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Ativismo Judicial

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Atahualpa Fernandez

 

“También me gustaría ser sabio.  Consta en los viejos libros qué es ser sabio: Abstenerse de la disputa mundana, y la vida, tan breve, vivida sin temor. También arreglárselas sin violencia, devolver bien por mal, no colmar, sino olvidar los deseos, vale por cosa de sabios. Nada de eso está a mi alcance. ¡Tiempos tenebrosos, realmente, éstos en que vivo !”     Bertolt Brech

 

Quando o jornalista americano Arthur Schlesinger mencionou, pela primeira vez, o ativismo judicial, jamais imaginou que o termo fosse usado para referir-se à atividade de um poder que, há mais de três anos, pedincha ou “pressiona” (chame-se como queira, porque desde Shakespeare sabemos que um “nome” não altera a essência das coisas) por um constitucional “reajuste” de subsidio para seus membros. Sejamos sérios. Referia-se a Suprema Corte dos Estados Unidos, acusadamente à circunstância segundo a qual “o juiz se considera no dever de interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos”.

Seja como for, segundo o Prof. Luiz Flávio Gomes há duas espécies de ativismo judicial: “há o ativismo judicial inovador (criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa, como é o caso do art. 71 do CP, que cuida do crime continuado). Neste último caso o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa”[1].

Não é necessário ser nenhum lince para dar-se conta do fato evidente de que inventar uma norma a partir “do nada”, não contemplada em qualquer lugar (nem na lei, nem na Constituição) e “inovando o ordenamento jurídico”, não é o mesmo que adotar um processo de realização do direito que obrigue o jurista-intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infra-constitucionais a concretizar, de tal forma que suas decisões funcionem como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios e valores, sob pena de destruição da tendencial unidade axiológico-normativa do ordenamento jurídico.

É tão óbvio que o “ativismo judicial inovador” não tem valor próprio e carece de todo sentido que custa trabalho entender que quem o está praticando pertença a uma das elites que governa nossa sociedade. Carecem por completo de legitimidade as decisões que não estejam fundamentadas ou em consonância com os princípios e garantias constitucionais e legais, e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos. E se já não faz nenhuma diferença o fato de que todos os dias a imprensa publique o último atropelo político do país, porque no mundo dos Poderes já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que já não mais ultrapassa o umbral do trivial, com algo de tanta seriedade como é o tema do “ativismo judicial” não se pode ir com frivolidades.

De fato, hoje, em tema de funcionalidade do Poder, qualquer parecido com o que caberia chamar um verdadeiro Estado Democrático de Direito brilha de maneira clamorosa por sua ausência. Vivemos em um contexto e em um momento em que a idéia de “separação de poderes” parece ter perdido qualquer sentido de valor. Mais que separação, o que hoje vemos é uma verdadeira “comparação de poderes”: legisladores “lutando” por uma “equiparação salarial” com os magistrados, magistrados atuando como legisladores e o Executivo legislando de forma descontrolada e perniciosa por meio de infindáveis medidas provisórias. E por aí poderíamos seguir.  

Para vislumbrar semelhante panorama não são necessários nem títulos de especialistas nem cargos acadêmicos: basta com folhear qualquer jornal, ver a televisão ou “navegar” por internet. Qualquer um pode apontar-se a ele, sem olvidar a mais importante das verdades: suceda o que suceda, serão os cidadãos honestos os que pagarão o pato. Por quê? Pelo simples fato de que o grande problema da justiça contemporânea já não é tanto o da convicção ideológica, das preferências pessoais, do subjetivismo inconsistente ou das convicções íntimas do juiz, enquanto mediador. É o de que o cidadão (ou melhor dito, do cidadão enquanto tal, como indivíduo plenamente livre, dono ou senhor de si mesmo), destinatário do ato imperativo do Estado, que no processo jurisdicional é manifestado pela decisão, possa participar de sua formação por meio de  eficazes  (adequadas e acessíveis) medidas de controle e em simétrica igualdade de oportunidades; ou, o que é o mesmo, de que a todo indivíduo interferido em seus planos de vida por uma decisão judicial deve ser-lhe assegurado a plena e efetiva capacidade para exercer um controle estrito e prioritário sobre o  por quê , como , de quê forma  e  com que limites o Estado-juiz atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos, para impor obrigações e/ou assegurar o cumprimento de deveres. E o “ativismo judicial inovador”, por razões óbvias, rompe qualquer possibilidade de tornar efetiva essa “vigilância cidadã” (republicana), que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte dos magistrados aniquile a segurança jurídica e degrade a  res publica a imperium. 

 

Se é certo que a noção moderna de administração judiciária passa pela tentativa de se prestigiar a função do Poder Judiciário, não menos correta é a necessidade de assegurar ao indivíduo-cidadão o irrenunciável direito de se contrapor aos abusos, equívocos e/ou desmandos do Poder Público (do Estado-juiz) no exercício da Administração da Justiça. Por quê?  Porque já não mais parece razoável pretender desconsiderar ou dissimular o fato de que, por vezes, o uso descontrolado do poder ( ainda que se trate de um poder fundado em uma competência particular e limitado ao campo de tal competência) pode levar a que, quem o exerça, perca o horizonte do sentido comum – já que, como nos recorda Montaigne (sendo os juízes indivíduos como os demais), “aun en el trono más elevado del mundo, estamos todos sentados sobre nuestro culo”.

Dito de outro modo, dado que o desejo de proporcionar uma aplicação do direito exaustivamente normativo e racional (neutra, objetiva e verdadeira) é totalmente descabelado, resulta igualmente disparatado pretender a livre criação do direito, a rebelião do juiz contra a lei ou o que os juristas alemães denominaram de “interpretação ilimitada da norma”. O Poder Judiciário, para bem ou para mal, participa da configuração dos assuntos públicos (entendidos conscientemente como questão judicial), contando com a competência normativa necessária e suficiente para determinar a conduta de outros, incluindo-se entre os que devem obediência às suas decisões não somente o cidadão, senão também o próprio poder que manda. E isso, por si só, já deveria implicar uma férrea necessidade de controle.

Decerto que se a lei (essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano) não é mais o único instrumento útil para a regulação social, não menos certo é que segue sendo um meio ou instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas, corroídas pelo empirismo e subjetivismo relativista, um dos valores fundamentais do direito: a segurança jurídica. Normas capazes de sentar as regras de convivência com relação ao poder, a distribuição e o uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade comunitária, a distribuição do trabalho e a regulação das trocas em geral. Normas que, por resolver determinados problemas e conflitos sociais, plasmam no entorno coletivo e historicamente condicionado nossa capacidade e necessidade de predizer o comportamento dos demais agentes sociais, de controlá-lo e de justificar mutuamente nossas ações.

Daí que não pode depender o sentido e alcance da norma (constitucional ou infraconstitucional) do talante pessoal de seus intérpretes, em especial de magistrados pretendidamente redentores ou iluminados, auto-investidos como representantes de qualquer ideologia, doutrina ou tradição histórica. A objetividade do direito, sem a qual não cumpriria nenhum de seus fins, descansa necessariamente sobre a objetividade e a racionalidade (ainda que limitada) da interpretação e aplicação da norma jurídica.

E torná-la possível vem a ser, justamente, um dos primeiros objetivos da tarefa concreta do magistrado de realizar historicamente a verdadeira intenção do direito e que é projetada em um determinado contexto econômico, político e social segundo as necessidades humanas de cada época, isto é, de expressar e realizar historicamente as expectativas normativas e culturais de uma comunidade de indivíduos. Essa, aliás, a razão pela qual o princípio da segurança jurídica, que assegura a previsibilidade (formal e substancial) das normas como ordenadoras das condutas humanas, leva também à manutenção da preeminência da lei em todo e qualquer processo de toma de decisão jurídica.

Contudo, da circunstância de que os cidadãos têm o direito de saber que uma conduta lhes compromete na medida em que o direito vá a qualificá-la como tal, não parece legítimo que se possa deduzir que o juiz deva ser um órgão “cego” e “acéfalo” no processo de interpretação e aplicação da Constituição e das leis ou que se deva auto-investir da suposta virtude que faz dos juízes “les bouches qui prononcent les paroles de la loi, des êtres imanimés qui n´em peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (Montesquieu).

