Crítica à iniciativa probatória do Juiz no Processo Penal

*Gisélle Maria Santos Pombal Sant’Anna  

1. Introdução

O presente artigo tem por escopo analisar se a iniciativa probatória do juiz no âmbito do processo penal se coaduna com os princípios e regras constantes da Constituição Federal.

                Para tanto, apresentam-se a previsão legal da possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício no processo penal e os argumentos aventados para fundamentar a referida previsão.

                Por fim, desenvolve-se a crítica à iniciativa probatória do juiz no processo penal para demonstrar a incompatibilidade desta previsão legal com o sistema processual penal adotado pelo nosso ordenamento jurídico e com as regras e princípios previstos na Magna Carta. 

2. Previsão Legal

O fundamento geral para o reconhecimento dos poderes instrutórios do juiz no processo penal brasileiro se encontra no artigo 156 do Código de Processo Penal, que assim estabelece: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida, sobre ponto relevante.” (grifo nosso)

Da leitura do citado artigo infere-se que o juiz pode determinar a produção de provas de ofício no curso da instrução a fim de sanar uma eventual dúvida acerca de uma questão relevante para sua decisão.

Nesse mesmo sentido, apresenta-se o artigo 209, também do Código de Processo Penal, ao estatuir que: “o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.” (grifo nosso)

O objetivo do legislador ordinário de 1941 quando da promulgação do Código de Processo Penal, ao estabelecer os artigos acima transcritos, se mostra claro na Exposição de Motivos do referido Código, na parte em que trata da matéria probatória, in verbis: 

O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza legal. Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares ou supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir a sentença.[…] Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet […]. (grifos nossos) 

Com efeito, pode-se afirmar que a iniciativa probatória do juiz no processo penal brasileiro tem por fundamento, principalmente, a busca da verdade. Cabe lembrar, por oportuno, que essa mesma razão foi utilizada para justificar os ilimitados poderes instrutórios conferidos ao juiz no âmbito do sistema inquisitório.

Em suma, há um fundamento legal para que o juiz determine provas de ofício, tendo sido ressaltado na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal que essa faculdade atribuída ao órgão julgador é complementar ou supletiva à atividade probatória desenvolvida pelas partes.

Cumpre analisar se essa autorização legal para a iniciativa probatória do juiz no processo penal encontra respaldo na Constituição Federal e nos princípios por ela aventados, conforme será abordado adiante. 

3. Breve exposição dos argumentos utilizados pelos Doutrinadores favoráveis à iniciativa probatória do juiz no processo penal

Historicamente, os poderes instrutórios do juiz estavam associados ao sistema inquisitório e à busca da verdade a qualquer custo. Nesse contexto, o acusado aparecia como mero objeto de investigação. A preocupação do órgão julgador era atingir a verdade em termos absolutos sem se preocupar com os meios utilizados para tal. Destarte, o processo penal aparecia como um instrumento para se atingir a verdade.

Atualmente, conforme afirmado alhures, a busca da verdade real é um argumento utilizado para justificar a atribuição de poderes instrutórios ao juiz. Isso porque, uma decisão só poderá ser considerada justa se estiver baseada em um conhecimento verdadeiro acerca dos fatos.

A título de exemplo, citem-se as considerações expostas por Francesco Chimenti: 

No processo penal, em regra, a iniciativa é oficial, pela própria natureza da matéria que versa. […] É preciso estabelecer condições para o aperfeiçoamento da instituição para obter-se a verdade material, não se contentando mais, com o ilusionismo, em vários momentos processuais.[1]  

Nesse mesmo sentido, Marcellus Polastri Lima entende que o juiz poderá produzir provas ex officio de forma supletiva, caso as partes não o façam, pois o processo penal busca a verdade real.[2]

Também para Paulo Cláudio Tovo,  

não demonstrada a procedência da pretensão punitiva deduzida em juízo, pelo acusador, seja por que motivo for, cumpre ao juiz investigar a verdade (sistema acusatório com resquício inquisitorial, único compatível com o princípio da verdade real ou material)[…].[3] 

Nota-se aqui o reconhecimento de uma verdade real, inerente ao processo penal, tendo em vista o fato de tal processo versar sobre direitos indisponíveis, contraposta à verdade formal, própria do processo civil.

Quanto a essa dicotomia da verdade, cabe ressaltar que a verdade é una, devendo o juiz buscar a maior aproximação possível de tal verdade, dentro de suas limitações, seja no processo penal, seja no processo civil.

