista é somente pagar-lhe o dia ou dias trabalhados.

Trabalhador que recebe uma remuneração diária, ou melhor, por dia de trabalho; seu salário é calculado por dia. Em regra, é aquele que exerce atividade de limpeza geral a terceiro mediante pagamento diário, sendo considerado por parte da jurisprudência como autônomo, por não haver subordinação, imprescindível na relação empregatícia. Há, porém, uma corrente que entende que existe tal subordinação jurídica e trabalho no interesse do empregador.

Para que seja configurado o vínculo de emprego, são necessários os seguintes requisitos: pessoalidade (somente ela presta o serviço), onerosidade (recebe remuneração pela execução do mesmo), continuidade (o serviço prestado por ela ocorre de forma contínua) e subordinação (você dirige a prestação do serviço), além da prestação dos serviços no âmbito de sua residência. Em geral, no caso das diaristas, todos estão presentes exceto a continuidade, na medida em que o trabalho é diário e esporádico.

A posição da jurisprudência não é sobre o tema, existindo acórdãos perfilhando uma ou outra tese:

Doméstica – Relação de emprego. Diarista. Ainda que preste serviço apenas em alguns dias por semana, a diarista possui vínculo empregatício, pois estão presentes os requisitos da pessoalidade, da subordinação jurídica, do trabalho no interesse do empregador e do salário. Enquadra-se como domestica.[1]

A lei nº 5.859, de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, o conceitua como aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa a pessoa ou a família, no âmbito residencial destas. Verifica-se que um dos pressupostos do conceito de empregado doméstico é a continuidade, inconfundível com a não-eventualidade exigida como elemento da relação jurídica advinda do contrato de emprego firmado entre empregado e empregador regidos pela CLT. Continuidade pressupõe ausência de interrupção (cf. Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed.), enquanto não-eventualidade se vincula com o serviço que se insere nos fins normais de atividade da empresa. Não é o tempo em si que desloca a prestação de trabalho de efetivo para eventual, mas o próprio nexo da prestação desenvolvida pelo trabalhador, com a atividade da empresa (cf. Vilhena, 1975). Logo, se o tempo não descaracteriza a não-eventualidade, o mesmo não se poderá dizer no tocante á continuidade, por provocar ele a interrupção. Dessa forma, não é doméstica a faxineira de residência que lá comparece em alguns dias da semana, por faltar na relação jurídica o elemento continuidade.[2]

Trabalho doméstico contínuo duas vezes por semana durante dois anos ininterruptos. Relação de emprego. Configura-se a relação empregatícia o trabalho doméstico prestado, ainda que duas vezes por semana, de forma contínua durante dois anos ininterruptos, sendo a contraprestação salarial proporcional aos dias trabalhados.[3]

Trabalho doméstico uma vez por semana – Relação empregatícia. O trabalho doméstico prestado, ainda que uma única vez por semana, de forma contínua, durante considerável lapso temporário, caracteriza a relação de emprego, estando presentes os demais requisitos da pessoalidade, onerosidade, exclusividade e subordinação.[4]

“ Configura a relação empregatícia o trabalho doméstico prestado ainda que duas vezes por semana, de forma contínua, durante dois anos ininterruptos, sendo a contraprestação salarial proporcional aos dias trabalhados.”[5]

O fato de a diarista prestar serviços uma vez por semana não quer dizer que inexista relação de emprego. O advogado que presta serviços em sindicato, sob o sistema de plantões, uma vez por semana, atendendo exclusivamente aos interesses da agremiação, é considerado empregado, e não autônomo. O importante, no caso, é a faxineira ter a obrigação de comparecer sempre em determinado dia da semana, ex.., segunda-feira, a partir das 8 horas até as 16 horas, ficando evidenciada a subordinação pela existência de imposição patronal quanto ao dia e horário de trabalho.

Nesse sentido, podemos colacionar o seguinte acórdão:

O Direito Positivo pátrio inspirou-se no Direito alemão e será doméstico o trabalhador que preste serviço em determinados dias da semana, contínua ou alternadamente, em horário reduzido ou integral – na categoria destes trabalhadores encontra-se a doméstica a dia, mais conhecida como diarista – Relação de emprego conhecida – Provimento do recurso da empregada, com a determinação da anotação na CTPS.[6]

Ao contrário, não se pode dizer que seja doméstica ou empregada à faxineira que faz limpeza em vários escritórios ao mesmo tempo, por exemplo, aos sábados, sem qualquer horário ou ordem na limpeza daqueles, começando por qualquer um, conforme o desejar, muitas vezes até não comparecendo para fazer o serviço, a seu bel-prazer.

Se a diarista não tem dia certo para trabalhar, ou é chamada para auxiliar em dias de festa ou efetuar faxina extraordinária na residência, ou, ainda, esporadicamente, para tomar conta dos filhos do casal, para fazer faxina uma vez por mês na casa de praia ou de campo, não há relação de emprego, pela falta de requisito continuidade. Seguindo essa orientação, verificamos os seguintes acórdãos:

Empregada doméstica – Lavadeira. A lavadeira que presta serviços em residência particular uma vez por semana, com liberdade para prestar em outras residências e até para a escolha do dia e do horário de trabalho, não é empregada doméstica para efeito de aplicação da Lei nº 5.859/72, mas prestadora autônoma de serviços.[7]

“Não se considera empregada doméstica, para os fins do art. 1º da Lei nº 5.859/72, aquela que realiza trabalhos em alguns dias da semana, para várias pessoas, sem a obrigação de comparecimento contínuo e horário predeterminado.”[8]

Faxineira que trabalha como diarista, em residência particular, duas vezes por semana, com liberdade para prestar serviços em outras residências e até para a escolha do dia e horário do trabalho, não se constitui empregada doméstica para efeito de aplicação da Lei nº 5.589/72, mas prestadora autônoma de serviço. Ausência dos requisitos da não-eventualidade e da subordinação, qual este último seja o principal elemento caracterizador da relação de emprego. Manutenção da decisão de 1º Grau que se impõe.[9]

3.3 Vigia de Rua

Empregado da sociedade de fato, formada pelas famílias que pretendem segurança particular, o vigia de rua, a exemplo do vigia de residência, porteiro de residência, enquadra-se na categoria dos empregados domésticos.

A função do vigia, de rua ou residência, é inibir ação criminosa, acionando alarme, entrando em contato com a autoridade policial. O vigia não trabalha armado, uma vez que a sua função não se confunde com a do vigilante definido pela Lei nº 7.102/83, que tem como missão atuar diretamente na inibição de atos delituosos.

Se o vigia presta serviços apenas tomando conta de uma casa, em seu jardim ou em guarita, será considerado empregado doméstico, por estar ausente a finalidade de lucro do empregador.O vigia ou porteiro de prédio de apartamentos não será considerado doméstico, mas empregado sujeito à CLT, nos termos do art. 1º da Lei nº 2.757/56. O vigia de condomínio de escritórios ou consultórios também será considerado empregado comum, pois apesar de não ser de prédio de apartamentos residenciais, as pessoas pertencentes ao condomínio têm atividade lucrativa.

O segurança pessoal da família, que acompanha vários de seus membros para certos locais, é empregado doméstico. Não importa que o serviço seja prestado fora do âmbito residencial, mas que o resultado seja para o âmbito residencial.

Um elemento da relação de emprego que pode não se vislumbrar no caso vertente – requisito, esse, essencial à configuração do contrato de trabalho – é a prestação pessoal dos serviços. O empregador deve contar com específica e determinada pessoa como empregado. Se este é substituído constantemente por outro trabalhador, não existe o pacto laboral. Contudo, não há nenhum problema se a substituição por outra pessoa é feita com consentimento do empregador, desde que haja eventualidade na referida substituição. Quando a permuta de pessoas se torna regra, não ocorre relação de emprego. Assumindo, ainda, o trabalhador os riscos de sua atividade, também não existe o contrato de trabalho, pois a prestação de serviços deve ser por conta alheia, e não por conta própria.