De fato, a importância da lei em uma sociedade onde a miséria e o desprezo pela dignidade humana ainda parecem ser a regra comum, a par de conviver com a preeminência das normas constitucionais, faz com que o papel do juiz, já não mais neutro, seja o de um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e traduzi-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência. O que não significa evidentemente – já dissemos antes – uma atividade “alternativa” à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima e devida efetividade. Aos destinatários das normas jurídicas não lhes interessa as opiniões pessoais dos que atuam como juízes, senão somente as suas respectivas capacidades para expressar as normas que a sociedade a si mesma se põe e pelas quais ilumina e fundamenta a solidariedade de sua ética convivência, depurando e afinando seu alcance e sentido e, na mesma medida, garantindo sua eficácia última.

Mas, como manter esse tipo de postura diante do fato de que não são poucas   as vozes que insistem em afirmar a atual “crise da lei”?

É certo que as sociedades atuais, plurais e complexas, já não mais parecem aceitar lhanamente novos códigos gerais e globalizantes como os que alimentaram em seus dias os grandes dogmas do positivismo jurídico. Hoje, não só se fala abertamente de descodificação, inclusive com relação às matérias típicas dos códigos clássicos, como também as leis tendem a limitar-se, com freqüência, a regulamentações fragmentárias e ocasionais e, por vezes, a formular disposições ou princípios muito gerais, confiando logo à interpretação e aplicação pelos operadores do direito a precisão casuística de seus enunciados.

O desgaste que vem sofrendo a generalidade e a abstração da lei em virtude do que se convencionou denominar de “pulverização” do direito legislativo produzida pela multiplicação de leis de caráter setorial e temporal, demonstra claramente a pressão de interesses corporativos, dando lugar a um tratamento normativo diferenciado e, em igual medida, provocando a explosão de legislações cambiantes, com a conseqüente crise dos mencionados princípios de generalidade e abstração. E a suposta conseqüência produzida por esse fenômeno é a de que a lei é, cada vez mais, transação e compromisso, tanto mais quanto a negociação se estende a forças numerosas e com interesses heterogêneos: cada um dos  agentes sociais, quando acredita haver alcançado força suficiente para orientar em seu próprio interesse os termos do “acordo”, busca a aprovação de novas leis que sancionem a nova relação de forças; se produz, assim, a cada vez mais marcada “contratualização” dos conteúdos da lei.

Nesse sentido, a atual experiência legislativa nos situa muito longe da racionalidade do legislador e da imagem da lei como ordenação abstrata, geral e permanente, como quadro estável cuja finalidade é distribuir direitos e deveres gerais e sobre o qual a sociedade vive a continuação de seu próprio dinamismo. É indiscutível, portanto, que a realidade dessas leis se ajusta mal ao esquema ilustrado e revolucionário da lex universales.

Não obstante, e em que pese todas essas circunstâncias, estou firmemente convencido de que o “ativismo judicial inovador” não deve (o que pressupõe que não pode) ser admitido baixo nenhuma circunstância. Se é certo que a legislação atual tende a ocasionalidade e a confusão, não menos certa é a constatação de que isso não nos permite deduzir que as sociedades modernas pretendam remeter aos magistrados os problemas últimos de seu livre – e por vezes defeituoso – ajuste social. Por muito que se ressalte a crise da lei nas sociedades atuais, tal crise não chega de modo algum a deslocar a lei do seu papel central e, até o momento, insubstituível.

Depois, as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão para o atuar dos indivíduos, que expressam ideologias dominantes ou que as pessoas se limitam a seguir. Em vez disso, as normas representam a formalização de regras de condutas sociais sobre as quais uma alta porcentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes aqueles que as seguem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com freqüência,  não somente ignoradas ou desobedecidas (pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente  aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça) senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem unicamente por meio da “força bruta”  ( M. Gruter,1991) [2].

Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor, tornar a ação coletiva possível. E parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que os valores e as normas sejam compartidos e cumpridos pelos membros da comunidade, inclusive – para não dizer prioritariamente – pelos que exercem algum tipo de poder.

 

Por outro lado, qualquer alternativa à lei não seria admitida, de modo algum, pelas sociedades atuais, porque com ela se volatizaria, justamente, a democracia e nos encontraríamos reinstalando, em realidade, um verdadeiro governo despótico de uma minoria que não tardaria em buscar e encontrar uma fundamentação política correlativa que pretendesse outorgar-lhe legitimidade. Se vê claramente que, frente a qualquer alternativa, a democracia necessita inexcusavelmente da lei e que não pode abdicar da responsabilidade central que lhe cabe, precisamente (reafirmando assim seu fundamento histórico moderno) enquanto que a lei ainda é o instrumento  necessário (embora não suficiente) da liberdade, tanto por sua origem na vontade geral como por sua efetividade como pauta igual e comum para todos os cidadãos, à que todos podem invocar  e na qual todos devem poder encontrar a justiça (material) que a sociedade se lhes deve[3].

A verdadeira alternativa ao recurso utilizado pelo legislador para afrontar e contornar os problemas sociais, de justiça e de segurança jurídica, portanto, não parece ser a de reinventar o “ativismo judicial”, senão a de habilitar os julgadores a assumir, de forma virtuosa, inflexível e qualificada a responsabilidade que lhes cabe e cuja tarefa seja a de afirmar indistintamente os direitos e deveres de toda a pessoa humana, projetando na e através da legalidade vigente os princípios e valores fundamentais do direito; isto é, de habilitar-lhes ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais para, com a iniludível “pré-compreensão” e talento de desenhador que caracteriza o ato de julgar, impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Como lembra Dieter Simon (1998), nós todos desejamos um juiz independente; independente no sentido que não depende da política, da religião e nem mesmo dos partidos ou da concepção de mundo, mas que segue somente a representação de valor da lei e não a sua.

Daí porque o papel dos magistrados deverá seguir estando vinculado à Constituição e à lei – que nunca podem ser livres de contexto, senão que devem ter em conta seu “lugar na vida” e sempre “em situação” –, em nome das quais fala e das quais, e não de nenhuma outra fonte “mágica”, “ativismo” ou de qualquer subjetivismo camuflado de teoria, extrai unicamente a justiça e a legitimidade de suas decisões. É certo que ante uma legislação fragmentada, casuística e cambiante, com enunciados que caem com freqüência em desuso por desajustes sistemáticos e/ou sociais, o papel do magistrado se realça. Mas este realce do papel do juiz não poderá jamais pretender levar-lhe a uma independência com respeito à Constituição ou à lei; lhe dirigirá, certamente, a um uso mais apurado, sofisticado e refinado dos valores, princípios e regras jurídicas, sempre e em tudo condizente com a finalidade de aplicar o direito com a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a dignidade humana com respeito aos variados caprichos de nosso mundo social. 

Há, portanto, sérias e decisivas objeções ao pretendido “ativismo judicial inovador”. Primeiro no puro plano do valor justiça – certamente não o único, mas porventura o que hoje em dia sobreleva a todos os demais. Logo nesse plano não se pode dizer que a via mais capaz de realizá-lo seja conferir ao magistrado uma latitude de poderes que faça entrar a sua discricionariedade naquele  “reino confuso do arbítrio, do palpite, do sentimento anárquico e da intuição irrefletida” (Manuel de Andrade,1987). E pelo que respeita ao valor segurança, é então patente a todas as luzes que o denominado “ativismo judicial” o compromete numa medida incomportável. Se a isto juntarmos que o uso descontrolado do poder, reduzindo a interpretação, a justificação e a aplicação da norma a puras operações subjetivas, desvinculadas e arbitrárias, faz de todo o modo perder ao direito o caráter de ciência (ou até mesmo de arte) que pelo menos comumente lhe é atribuído, parece havermos alinhado razões suficientes para que seja repudiado todo e qualquer laivo de legitimidade do denominado “ativismo judicial inovador”. Depois de tudo, o que um juiz opina serve somente para expressar a medida de sua visão, não a medida das coisas.

 

E não se trata de um intento ilícito ou desafortunado, porquanto parece intuitiva a necessidade de que as decisões jurídicas (com validade intersubjetiva e potencial capacidade de consenso) estejam racionalmente justificadas e coerentes com o sistema jurídico global, quer dizer, que em favor das mesmas se aportem argumentos que façam com que, sendo produto de uma (limitada) racionalidade plasmada no diálogo de reconhecimento e compreensão recíproca, possam ser discutidas e controladas, e, em igual medida, tratem de impedir um perfil de magistrado proclive a um desvairado subjetivismo. Assim que uma interpretação/aplicação que não se submeta à Constituição ou à lei corre sempre o risco, precisamente por ser infundada, de precipitar-se em uma violência e em um arbítrio visceralmente insensatos. A tal ponto que a atividade do magistrado acabaria despojada de toda objetividade e assumiria sorrateira e definitivamente a iniludível irracionalidade do jogo interpretativo.

