* Atahualpa Fernandez
“Cuando se acepta una explicación y se rehúsa otra que está de acuerdo con la experiencia, es evidente que hemos abandonado los límites de la ciencia y hemos caído en la mitología”. EPICURO
“La cultura es el modo humano de satisfacer las exigencias biológicas”. SALVADOR GINER
A pergunta pelo sentido e finalidade do direito conduz inevitavelmente à busca dos fundamentos antropológicos da natureza e da conduta humana. O direito e as normas jurídicas (e morais) existem unicamente porque o homem estabelece relações sociais. O ser humano como pressuposto, fundamento e sujeito de todo ordenamento jurídico está orientado para a vida social: a presença e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social. Qualquer teoria, norma ou discurso que exclua, recuse ou elimine a participação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou restringe o fenômeno social como condição de nossa humanidade, porque aniquila o processo biológico que o gera (Maturana, 1985).
Mas para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há que se compreender ao mesmo tempo a dinâmica, em conjunto, entre natureza humana e o mundo das representações culturais, superando a idéia de que o homem deve ser contemplado unicamente como um ser cultural sem instintos naturais ( que condicionam seu comportamento) e sem nenhuma história evolutiva.
E uma vez admitido que os homens vivem e se desenvolvem em sociedade não porque são homens (ou anjos), senão porque são animais, resulta razoável inferir que a idéia do direito fundamentada em uma moral de respeito mútuo emana da e está limitado pela natureza humana: de nossa faculdade para antecipar as conseqüências das ações, para fazer juízos imediatos sobre o que está moralmente bem ou mal e para eleger entre linhas de ação alternativas. Nossas manifestações jurídicas não são coleções casuais de hábitos arbitrários: são expressões canalizadas de nossos instintos morais e sociais, ou seja, de uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno.
Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Somos uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários e valiosos para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixou seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural.
Dito de outro modo, embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica capaz de desenvolver uma bússola interna (um instinto moral) que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como as necessidades, desejos e crenças dos demais, de categorizar a conduta humana (própria e alheia) objetos e indivíduos em termos de valor ( de favorável ou desfavorável, de bom ou mal) e de transmitir, de forma acumulativa e renovada, esta categorização valorativa ( a informação sobre o valor, positivo ou negativo, de condutas, objetos e indivíduos) através da aprovação ou rechaço social.
Como os demais antropóides africanos, a natureza do ser humano é essencialmente social: nossa condição é a de um primata que nasceu para viver em comunidade. A expressão latina unus homo, nullus homo expressa bem essa natureza que nos caracteriza como espécie social e que, para nossos antepassados, seguramente representou uma vantagem por oferecer soluções a problemas adaptativos práticos relacionados com a constituição de uma vida socialmente organizada (a troca, a cooperação, a tomada de decisões, o juízo moral, o castigo, a retribuição, etc.).
O homem isolado, sem uma comunidade social na qual possa plasmar sua existência, não é homem: é um nada. Fomos desenhados para desenvolver-nos – e aprendemos a viver e a prosperar – em um entorno social, no marco das restrições de um mundo natural. A natureza do homem e, conseqüentemente, todas as suas ações, sejam ou não conscientes, é o resultado combinado não somente de uma mescla complicadíssima de genes, neurônios e de sinapses senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida social, que confluem para dar o resultado final de um individuo inseparável da sociedade. O comportamento humano se origina a partir da interseção de nosso sofisticado programa cognitivo de raiz filogenético com o entorno sócio-cultural em que transcorre nossa ontogênese.
A um nível mais profundo, a existência de uma natureza humana nos indica que o mesmo que um meio ambiente sem cálcio trunca no organismo humano o programa ontogenético que haveria de levá-lo ao desenvolvimento normal da dentição, uma vida social inexistente produz um ser sem articulação lingüística e sem autoconsciência, sem vida interior articulada; uma arquitetura cognitiva deserta de experiência, não um indivíduo no sentido que damos correntemente a esta palavra.