Normalmente, os guardas particulares contratados por moradores para vigilância na rua têm qualquer constância na prestação dos serviços (habitualidade). Muitas vezes, trabalham por algumas semanas e ficam sem aparecer por outras, revezando-se com seus colegas no trabalho, ou, ainda, vigiam várias ruas do mesmo bairro, que são vias distantes umas das outras. Quando não têm interesse em continuar laborando naquela região, indicam simplesmente outra pessoa, que passa a fazer a vigilância no local. Em tais casos, portanto, inexiste contrato de trabalho. Por outro lado, estando configurada a relação de emprego (em que é necessário: subordinação ao empregador, continuidade e pessoalidade na prestação de serviços e pagamento de salários), o guarda não será considerado empregado regido pelas disposições da CLT, mas empregado doméstico, sujeito aos ditames da Lei nº 5.859/72. Nessa hipótese, se o vigia prestar serviços à pessoa ou família, que não tem atividade lucrativa, para o âmbito residencial destas. Os destinatários do trabalho não exploram atividade econômica, daí por que o empregado ser doméstico.

Para ser doméstico não importa que, o guarda não resida em qualquer das residências vigiadas. Na verdade, o que interessa é a continuidade e a subordinação na prestação do trabalho. Mesmo o motorista que faz serviços externos para uma residência, ou a babá que também vai ao banco pagar contas da patroa, faz compras na feira e no supermercado, leva e traz sapatos para conserto no sapateiro, também são considerados empregados domésticos. Assim, o vigia, mesmo não prestando serviços dentro das residências dos moradores beneficiados por seu mister, será considerado empregado doméstico.

O fato de o vigia receber seus vencimentos de uma só pessoa, que arrecada os valores dos demais moradores, implica formação de uma sociedade de fato por partes destes, equiparável ao condômino predial de apartamentos, ou até mesmo se assemelharia a um “contrato de equipe” (lato sensu) de empregadores.

 O TRT da 2ª Região já decidiu que: “o guarda contratado por moradores para vigilância de rua é doméstico, sendo empregado da sociedade de fato assim formada pelas famílias que pretendem segurança particular”.[10] “Vigia residencial – É doméstico o vigia residencial cuja prestação de serviço beneficia a um grupo de famílias, no espaço residencial destas, sem finalidade lucrativa.”[11]

3.4 Motorista

A situação do motorista vai depender de várias hipóteses para se configurar ou não a condição de empregado doméstico. Para que o motorista seja considerado empregado doméstico, é preciso que preste serviços à pessoa ou à família, que não tenha por intuito atividade lucrativa, e para o âmbito residencial destas, pois quando o motorista presta serviço tanto na residência  quanto no estabelecimento comercial ou industrial de seu patrão (transportando mercadoria, fazendo entrega a clientes, etc.), não  será considerado empregado doméstico, mas empregado sujeito ás regras da CLT, pois seu serviço não é exclusivamente residencial.

O serviço do motorista consistirá em levar o empregador ao local de trabalho e daí trazê-lo, levar sua mulher às compras ou ao cabeleireiro e daí trazê-la, ou fazer outras atividades relacionadas com a casa, como ir ao supermercado etc., levar os filhos até o colégio, à aula de inglês etc.

Não se desnatura  a condição de empregado doméstico pelo fato de o motorista levar seu patrão até os clientes deste último, pois a atividade do empregado ainda será desenvolvida para o âmbito residencial, desde que não seja diretamente relacionada com a empresa.

3.5 Enfermeira Doméstica

Se a enfermeira trabalha apenas no âmbito residencial, cuidando de uma pessoa que se encontra doente, será considerada doméstica. O que importa aqui é que essa pessoa não tem atividade lucrativa e está recebendo os serviços da trabalhadora. Logo, é considerada a enfermeira empregada doméstica.

4. CONTRATO DE TRABALHO DO EMPREGADO DOMÉSTICO

A contratação do trabalho doméstico sempre foi tratada com informalidade, tendo como regra geral o contrato verbal, o contrato não precisa ser efeito por escrito, podendo ser celebrado verbalmente, como qualquer contrato. Pode ser celebrado tacitamente, se não houve qualquer oposição à prestação dos serviços, e inclusive é uma das formas constantes da disposição prevista o Título IV, Capítulo I da CLT, nas Disposições Gerais:

“Art. 443. O contrato  individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito e por prazo determinado ou indeterminado”.

Ocorre que as relações de emprego são reguladas por lei com garantias de direitos inalienáveis, como forma de equilibrar a desigualdade entre capital e trabalho. Isso vale também para o emprego doméstico, atividade sem fim lucrativo. Apesar de possuir legislação específica, com menos direitos para o empregado e obrigações na mesma proporção para o empregador. Diante dos fatos, o contrato de trabalho deverá ser formalizado, para resguardar direitos e dirimir controvérsias oriundas do vínculo empregatício.

4.1 Contrato de Prazo Indeterminado

Inexistindo prova em contrário, o contrato de trabalho, em regra, é indeterminado. O contrato de prazo certo é exceção e pode ser aplicado na relação do trabalho doméstico, segundo o mandamento inserto no artigo 443 da CLT

4.2 Contrato de Experiência

A experiência até seria necessária para verificar se o doméstico sabe fazer o serviço, se adapta á casa, etc. Caso fosse possível o contrato de experiência para o doméstico, não haveria limite de prazo, podendo o pacto ser celebrado por cinco anos, o que evidentemente não é o intuito do Direito do Trabalho, de proteger relação tão longa, pois se o empregado serve para o serviço ou não, o que é possível verificar no período de 90 dias descrito pela CLT. O acórdão a seguir admite o contrato de experiência para o doméstico: Empregada doméstica – Contrato de experiência – Validade. Consoante a previsão do parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal, vários direitos sociais foram estendidos aos empregados domésticos, entre eles o aviso prévio, instituto este que atinge tanto o empregado doméstico quanto o empregador, o que viabiliza as situações previstas nos artigos 482 e 483 da CLT.   

Logo, cabível o contrato, a titulo de experiência para o doméstico. Se a Lei 5.859/72 e seu decreto regulamentador não proíbem a adoção desse tipo de contrato, não cabe ao intérprete fazer qualquer distinção. Recurso a que se dá provimento para imprimir validade ao contrato de experiência e julgar improcedente a ação.[12]

Antigo empregador poderá dar carta de referência dizendo que o empregado doméstico lhe prestou serviços e que estes eram prestados a contento. O ex-empregador doméstico não terá obrigação de fornecer o atestado, em razão de que não há lei dispondo nesse sentido e de que o empregado pode não ter sido bom funcionário. Pelo fato de o empregado doméstico conviver na intimidade da família e que a lei exige o referido atestado. Dada a confiança do empregado doméstico, já que este permanece praticamente o dia todo na residência da família, até mesmo quando esta está fora. Ocorre muito o fato de empregada doméstica, na primeira oportunidade, furtar a residência da família e depois desaparecer. O atestado de boa conduta tem por objetivo afastar os maus profissionais do mercado; mas, evidentemente, não irá eliminá-los.

O atestado de saúde não é obrigatório para a admissão no emprego, ficando a critério do empregador doméstico exigi-lo. Tem por objetivo verificar se o empregador não é doente, pois vai trabalhar na casa, em contato com roupas e até crianças, podendo transmitir doenças.

Outra determinação bastante válida é a atribuição da responsabilidade civil às agências de empregados domésticos, conforme a Lei 7.195/84. O artigo 1º dessa norma determina que “ as agências especializadas na indicação de empregados domésticos são civilmente responsáveis pelos atos ilícitos cometidos por estes no desempenho de suas atividades”. O artigo 2º declara que, “ no ato da contratação, a agência firmará compromisso com o empregador, obrigando-se a reparar qualquer dano que venha a ser praticado pelo empregado contratado, no período de um ano ”.

Na CTPS do empregado doméstico, serão feitas, pelo empregador, as seguintes anotações:

data de admissão;  salário mensal ajustado ; início e término das férias ; data da dispensa ( artigo 5º do Decreto 71.885/73). Será vedado, portanto, anotar-se na CTPS do empregado qualquer conduta desabonadora ou, mesmo, a existência de justa causa para a dispensa. A CTPS irá comprovar o contrato de trabalho entre as partes, o salário e as anotações de férias, inclusive perante a Justiça do Trabalho.

O empregado doméstico será registrado de imediato, desde o primeiro dia em que passa a prestar serviços ao empregador. Não poderá o empregador posteriormente alegar que não o registrou sob o argumento de que o doméstico não lhe apresentou a CTPS ou não trouxe documentos ou algo parecido, pois qualquer empregado deve ser registrado logo no primeiro dia em que começa a trabalhar, e não em outra oportunidade.