Não resta a menor dúvida de que se se pondera atentamente sobre as condições do ato do compreender e interpretar, não resulta difícil descobrir que – se bem valiosos os fins da racionalidade do proceder interpretativo – os vínculos constituídos pelas regras, os métodos de interpretação dos textos normativos, a dogmática jurídica, a comunidade dos intérpretes e dos juristas, e a própria dimensão da comunidade ética e da textualidade, são sempre limites de natureza relativa; quer dizer, não podem jamais eliminar totalmente a natureza do jogo interpretativo (isto é, de discricionariedade e dos espaços de liberdade do intérprete), senão que somente contribuem, com sua função normativo-prescritiva, a estruturá-los e a contê-los. Em todo caso, se o objetivo é a racionalidade, a objetividade e o controle do interpretar, são sempre preferíveis vínculos e limites parciais e imperfeitos, expressão de culturas jurídicas e sociedades históricas específicas, antes que nenhum vínculo ou limite. Dito de modo mais simples, a insuficiência do vínculo não implica, em definitivo, a supressão dos limites por ele desenhados.

Ademais, talvez seja útil recordar que no processo de realização do direito se apresenta ainda ao magistrado um importante problema relativo a sua  responsabilidade de garantir ou, melhor dito, de estabelecer a coerência intrínseca do sistema jurídico. Ao magistrado se lhe confia a tarefa específica de combater ou ao menos minimizar a contradição intrínseca do sistema jurídico, particularmente a de reconstruir e contextualizar a hierarquia dos valores e princípios constitucionais, que não se pode considerar como dada e adquirida de uma vez por todas. O sentido de uma norma jurídica se converte, por meio do sujeito-intérprete – e ainda que a modifique no percurso do processo interpretativo-, em expressão de relações mantidas com a prática, de uma capacidade de relação com os dados extralingüísticos e com o contexto de experiência, que em cada novo caso tem que ser renovada e dinamicamente reconstruída, mas sempre com o fim de compor em um todo coerente normas, princípios e valores diferentes e, portanto, de detectar, de forma prudente e responsável, na pluralidade de hipóteses interpretativas e soluções alternativas possíveis, a solução legítima, mais satisfatória e com maior capacidade de consenso. É dever (e não uma faculdade) do magistrado, no exercício de sua tarefa sócio-institucional, procurar que suas valorações cambiantes do texto normativo estejam sempre em consonância com a coerência do sistema jurídico e com os valores historicamente aceitos e compartidos por uma determinada comunidade ética.

Agora: é de fato imprescindível assegurar ao cidadão plena capacidade para controlar e participar legitimamente da formação da decisão judicial por meio de eficazes medidas processuais e metodológicas de controle? É de fato inegociável a necessidade afastar qualquer tipo de “ativismo judicial inovador” que, por sua própria natureza, socava qualquer possibilidade de controle? A resposta só pode ser afirmativa. Seguindo a idéia (republicana) de liberdade desenvolvida anteriormente, é preciso notar que a possessão da liberdade requer não somente a ausência de interferência por parte dos demais nos espaços em que tomamos decisões relevantes para o desenvolvimento de nossas vidas, senão também a ausência de controle não justificado, quer dizer, a ausência de dominação.

Dito de outro modo, que uma interferência não será arbitrária ou causa de dominação na medida em que seja exercida sob o controle estrito e prioritário dos sujeitos interferidos. A interferência não arbitrária – isto é, a interferência que o interferido tem a capacidade de controlar – não constituirá forma alguma de diminuição ou negação da liberdade como não dominação do sujeito interferido. Isso se deve ao fato de que a interferência arbitrária requer, pelo menos, a possibilidade de interferir à vontade e com impunidade. Se posso pôr freio a certo tipo de interferência que se me exerce, ou se posso fazer que aos sujeitos  que interferem lhes resulte demasiado custoso interferir em minha vida – até o ponto de que deixe de ser racional para eles o continuar interferindo -, então o fato de que eu permita tal interferência não significa que esteja sendo dominado[4].

Dessa forma, parece ser perfeitamente legítimo, já agora, perguntar se é possível que a interferência praticada pelo Poder Judiciário, ao tomar uma decisão não vinculada à Constituição ou à lei, poderá vir a constituir uma forma de dominação ou interferência arbitrária nas vidas daquelas pessoas que, em termos legais, saiam perdendo em decorrência desse provimento (decisão). E a resposta a esta pergunta é muito simples: quando esta intervenção do Estado-juiz é conduzida de forma tal, que outorga ao cidadão uns níveis de controle sobre a forma em que a intervenção estatal tem lugar (ou garante ao indivíduo a capacidade de controle sobre a forma como interpreta e aplica o direito), não haverá dominação nos termos a que estamos nos referindo E o argumento é simples: serei controlado por instâncias alheias na medida em que o Poder Judiciário tenha arrojado uma decisão que interfira em minha vida à vontade – ou seja, sem nenhum controle – e a um custo intolerável – isto é, com certo grau de impunidade pelo mau, equivocado ou desvinculado uso de um poder do Estado.

Daí que hoje a gente exige não só decisões dotadas de autoridade senão que pede razões. Isto vale principalmente para a administração da justiça. A responsabilidade do magistrado se converteu cada vez mais na responsabilidade de justificar suas decisões. A base para o uso do poder por parte do juiz reside na aceitabilidade de suas decisões e não na posição formal de poder que possa ter. Neste sentido, a responsabilidade (e a obrigação) de oferecer justificação é, especificamente, uma responsabilidade de maximizar o controle público da decisão, sendo que sua representação (da justificação) é sempre também um meio para assegurar, sobre uma base racional, a existência da certeza jurídica na sociedade (Aarnio, 1997). Em resumo, é através da justificação (isto é, de sua fundamentada vinculação ao ordenamento jurídico) como o magistrado, enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da idéia de direito e da justiça que o fundamenta,  cria e estabelece a credibilidade na qual descansa o controle e a confiança dos cidadãos acerca de sua atividade.

Mas se nada disso for suficiente, talvez seja útil recordar que o ilimitado (e/ou descontrolado) uso do poder é, depois de tudo, a essência da tirania. Os destinos de um povo não podem ser decididos por um grupo de “inovadores” juízes “ativistas”, especialmente se exercido por meio de um poder que sequer é capaz de exigir o cumprimento ou fazer cumprir a Constituição em benefício de seus próprios membros. 


 

NOTAS

[1] As informações introdutórias sobre “ativismo judicial” foram obtidas do artigo do Prof. Luis Flávio Gomes, “O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?” (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12921). Para os efeitos deste artigo, admito e adoto  todos os dados e conceitos que figuram no mencionado artigo, nomeadamente pela seriedade e fiabilidade da fonte.

 