A existência secular e o intercâmbio recíproco com nossos congêneres produzem indivíduos. É com o outro e por meio do outro que o indivíduo se constitui: o reconhecimento do outro implica o reconhecimento do “eu”. A capacidade para autointerpretar-nos está direta e indissociavelmente vinculada à aquisição da capacidade para interpretar os outros, para “ler” suas mentes, para entendê-los, e para entender-nos a nós mesmos, como seres intencionais: é inata a nossa necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição, já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Marcados por uma incompletude constitutiva da espécie, devemos ao outro nossa própria existência e individualidade. Em verdade, é no trato de uns com outros quando temos que pensar, sentir, recordar, calcular e sopesar as coisas, ou seja, em que a empatia, a cooperação (e desde logo o egoísmo) e o altruísmo fluem com maior naturalidade.
Essa inteligência social requer até a última gota da capacidade cerebral que possuímos: a intersubjetividade é a característica fundamental da natureza de nosso cérebro. Os seres humanos não podem sobreviver, em nenhum lugar da terra, à margem da sociedade: não podem sobreviver, queremos dizer, em nenhum lugar da terra, de forma autônoma e separada, se carecem de uma profunda sensibilidade e capacidade de compreensão do “outro”. Assim como ensinam as mais laicas entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos conforma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. O homem (cujo cérebro é o resultado vivo de um largo processo filogenético e capaz de viver em um universo não percebido) sem alteridade humana não pode desenvolver suas promessas genéticas.
Na falta desse reconhecimento, o homem não se humaniza; e poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos houvessem decidido não olhar-nos jamais ou comportar-se como se não existíssemos: seríamos, por certo, como uma espécie de Adão bestial, solitário e sem consciência, que não viveria em sua “existência” o significado da relação sexual, o prazer do diálogo e do consenso, o amor pelos filhos e a dor da perda de uma pessoa amada ( Eco, 2000).
E não somente nossa existência, nossos valores e nossas normas de conduta são definidos em relação com as demais pessoas. A própria liberdade humana não pode conceber-se à margem da interação com os demais, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de obrar que está inscrita na mesma essência do homem, e da qual brota a possibilidade de obrar livremente, não pode realizar-se mais que no diálogo e no intercâmbio com o “outro” no mundo. Na advertência de E. Levinas, não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro nasce também a dimensão ética e a jurídica, fatalmente vinculada e indissociável de nossas relações com os demais.
Daí que o direito não é mais nem menos que um artefato cultural, uma estratégia sócio-adaptativa cuja função consiste em estabelecer limites, articular, e combinar, por meio de normas de conduta, os vínculos sociais que irremediavelmente estabelecemos ao longo de nossa secular existência. Com o direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para instituir e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, assim como para justificar e controlar os comportamentos coletivos. O desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios relativos à convivência social, isto é, de que criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.
De fato, as normas de conduta representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade ou predisposição para inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o comportamento dos indivíduos, ou seja, para antecipar as conseqüências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação: um desafio que nasceu da necessidade humana não somente de delimitar os âmbitos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, pudessem ser válida e socialmente exercidos, senão também para entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em grupo.
Pois bem, desde esta perspectiva (naturalista) acerca do ser humano e da função do direito, é possível estabelecer algumas implicações jurídicas a partir de uma compreensão realista da natureza humana – isto é, considerada sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos -, acusadamente no que se refere ao problema das relações jurídicas. E começaremos por admitir que o objeto do discurso jurídico, como práxis de um contexto vital, ético e cultural, só pode ser o homem, mas não o homem empírico, nem sequer o homem meramente como noumênico, mas o homem como in-divíduo (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos, que significa “indiviso”), como pessoa: o homem em sentido ontológico-relacional, situado no tempo e no espaço, em sua história e em sua natureza, como o originário sujeito de liberdade e autonomia – e, portanto, de responsabilidade -, capaz de altruísmo, cooperação (intercâmbio recíproco) e de egoísmo no trato de suas relações sociais – e, por isso, titular de dignidade e de culpa. Quer dizer, como o conjunto de relações em que se encontra e para o qual está desenhado para estabelecer: o ser humano, em sua dimensão social, é ponto de partida e de chegada, o núcleo duro e invariável, do fenômeno jurídico.
Por outro lado, parece estar além de toda dúvida razoável o fato de que as relações jurídicas estabelecidas pelo ser humano nada mais são do que aqueles vínculos sociais relacionais que o discurso jurídico como tal identifica. Isso significa que sempre se legitima o direito a partir do modo em que a cada um se confere competência como pessoa, sobretudo no que diz respeito aos direitos constitutivos do indivíduo, ou seja, aos direitos que habilitam publicamente a sua respectiva existência como cidadão. E embora o direito não esgote toda a nossa relação de vida, o certo é que, uma vez definida em termos normativos, toda a relação jurídica repousa, em última instância, em uma relação social, a qual, por sua vez, tem o indivíduo como sujeito.