Não há prazo para que o empregador faça as anotações na CTPS do empregado do contrato mantido entre as partes, pois não se aplica a CLT ( artigo 7º, “a”). O mais correto é que a CTPS seja anotada o mais rápido possível e devolvida ao empregado. Para que não existam dúvidas sobre se a empregada apresentou ou não a CTPS, a CTPS é obrigatória para o exercício de qualquer emprego ( artigo 13 da CLT, inclusive o doméstico), para registro e que esta foi devolvida ao empregado, deve o empregador pegar recibo de que devolveu aquele documento ao trabalhador.

Não se exige mais do empregado doméstico menor a autorização dos pais para trabalhar, pois o artigo 417 da CLT não se aplica ao doméstico ( artigo 7º, “a”, da CLT). Inclusive, entende-se que referido artigo foi revogado tacitamente pelo Decreto-Lei  926, de 10-10-1969, ou pela Lei 5.686/71, que previa em sentido diverso, não mais fazendo distinção entre CTPS do trabalhador comum e do menor.  O artigo 417 da CLT falava ainda em documentos para emissão da CTPS. O parágrafo único do artigo 16, com a redação da Lei  5.686, determinava quais eram os elementos para que a CTPS fosse emitida, mencionando na alínea “d” autorização dos pais, o que não é mais exigido na redação do mesmo artigo 16, de acordo com a Lei 7.855/89. Assim, é possível também entender que para o menor trabalhar não se exige autorização do responsável, inclusive para o trabalho doméstico.

Determina o artigo 248 da Lei  8.069/90 que, se a pessoa deixar de apresentar à autoridade judiciária de seu domicílio, no prazo de 5 dias, com o fim de regularizar a guarda. Adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico, mesmo que, autorizado pelos pais ou responsável, fica sujeita à pena de multa de 3 a 20 salários de referência, sendo aplicada em dobro no caso de reincidência, independentemente das despesas de retorno do adolescente, se for o caso. O doméstico menor de 18 anos poderá firmar recibo de pagamento. Na quitação, é recomendável que tenha a assistência dos pais, embora não se aplique ao doméstico o artigo 439 da CLT ( artigo 7º, “a”, da CLT).

Tendo o empregador mais de uma residência, como a casa de campo a casa de praia, além da que normalmente vive, o fato de o empregado deslocar-se de uma para outra não implica a existência de mais de um contrato de trabalho doméstico.

Se houver uma sucessão de contratos de trabalho entre o empregado e o empregador doméstico, é inaplicável o artigo 453 da CLT, visando o somatório do tempo de serviço de todos os contratos, pois a CLT não é observada ao doméstico.

Falecendo o empregado doméstico, termina o contrato de trabalho doméstico, pois, para o empregado, o pacto laboral é pessoal, envolvendo certa e específica pessoa na prestação dos serviços.

5. DIREITOS TRABALHISTAS DO EMPREGADO DOMÉSTICO

5.1 Direitos Previstos na Constituição

Nenhuma Constituição brasileira havia tratado de direitos trabalhistas dos domésticos, nem mesmo a ele se referiam.

A Lei Maior determinou, portanto, vários direitos trabalhistas ao empregado doméstico no parágrafo único do artigo 7º, até mesmo não previstos na Lei nº 5.859, que regula o trabalho doméstico. Assim, tem direito o empregado doméstico a : salário mínimo (artigo 7º, IV), que não era previsto na legislação anterior; irredutibilidade salarial ( artigo 7º, VI); décimo terceiro salário ( artigo 7º, VIII), que não estava elencado na Lei nº 5.859; repouso semanal remunerado ( artigo 7º, XV), que também não era previsto na lei do doméstico; férias mais 1/3 ( artigo 7º, XVII); licença à gestante de 120 dias ( artigo 7º, XVIII); licença – paternidade ( artigo 7, XIX); aviso prévio de pelo menos 30 dias ( artigo 7º, XXI), que inexistia anteriormente; aposentadoria ( artigo 7º, XXIV), bem como sua integração à Previdência Social.

6.   BENEFÍCIOS FACULTADOS AOS DOMÉSTICOS

6.1 FGTS

A Medida Provisória nº 1986 de 13/12/1999, e Decreto 3.361, de 10/02/2000, facultou a inclusão do doméstico no Sistema do FGTS, consoante requerimento do empregador, a partir da competência março/2000.

De acordo com o artigo 2º do Decreto 3.361, a inclusão de empregado doméstico no FGTS é irretratável no que tange ao vínculo contratual, sujeitando o empregador às obrigações previstas na Lei 8.036/90.

A inclusão é automática a partir do primeiro depósito na conta vinculada efetivado na Caixa Econômica Federal ou na rede conveniada.

O valor do recolhimento é de 8% ( oito por cento ) do valor do salário ajustado e o recolhimento deverá observar o dia 7 ( sete ) do mês subseqüente ao trabalhado.

6.2 Seguro-Desemprego

O benefício do seguro-desemprego será concedido ao empregado doméstico inscrito no Sistema do FGTS e que além de ter trabalhado em período mínimo de quinze meses nos últimos vinte e quatro meses, tenha sido dispensado do emprego sem justa causa.

O seguro-desemprego terá como valor um salário mínimo, por um período máximo de três meses , de forma contínua ou alternada.[1]

O benefício do seguro-desemprego só poderá ser requerido novamente a cada período de dezesseis meses corridos da dispensa que originou o benefício anterior.

7. INSTITUTOS NÃO OBSERVADOS EM RELAÇÃO AO DOMÉSTICO

7.1 Garantia de Emprego da Gestante

Obrigar uma pessoa a ficar com a empregada quando a confiança deixou de existir é praticamente impossível, principalmente quando essa pessoa trabalha na casa do patrão, o que é ainda pior. Viola a intimidade da pessoa. Não faz jus a empregada doméstica à garantia de emprego de cinco meses após o parto, prevista na alínea “ b” do inciso II do artigo 10 do ADCT, com relação à despedida arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante. Na jurisprudência encontramos orientação idêntica:

Empregada doméstica – Estabilidade da gestante – Inaplicabilidade. A estabilidade provisória à empregada gestante encontra-se assegurada pelo artigo 10, II, “b”, do Alto das Disposições Constitucionais Transitórias, que disciplina, até a edição de futura lei complementar, a garantia contra a despedida imotivada consagrada pelo artigo 7º, I, da novel Carta Magna. O parágrafo único do mencionado artigo 7º da Constituição, ao explicitar quais os direitos constitucionais aplicáveis aos empregados domésticos, excetuou-se o direito contra despedida arbitraria ou imotivada, de modo que, inequivocamente, assentou que essa categoria diferenciada do empregado não tem direito à estabilidade provisória conferida à gestante pelo novo texto constitucional. “Recurso provido”.[2]

“Não faz jus à empregada doméstica à estabilidade de cinco meses, eis que o direito não está incluído naqueles elencados no parágrafo único do artigo 7º da CF”.[3]

Empregada doméstica – Ausência de estabilidade em virtude de estado gestacional. Interpretação do artigo 7º da Carta Magna c/c artigo 10, II, b, do ADCT. A empregada doméstica não goza da estabilidade prevista no artigo 10, II, b, do ADCT, eis que o mesmo tem como destinatárias às empregadas beneficiadas pelo artigo, I, da Carta Magna, não estendido às empregadas domesticas pelo artigo 7º, parágrafo único, também da Carta Magna. Recurso conhecido. Contra-razões não conhecidas por intempestivas. “Recurso desprovido”[4]

7.2  Horas Extras

No que diz respeito à jornada de trabalho, o doméstico pode trabalhar mais de oito horas diárias e 44 semanais, pois não  lhe é aplicado o inciso XIII do artigo 7º da Constituição nem o adicional previsto no inciso XVI ( parágrafo único do artigo 7º da Lei Maior ). Dessa forma, o doméstico pode trabalhar além de referido horário, sem que haja obrigatoriedade de pagamento de horas extras. Terá direito apenas ao repouso semanal remunerado, de preferência aos domingos, que, se não for concedido, ainda que em outro dia, deverá ser pago em dobro. Muitas vezes o empregado doméstico não tem horário para trabalhar, tanto podendo muito como trabalhar pouco, dependendo da realização do serviço que fará, sendo que nem sequer há controle de entrada e de saída no serviço. Outras vezes o empregador nem sequer está na residência e, dada a confiança existente entre as partes, o empregado doméstico desenvolve suas atividades como quer. Em muitos casos o empregado doméstico reside no próprio local de trabalho, na residência do empregador, podendo trabalhar a qualquer hora.