[2] Para citar Chomsky (2007): “Creio que há certo tipo de fundamento absoluto […] que em última instância reside nas qualidades humanas fundamentais, sobre as que se baseia um conceito “real” de justiça. Creio que é muito apressado qualificar nossos sistemas de justiça atuais como meros sistemas de opressão de classe; não creio que seja assim. Penso que expressam sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos de opressão, mas também uma busca óbvia e constante de conceitos verdadeiramente humanos e valiosos de justiça, decência, amor, bondade e compaixão, que creio que são reais”. Com efeito, em uma sociedade tendencialmente integrada a consciência jurídica dessa comunidade propende a confundir-se com a concreta objetivação histórico-social que a juridicidade obteve no sistema do direito vigente. Os princípios e normas positivas da sua juridicidade são em boa parte o resultado da assimilação jurídica de intenções ético-político-sociais dominantes no ethos social histórico da concreta comunidade. Pode assim dizer-se que nessa medida os princípios e normas informadoras de juridicidade vigente são expressão de nossas intuições e emoções morais (e, portanto, vigorando socialmente como ideologia em sentido positivo e global) assumidas pelo direito. Pense-se – e só queremos referir-nos a alguns exemplos mais evidentes – nos princípios sem os quais hoje, onde quer que seja, se não pode admitir como válida a individual responsabilidade criminal (a definição dessa responsabilidade nos termos objetivos que apenas um  princípio de  nullum crimen sine lege pode assegurar, e segundo uma imputação subjetiva que exige o respeito pelo  princípio da culpa (não obstante a sua atual problemática). Considere-se o princípio da autonomia ou a irredutível subjetividade de uma esfera jurídica pessoal, a manifestar-se nos problemas dos direitos de personalidade, dos direitos subjetivos, da negocial autonomia privada (autonomia decerto hoje profundamente correlativa, e a conexionar-se, com um princípio de responsabilidade ou  vinculação social, nos seus limites e no seu exercício). Contra o arbítrio do poder e a prepotência da autoridade, postula-se o princípio da legalidade da função ou atividade executiva, por um lado, e o princípio do controle jurisdicional do seu exercício, por outro lado. O princípio da jurisdição, com os seus corolários da  independência  e da imparcialidade da função judicial. O princípio da igualdade jurídica – a entender já hoje para além da mera igualdade perante a lei e verdadeiramente como “igualdade perante o direito”. O princípio de defesa perante quaisquer acusação ou incriminação e o princípio do contraditório (audiatur et altera pars), etc. Por certo que se poderá objetar que a existência jurídica de alguns destes princípios se deve em parte ao seu caráter formal, desde logo os que mais diretamente exprimem uma exigência de legalidade, e que os restantes carecem, na sua indeterminação intencional, de uma causa específica e, como tal, necessitam de concretização destinada a obter, com fundamento, os critérios materiais que (eles) não definem. Com o que se toca o problema, último e decisivo, da sede e natureza dos fatores ou critérios que são chamados, já a dar uma intenção material aos princípios e normas jurídicas formais, já a impor um sentido materialmente determinado aos princípios e normas jurídicas intencionalmente indeterminados.(Castanheira Neves,1999). E a resposta comum é pronta: a determinante material ou de conteúdo de tais princípios e normas oferece-a unicamente nossas intuições e emoções morais que constituem em termos dominantes a espécie humana – ou, o que é o mesmo, a intenção ideológica-ética-política da comunidade em causa. Seria este, afinal, o decisivo critério material do jurídico; e seria assim de novo ilusória a pretensão de desvincular nature-nurture: que o direito compete à natureza humana, que ele, tanto no seu sentido como no conteúdo da sua normatividade, é uma resposta culturalmente humana (uma estratégia sócio-adaptativa) ao problema também e essencialmente humano da convivência no mesmo mundo e em um determinado tempo e espaço histórico social. Como bem expressado por Humphrey (1986), os historiadores podem descrever as forças impessoais como queiram, mas a realidade é que não há forças impessoais na sociedade humana: não há um só acontecimento significativo que não tenha sido modelado por mentes humanas em interação com outras mentes humanas. A história da sociedade humana nos últimos milhares de anos é a história do que as pessoas disseram umas às outras, do que pensaram umas das outras, de rivalidades, de amizades, de ambições pessoais e nacionais.

 

[3] Por exemplo, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual  uma das partes  se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão  direitos  constitutivos  do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que  habilitam  publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres  e autônomos. Certamente  que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos  molestam  as interferências  como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar no exemplo aqui mencionado. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa, não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. (Atahualpa Fernandez, 2007).

 

[4]Suponhamos que permito a alguém guardar a chave de meu carro ou esconder meus cigarros. Quando esse alguém atue de acordo com dita permissão, que eu lhe outorguei, pode que interfira em minha vida, mas em nenhum caso sua interferência constituirá uma forma de dominação ou interferência arbitrária (Pettit, 2009).

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ: Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Colaborador e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha ( Evolución y Cognición Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Professor Titular da Universidade da Amazônia/UNAMA (Licenciado); Membro do MPU (Aposentado); Advogado.

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007.

SERVIÇO MILITAREstabilidade só é válida se houver afastamento do emprego

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DECISÃO: * TRT-Campinas – A 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região negou provimento a recurso interposto por trabalhador do ramo de revestimentos, que pedia estabilidade provisória ou indenização, calculados a partir de sua dispensa do serviço militar, além de férias acrescidas em um terço, 13º salário e FGTS. Para o autor, uma cláusula da convenção coletiva de sua categoria profissional garantia o emprego ou o salário aos trabalhadores desde o alistamento até 60 dias após a dispensa do engajamento.

O relator do processo no TRT, o juiz convocado José Carlos Ábile, ressaltou em seu voto que a norma convencional dá estabilidade apenas àqueles que prestam ou tenham prestado o serviço militar, o que não foi o caso do trabalhador. "Não houve o afastamento do trabalho nem o término do engajamento", reforçou o magistrado. Ábile lembra que o reclamante foi pré-avisado de sua dispensa em março de 2007, trabalhou até abril desse ano e teve a sua dispensa homologada no mês de maio subsequente. "O alistamento do trabalhador ocorreu em 13 de fevereiro de 2007, mas ele retornou à Junta Millitar somente no mês de junho, em razão da convocação, sendo que nesta data foi dispensado de fazer o serviço militar", complementou.

Para o relator, tanto o artigo 472 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como a cláusula convencional cuidam de incorporação do empregado ao serviço militar, ou seja, de seu afastamento obrigatório do emprego. "O simples alistamento não cria a estabilidade perseguida pelo ora agravante. Dessa forma, tanto as normas acima citadas quanto a cláusula normativa possuem por objetivos garantir o emprego àqueles que, em decorrência do serviço militar obrigatório, fiquem impossibilitados de comparecer ao trabalho, o que, por óbvio, não era o caso do reclamante." (processo 1054-2007-018-15 ROPS)

 


 

FONTE:  TRT-Campinas, 27 de maio de 2009.

REDUÇÃO SALARIAL INDEVIDARedução salarial sem observância à norma coletiva é inválida

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DECISÃO: * TRT-MG  –  Dificuldades econômicas da empresa, fruto da má gestão ou do despreparo para enfrentar a concorrência, não justificam a redução de salário sem a observância dos critérios estabelecidos em norma coletiva da categoria. Com esse entendimento, a 1ª Turma do TRT-MG manteve as diferenças salariais concedidas a uma professora em sentença. 

A instituição de ensino não negou ter reduzido o número de horas-aula da reclamante e, como consequência, a sua remuneração. Entretanto, alega que isso ocorreu porque passava por profunda crise econômica, com a redução do número de alunos ao longo dos anos, até o inevitável encerramento das atividades. 

O relator, juiz convocado José Eduardo de Resende Chaves Júnior, ressaltou que a convenção coletiva da categoria previu a possibilidade de redução do número de aulas ou da carga-horária do professor, por acordo entre as partes ou em razão da diminuição do número de turmas por queda de matrículas, não motivadas pelo empregador, desde que homologada pelo sindicato e paga a indenização prevista no próprio instrumento normativo. Mas essas regras não foram observadas. 

Da forma como foi realizada, a redução salarial fere o princípio da irredutibilidade, prevista no artigo 7º, VI, da Constituição da República, e reiterada pelo instrumento coletivo, sendo considerada nula. Isso porque os riscos da atividade empresarial não podem ser divididos com os empregados, devendo ser assumidos integralmente pelo empregador, como decorrência da prestação do trabalho em benefício alheio.“A assunção dos riscos atribui exclusivamente ao empregador a responsabilidade pelos ônus que decorrem da atividade que optou por exercer. Se, por um lado, aufere os lucros advindos do resultado da prestação de serviços de seus empregados, por outro, assume a direção do negócio, responsabilizando-se pelos custos e pela sorte do próprio empreendimento” – finalizou o relator.    (RO nº 01608-2008-039-03-00-0 )


FONTE:  TRT-MG, 26 de maio de 2009.

ANOTAÇÃO NA CARTEIRA DE TRABALHO GERA INDENIZAÇÃOTST mantém dano moral por anotação em carteira de decisão judicial

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DECISÃO:  * TST –    A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho confirmou, por unanimidade de votos, a condenação imposta à Gibraltar Corretora de Seguros Ltda., de Belo Horizonte (MG), de pagar indenização por dano moral no valor de R$ 5 mil por ter registrado na carteira de trabalho de um corretor a informação de que foi acionada na Justiça do Trabalho por ele. Após sentença transitada em julgado que determinou a anotação do contrato de trabalho em carteira, a corretora cumpriu a ordem judicial e, na parte destinada às anotações gerais, escreveu que a obrigação decorria de sentença da 35ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.