Há autores os quais, reconhecendo a impossibilidade do alcance da verdade real no processo penal, asseveram que os poderes instrutórios do juiz são necessários para o esclarecimento da verdade, compreendida esta como aquela que pode ser alcançada dentro de um devido processo penal.

Nesse sentido, Gustavo Badaró entende que a verdade judicial, sendo necessariamente relativa, é aquela que o juiz irá buscar com base nas provas constantes dos autos e que possua a maior aproximação possível do que é definido como verdade. Para este autor, os poderes instrutórios do juiz podem ser considerados “um ganho no acertamento dos fatos” somados ao direito à prova das partes.[4]

Da mesma forma, Ada Grinover, partindo da premissa de que verdade e certeza se apresentam como denominações absolutas, esclarece que o juiz deve promover diligências a fim de obter “o maior grau de probabilidade possível”, sendo que “quanto maior sua iniciativa na atividade instrutória, mais perto da certeza ele chegará.”[5]

Analisando-se as posições expostas, conclui-se que os autores, os quais são favoráveis à iniciativa probatória do juiz, de alguma forma, associam tal atividade probatória do órgão julgador ao esclarecimento da verdade, possibilitado por uma reconstrução dos fatos mais eficiente.

Tais autores também negam a incompatibilidade entre os poderes instrutórios do juiz e o sistema acusatório.

Com efeito, Ada Grinover, afirma que o conceito de processo penal acusatório não tem a ver com a determinação de provas de ofício pelo juiz, sendo esta última relacionada ao adversarial system[6] que é próprio do direito anglo-saxão, se caracterizando pelo monopólio das partes na atividade probatória.

Para a aludida autora, o processo penal acusatório é aquele onde as funções de acusar, julgar e defender são atribuídas a órgãos distintos, disto decorrendo os seguintes corolários:  

a-1) os elementos probatórios colhidos na investigação prévia servem exclusivamente para a formação do convencimento do acusador, não podendo ingressar no processo e ser valorado como provas; a-2) o exercício da jurisdição depende da acusação formulada por órgão diverso do juiz; a-3) todo o processo deve desenvolver-se em contraditório pleno, perante o juiz natural.[7]

 Gustavo Badaró também considera que os poderes instrutórios do juiz não dizem respeito à essência do sistema acusatório, destacando esse autor que o processo penal acusatório moderno permite a iniciativa probatória do juiz, caracterizando, assim, um “modelo acusatório atenuado”.[8]

Um outro argumento utilizado pelos Doutrinadores favoráveis aos poderes instrutórios do juiz no processo penal consiste no fato de que a publicização do processo e o reconhecimento de sua função social exigem um papel mais ativo do juiz, visando garantir o efetivo contraditório e a igualdade substancial entre as partes, além de fornecer uma melhor prestação jurisdicional.

Tais Doutrinadores entendem que a imparcialidade exigida para o julgamento não restará comprometida se o juiz possuir iniciativa probatória.  Isso porque consideram que, quando o juiz determina a produção de uma prova ex officio, ele não sabe o que poderá advir desta atividade e, conseqüentemente, qual parte será beneficiada com aquela prova, não aventada pela acusação e defesa.[9]

Gustavo Badaró acrescenta que só haverá prejuízo da imparcialidade do juiz se a determinação de produção de provas de ofício recair sobre fontes de prova, pois, dessa forma, o órgão julgador estaria vinculado a uma hipótese prévia. O referido autor argumenta que a imparcialidade é garantida pelo contraditório e pelo princípio da motivação das decisões judiciais.[10]

Nesse mesmo sentido, Ada Grinover elenca os limites à atividade instrutória do juiz, quais sejam, contraditório, motivação das decisões judiciárias e licitude e legitimidade das provas[11], sendo o contraditório entendido como a participação tanto das partes como do juiz na produção da prova.

Em síntese, são aventados os seguintes argumentos para justificar a atribuição de iniciativa probatória ao juiz no processo penal:

a) a busca da verdade real, que informa o processo penal, entendida esta por alguns autores não em um sentido absoluto, mas como a maior aproximação possível da verdade;

b) melhor reconstrução histórica dos fatos;

c) ausência de ofensa ao sistema acusatório;

d) não comprometimento da imparcialidade;

e) concepção publicista e função social do processo penal que exigem um juiz ativo para estimular o contraditório e a promover a igualdade substancial entre as partes.