Assim entendido, a função e a finalidade de todo e qualquer discurso prático normativo consiste na articulação combinada dos vínculos sociais relacionais que subjazem a um determinado tipo de relação jurídica, no sentido de e com o objetivo de, potenciando seus melhores lados e eliminando seus lados destrutivos, atuar o direito em relação da pessoa e para a pessoa , isto é, ao redor do compromisso ético que congregue liberdade, igualdade e fraternidade na construção conjunta de alternativas e possibilidades reais de uma vida digna de ser vivida.
Um direito concebido desta maneira é relacional, dinâmico, histórico e pessoal, dado que a forma primeira de toda e qualquer relação é a pessoa. Trata-se, sem mais, de conceber uma ontologia do pessoal pensada como ontologia relacional – e não de qualquer outra peculiar ontologia substancialista –, em razão da qual é de grande importância e significado o ponto de vista do reconhecimento e do respeito ao outro. Dito de outro modo, somente pode ser pessoa quem reconhece o outro como pessoa; o consenso não pode ser “o fundamento último” nem da personalidade e nem do direito, senão que é preciso remeter a algo que lhe corresponde, o suum iustum. Um direito que garante ao homem o que lhe corresponde em suas relações com os outros pode aspirar a ver-se reconhecido na consciência dos indivíduos: somente um direito tal é suscetível de consenso e intersubjetivamente válido, uma vez que o ser do homem é essencialmente relacional (Kaufmann, 1999).
Resulta evidente, portanto, que o tipo de natureza humana que subjaz a este tipo de argumento constitui o fundamento material, ontológico e metodológico do fenômeno jurídico aqui defendido e, em igual medida, se configura como o conceito gerador e articulador dos modelos de vínculos sociais aqui propostos. Em realidade, a concepção que adotamos acerca da natureza humana e que serve de fundamento às idéias aqui formuladas, reside no fato de que os seres humanos, por ser um produto mais da evolução biológica, desenhados pela seleção natural para resolver determinados problemas adaptativos práticos relacionados com a constituição de uma vida socialmente organizada, quer dizer, por serem produtos da co-evolução entre o natural e o cultural (genes-cultura), tomam em consideração as limitações com as quais nascemos (que impõem constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória da cultura e limitam o rol das variações culturais possíveis) e que, de uma maneira ou outra, definem e circunscrevem as condições de possibilidade do direito e de sua respectiva realização prático-concreta.
E uma vez que sem vida social nada é possível para o indivíduo, nem sequer o indivíduo mesmo, seu existir separado, o problema passa a ser o de saber se é possível entender que nossa mente está dotada, a exemplo do que ocorre com o sentido da vista e a capacidade para a linguagem, de módulos específicos ou sistemas especializados dedicados a percepção e processamento de informações acerca de algo que tem um componente tão aparentemente difícil de manejar como, por exemplo, as relações sociais e , conseqüentemente, as relações jurídicas – a que Karmiloff-Smith (1995) chama de “módulo social”, isto é, um departamento do cérebro que se especializa em lidar com estímulos sociais e comportamento social ( módulos cognitivos funcionalmente independentes, de especificidade de domínio, e sempre que entendamos estes como redes de circuitos neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro).
O método para descobrir o sistema de regras que subjaz, em nosso caso, às intuições morais relativas aos vínculos sociais relacionais pode ser comparado – tal como realizou John Rawls (1971) – com o método da lingüística moderna: as regras gramaticais são tão complexas que não podem ser aprendidas em um período de tempo tão breve por um bebê que utilize algoritmos de aprendizagem geral. Em seu lugar, deve haver constrições inatas de aprendizagem que permitam a aquisição lingüística. Tais constrições implicariam que a gama de gramáticas que lhe é possível aprender resumem-se a um pequeno e altamente estruturado subconjunto de um conjunto de gramáticas logicamente possíveis. Todas as gramáticas das linguagens existentes, naturalmente, caem dentro deste subconjunto (Pinker,1994).