Assim não faz jus o empregado doméstico à horas extras, nem a adicional de horas extras, como se verifica também na jurisprudência: “domésticos – Horas extras. O empregado doméstico não faz jus a horas suplementares, eis que estas não constam do elenco de direitos taxativamente assegurados à categoria pela Constituição Federal de 1988”.[5]

7.3 Adicional Noturno

Não faz jus o doméstico ao adicional noturno, pois a lei que regulamenta o trabalho doméstico é omissa com relação à prestação de serviço em horário noturno. Assim o empregado doméstico poderá trabalhar das 22 às 05 horas, mas não terá direito ao adicional noturno. Na jurisprudência a orientação é a mesma:

“Empregado Doméstico: O parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal não estendeu a essa categoria o direito ao adicional noturno”.[6]

É sabido que certos empregados domésticos trabalham depois das vinte e duas horas, como enfermeiras, baby sitters e outros. Normalmente tem sido ajustado um valor maior pelo trabalho noturno em relação ao diurno, não sendo obrigatório o pagamento de adicional noturno, pelo fato de que a CLT não se aplica ao doméstico.

7.4 Assistência na Rescisão do Contrato de Trabalho

7.5 Multa do § 8º do artigo 477 da CLT

7.6 Higiene e Segurança do Trabalho

7.7 Adicional de Periculosidade e de Insalubridade

7.8 Benefício por Acidente do Trabalho

A Lei nº 6.367, de 19-10-1976, tratou do seguro de acidente do trabalho, excluiu expressamente de suas disposições os empregados domésticos ( artigo 1º, § 2º ). O empregado doméstico que eventualmente sofra acidente do trabalho não terá direito a qualquer prestação da Previdência Social, pois o empregador não recolhe prestação de custeio de acidente de trabalho. O artigo 19 da Lei nº 8.213/91 menciona que o acidente do trabalho é o que ocorre quando o trabalho está a serviço da empresa. Acontece que o empregador doméstico não é considerado empresa e nem tem por objetivo atividade lucrativa. Logo, ainda que exista o acidente do trabalho com o empregado doméstico, este não fará jus a qualquer prestação da Previdência Social, como auxílio-acidente, auxílio-doença acidentário ou aposentadoria por invalidez acidentária. O § 1º do artigo 18 da Lei nº 8.213 dispõe que as prestações de acidente do trabalho somente são devidas aos segurados empregado, especial o trabalhador avulso, excluindo, portanto, o empregado doméstico.

Realmente, é injusto que ocorra o acidente do trabalho e o empregado doméstico não seja beneficiado com prestação acidentária, porém é nesse sentido a disposição da lei.

7.9 Salário-Família

Conclusão

Vislumbra-se que atento ao quadrante jurídico trabalhista Pátrio, no decorrer dos anos o empregado doméstico passou a ter diversos direitos trabalhistas garantidos e reconhecidos pela legislação Pátria, deixando parcialmente de ser excluído ou tratado à margem do ordenamento jurídico.

Descortinou-se que somente a partir da Lei nº 5.859/72, devidamente regulamentada pelo Decreto 71.885 de 09.03.1973, foram estabelecidas  as disposições mestras e os alicerces que regem a profissão dos domésticos.

Denota-se a grande importância da Constituição Federal de 1988, a qual foi um grande avanço na questão, tendo em vista o considerável e louvável aumento no número de direitos  relativos ao empregado doméstico. Representando, portanto, a consagração dos direitos trabalhistas dos domésticos e não sua exclusão do Direito do Trabalho, já que o empregado doméstico é um trabalhador, pelo que deve gozar de direitos e deveres.

Estabelecidas todas estas premissas, verificou-se  a existência de diversos pontos, direitos e benefícios controvertidos e ainda, várias questões polêmicas em relação aos institutos aplicáveis ou não ao empregado doméstico.

Visando uma convivência pacífica entre as partes envolvidas na relação de emprego doméstica, absolutamente pessoal, denota-se que é preferível ao empregador conceder a regra ou norma mais benéfica ao empregado doméstico, do que discutir judicialmente a questão, almejando a pacificação dos litígios e maiores desgastes interpessoais.

Diante de todas estas premissas, revela-se preocupante a imensa divergência jurisprudencial sobre os direitos e benefícios consagrados pela legislação dos domésticos, pelo que a atualização e melhor regularização dos preceitos legais do doméstico deve ser discutida e revista pelos operadores do direito e legisladores, culminado com a promulgação de uma nova lei que regulamente o trabalho doméstico, agregando às disposições da Lei 5859 com os mandamentos insertos pela Constituição de 1988, tornando estes preceitos regulamentadores equânimes, coerentes e sem discrepância de normas, a fim de evitar  dificuldades de interpretação e principalmente divergências de aplicação técnica, tanto pelos operadores do direito, pela doutrina e em especial pela atividade jurisdicional, a qual entrega a prestação jurisdicional de forma antagônica e em flagrante prejuízo dos trabalhadores e de toda a sociedade.

Bibliografia

ANFIP – Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias. Regulamento da previdência social.  3.ed.  Brasília: ANFIP, 2001.

ASSIS, Romeu José.  Guia prático do emprego doméstico.  Curitiba: Juruá, 2001.

MACEDO, Eliane Maria Silva.  Manual do empregador doméstico. 3.ed.  São Paulo: Saraiva, 2001.

MARTINS, Sérgio Pinto.  Manual do trabalho doméstico. 5.ed.  São Paulo: Atlas, 2000.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro.  Curso de direito do trabalho.  16.ed.  São Paulo: Saraiva, 1999.

________.  Iniciação ao direito do trabalho.  26.ed.  São Paulo: LTr, 2000.

OLIVEIRA, Aristeu.  Manual prático do empregado doméstico.  São Paulo: Atlas, 2001.

PESSÔA, Eduardo.  Direito do trabalho doméstico.  São Paulo: WVC Editora, 2000.

RIOS, Josué.  Guia dos seus direitos.  5.ed.  São Paulo: Globo, 1999.

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[1] Ac. Da 3ª T. do TRT-9ª Região, RO 1.998/90, Rel. Juiz Ricardo Sampaio, j. 10-4-91, m. v. no mérito, DJPR 24-5-91, p. 154).

[2] Ac. Da 2ª T. do TRT-3ª Região, RO 9.829/91, j. 18-8-92, Rel. Juíza Alice Monteiro de Barros, in LTr 56-11/1.336).

[3] TRT da 3ª R., RO 0490/92, 4ª T., Rel. Juiz Nereu Nunes Pereira, DJ MG 20-3-93, Síntese Trabalhista nº 47/83.

[4] Ac. un. da 3ª T. do TRT-10ª Região, RO 5.214/93, Rel. Juíza Maria de Assis Calsing, j. 17-3-94, DJU 15-4-94, p. 3.894.

[5] TR 3ª R. RO 4.920/92, Ac. 4ª T., j. 2-2-93, Rel. Juiz Pedro Lopes Martins, in LTr 58-04/437.

[6] Ac. um. da 2ª T. do TRT-9ª Região, RO 321/89, Rel. Juiz Euclides Alcides Rocha, j. 12-10-89, DJPR 6-12-89, p. 112).

[7] Ac. un. da 1ª T. do TRT-3ª Região, RO 1.101/89, Rel. Juiz Manoel Mendes de Freitas, j. 13-11-89, Minas Gerais II, 1º-12-89 p. 66.

[8] Ac. do TRT-11ª Região, nº 216/91, RO 415/90, Rel, Juiz Othilio Francisco Tino, j. 5-3-91, in LTr 55-09/1.099.

[9] TRT 4ª R., RO 930195191, ac. 2ª T., j. 28-10-94, Rel. Juiz Carlos Affonso Carvalho de Fraga, in LTr 59-05/684.

[10] 6ª T., RO 8.833-9, Rel. Juiz José Serson, DJSP 10-9-87, p. 61.

[11] [11] Ac. da 3ª T. do TRT da 3ª R., RO 08081/96, Rel. Juiz Roberto Marcos Calvo, j. 18-11-96, DJMG, 7-12-96, p.