Segundo o relator do recurso, juiz convocado Douglas Alencar Rodrigues, a conduta afronta dispositivo da CLT, configura abuso, de acordo com o Código Civil, e demanda reparação. “Muito embora a busca do Poder Judiciário represente o meio adotado pelas sociedades civilizadas para a solução de litígios entre seus membros, não se pode cerrar os olhos para o preconceito ainda presente em segmentos do setor empresarial contra trabalhadores que exercem o direito constitucional de ação”, afirmou Douglas Rodrigues em seu voto.

O relator lembrou que a conduta empresarial de pesquisar antecedentes judiciais de trabalhadores antes de contratá-los levou o ex-presidente do TST, ministro Francisco Fausto, a determinar, no âmbito da Justiça do Trabalho, a suspensão da consulta de processos por meio do nome do trabalhador nos sites de todos os tribunais trabalhistas. A consulta só pode ser feita pelo nome ou razão social de empregadores ou de advogados. O mesmo procedimento foi adotado em relação às notícias sobre as decisões, elaboradas pelas assessorias de comunicação social, em que o nome da parte trabalhadora também é omitido.

No recurso ao TST, a defesa da corretora sustentou, sem sucesso, que não cometeu nenhum ato desabonador, que sua conduta não foi ilegal nem antijurídica. Além disso, a empresa informou que o corretor tinha duas carteiras de trabalho, e a anotação foi efetuada na mais antiga. Por fim, alegou que não houve dano material, pois o corretor já estava em outro emprego quando a anotação foi feita. O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) considerou que o dano moral independe da existência de prejuízo material, sendo plenamente admissível o deferimento de indenização pelo prejuízo moral puro.

A condenação foi imposta porque competia ao empregador cumprir a decisão judicial nos limites da condenação, anotando na carteira do trabalhador apenas as datas de início e término do contrato de trabalho, a função e o salário (R$ 2.300,00), tal como foi determinado pela sentença, sem justificar a causa da anotação. A empresa fez constar na página 19 da carteira a seguinte informação: “Anotações efetivadas em razão de sentença proferida pela 35ª VT/BH – ref. proc.0356/04 – fulano de tal x Gilbraltar Corretora”.

O artigo 29 da CLT prevê especificamente as anotações que devem ser feitas pelo empregador na carteira de trabalho, e um de seus parágrafos veda ao empregador “efetuar anotações desabonadoras à conduta do empregado em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social”. Por isso, segundo o TRT/MG, a atitude da empresa configura ilicitude que enseja o pagamento de danos morais, uma vez que tal fato pode acarretar ao trabalhador dificuldades na obtenção de um novo emprego, ou até mesmo inviabilidade de contratação. (RR 743/2007-114-03-00.9)

 

FONTE:  TST, 27 de maio de 2009.


DETERMINADA REINTEGRAÇÃO AO EMPREGODoença descoberta no período de aviso prévio indenizado impede dispensa

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DECISÃO:  * TRT-MG  –   A 8ª Turma do TRT-MG manteve sentença que declarou a nulidade da dispensa do reclamante e determinou a sua reintegração ao emprego, com o pagamento de indenização substitutiva dos salários relativos ao período compreendido entre a dispensa e o retorno ao trabalho. Isso porque, à época da dispensa, o autor encontrava-se incapacitado para o trabalho, mas o exame demissional, realizado de forma superficial, não retratou a realidade. 

No caso, em 05.06.08, dia da comunicação da dispensa, o reclamante foi submetido a exame pelo médico da empresa, que lhe prescreveu o uso de anti-inflamatório. Nessa mesma data, ele preencheu questionário sobre condições gerais de saúde, relatando inchaço nas juntas, dor, tremor e formigamento nos braços. Em 14.05.08, foi afastado do serviço, por dez dias. O exame médico demissional que o declarou apto para o trabalho, ocorreu somente no dia 18.06.08, portanto, após a dispensa e o recebimento das verbas rescisórias. 

O relator, juiz convocado José Marlon de Freitas, esclareceu que a comunicação da dispensa, dada em 05.06.08, mediante aviso prévio indenizado, prorrogou o contrato de trabalho do reclamante até 05.07.08, conforme artigo 498, da CLT, e Súmula 182, do TST. E, nesse período, o reclamante comprovou que estava doente, através de relatórios médicos, datados de 02.07.08 e 04.07.08, atestando que ele se encontrava em tratamento de epicondilite lateral associado à síndrome do canal radial do cotovelo, necessitando de procedimento cirúrgico. “Logo, o acometimento de doença, ainda que no período do aviso prévio indenizado, suspende o contrato de trabalho e obsta sua rescisão”– enfatizou, acrescentando que os exames de ultra-sonografia e ressonância magnética, realizados em 08.08.08 e 27.08.08, demonstraram a existência da doença. 

Com esses fundamentos, a Turma entendeu correta a sentença que considerou ilegítima e discriminatória a dispensa do empregado doente, ressaltando que a proibição da dispensa não corresponde à garantia provisória no emprego, podendo a reclamada, se desejar, dispensar o autor, mas somente após a sua recuperação.  (RO nº 00732-2008-153-03-00-2 ) 


FONTE:  TRT-MG,  27 de maio de 2009.

ILEGALIDADE DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA Constituição e Pacto de São José determinam ser ilegal prisão por dívida

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DECISÃO:  TJ-MT –   É ilegal a prisão civil do devedor fiduciante, pois não é equiparado ao depositário infiel. Essa decisão foi da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso ao acolher o Habeas Corpus preventivo com pedido de liminar nº 112573/2008. O recurso foi impetrado contra decisão do Juízo da Segunda Vara Cível da Comarca de Primavera do Leste (238 km da Capital), após conversão de uma ação de busca e apreensão em ação de depósito e determinação ao paciente da entrega do bem dado em garantia fiduciária ao credor (Banco Bradesco S/A) ou o depósito do valor equivalente em dinheiro, sob pena de ser decretada sua prisão civil.

Consta dos autos, que o impetrante, inadimplente em um financiamento, deveria entregar o carro ao banco ou ressarcir o valor do bem, sob ameaça de prisão em 24 horas. A defesa dele sustentou violação do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, que não admite prisão civil por dívida (salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel).

O relator do habeas corpus preventivo, juiz substituto de Segundo Grau Marcelo Souza de Barros, elaborou seu voto embasado em jurisprudências e em decisões anteriores próprias, conforme teor do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988, que determina não haver prisão civil por dívida (exceções inadimplemento voluntário de obrigação alimentícia e depositário infiel), e no Pacto de São José da Costa Rica, que derrogou o artigo 1287 do Código Civil, que permitia a prisão civil a fim de cumprir obrigação. Desta feita, concedeu ordem para confirmar liminar antes deferida e ordenar a expedição de salvo conduto ao impetrante.

Votação unânime confirmada pelos desembargadores Juracy Persiani, como primeiro vogal, e Clarice Claudino da Silva, como segunda vogal convocada


FONTE:  TJ-MT, 29 de maio de 2009.

 

OBRIGAÇÃO ALIMENTARDever de alimentar é de ambos os pais e deve ser equitativo

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DECISÃO:  * TJ-MT –   A Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso acolheu recurso interposto a fim de reduzir o valor pago por um ex-marido, a título de alimentos provisórios a sua ex-mulher e filho menor, de 30 para 10 salários mínimos. Segundo o relator do recurso, desembargador José Tadeu Cury, o dever de alimentar é de ambos os pais e deve ser feito de forma eqüitativa, em observância ao disposto no artigo 1566 do Código Civil, razão por que se mostra razoável a redução da quantia fixada provisoriamente a título de alimentos.

O ex-marido interpôs recurso de agravo de instrumento em face da decisão que fixara alimentos provisórios em 30 salários mínimos nos autos de uma ação de separação judicial cumulada com partilha de bens e alimentos que lhe move sua ex-mulher. A decisão de Primeira Instância consignou que a fixação neste valor se deu em razão dos gastos declarados, das despesas para custear a demanda e dos recursos do obrigado. Contudo, o agravante sustentou que não procediam os gastos apresentados pela autora, a título de despesas mensais, vez que seriam irreais, injustificados e alguns sequer teriam o dever legal, cuja situação, em sua ótica, revelaria a má-fé da ex-mulher. Impugnou inúmeras despesas, dentre elas os gastos com a ex-sogra, eventual retomada de curso em faculdade particular pela agravada, despesas com celular e com o cachorro, plano de saúde, lazer e roupas. Argumentou que a agravada é jovem (33 anos), em plena capacidade de trabalho e é proprietária de uma empresa, cujos lucros e rendimentos lhe cabem exclusivamente. Asseverou não ter restado demonstrada qualquer prova de seus rendimentos capaz de justificar o excessivo valor fixado a título de alimentos provisórios.