Centrando nosso interesse no que a analogia permite-nos compreender, diremos o seguinte: uma vez admitido que o direito define, em termos normativos, a tessitura social e que toda relação jurídica reside, em última instância, em uma relação social – a qual, por sua vez tem sempre o indivíduo como sujeito –, temos que reconhecer que se retirarmos o “véu jurídico-normativo” que recobre nossas relações jurídicas nos encontraremos fundamentalmente (em seu núcleo duro) diante de vínculos sociais relacionais já antes estabelecidos pelo homem, e sobre os quais, unicamente, as normas jurídicas incidem atribuindo direitos e deveres recíprocos aos sujeitos envolvidos. E nada mais.
Agora, são infinitos e ilimitados os tipos de relações jurídicas tuteladas pelo direito ou, ao contrário, existem constrições inatas no pensamento ético-social humano que restringem – de forma similar ao que ocorre com a linguagem – o conjunto dos vínculos sociais relacionais humanamente possíveis (que subjazem às relações jurídicas) a um subconjunto relativamente pequeno de sistemas lógicos possíveis? Qual seria o núcleo duro constitutivo desse conjunto de vínculos sociais relacionais através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social regulados pelo direito (as relações jurídicas)?
Trataremos de responder a estas questões na segunda parte deste artigo, recordando, contudo, que a partir do momento em que é incapaz de advertir os signos de sua própria crise porque sua ideologia é um mito contínuo de justiça, o Direito se separa da realidade e se envolve em uma ilusão, esteada pela moldura conceitual de concepções dogmáticas completamente alheias às implicações jurídicas da natureza humana.
NOTAS
O ser humano pertence a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos. O que realmente resulta insólito é que ainda se siga questionando e/ou desconsiderando a existência da natureza humana, quando os avanços das investigações procedentes das ciências da vida e da mente oferecem linhas de convergência capazes de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir de mera especulação metafísica: já sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e manifestações inatas e inevitáveis em muitas e diversas situações; sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. E hoje sabemos que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Somos animais éticos. O resto das histórias acerca de nossas origens e de nossa natureza não é mais que isso: histórias que consolam, enganam e até motivam, mas histórias ao fim e ao cabo. Por conseguinte, e diante de tais evidências, o que se há que fazer é considerar seriamente a relevância das bases biológicas do comportamento humano, não somente no sentido de estabelecer os vínculos adequados entre processos mentais e processos neurológicos – tarefa na qual avançam tenazmente as neurociências -, senão também, e muito especialmente, no sentido de compreender o largo e complexo processo evolutivo que gerou nosso sistema nervoso e como este, no contexto de uma crescente sociabilidade, produziu o enramado cultural em que estamos instalados e que não tem termo de comparação.
A capacidade para categorizar valorativamente a conduta própria e alheia e encerrar-se em um intercâmbio de juízos de aprovação e de reprovação até constituir uma nova fonte de emoções de prazer e desagrado (que sentimos ao colocar à prova uma conduta e as que sentimos ante a aceitação ou o rechaço social da mesma) constitui um bom exemplo de como nossa constituição psicobiológica condiciona o desenvolvimento cultural, funcionando como condição de possibilidade da massiva produção cultural de nossa espécie, e, ao mesmo tempo, de sua independência material com relação às nossas condições biológicas. A dupla ação natureza/cultura produziu, durante o largo curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos desenhados com a intenção de que servissem para resolver determinados problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança, assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, não obstante em processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da cultura pelo efeito “ratchet”, de que nos fala Tomasello, 1993 e 1999), se transmitem de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas influídas por esse triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e da história, tanto recente como remota, da humanidade. De fato, a característica da cultura humana que a torna tão central na vida humana é o seu potencial acumulativo: os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de “identificar-se” (de ver os “outros”) como membros de sua própria espécie, conduzindo a um entendimento recíproco como seres intencionais; esta nova classe de entendimento social favoreceu o aparecimento de novas formas simbólicas de interação social que, por sua vez, conduziu à produção