 4. Crítica à iniciativa probatória do juiz no processo penal

 Em que pesem os argumentos apresentados para fundamentar a manutenção da atribuição de iniciativa probatória ao juiz no processo penal em nosso ordenamento jurídico, entende-se que os artigos do Código de Processo Penal que trazem tal previsão vão de encontro a nossa Magna Carta e, por conseguinte, aos princípios e regras por ela aduzidos.

Conforme afirmado alhures, historicamente, a atribuição de poderes instrutórios esteve sempre ligada ao sistema inquisitório, onde o juiz não possuía limites para o alcance da “verdade real”.

Poder-se-ia imaginar que a falta de limites à atividade instrutória do juiz nesse sistema permitisse a obtenção dessa verdade absoluta. Porém, o alcance da verdade de forma absoluta é algo impossível para a condição humana.

Além disso, ressaltem-se as limitações à busca da verdade no processo penal, quais sejam, impossibilidade de observação direta dos fatos, o “caráter irredutivelmente provável da verdade fática e o inevitavelmente opinativo da verdade jurídica das teses judiciais”, a subjetividade do juiz e subjetividade das fontes de prova.[12]

No sistema inquisitório, o juiz, reunindo as funções de acusar e julgar, formulava uma hipótese em sua mente e saía à busca do material probatório para reiterar aquela mesma hipótese, obtendo, dessa forma, uma “reconstrução” dos fatos distorcida.

Nesse contexto, é cediço que não há espaço para imparcialidade. A reunião das funções de acusar e julgar na mesma pessoa impede a presença da referida garantia, garantia esta que é de suma importância para o acusado e para a obtenção de uma decisão justa.

Destarte, entende-se que se o juiz não se mantiver afastado de qualquer atividade probatória, sua imparcialidade estará visivelmente comprometida.

Nas lições de Geraldo Prado, “a introdução de material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material possa determinar, se efetivamente incorporado ao processo.”  Tal autor acrescenta que “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador.”[13]

Quanto à imparcialidade, Aury Lopes Júnior nos ensina que esta “corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando como órgão supra-ordenado às partes ativa e passiva.”[14]

Se o juiz não for imparcial, haverá um prejuízo à reconstrução histórica dos fatos, uma das finalidades do processo penal. A atribuição de poderes instrutórios ao juiz impede a melhor aproximação possível da verdade e não sendo tal aproximação obtida, a decisão não poderá ser considerada justa.

Comprometida a imparcialidade, fica clara a não observância do devido processo legal, garantia fundamental, prevista no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que assim dispõe: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

A relevância da garantia da imparcialidade para o devido processo legal foi destacada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1570-2 proposta pelo Procurador-Geral da República, em face do artigo 3º, da Lei nº 9.034/95, no voto do relator, Ministro Maurício Corrêa, citando entendimento do ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça Adhemar Ferreira Maciel, nesses termos: 

Essa atividade coletora de provas do juiz, […], viola a cláusula do ‘due process of law’. Viola, porque compromete psicologicamente o juiz em sua imparcialidade. E a imparcialidade, como sabemos, é virtude exigida de todo e qualquer magistrado […] E coletando provas, não paira dúvida, ele será fatalmente influenciado. Talvez valesse para um ‘juiz preparador’ nunca para um ‘juiz julgador’. Ademais, o ‘princípio da ação’, do ne procedat judex ex officio, impede e, na prática, desaconselha o magistrado na fase administrativa de colher provas, como o desaconselha a ajuizar ações penais de ofício. Esse não é o papel institucional e constitucional reservado ao magistrado.[15] 

Apesar de este voto discorrer acerca da atividade investigatória do juiz antes do ajuizamento da ação penal, sua utilização no presente trabalho se faz necessária para mostrar a importância da garantia da imparcialidade no devido processo legal.[16]

Outra garantia fundamental que é fatalmente desrespeitada se o juiz possuir iniciativa probatória no processo penal é a da ampla defesa, também prevista no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, in verbis: “os litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados e geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes”.

Tal garantia será violada, pois entendida a ampla defesa como aquela em que “devem ser imputados todos os concretos direitos, de que o argüido dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do processo”[17], se o juiz já estiver comprometido desde início com uma das versões, o acusado não possuirá o direito de defesa na amplitude abordada acima, não havendo nem necessidade da existência de processo penal.