Conforme o desembargador relator, a decisão agravada justificou que a fixação em 30 salários mínimos se deu em razão das necessidades da agravada e da afirmação que o agravante aufere renda mensal de R$ 50 mil. O magistrado frisou que a agravada é proprietária de estabelecimento varejista de veículos usados, fato que demonstra, a princípio, sua capacidade laborativa. Ressaltou que o artigo 1566 do Código Civil, para proteger a família iniciada pelo casamento, prevê diversos deveres dos cônjuges, dentre eles o sustento, a guarda e a educação dos filhos. O relator destacou ainda que o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069/1990) impõe igualmente aos pais o dever de sustento, guarda e educação da prole e o artigo 1.703 do Código Civil dispõe que para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos. “Assim, a contribuição do pai para a manutenção do filho deve ser distribuída eqüitativamente com a mãe, vez que os genitores são obrigados, por imposição legal, a garantirem a subsistência e bem-estar da prole”.

Acompanharam na íntegra voto do relator o juiz substituto de Segundo Grau Antônio Horácio da Silva Neto (primeiro vogal) e o desembargador Evandro Stábile (segundo vogal).


FONTE:  TJ-MT, 28 de maio de 2009.

Revogar as prerrogativas de prisão em sala de estado maior ou especial para advogados, membros do ministério público dos Estados e jurados é inconstitucional.

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* Edson Pereira Belo da Silva   

01. Introdução. 

       O Ministério da Justiça, por meio da Portaria n.º 61 de 20 de janeiro de 2000, constituiu uma Comissão de renomados juristas/processualistas para elaborar propostas com a finalidade de modernizar e tornar mais célere o Código de Processo Penal, bem como adequá-lo à Constituição Federal de 1988. Integraram esta Comissão: Ada Pellegrini Grinover, que a presidiu, Petrônio Calmon Filho, que a secretariou, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Fernandes Scarance, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci, Sidney Beneti e, posteriormente, Rui Stoco. 

       A referida Comissão elaborou inúmeras propostas, dentre elas uma específica sobre a “Prisão Especial”, que, após regular tramitação e aprovação no Congresso Nacional, além da sanção presidencial, deu origem a Lei n.º 10.258/2001, a qual acrescentou cinco parágrafos ao artigo 295, do Código de Processo Penal, e deu nova redação ao inciso V, do mesmo dispositivo legal, sem, no entanto, extinguir a “prisão especial” e a “Sala de Estado Maior” constantes de leis ordinárias especiais. Significa dizer, que tal proposta da mencionada Comissão foi acolhida pelo legislador. 

       Outra proposta oriunda da mesma Comissão, tratando “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”, resultou no Projeto de Lei (PL) n.º 4.208/2001, que, após sete anos de tramitação e substanciais atualizações e alterações, teve sua redação final (1) – relator Deputado José Eduardo Cardozo, PT/SP – aprovada pela Câmara dos Deputados, em 25 de junho de 2008, sendo então o sobredito PL encaminhado ao Senado Federal, via Ofício n.º 383/2008/PS-GSE, por força do artigo 65 da Carta da República.

       Já no Senado, o PL em questão recebeu a denominação de Projeto de Lei da Câmara (plc), de n.º 111 de 2008. Submetido à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (CCJC), foi nomeado relator o Senador Demóstenes Torres, o qual inseriu no bojo do aludido PLC o tema da “prisão especial”, todavia, restringiu-a a alguns agentes públicos (governadores, prefeitos e vereadores, ministros de estados, magistrados, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, Integrantes das forças armadas, membros dos Tribunais de Contas) e aos cidadãos que exerceram a função de jurado no Tribunal do Júri. 

       Posteriormente, a CCJC do Senado recebeu inúmeras Emendas do Plenário da Casa ao PLC aprovado, tendo sido acolhida dentre elas àquela de n.º 6-Plen., apresentada pelo Senador Marcelo Crivella, com o escopo de extinguir a “prisão especial” prevista no Código de Processo Penal e nas Legislação ordinária  Extravagante, inclusive àquela prevista no inciso V, do artigo 7.º, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil). Mais adiante veremos que “prisão especial” se distingue de prisão em “Sala de Estado Maior”. 

       Com o acolhimento da Emenda n.º 6-Plen., alterando o citado PLC, o artigo 295 do Código de Processo Penal passaria ter a seguinte redação: “Art. 295. É proibida a concessão de prisão especial, salvo a destinada à preservação da vida e da incolumidade física e psíquica do preso, assim reconhecida por decisão fundamentada da autoridade judicial ou, no caso de prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão, da autoridade policial encarregada do cumprimento da medida”.        

       Superada as Emendas, o Senado Federal aprovou o Substitutivo (2) (parecer do vencido n.º 110 de 2009) ao PLC n.º 111 de 2008, mantendo a referida redação dada ao artigo 295 do CPP pela aludida Emenda n.º 6-Plen., bem como as revogações, no seu artigo 4.º, do inciso V, (3) do artigo 7.º, da Lei n.º 8.906/1994, e do inciso V, (4) do artigo 7.º, da Lei n.º 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). 

       Após essa fase, e tendo o Senado emendado o Projeto de Lei n.º 4.208/2001 oriundo da Câmara dos Deputados, toda matéria foi devolvida à origem, em 17 de abril de 2009, via Ofício de n.º 352/2009, por conta do imperativo constitucional (artigo 65, parágrafo único, da CF).

       Ao revogar os dispositivos das citadas leis ordinárias federais, cujos quais dispõem sobre a “prisão em especial ou Sala de Estado Maior” para advogados e membros do Ministério Público, o PLC do Senado em testilha ofende a Constituição Federal.

       E quanto aos cidadãos que, efetivamente, exerceram a função de jurado, da mesma forma, a revogação de sua prerrogativa (“prisão especial”, artigo 295, inciso X, do atual Código de Processo Penal), da mesma forma, atenta contra o texto constitucional.         

02. Inconstitucionalidade parcial do artigo 4.º, do PLC n.º 111/2008, do Senado Federal e da extinção da prisão especial para jurados. 

       Pelo que se depreende da redação do artigo 4.º, do Projeto de Lei da Câmara n.º 111/2008, aprovado pelo Senado Federal e devolvido àquela Casa, as prerrogativas dos advogados e dos membros do Ministério Público dos Estados – inciso V, do artigo 7.º, da Lei n.º 8.906/1994, e inciso V, do artigo 40, da Lei n.º 8.625/1993 – estão revogadas. 

       O artigo cotejado está assim redigido: “Art. 4.º. São revogados o art. 298, o inciso IV do art. 313, os §§ 1.º a 3.º do art. 319, os incisos IV e V do art. 323, o inciso III do art. 324, o § 2.º e seus incisos I, II e III do art. 325, os arts. 393 e 595, todos do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal); a Lei n.º 2.860, de 31 de agosto de 1956; a Lei n.º 3.988, de 24 de novembro de 1961; a Lei n.º 5.606, de 9 de setembro de 1970; o inciso III do art. 19 da Lei n.º 7.102, de 20 de junho de 1983; a Lei n.º 7.172, de 14 de dezembro de 1983; o art. 135 da Lei n.º 8.069, de 13 de junho de 1990; o inciso V do art. 40 da Lei n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993; e o inciso V do art. 7.º da Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994”. (5) 

       Importante enfatizar, que a intenção do legislador é mesmo extinguir a “prisão especial”, não só no Código de Processo Penal (artigo 295), mas também em leis ordinárias extravagantes. 

       Entretanto, o legislador ordinário deixou de observar que ao revogar os dispositivos legais acima sublinhados estará violando preceitos constitucionais e infraconstitucionais. Isso porque se desiguala os iguais, na medida em que todos os profissionais que compõe a tríade do direito (Magistratura, Advocacia e/ou Defensoria Pública e Ministério Público) devem gozar da mesma prerrogativa, qual seja, “prisão especial ou em Sala de Estado maior”. 

       Ademais, advogados, defensores públicos e membros do “parquet” exercem funções essenciais à justiça, nos termos da Carta da República, notadamente o advogado que é indispensável à administração da justiça, consoante preceitua o artigo 133 do mesmo texto constitucional. (6) E a inconstitucionalidade nesse caso reside na ofensa ao “principio da igualdade” (artigo 5.º, caput, da CF). 