gradual de novos artefatos culturais cada vez mais complexos, acumulando modificações ao longo do tempo histórico e em um grau que não é encontrado em outra espécie. Nas palavras de Edgar Morin (2000): a cultura, que não está assimilada de forma hereditária, aparece e se transmite por aprendizagem. A cultura não somente nasce no marco de um processo natural senão que adquire uma relativa autonomia, o que vai a propiciar o desenvolvimento da humanidade: já na última etapa, a do Homo sapiens, havia um acervo cultural propício para a eclosão de um grande cérebro, esse grande cérebro que supera desde qualquer ponto de vista ao do Homo erectus. Se a cultura é o resultado de uma evolução natural, o último estágio desta evolução não podia dar-se sem que existisse a cultura. Já não falamos simplesmente de corte epistemológico senão também de soldadura ontológica. Significa dizer que inclusive o ato de filosofar não pode perder de vista sua origem animal, e que aí, nessa simbiose, reside o característico da “natureza humana” (o próprio “tempo”, que durante um largo período se acreditou ser uma noção filosófica agora descobrimos que talvez seja um conceito biológico; os neurobiólogos nos explicam que quando se produz um corte do lóbulo pré-frontal ou uma alteração dos tubérculos mamilares, os sujeitos passam a perceber somente o presente, vivem em uma sucessão de presentes: deixa de haver, nessas zonas cerebrais, conexões com a memória e possibilidade de antecipação) . A mente se inscreve no cérebro, que é o mais sofisticado órgão animal. Nenhuma construção cultural pode desconectar-se de sua raiz, e esta raiz é tão “espiritual” como “material”, tão cultural como animal. Dito de outro modo, a origem de nosso comportamento normativo (ético/jurídico) não se encontra tanto no contrato social de Hobbes senão nas idéias do próprio Darwin, precursor dos etólogos. A origem está nos “instintos sociais “ dos animais, não somente no temor racional do egoísmo (Hobbes). Há uma prévia “empatia” ativa que desenha soluções compartidas. Nossas valorações e condutas morais não são somente produto da história cultural, senão que também se encontram codificadas de alguma forma em nossas mentes e na substância biológica da qual esta surge, evolucionada por seleção natural: nosso cérebro. Se cabe falar de um “animal ético” é porque as condutas altruístas e cooperadoras, como resultado de estratégias evolutivas filtradas pela seleção natural, possuem um alto valor adaptativo e de sobrevivência. Seja como for, o certo é que, desde uma perspectiva mais científica que humanista, filosofamos depois de Darwin: descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas. Somos essencialmente animais. Animais falantes ou animais valorativos , mas animais ao fim.
Note-se que várias teorias modernas da evolução do cérebro humano mantêm que o principal estímulo ambiental seletivo para seu rápido crescimento pode haver sido as exigências de ter que tratar com a complexidade da vida social. Em vez de pensar que o cérebro humano se desenvolveu simplesmente para resolver os problemas do entorno material, temos que considerá-lo mais bem como um órgão social desenvolvido no interior do espírito coletivo de uma comunidade. A função própria do fabuloso desenvolvimento neo-cortical do Homo sapiens é precisamente a de facilitar a interpretação própria e alheia, a inteligência social. A origem biológica de nossas mais extraordinárias capacidades cognitivas – como em todos os grandes hominídeos – é de todo ponto social.
Uma tese que defendemos por sua indiscutível força explicativa (empírico-científica) acerca da dimensão natural do ser humano, sua natureza biológica e sua origem evolutiva, e que nos põe em alerta ante a evidência de que direito não poderá seguir suportando, por muito mais tempo, seus modelos teóricos elaborados sobre construções especulativas da natureza humana. Hoje, mais que em qualquer outra época, é necessário pensar e determinar a noção de natureza humana (como objeto de investigação empírica) no marco de um programa naturalista para, a partir daí, abordar e repensar a teoria jurídica em suas distintas tradições. Por outro lado, diga-se de passo, é preciso manter certa prevenção com aqueles que insistem em atribuir a este programa (naturalista) um caráter reducionista, termo cujo uso costuma comportar, habitualmente, uma intenção pejorativa e desqualificadora. Não é o caso: o que se pretende destacar é a vontade de conceber a cultura e a vida social como realidades nascidas da própria constituição biológica do ser humano e aplicar, onde seja possível, a heurística darwinista à explicação da origem e função dos fenômenos e mecanismos socioculturais, respectivamente. Daí que para Maturana (1985), superando o naturalismo ingênuo, o “dever ser” é um momento fundado sobre a estrutura biológico-neuronal do “ser” humano vivo.