Mesmo o contraditório, outra garantia fundamental prevista no inciso acima transcrito, consistente na ciência do ato levado a efeito pela outra parte e possibilidade de refutá-lo, restará prejudicado se o juiz possuir poderes instrutórios, pois não se vislumbra a possibilidade de contraditório entre o acusado e o juiz, a quem cabe prolatar a decisão.[18]

Sendo assim, não pode a garantia do contraditório ser utilizada como forma de controle da iniciativa probatória do juiz. Entende-se que nem mesmo a motivação das decisões judiciais se prestaria efetivamente a esse fim. Isso porque o juiz, ao expor as razões pelas quais está determinando a produção de uma prova de ofício, acabará mostrando o seu envolvimento com uma das versões, mesmo que de forma implícita.

Não está se afirmando que o juiz não deva motivar as suas decisões, porém essa função de controle atribuída a esse princípio constitucional no caso da determinação de provas de ofício pelo juiz só será verificada formalmente.

Também a garantia do juiz natural que consiste não somente na previsão anterior das regras de julgamento, mas também na imparcialidade do órgão julgador, é violada com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz. Essa garantia está prevista no art. 5º, inciso LIII, da Constituição, que assim dispõe: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Devido ao fato de a preservação da imparcialidade do juiz ser exigida pelo princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, a atribuição de poderes instrutórios ao juiz também compromete tal princípio em última análise.

O reconhecimento de que a determinação de provas de ofício pelo juiz viola garantias fundamentais, nos termos explicados alhures, já seria suficiente para demonstrar que tal previsão do Código de Processo Penal não se sustenta em face da Constituição Federal.

Contudo, é imperioso analisar o próprio sistema processual penal adotado pela Constituição Brasileira e se a iniciativa probatória do juiz está em consonância com esse sistema.

O artigo 129, I, da Magna Carta, estatui que: “são funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei […]”.

Destarte, o Ministério Público possui, privativamente, a titularidade da pretensão punitiva nos casos de ação penal pública, o que mostra a nítida separação entre as funções de acusar e julgar.

Logo, o juiz deve se manter afastado de qualquer atividade investigatória ou probatória, em posição eqüidistante das partes, funcionando como garantidor dos direitos fundamentais e preservando a sua imparcialidade para a obtenção da melhor decisão.

Some-se a isso os princípios aduzidos pela Lei Maior, quais sejam, contraditório, ampla defesa, devido processo legal, presunção de inocência, igualdade, juiz natural, dentre outros.

Da análise desses dispositivos constitucionais, pode-se afirmar que a Constituição adotou o sistema acusatório, porém de forma implícita.

Esse sistema, nas lições de Jacinto Coutinho,  

[…]da maneira como foi estruturado não deixa muito espaço para que o juiz desenvolva aquilo que Cordero, com razão, chamou de ‘quadro mental paranóico’, em face de não ser, por excelência, o gestor da prova pois, quando o é, tem, quase que por definição, a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade de crença no imaginário, a qual toma como verdadeiro.[19]

 Para que haja um sistema acusatório, as funções de acusar, julgar e defender devem ser atribuídas a sujeitos distintos, estando, dessa forma, preservada a imparcialidade daquele a quem compete o julgamento.

Entende-se que o a essência do sistema acusatório está na gestão da prova e não apenas na previsão de separação das funções aludidas acima.

A separação de tais funções de forma inicial, antes de instaurado o processo, não é suficiente, devendo a mesma ser mantida no curso de todo o processo penal para que a imparcialidade do juiz seja preservada.

De nada adianta a Constituição ter separado as funções de acusar e julgar e o nosso Código de Processo Penal prever a possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício, atividade que cabe às partes.

Nesse ponto, cumpre ressaltar que o direito à prova pode ser conceituado como um direito reconhecido à parte de “empregar todas as provas de que dispõe; com o fim de demonstrar a verdade dos fatos que fundamentam sua pretensão.”[20]

Tal direito possui os mesmos fundamentos do direito de ação e de defesa, compreendendo, segundo Antonio Magalhães Gomes Filho, o direito à investigação, o poder de iniciativa em relação à introdução do material probatório no processo (direito de proposição), o direito à exclusão das provas inadmissíveis, impertinentes ou irrelevantes, o poder participar da produção da prova e o direito à valoração das provas trazidas.[21]

Destarte, se o juiz determinar a produção de ofício de uma determinada prova que venha a favorecer a acusação, estará se investindo em uma atividade própria do órgão de acusação, qual seja, o Ministério Público, em verdadeira afronta ao sistema acusatório. E, ao reunir essas funções, não restam dúvidas de que a sua imparcialidade estará prejudicada.