       Ora, o legislador revoga prerrogativas dos advogados e dos membros do Ministério Público dos Estados previstas em dispositivos de leis ordinárias (ns.º 8.906/1994 e 8.625/1993); todavia, ele nada diz ou menciona quanto àquelas prerrogativas, de “prisão especial ou em Sala de Estado maior”, existentes nas seguintes Leis Complementares: (i) LC n.º 35/1979, artigo 33, inciso III (Lei Orgânica da Magistratura Nacional); (7) (ii) LC n.º 75/1993, artigo 18, inciso II, alínea “e” (Lei Orgânica do Ministério Público da União); (8) (iii) LC n.º 80/1994, artigo 44, inciso III (Lei Orgânica da Defensoria Pública da União). (9)  

       Por seu turno, a LC n.º 73/1993 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União), nada dispõe sobre a prerrogativa em comento, de maneira que, a nosso sentir, e por analogia, aos membros da Advocacia-Geral da União deve-se aplicar àquela relativa ao defensor público da União, até por trata-se de norma de mesma hierarquia (Lei Orgânica), além do inciso V do art. 7.º da Lei ordinária n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, enquanto vigorar.  

       Assinale ainda, que, apesar de tal PLC revogar a referida prerrogativa dos membros do Ministério Público dos Estados, prejuízo algum haverá para tais profissionais do direito, posto prever o artigo 80 da Lei ordinária n.º 8.625/1993 a aplicabilidade, subsidiariamente, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (n.º 75/1993), o que já ocorre, inclusive, com relação a outras questões.

       Quanto aos procuradores e os defensores público dos Estados, gozam eles também dessa prerrogativa – “prisão especial ou em Sala de Estado maior” –, pois normas estaduais também tratam desse tema. Citemos, como exemplo, o artigo 162, da Lei Complementar estadual n.º 998/2006, que organiza a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o qual dispõe que o defensor público paulista também goza das prerrogativas previstas na legislação federal. (10) Ao passo que o artigo 105 da Lei Complementar estadual n.º 478/1986 (atualizada pela LC estadual n.º 1.082/2008) dispõe, de igual forma, que a prisão do procurador do estado só será efetuada em “sala especial”. Por ser tal procurador, advogado público, nada obsta que ele se valha daquela prerrogativa do advogado privado, haja vista que ambos são regidos pelo o Estatuto da OAB (artigo 3.º, § 1.º).       

       Como visto, a permanecer essa “excrescência (11) jurídica” ou “projeto de lei discriminatório”, o advogado preso receberá um tratamento comum, isto é, ficará detido juntamente com os demais presos como se qualquer pessoa fosse; enquanto que os demais profissionais do direito (membros da magistratura, do Ministério Público, das Defensorias e Advocacias Públicas), também tidos essenciais à Justiça, nos termos da a Lei Maior, continuaram a usufruir da prerrogativa de “prisão especial ou Sala de Estado Maior” contidas em outras normas – Lei Complementar federal, por exemplo –, isso porque o PLC do Senado devolvido à Câmara, se transformado em Lei ordinária,  não terá o condão revogar Lei hierarquicamente superior, sob pena de violar o princípio constitucional da hierarquia das normas (artigo 59, CF). 

       Não obstante, as normas estaduais que, dentre outras questões organizacionais e institucionais, ampliam o rol de prerrogativas dos agentes públicos (profissionais do direito) de determinada Unidade Federativa, continuaram a viger em perfeita sintonia com as normas federais. 

       Eis ai, portanto, manifesta desarmonia do PLC do Senado com o texto constitucional, de modo que em sendo o advogado profissional que exerce função essencial à Justiça e a ela é indispensável, assim como aqueles profissionais citados anteriormente, é de todo inconstitucional e irrazoável qualquer tentativa de se revogar a prerrogativa funcional de “prisão especial ou Sala de Estado Maior” do advogado (inciso V, do art. 7.º, da Lei ordinária n.º 8.906/1994), mantendo-a para os demais profissionais do direito. 

       A pretensão do legislador infraconstitucional, conforme já enfatizado, é extinguir com a “prisão especial”, de sorte que ninguém pudesse dela usufruir. Destarte, se ele não consegue ou não pretende revogar essa mesma prerrogativa dos demais profissionais, nesse aspecto, melhor será deixar as coisas como estão. Do contrário o STF será chamado, mais uma vez, a exercer o seu consagrado controle de constitucionalidade, declarando inconstitucional dispositivo da Lei (PLC n.º 111/2008) que amadurece no Congresso Nacional.

       Percebe-se que o legislador está no caminho errado ao revogar àquela prerrogativa do advogado. Não se deve nem mesmo pregar, aqui ou acolá, a revogação das prerrogativas dos outros profissionais do direito, porque ela ainda é essencial à manutenção da integridade física deste profissional. Ninguém precisa imaginar o que ocorreria com um juiz ou promotor se fosse recolhido a uma unidade prisional com presos comuns (traficantes, homicidas, latrocidas, etc.), logo, a mesma reflexão deve ser feita com o advogado ou defensor público.        

       É desnecessário dizer, outrossim, que as prisões brasileiras não são geridas, internamente, pelo o Estado, senão por diversas facções criminosas. Nesse mundo carcerário real, nem mesmo quem lá apenas trabalha está seguro. 

       Outro absurdo jurídico e social é retirar do cidadão, que exerceu efetivamente a função de jurado no Tribunal do Júri, a prerrogativa de “prisão especial”. Como agiria um preso ou um membro de facção se soubesse que determinado colega de prisão atuou como jurado no Júri? Por qual motivo será que as polícias possuem seus próprios presídios? Tais perguntas, obviamente, dispensam resposta. 

       Mas as prerrogativas do jurado, sob a nossa ótica, são as mesmas dos membros do Poder Judiciário, durante o efetivo exercício de sua função. Por um simples motivo: o jurado também exerce atividade jurisdicional, ele diz o direito, enfim, ele julga pessoas. Além disso, a instituição a que ele pertence, no caso o Tribunal do Júri, é um órgão do Poder Judiciário dos Estados, assim como os juízes de direito. Na Constituição do Estado de São Paulo, por exemplo, esta matéria está prevista no artigo 54, incisos III e V.

       Ressalte-se, contudo, que os jurados representam o povo, exercendo diretamente todo o poder que dele emana – é partição popular, sem representantes para aplicar a Justiça –, a teor do que preceitua o artigo 1.º, parágrafo único, da Constituição Federal.

       Vê-se, dessa forma, que o legislador despreza e pretende revogar direito do seu próprio patrão, que é o povo, aquele que também patrocina, financeiramente, o funcionalismo público como um todo; porém, quase sempre é ignorado e traído pelos seus representantes.   

03. Prisão especial e prisão em sala de Estado Maior.  

       Prisão especial e prisão em Sala de Estado Maior não se confundem. Ambas são muito distintas na sua funcionalidade. A primeira modalidade é simplesmente uma cela como qualquer outra, mas com fim de abrigar somente pessoas que necessitam, por lei ou determinação judicial, como no caso do jurado, permanecerem separadas de presos perigosos ou ameaçadores, resguardando assim, sobremaneira, a integridade física do preso. Vale enfatizar, no entanto, que a Lei de Execuções Penais (n.º 7.210/1984), em seu artigo 84, também agasalha isso. 

       A cela especial, de acordo com o artigo 295, § 3.º, do Código de Processo Penal, deve atender os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de areação, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana.

       A segunda modalidade de prisão especialíssima, é àquela cumprida em Sala de Estado Maior da Forças Armadas, Quartéis da Polícia Militar ou Corpo de Bombeiro. (12) Aliás, isso não é nada novo, visto que o Supremo Tribunal Federal, ainda em 1956,  distinguia perfeitamente esta daquela. Note-se: “Ao Bacharel em Direito, como diplomado por faculdade superior, aplica-se o disposto no art. 295 do Código de Processo Penal; somente o advogado regularmente inscrito, tem direito a ser recolhido, quando preso, em Sala Especial do Estado Maior (Decreto n.º 22.478, DE 1933, ART. 25, N. VIII). (13) 

       Tais modalidades de prisão especial, segundo o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, (14) devem ser garantidas, “unicamente, às pessoas que, em virtude da função exercida, antes de serem levadas ao cárcere, possam ter sua integridade física ameaçada, em convívio com outros presos. É o caso dos policiais, juízes, defensores, entre outros, que atuaram na justiça criminal”. 