Coevolução considerada como um modelo misto de evolução, em que os fatores genéticos se apresentam como co-responsáveis do processo de evolução cultural junto a outros fatores e forças que se desenvolvem, atuam e se expressam em termos estritamente culturais (Cavalli-Sforza; Feldman; Boyd e Richerson). Já sobre o conceito das “restrições cognitivas” acerca da aquisição, armazenamento e transmissão das representações culturais , assim como da transmissão cultural como um processo inerentemente seletivo (um “modelo seletivo” segundo o qual, dadas certas circunstâncias e tendo a população uma variedade de representações, algumas dessas representações têm mais probabilidade de armazenar-se na memória dos sujeitos e de transmitir-se a outros sujeitos: ao ser mais fáceis de aprender e de memorizar, tem um maior “valor de sobrevivência” que outras representações para sua transmissão cultural), cfr., por todos, Boyer (1992, 1993 e 2002): dadas as propriedades gerais da mente humana, certas representações têm mais probabilidade que outras de ser adquiridas e transmitidas, e de chegar, deste modo, a constituir os conjuntos estáveis de representações aos que os antropólogos chamam de “culturas”. Assim que os sistemas culturais podem e devem ser estudados como conjuntos de representações mentais adquiridas e armazenadas pela mente humana, já que os processos de aquisição e memorização impõem fortes constrições aos conteúdos e à organização das representações culturais. Note-se que Boyer trabalha com as idéias religiosas porque parece ser a parte “mais cultural” da cultura e em conseqüência a menos suscetível de ser explicada em termos cognitivos. A partir daí, e contradizendo os pressupostos da antropologia cultural ( que costuma centrar-se em sistemas abstratos de “símbolos”, “códigos” ou “significados”, cujas propriedades se presumem independentes do modo em que estão representados na mente humana e parecem estar completamente restringidos e determinados ao modo como os sujeitos recebem e aprendem a partir da interação social – portanto, a suposição de que a transmissão cultural é primordialmente um processo passivo), considera que, se as hipóteses cognitivas são relevantes para a explicação das idéias religiosas, então outros aspectos das representações culturais seriam a fortiori passíveis desse tipo de descrição – aqui incluído, evidentemente, o direito. Tal como sustenta Sperber (1985), isto explica que o suposto implícito em muitas teorias da transmissão cultural de que a mente é um processador de informação equipotencial – o suposto de que as representações mentais com distintos conteúdos são igualmente fáceis de ser transmitidas – é falso: as representações cujo conteúdo encaixa em um domínio para o qual temos mecanismos especializados serão transmitidas de modo muito distinto daquelas que não encaixam nesse domínio; em segundo lugar, acaba com a grande dúvida sobre se o indivíduo é um receptor passivo da transmissão cultural (tal como defendido pelo relativismo cultural, no sentido de que todos os aspectos da conduta humana se aprendem, diferem e podem diferir por completo em distintas culturas), o que , de fato, não o é : é a mente humana a que impõe constrições significativas para a percepção , a transmissão e o armazenamento discriminatório de representações culturais. O mesmo é dizer que a natureza humana – definida como um conjunto de mecanismos psicobiológicos comum de nossa espécie que são o resultado de um largo caminho evolutivo, marcado pelos imperativos da seleção natural – resulta indispensável para compreender as possibilidades e os limites da cultura humana, isto é, que funciona como indispensável fator possibilitador e determinante restritivo de toda variação cultural possível (variação que remete, em última instância, a dois tipos de fatores explicativos: a própria arquitetura mental modular (de conteúdo específico) e as condições ambientais locais nas quais se desenvolve). A complexidade da mente não se deve à cultura aprendida, senão que a cultura se deve à complexidade da mente humana.
Aqui se poderia conjecturar acerca do problema da falácia naturalista: passar dos enunciados descritivos (“Pedro matou a sua mulher”) aos enunciados valorativos (“Pedro deve ir à prisão”). Nada mais longe da realidade. E duas são as circunstâncias a considerar: em primeiro lugar, como mostrou Richard Hare, não existe falácia lógica porque a passagem dos enunciados descritivos aos valorativos se faz dando por suposto de maneira implícita um enunciado intermédio (“Quem mata deve ir à prisão”); em segundo lugar, que os fatos da natureza e a história fundamentam e impõe limites aos valores, mas não os determinam. É a mente humana a que constrói os valores e as normas. Depois, talvez seja útil recordar: a) por um lado, que, simétrica a alegada falácia naturalista, a sempre dissimulada falácia moralista consiste em inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico; e b) por outro lado, que não são poucos os intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” que caem ( e/ou insistem) na falácia moralista.