[12] Ac. da 6ª T. do TRT da 2ª R., RO 02980437373, j. 14-9-99, Rel. Juiz Fernando Antonio Sampaio da Silva, DO SP 5-10-99, p. 56.


Referências Bibliográficas

André  Luiz Silveira Vieira  –  Advogado, Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Professor de Direito do Trabalho nas Faculdades Integradas de Itapetininga-SP.  2005
 
setefkb@ig.com.br

ADOÇÃO: Seu contexto histórico, visão geral e as mudanças trazidas pelo Novo Código Civil

1

* Marcos Vinícius Pereira Júnior –

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem como escopo, a analise do Instituo da Adoção, sua evolução histórica, bem como as mudanças sofridas após a vigência do Novo Código Civil.

Serão analisados os requisitos objetivos e subjetivos para adotar, como também seus efeitos. Enfim, buscará analisar o Instituto da Adoção de uma maneira ampla, possibilitando ao leitor ter uma visão completa acerca do tema.

I.   VISÃO HISTÓRICA.

Para um profundo e crítico estudo acerca do instituto da adoção, necessária se faz uma análise do contexto histórico, bem como a posição do legislador e da jurisprudência da atualidade.

Seguindo as lições de Silvio de Sálvio Venosa[1], citando Carbonnier, “a adoção como forma constitutiva de vínculo de filiação, teve evolução histórica bastante peculiar. O instituto era utilizado na antiguidade como forma de perpetuar o culto doméstico. Atualmente, a filiação adotiva é uma filiação puramente jurídica, baseando-se na presunção de uma realidade não afetiva”.

O estudo histórico da adoção, sucintamente deve ser analisado como presente na civilização grega, como forma de culto aos deuses-lares, ou seja, quando alguém não tinha herdeiro adotava para dar seguimento à missão do pater famílias. Tinha ainda como princípio básico o de que a adoção tinha que imitar a natureza, ou seja, o adotado assumia o nome e a posição do adotante e herdava seus bens como conseqüência da assunção do culto.

Já no Direito Romano, duas eram as modalidades, a adoptio e adrogatio. A primeira consistia, anda segundo Venosa na adoção de um sui iuris, uma pessoa capaz, por vezes um emancipado e até mesmo um pater famílias, que abandonava publicamente o culto doméstico originário para assumir o culto do adotante, tornando-se seu herdeiro. A adrogatio, abrangia não só o adotando, mas também sua família, filhos e mulher, não sendo permitida ao estrangeiro, sendo necessária a formalização perante os comícios, pois havia interesse do Estado na adoção porque a ausência de alguém que desse continuidade ao culto doméstico poderia causar a extinção de uma família.

Várias peculiaridades envolveram a adoção desde a época da adoptio e adrogatio do Direito Romano até a Idade Média, período em que a adoção cai em desuso, sob as novas influências religiosas e com preponderância do Direito Canônico.

Na Idade Moderna, sob as fortíssimas influências da Revolução Francesa, que revolucionou o mundo não só no direito, como na história, nas artes, nas lutas, o instituto da adoção volta à baila, sendo posteriormente incluído no Código de Napoleão de 1804.

Sob esse molde francês, foi seguido no Direito Brasileiro, inicialmente com o Código Civil de 1916, posteriormente com a Lei nº 3.133/57. E, principalmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Adoção no Brasil tomou um rumo positivo, preocupado com a proteção à criança e ao adolescente, tendo sido efetivada com a Lei nº 8.069/90. Agora a inovação legislativa é o novo Código Civil de 2002, que será objeto dos próximos tópicos.

Importante considerar para finalizar esse passeio histórico que, em diferentes níveis a adoção é permitida por quase todas as legislações moderna, acentuando-se o sentimento humanitário e o bem-estar da criança ou do adolescente como preocupação principal, enfatizando a Lei brasileiro que dispõe acerca da proteção integral.

II.   CONCEITO.

A adoção é uma modalidade artificial de filiação que busca ser igual a filiação natural, sendo garantido pela Constituição Federal de 1988 a igualdade de direitos entre os filhos naturais e adotivos, proibindo qualquer distinção na certidão de nascimento. O Estatuto da Criança e do Adolescente conceitua adoção no artigo 41, nos seguintes termos: “atribui a condição de filho ao adotado”, sendo a mesma definição repetida no artigo 1.626, caput, do Novo Código Civil.

Dessa forma a adoção é uma forma, diferente da natural, de filiação exclusivamente jurídica, que se sustenta sobre a pressuposição de uma relação afetiva, ressaltando-se, principalmente afetiva. Juridicamente a adoção é um ato ou negócio que cria relações de paternidade e filiação entre duas pessoas, ou seja, uma pessoa passa a gozar do estado de filho de outras pessoas, independentemente de vínculo biológico.

III.    NATUREZA JURÍDICA.

Sucintamente a natureza jurídica da adoção é de um negocio bilateral e solene, sendo admitido o instituto como contrato, pois há necessidade de duas vontades, do adotante, ou dos adotantes, e, do adotado ou mesmo de seu representante legal. 

IV.   ADOÇÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916.

Mesmo com a edição e promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, continuaram em vigor os dispositivos do Código Civil relativos a adoção de maiores de 18 anos[2], pois o Estatuto foi omisso em disciplinar tais matérias.

A grande diferença da atual disciplina acerca do tema é que no Código Civil de 1916, a adoção era feita por escritura pública, sem interferência do magistrado. Agora, após vacatio legis do Código Civil de 2002, o Código Civil de 1916 foi revogado, conforme expressa disposição do art. 2.045 do vigente Código Civil. Infere-se daí que não existe qualquer modalidade de adoção por escritura pública, sem interferência do Juiz, garantindo esse direito que é de ordem pública.

Outra questão interessante é que a adoção no Código Civil de 1916 visava principalmente a pessoa dos adotantes, deixando o adotado em plano inferior, aspecto não admitido na nova visão do direito. Foram observados diversos avanços com a Lei nº 3.133/57, que passou a considerar a adoção sob o prisma assistencial, observando a condição do adotado e, também, do adotando, não analisando aspectos financeiros primordialmente e sim o aspecto afetivo entre adotante e adotado. Em relação à inovação da adoção com a Lei nº 8.069/90 e 10.406/2002, será pormenorizadamente explicitado nos tópicos seguintes.

As características e requisitos da adoção no Código Civil de 1916 eram os seguintes:

1. adotante 16 anos mais velho que o adotando, com mais de 30 anos de idade;

2. se o adotante fosse casado, casamento com duração superior a cinco anos;

3. duas pessoas não podiam adotar conjuntamente se não fossem marido e mulher;

4. adotando com mais de 18 anos;

5. o tutor ou curador podia adotar, depois de prestadas as contas;

6. escritura pública;

7. possibilidade de adoção por estrangeiro sem restrições.    

Feitas as principais observações acerca da adoção regida pelo Código Civil de 1916, para finalizar o tópico e ficar clara a diferença do instituto anterior para o atual, ressalte-se que a Escritura Pública era da substância do ato, de acordo com o art. 134, I, sendo a adoção consumada apenas com a averbação da escritura no registro civil (art. 29, §1º, e, e 102, item 3º, da Lei nº 6.015/73).

V.    ADOÇÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 (Lei 10.406/02).

No regime estabelecido pela Lei 10.406/2002, denominada Novo Código Civil, não existe mais a adoção celebrada entre partes, sem a intervenção de magistrado, ou seja, só por sentença poderá constituir-se a adoção, mesmo que seja pessoa maior de 18 anos, de acordo com o art. 1.623 e parágrafo único. A adoção, agora, será sempre assistida pelo Poder Público, o evitando-se sua constituição por escrito particular, como na legislação anterior.

Como já ressaltado anteriormente, não existe mais diferença entre as formas de adoção para maiores e menores de 18 anos, agora, o Novo Código Civil disciplina, também, a matéria em relação a crianças e adolescentes como dispõe os arts. 1.621 e parágrafos, 1.623 parágrafo único e 1.624 

VI.    ADOÇÃO NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

Inicialmente deve ser ressaltado que o Novo Código Civil não alterou, diretamente e explicitamente, o espírito e a estrutura do Estatuto da Criança e do Adolescente, nem sua competência nem instrumentos procedimentais.