       O Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, Paulo Luiz Netto Lobo, (15) assevera que deve ser entendida por Sala de Estado Maior toda àquela utilizada para ocupação ou detenção eventual dos oficiais integrantes do quartel militar respectivo.  

04. Conclusão.  

       O artigo 4.º, do Projeto de Lei da Câmara n.º 111/2008, aprovado pelo Senado Federal e devolvido àquela Casa, é parcialmente inconstitucional porque revoga prerrogativas (prisão especial ou sala de Estado Maior) dos advogados e dos membros do Ministério Público dos Estados – inciso V, do artigo 7.º, da Lei n.º 8.906/1994, e inciso V, do artigo 40, da Lei n.º 8.625/1993 –, desigualando, assim, aqueles iguais exercem função essencial à Justiça. Todavia, os membros do “parquet” dos Estados podem valer-se das prerrogativas insculpidas na Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC n.º 73/1993), o que inocorre com o advogado, que valer-se-á da analogia.  

       A extinção da prerrogativa de “prisão especial” do cidadão que exerce a função de jurado no Tribunal do Júri, de igual forma, é inconstitucional, posto ter ele exercido função jurisdicional de natureza penal, o que coloca em risco a sua integridade física caso venha ser ele recolhido ao cárcere comum. E até com base no princípio da razoabilidade, nem mesmo a um juiz, advogado, promotor ou policial aposentados deve ser negada a prisão especial, por motivos óbvios acima declinados, que dizer então do ex-jurado.      

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal e júri da Escola Superior de Advocacia, autor de obras jurídicas, pós-graduado em direito, pós-graduado em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra, Portugal, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro das Comissões de Prerrogativas e de Direito Criminal da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante (edson@edsonbelo.adv.br). 


O COSTUME COMERCIAL COMO FONTE DE DIREITO COMERCIALO Costume comercial pode ser provado por testemunha e servir de fonte de direito

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DECISÃO: * STJ –   O costume comercial pode ser provado por testemunhos e não somente pelo assentamento nas juntas comerciais. Pode também servir de fonte de direito comercial, de forma que as regras do Código Civil de 1916 não se sobrepõem, necessariamente, a tais costumes. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao negar recurso em caso de sobre-estadia no transporte de cargas ocorrido na vigência do Código Civil de 1916 e do Código Comercial de 1850.

O juiz negou a prova testemunhal que visava provar a existência do costume de a contratante indenizar a transportadora terrestre pela sobre-estadia paga aos motoristas em atrasos na descarga nos portos. A ação de cobrança da transportadora envolvia outros débitos, no total de R$ 170 mil. Mas, após a negativa de prova desses costumes, a sentença fixou o valor devido em R$ 3,8 mil referentes a apenas duas faturas de serviços prestados. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao analisar agravo retido, reconheceu a possibilidade de produção de prova testemunhal pretendida e anulou o processo desde a audiência de conciliação. Daí o recurso da contratante ao STJ.

Em voto classificado pelo ministro Massami Uyeda como verdadeira peça doutrinária e exemplo do trabalho institucional do STJ, a ministra Nancy Andrighi fez uma revisão histórica da legislação e da doutrina sobre costumes comerciais no Brasil desde o Regulamento 737, de 1850. Para a relatora, diferentemente do alegado no recurso, a tradição relativa aos costumes comerciais é o de registro por assentamento dessas práticas no antigo Tribunal de Comércio ou nas atuais juntas comerciais, o que dispensaria outros meios de prova; porém a ausência de tal homologação não significa a inexistência do costume, nem impede a produção de provas diversas para comprová-lo.

“É evidente que nem todo costume comercial existente estará assentado antes que surja uma oportunidade para que seja invocado em juízo, pois o uso necessariamente nasce na prática comercial e depois se populariza nas praças comerciais, até chegar ao ponto de merecer registro pela Junta Comercial”, completou a relatora. “A posição defendida pela recorrente levaria à restrição da utilização do costume mercantil como fonte subsidiária do direito apenas àquelas hipóteses já extremamente conhecidas na mercancia; porém, como estas situações, justamente por serem estratificadas, não geram conflitos entre os comerciantes, cria-se um círculo vicioso que afasta totalmente a utilidade do uso mercantil para o debate jurídico.”

A ministra acrescentou que, mesmo que o costume seja comprovado, ainda não se poderia concluir automaticamente haver responsabilidade da recorrente. Nesse caso, o costume poderá ser usado como regra jurídica para apreciação da disputa, a partir da análise, em uma segunda etapa, de sua efetiva aplicabilidade aos fatos. A relatora citou exemplo em que o juiz pode concluir não se tratar de efetivo costume comercial, mas mero hábito mercantil – de alcance reduzido, pois ainda que seja prática rotineira, é adotada pelos comerciantes por liberalidade e não por entenderem ser uma obrigação.

Para a ministra Nancy Andrighi, não é óbvia nem uniforme a compreensão sustentada no recurso de que, mesmo comprovado, o costume alegado seria contrário à lei e, por isso, não poderia regular a situação jurídica mercantil. Um autor citado no voto afirma que, se a disposição legal não for de ordem pública e obrigatoriamente aplicável, pode ser substituída por uso ao qual as partes deem preferência. Nesse caso, o julgador deveria aplicá-lo, sobrepondo-o à lei não imperativa.

Além disso, como o recurso sustenta a isenção de responsabilidade da contratante com base na disposição genérica de responsabilidade civil prevista no artigo 159 do CC/16, a relatora entende que não se trata apenas de discutir a eventual contrariedade do costume à lei, mas também as nuances resultantes desse conflito, pois, em face da legislação vigente à data dos fatos, tanto os costumes comerciais quanto o Código Civil de 1916 eram fontes subsidiárias de direito comercial e, no caso, a regra geral de responsabilidade citada pela recorrente “não regula, de forma próxima, qualquer relação negocial, mas apenas repete princípio jurídico imemorial que remonta ao ‘neminem laedere’ romano”. Por isso, a análise dessa alegação não pode ser automática ou superficial, como pretendido no recurso.

A relatora concluiu ressalvando, ainda, que, sob o Código Civil de 2002, a questão poderia ser analisada de forma diversa. A unificação do direito privado poderia levar a uma nova interpretação relativa às fontes secundárias do direito comercial, mas tal análise escaparia aos limites do recurso julgado.

FONTE:  STJ, 19 de maio de 2009


PRINCÍPIO DA BOA-FÉFraude à execução só é aplicada se há ciência de comprador

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DECISÃO: * TJ-MT – Não caracteriza fraude à execução se na época da compra não havia gravame no registro imobiliário envolvendo o imóvel, configurando, portanto, a presunção contida no princípio da boa-fé. Com esse entendimento, a Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso negou pedido do Banco do Brasil que almejava o reconhecimento de fraude à execução sob a venda de um imóvel efetuada por um espólio a terceiros, sob o qual incidia penhora proveniente de ação de execução. Os magistrados de Segundo Grau reconheceram a boa-fé dos compradores do imóvel, porque na época dos fatos não incidia sobre o bem nenhum gravame. 

Nas razões recursais, o banco buscou também que fosse negada a gratuidade da justiça concedida aos apelados, sob argumento de que eles não teriam comprovado seu estado de miserabilidade e, por isso, não fariam jus ao benefício. Contudo, para a relatora do recurso, desembargadora Clarice Claudino da Silva, as argumentações da defesa não mereceram prosperar porque, para que seja constituída a fraude à execução sobre alienação de bens, é necessário que os adquirentes do imóvel soubessem da existência do gravame.  

A magistrada acrescentou que no caso em questão a escritura pública de compra e venda demonstrou a propriedade e posse sobre o bem objeto do litígio, e não há indícios de que se tratava de documento fraudulento ou que a transação de compra e venda tenha sido simulada. Além disso, pontuou que na época da transferência do imóvel para o nome dos apelados não constava da matrícula do imóvel qualquer gravame sobre ele, o que induz a boa-fé na aquisição do bem e afasta a alegação de fraude.  

Quanto à assistência gratuita, explicou que a Lei nº 1.060/1950 instituiu a assistência gratuita mediante simples afirmação do autor de não estaria em condições de arcar com as despesas processuais. Além disso, salientou que só a existência de patrimônio em nome dos apelados, com valor venal de R$ 134.088,92 e outros lotes, não é garantia de que reúnam condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogados sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. A votação também contou com a participação dos desembargadores Guiomar Teodoro Borges (revisor) e Juracy Persiani (vogal


FONTE:  TJ-MT, 22 de maio de 2009