Entende-se que a igualdade substancial entre as partes estará garantida quando o juiz se mantiver afastado de qualquer atividade probatória, proporcionando, dessa forma, uma reconstrução histórica dos fatos mais próxima da realidade.

Determinando provas de ofício, o juiz se envolve de forma antecipada com uma das versões, violando, destarte, a imparcialidade e impedindo a reconstrução dos fatos e o alcance da verdade processual.

Caso o Ministério Público seja negligente na produção de provas, o que não pode ser vislumbrado, tendo em vista todo o aparato de que este órgão dispõe, deve o juiz absolver o réu, tendo em vista os princípios do in dubio pro reo e o da presunção de inocência.

Destarte, saliente-se que a previsão da iniciativa probatória do juiz é prejudicial ao acusado, pois, caso o órgão ministerial não consiga trazer para o processo provas suficientes para a condenação, por ser o in dubio pro reo a regra de julgamento, somente restaria ao juiz absolver o acusado.

Contudo, se o órgão julgador puder determinar provas de ofício, poderá vir a produzir uma prova necessária para a condenação do acusado, o que compromete a imparcialidade e, por conseqüência, a reconstrução dos fatos, pois o juiz irá considerar apenas as provas por ele produzidas.

 5. Conclusão

Considerando os argumentos aduzidos, conclui-se que a possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício no processo penal não se sustenta em face da Constituição Federal por violar garantias fundamentais, tais como o contraditório, o devido processo legal, a ampla defesa, dentre outras.

Além disso, diante da adoção implícita do sistema acusatório pela Magna Carta, não há como se manter em nosso ordenamento jurídico a previsão de iniciativa probatória do juiz no âmbito do processo penal, mesmo que tal atividade seja supletiva à das partes.

O Sistema Acusatório, ao separar nitidamente as funções de acusar, julgar e defender, deslocou o juiz para uma posição eqüidistante das partes, visando à preservação de sua imparcialidade, garantia esta muito relevante para o devido processo legal, visto que proporciona uma melhor reconstrução histórica dos fatos e, por conseguinte, o alcance da maior aproximação com a verdade possível.

Deve o juiz zelar pela preservação dos direitos fundamentais do acusado e da sociedade, conciliando tais interesses e, para tanto, deve se manter afastado de qualquer atividade relacionada à determinação de provas de ofício.

 


 

Notas

[1] CHIMENTI, Francesco. O Processo Penal e a Verdade Material (Teoria da Prova). Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 40.

[2] LIMA, Marcellus Polastri. A Prova Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 18.

[3] TOVO, Paulo Cláudio apud LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 17.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 37 e 116.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 03-10, jul./ago./set. 1999, p. 5.

[6] Ibid, p. 4.

[7] Ibid, p. 3/4.

[8] Op. cit., p. 113 e 122.

[9] Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit., p. 79 e 83; GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit., p. 5/6.

[10] Op. cit., p. 119 e 84.

[11] GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit., p. 6/7. A autora nos esclarece que as provas ilícitas são aquelas obtidas com desrespeito às normas ou a valores constitucionais, enquanto as provas ilegítimas vão de encontro às regras processuais.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão Teoria do Garantismo Penal. Tradução Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 46/48.

[13] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.136/137.

[14] LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 1570-2. Requerente: Procurador-Geral da República. Requerido: Congresso Nacional. Relator: Maurício Corrêa. Brasília, Ementário nº 2169-1, Diário de Justiça de 22.10.2004.

[16] Cumpre ressaltar que, para Geraldo Prado, ocorre o mesmo tipo de comprometimento psicológico se o juiz possuir a iniciativa de introduzir meios de prova no processo e tiver a possibilidade de iniciar a ação penal, pois nos dois casos irá fundamentar sua decisão nas provas por ele trazidas. Op. cit., p. 137.

[17] DIAS, Jorge de Figueiredo. “Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra: Almedina, 1992, p. 28 apud PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 106/107.

[18] Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Loc. Cit.

[19] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Net, mai. 1998. Disponível em: <www.direitosfundamentais.com.br>. Acesso em 23 mai. 2006, p. 32.

[20] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 83.

[21] Ibid., p. 85/89.

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REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

GISÉLLE MARIA SANTOS POMBAL SANT’ANNA:  Servidora Pública da Procuradoria Regional da República da 2ª Região

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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