Como ressaltou Venosa[3] “no atual Estatuto da Criança e do Adolescente já não há distinção: a adoção dos menores de 18 anos é uma só, gerando todos os efeitos da antiga adoção plena. O estatuto menorista posiciona-se em consonância com a tendência universal de proteção à criança, assim como faz a Constituição de 1988, que em seu art. 6º, ao cuidar dos direitos sociais, refere-se à maternidade e à infância. Nos arts. 227 e 229 são explicitados os princípios assegurados à criança e ao adolescente, descreve que a criança ou adolescente tem direito fundamental de ser criado e educado no seio de uma família, natural ou substituta (art. 1º)”. Importante é considerar que a Lei nº8.069/90 considera a criança e adolescente sujeitos de direito, ao contrário do Código de Menores que os considerava como objeto da relação jurídica.

Foi grande o avanço em relação à matéria com a Constituição de 1988, e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, garantindo a proteção integral[4], fatos estes que não foram modificados pelo Novo Código Civil.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, construído sobre a doutrina da proteção integral, exige obediência estrita à condição peculiar de seus destinatários, pessoas em processo de desenvolvimento, e à garantia de prioridade absoluta. Observe-se que as principais relações jurídicas entre Crianças e Adolescentes ainda encontram-se disciplinadas no Estatuto, como dito anteriormente, e a elas são aplicáveis as normas nele previstas. As normas de Direito Civil e Processual Civil, só devem ser aplicadas em relação às crianças e adolescente quando houver lacuna, e mesmo nestes casos, quando não forem incompatíveis com os seus princípios fundamentais disciplinados na Lei nº 8.069/90.

VII.   DOS REQUISITOS PARA ADOTAR.

VII.I. REQUISITOS SUBJETIVOS.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 42, só podem adotar, pessoas maiores de 21 anos. Caso seja requerida por cônjuges ou companheiros, admite-se que apenas um deles tenha 21 anos. A grande mudança trazida pelo Novo Código Civil é em relação ao limite, pois sendo a nova maioridade civil fixada em 18 anos, o limite de idade para adoção é reduzido para 18 anos, conforme dispõe o art. 1.618 e parágrafo único. O art. 42 § 3º do Estatuto e art. 1.619 do Novo Código Civil, conservam a necessidade de que o adotante seja pelo menos 16 anos mais velho que o adotado, como já havia previsão no Código Civil de 1916.

A proibição de adoção por ascendentes e irmãos, prevista no art. 42 § 1º do Estatuto da Criança de do Adolescente, não encontra qualquer correspondência expressa no Novo Código Civil, sendo o impedimento mantido na íntegra para adoção de crianças ou adolescentes[5], podendo haver discussão quando a adoção foi de pessoa maior de 18 anos.

Quanto aos divorciados e separados judicialmente, estes podem adotar conjuntamente, desde que acordem sobre guarda e visitas e que o estágio de convivência haja sido iniciado na constância da sociedade conjugal  como dispõe o art. 42, § 4º do Estatuto, o que foi repetido pelo Novo Código Civil em seu art. 1.622, parágrafo único.

O Novo Código Civil determinou em seu art. 1.622, caput, que a adoção só pode ser requerida por duas pessoas quando se trate de marido e mulher, ou que vivam em união estável, eliminando qualquer polêmica sobre a possibilidade de adoção por casais homossexuais, ou mesmo duas pessoas heterossexuais, que não vivam em união estável ou são casadas. Resumindo, o Novo Código vetou qualquer possibilidade de adoção por casais homossexuais, ou mesmo duas pessoas heterossexuais, que não vivam em união estável ou são casadas.

O art. 1.626, parágrafo único, do Novo Código Civil, repete matéria disciplinada no Estatuto da Criança e do Adolescente, rezando que continua possível a adoção pelo cônjuge ou companheiro de um dos pais do adotando, a chamada adoção unilateral. O Novo Código Civil também reconhece a adoção após a morte, em seu art. 1.628, caso este já disciplinado pelo Estatuto e admite que o pedido seja formulado por tutor ou curador, mediante prévia prestação de contas e demonstração da inexistência de débitos, como disposto no art. 1.620 do Novo Código Civil e art. 44 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

De acordo com a disciplina tanto do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Novo Código Civil, qualquer pessoa pode ser adotada, observando-se quanto ao primeiro as regras dos arts. 39 e 40 e do segundo as do art. 1.623. É que a adoção de maior de 18 anos, sem que haja guarda ou tutela anterior a essa idade, não se subordina a qualquer regra restritiva contida no Estatuto; e mesmo a competência vincula-se ao Juízo de Família. Caso haja guarda ou tutela ante de o adotando completar 18 anos, a competência será do Juízo da Infância e da Juventude, como já ressaltado em linhas anteriores.

VII.II. REQUISITOS OBJETIVOS.

Não existe mais a adoção por escritura pública, seja para maiores ou menores de 18 anos, a nova disciplina no Novo Código Civil prevê que só há adoção após processo judicial, ou seja, será sempre assistida pelo poder público, independentemente da idade do adotando como preceitua o art. 1.623 e parágrafo único da Lei 10.406/02.

Outra exigência objetiva é o consentimento do adotando maior de 12 anos, de acordo com o art. 45 § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente e art. 1.621, caput, da Lei 10.406/02. A adoção também se condiciona ao consentimento dos pais ou do representante legal do adotando como dispõe o art. 45 do Estatuto e art. 1.621 do Novo Código Civil, salvo se tiver sido destituído o poder familiar de ambos os pais e, também, outros familiares não quiserem criar o adotando, pois como ressaltado  pelo Estatuto a preferência é manter a criança ou adolescente em sua família natural. Não havendo poder familiar, o consentimento dos pais será evidentemente desnecessário.     

O § 2º do art. 1.621 do Novo Código Civil resolve problema prático ao permitir a retratação do consentimento até a publicação da sentença constitutiva de adoção. Neste caso, não há decretação de perda do poder familiar, sendo mesmo razoável admitir-se o arrependimento.

O art. 1.624 do Novo Código Civil declara não ser necessário o consentimento do representante legal, se provado tratar-se de criança exposta, ou que os pais sejam desconhecidos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente requer que a adoção represente vantagem para o adotando e esteja fundada em motivos legítimos e o Novo Código Civil exige o “efetivo benefício” para o adotando em seu art. 1.625.

O cadastramento dos interessados em adotar[6], junto ao Juízo da Infância e Juventude, continua vigente para as adoções de crianças e adolescentes, não havendo exigência para adoções de maiores de 18 anos, pois estes são maiores e capazes de decidir se querem e por quem ser adotados. Idêntica solução deve ser utilizada quanto ao estágio de convivência[7], que também ficará restrito às adoções de menores de 18 anos.

VIII.            EFEITOS.

O primeiro e principal dos efeitos da adoção é a atribuição da condição de filho ao adotado, desfazendo os vínculos do adotado com pais e parentes, salvo impedimentos matrimoniais, considerando que a adoção é irretratável. A condição de filho, estabelecida pela adoção, conduz à formação de parentesco entre o adotante e o adotado, e ainda entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante. Após a adoção o adotado passa a ser filho, tanto quanto os filhos naturais, com os mesmo direito e deveres.

Os efeitos da sentença concessiva da adoção se produzem a partir do trânsito em julgado, exceto no caso da adoção póstuma. Um desses efeitos, porém, é antecipado por força de lei: havendo consentimento dos pais, a simples publicação da sentença concessiva de adoção impede a retratação, não ficando condicionada ao trânsito em julgado.

Como é natural a adoção permite a alteração do sobrenome do adotado e, tratando-se de adotando menor, o prenome também poderá ser alterado, a pedido do adotante ou do adotado, sendo esta uma inovação trazida pelo do art. 1.627 do Novo Código Civil.

IX.   ADOÇÃO INTERNACIONAL.

Ressaltou Venosa[8] que “o envio de crianças brasileiras para o exterior somente é permitido quando houver autorização judicial. Desse modo, na adoção por estrangeiro residente ou domiciliado fora do país, aspecto que traz a maior esfera de problemas nessa matéria, nunca será dispensado o estágio, que será cumprido no território nacional, com duração mínima de 15 dias para as crianças com até dois anos de idade, e de no mínimo 30 dias quando se tratar de adotando acima de dois anos, tudo de acordo com o art. 46, § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente..

Nesse contexto, verifica-se a inexistência de regra no Novo Código Civil, dispondo em contrário ao que reza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Quanto à adoção de maior de 18 anos não existe disciplina direta estabelecida pelo Novo Código Civil, que remete a uma futura lei e que de acordo com grande parte da doutrina torna inviável tal adoção quando feita por estrangeiro. 

X.    CONCLUSÃO.

De acordo com o passeio histórico feito no início do presente trabalho, bem como após a análise do Instituto da Adoção mesmo depois da mudança trazida pelo Novo Código Civil, percebe-se que a Constituição Federal de 1988 e, posteriormente o Estatuto da Criança e do Adolescente, foram verdadeiramente divisores de águas, garantiram a proteção integral para os adotandos, preocuparam-se com a afetividade, não herdando de legislações anteriores qualquer discriminação de filhos adotivos ou biológicos.

E, tratando-se a Adoção de direito de ordem pública, veio em boa hora a alteração no sentido de exigir a intervenção judicial mesmo para adotandos com mais de 18 anos, impedindo a existência de fraudes ou conchavos para burlar a lei, especialmente em relação ao direito das sucessões.

Por fim, cumpre constatar que a legislação referente à adoção no Brasil é altamente evoluída, garantindo proteção às crianças e adolescentes, cabendo agora haver uma conscientização acerca da importância de adotar uma criança, sendo este um gesto de carinho e amor. E, uma coisa restou comprovada no final do presente trabalho: A legislação facilitou e ao mesmo tempo garantiu a lisura nos processos adoção, não podendo qualquer cidadão dizer que não adota pela dificuldade que levaria o processo, pois segundo informações de Juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Natal/RN, José Dantas de Paiva, o processo leva em média de dois a seis meses para ser concluído, ou seja, menos que uma gestação.

XI.    BIBLIOGRAFIA.

GONÇALVES, Carlos Roberto – Direito Civil: direito de família, volume 2 – 8. ed. Atual. De acordo com o novo Código Civil – São Paulo: Saraiva, 2002.

Novo Código Civil comentado / coordenador Ricardo Fiúza. – São Paulo: Saraiva, 2002.

VENOSA, Sílvio de Sálvio – Direito Civil: direito de família, Volume 6 – 3. edição – são Paulo: Atlas, 2003.

SITE do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte: http://www.tj.rn.gov.br/home/principal.

Notas.

[1] Direito de Família, 3ª Edição, Editora Atlas, 2003. pág. 317.

[2] Ressalte-se que se o adotando estivesse sob a guarda do adotante ao completar 18 anos, a adoção não era a disciplinada pelo Código Civil de 1916 e sim pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

[3] Op. Cit. Pág. 327.

[4] A colocação em família substituta deverá sistematicamente verificar o interesse do menor, que será sempre que possível (§ 1º do art. 28, ECA).

[5] O art. 2º considera criança, para efeitos do estatuto, a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos.

[6] Por informação obtida via e-mail, o responsável pela setor de Cadastramento da 1ª Vara da Infância da Comarca de Natal, informou que existem 68 (sessenta e oito) pessoas para adotar, dentre casais e pessoas individualmente consideradas.

[7] Período fixado pelo juiz para a aferição da adaptação do adotando ao novo lar (art. 46, caput, do ECA).

[8] Op. Cit. Pág. 340.

ANEXO: PRINCIPAIS DÚVIDAS REGISTRADAS PELAS VARAS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DA COMARCA DE NATAL, ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, COM SUAS RESPOSTAS.

01 – O que é adoção nos termos da lei nº 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA?
 
A adoção nos termos da Lei nº 8.069/90 – ECA, é uma das modalidades de colocação de criança ou adolescente em família substituta, sendo de caráter irrevogável, nos termos do art. 48, da citada lei.
 
02 – Quem pode adotar?
 
Nos termos do art. 42, podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente de estado civil, desde que o adotante (pessoa que quer adotar), seja pelo menos dezesseis anos mais velho do que o adotando (pessoa que se quer adotar).

Os divorciados e os judicialmente separados, também poderão adotar conjuntamente, contando que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade conjugal.

OBS: Existe a possibilidade de adoção por pessoa com menos de vinte e um anos de idade, quando o cônjuge ou concubino(a) deste, for maior de vinte e um anos, comprovada a estabilidade da família. (art. 42, § 2º).
 
03 – Os avós podem adotar os netos?
 
Não. A lei não permite a adoção por ascendentes (avós, bisavós, etc), nem adoção entre irmãos.
 
04 – Se durante a tramitação do processo de adoção o(s) adotante(s) falecer, o processo é extinto?
 
Não. O art. 42, § 5º, diz o seguinte: “A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
 
05 – O que é preciso fazer para se adotar uma criança ou um adolescente?
 
O primeiro passo é dirigir-se à 1ª Vara da Infância e da Juventude, situada na Praça André de Albuquerque, nº 27, munido dos documentos e do requerimento (modelo à disposição na própria vara) devidamente preenchido, os quais estão relacionados neste site, para pedir que seja(m) inscritos na lista de pretendentes à adoção.
 
06 – Quanto tempo demora esse procedimento?
 
Este é um procedimento relativamente rápido, pois não se requer audiência para o julgamento do pedido.
As fases processuais neste tipo de procedimento estão resumidas à juntada de documentos, elaboração de relatórios psicológico e social, parecer do Ministério Público e decisão Judicial.
 
07 – Concluído esse procedimento, o(s) pretendente(s) sendo julgados aptos para adotar, o que é que acontece?
 
O pretendente ou os pretendentes são cadastrados numa listagem cronológica de pessoas aptas para adoção, ficando no aguardo de uma criança ou adolescente, que preencha o perfil informado por eles no ato do seu pedido de inscrição.
Estando a criança ou o adolescente apta à adoção, a Equipe Técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude, entrará em contato com os pretendentes cadastrados, pela ordem cronológica, orientando-os para que possam, pessoalmente, conhecer a criança ou adolescente que pretendem adotar.
 
08 – É necessário uma renda mínima?
 
Não, embora no requerimento de inscrição conste um espaço para se colocar o salário, esta informação, não estabelece nenhum tipo de critério de seleção para a adoção, sendo utilizado apenas como referência para relatórios estatísticos.
 
09 – Quanto tempo demora para um casal cadastrado conseguir adotar?
 
Depende exclusivamente do Perfil da Criança que se pretende adotar, pois quanto mais específico for este perfil, maior a dificuldade de encontrá-la. Se, no entanto, existir uma criança com o perfil do cadastrado, ele será chamado a equipe técnica e, de lá, poderá ser encaminhado ao abrigo para conhecer a criança e, no caso de aceitá-la, inicia-se o processo de adoção.
 
10 – E se colocarem uma criança na minha porta, como devo proceder?
 
Este é um caso, a que chamamos de Criança Exposta. O primeiro passo é verificar se entre as coisas deixadas com a criança, há alguma pista para que se encontre os seus pais biológicos, e, no caso de não haver indícios, de quem são eles, e a pessoa querer adotá-la, deve conseguir testemunhas (vizinhos e pessoas que viram a criança abandonada à porta), relacionar todos os documentos que a criança possuía no ato do abandono e procurar um advogado ou um serviço de assistência judiciária gratuita.
 
11 – Posso adotar a (o) filha (o) da (o) minha (meu) companheira (o)?
 
Sim. Se no registro da criança só tiver registrado o nome do companheiro (a), o adotante deverá comparecer a Equipe Técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude, onde um servidor irá fazer requerimento que será assinado pelo adotante da criança. Porém, se o filho (a) estiver registrada, também, no nome do ex–companheiro (a), o processo deverá ser instaurado com a assistência de um advogado, que por sua vez requererá que o ex–companheiro (a) seja ouvido (a) sobre a concordância da adoção; se este não for encontrado, deverá ser feita sua citação através de edital. Caso compareça e não concorde, o filho só poderá ser adotado pelo (a) companheiro (a) se houver a destituição do pátrio poder.
 
12 – Se eu tiver registrado uma criança como se fosse meu filho, sem sê-lo, o que posso fazer para regularizar a situação?
 
Este é um caso de Adoção à Brasileira. Neste caso, deve-se deflagrar o processo de adoção desta criança, solicitando a anulação do registro de nascimento falso, o que deverá ser feito através de um advogado, se não se souber quem são os pais ou se estes não concordarem com a adoção. Se os pais biológicos forem conhecidos deverão ser ouvidos no processo de adoção.
 
13 – Se eu tiver adotado, ainda no regime do Código de Menores (anterior a 1990), esta adoção é válida?
 
Sim, porém é necessário que se atente para o fato de que o Código de Menores possuía dois tipos de adoção, a plena, que desligava o adotado de qualquer vínculo com os pais e parentes, e a adoção simples, nos moldes do Código Civil, trazendo restrições, quanto ao parentesco, pois o adotado neste caso, não pode representar os adotantes na sucessão de familiares deste, pois o seu único parentesco era com os adotantes.
 
14 – No caso de uma pessoa conhecida, quiser me entregar uma criança para que eu adote, como devo proceder?
 
Deve se dirigir a Equipe Técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude, munidos da documentação disponibilizada neste site e, acompanhada dos pais biológicos, para que estes assinem à inicial do processo de adoção, e que os adotantes sejam entrevistados pelo serviço social e de psicologia, para os conscientizarem dos efeitos jurídicos e psicológicos da adoção. È necessário também que os pais sejam ouvidos em audiência e que nela ratifiquem o consentimento da adoção da criança.
 
15 – Posso inscrever a criança que estou adotando em meu plano de saúde?
 
Os planos de saúde têm colocado dificuldades para a inscrição nestes, de crianças em adoção, porém, legalmente, após o deferimento da guarda provisória, nos processo de adoção, já se pode fazer solicitação neste sentido.
 
16 – Tenho direito à licença-maternidade por adoção?
 
Os tribunais superiores em decisões recentes, têm negado este direto às adotantes, alegando não ser necessário à licença, já que muitas vezes a criança adotanda já não é mais amamentada, sendo, portanto, desnecessária a licença. No entanto, tramita no Congresso Nacional projeto de lei estendendo esse direito às mães adotivas.
 
17 – A Adoção é um processo caro e demorado?
 
As adoções por casais cadastrados, além de não serem pagas e, nem incidir sobre elas nenhum tipo de custas, dispensam a presença de advogado. No caso de adoções “inter persona” – àquelas em que os pais biológicos conhecem e concordam com a adoção pelos adotantes, de acordo com o art. 166 do ECA – a inicial é assinada pelos próprios adotantes, cujo procedimento é acompanhado pelo setor jurídico da equipe técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude. O processo demora menos que uma gestação.
 
18 – Quanto tempo demora até que eu possa ficar com a criança? Posso ficar com ela antes de terminar o processo?
 
O adotante poderá obter a guarda provisória, para ter a criança sob a sua responsabilidade, antes do término do processo. Nas adoções de casais cadastrados, como estes já passaram por um procedimento, em que já houve estudos técnicos favoráveis para a adoção, por um psicólogo e um assistente social, a apreciação do pedido de guarda provisória é muito mais célere, pois já se percorreu o caminho que deverá ser trilhado por todos aqueles que desejam a adoção, que é a avaliação psicológica e o necessário estudo sócio-familiar, eis que, somente após esses estudos, é que se apreciará o pedido de guarda provisória da criança.
 
19 – E se a mãe ou o pai biológico depois de iniciado o processo, arrepender-se de ter me entregue à criança e quiser levá-la de volta, como proceder?
 
No caso de criança cadastrada isto é quase que improvável, visto que os pais biológicos, já devem ter sido ouvidos em audiência, onde ratificaram o desejo de entregá-la para adoção. Nas adoções “inter persona”, isso pode ocorrer, antes ou durante a audiência. Se ocorrer será necessário que os adotantes aditem a inicial, requerendo a Destituição de Pátrio Poder da família natural, alegando e provando os motivos pelos quais será melhor para a criança a sua adoção.
 
20 – Quando a criança se tornar adolescente, no caso de ser rebelde, posso devolvê-lo para os pais biológicos ou para o juiz?
 
Não, a adoção estatutária é plena, irretratável e irrevogável, não cabendo a alegação de desconhecimento da lei, com a finalidade de “devolver” a criança. A criança adotiva tem os mesmos direitos de um filho natural.
 
21 – Alguém ficará sabendo que eu adotei? Os pais biológicos terão acesso a alguma informação?
 
O processo de adoção corre em segredo de justiça, somente tendo direito a vê-lo as partes. No caso de pretendentes cadastrados, em adoção de crianças cadastradas, não há perigo algum, já que estas, já tiveram os seus pais biológicos ouvidos em audiência e, portanto, depois do processo julgado, estes não possuem mais o direito de reavê-las. No caso de adoção com destituição de Pátrio Poder, os pais biológicos serão citados para se defenderem e, por conseguinte, tomarão conhecimento de quem está querendo adotar a criança.
 
22 – Posso adotar mais de uma criança?
 
Não há impedimento legal algum para que os adotantes possam adotar mais de uma criança.
 
23 – Posso visitar as crianças no abrigo antes de me inscrever para a adoção?
 
Embora não haja nenhum impedimento de ordem legal, de que, em dia de visita, que é aberta à comunidade, os pseudo-adotantes possam ter contato com uma criança, fato que pode causar uma expectativa de que a adotará. Ocorre,entretanto, muitas frustrações, pois se o casal ou a pessoa ainda não está cadastrado, não está apto para adoção de crianças cadastradas, e, portanto, não podem adotar àquela criança em especial, pois a preferência será dada aos casais cadastrados. Deve ser evitado ainda visitar crianças que não estão aptas à adoção.
 
24 – É necessária a assistência de um advogado, para o processo de adoção?
 
É necessário no caso de crianças expostas e, nos casos onde se pede a Destituição de Pátrio Poder, bem como, quando não se sabe o endereço dos pais biológicos, quando será necessária a citação deles, por edital. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do pátrio poder, ou houverem aderido expressamente ao pedido de adoção, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios adotantes, sem a necessidade de assistência de advogados.
 
25 – Se eu quiser entregar meu bebê, para adoção, como devo proceder?
 
É necessário que procure a Equipe Técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude, o que pode ser feito por intermédio da Assistente Social da Maternidade, e proceda a inscrição da criança no cadastro de adoção. Feito o cadastro ela será encaminhada para adoção dentre os casais cadastrados na 1ª Vara da Infância.
 
26 – Se alguém me oferecer dinheiro para que entregue minha criança para adoção, o que devo fazer?
 
É oportuno dizer que entregar o filho para alguém a quem não se conhece, em troca de dinheiro, é crime e a criança não poderá ter a sua situação regularizada, eis que a regularização só poderá ocorrer em processo de adoção, nas Varas da Infância e da Juventude. Faz-se necessário ainda que seja feita a denúncia à Equipe Técnica da 1ª Vara da Infância e da Juventude, bem como a Polícia, de que alguém está tentando negociar o seu filho.
 
27 – Se eu entregar minha criança para adoção, posso me arrepender e depois ir buscá-lo?
 
Se os pais biológicos desejam entregar a criança para adoção é necessário que procure a 1ª Vara da Infância e da Juventude de Natal, quando serão ouvidos nos setores jurídico, de psicologia, de serviço social e, posteriormente, pelo Juiz, onde será explicado todas as conseqüências jurídicas e sociais da adoção. Por isso é que quando os pais biológicos entregam o filho para adoção é dado um prazo de trinta dias para que eles possam refletir sobre a decisão que estão tomando. Passado os trinta dias, eles serão ouvidos em audiência, quando deverão ratificar ou não o consentimento para adoção. Se ratificarem o consentimento para adoção, a criança ficará apta e será encaminhada para pretendente cadastrado. Promovido o processo de adoção, pelos os adotantes, e, após o trânsito em julgado da sentença judicial deferindo a adoção, não poderá ser esta alterada, por ser um instituto irrevogável. Assim, concedida à adoção, por sentença judicial, os pais biológicos não poderão mais ter o filho de volta, sequer visitá-lo. A adoção é irrevogável para dar segurança tanto para a criança quanto para os adotantes. 
 


Referência  Biográfica

Marcus Vinícius Pereira Júnior  –  Advogado em Natal/RN, estudante de graduação de Filosofia pela UFRN, Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho/RJ e Pós-graduando em Ministério Público e Cidadania pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte em convênio com a Universidade Potiguar

marcusvp@unp.br