Home Blog Page 293

Justiça: acesso e descesso

0

* J. E. Carreira Alvim

Sumário: 1. Considerações prévias. 2. Significado de "acesso à Justiça". 3. Ondas que traduzem o "acesso à Justiça". 4. Primeira onda: "Assistência judiciária para os pobres". 5. Segunda onda: "Representação dos interesses difusos". 6. Terceira onda: "Acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça, e um novo enfoque de acesso à Justiça". 7. Primeira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Assistência judiciária". 8. Segunda onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Ações coletivas". 9. Terceira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Nova estrutura do Poder Judiciário e os novos procedimentos". 10. Obstáculos ao acesso à Justiça brasileira: "A estrutura judiciária, a morosidade dos procedimentos, e o uso indiscriminado de recursos". 11. Considerações finais.


 

1. Considerações prévias

            O acesso à Justiça é um produto da obra de CAPPELLETTI, e mereceu, no Brasil, uma aceitação não vista em outras partes do mundo.

            Falar de "acesso à Justiça" é como que pronunciar uma palavra mágica, do tipo "abre-te Cézamo", em que se descerra uma larga porta pela qual todos passam, desde os mais miseráveis até os mais abastados, só que, infelizmente, pouquíssimos saem num prazo razoável.

            Infelizmente, nem as ondas cappellettianas, que varreram o continente latino-americano, e, em especial, o Brasil, conseguiram fazer da Justiça uma instituição confiável, eliminando, ou, pelo menos, atenuando, satisfatoriamente, o sofrimento de quem se vê obrigado a demandar em juízo a satisfação do seu direito.

            Não resta a menor dúvida de que a obra de CAPPELLETTI foi um marco na busca de soluções para tornar a Justiça uma instituição acessível a todos, e a sua grande repercussão animou os operadores do direito a partir em busca de novos caminhos, reformulando as estruturas judiciárias, e, especialmente, as legislações processuais, com o propósito de alcançar esse objetivo.

2. Significado de "acesso à Justiça"

            Quando se fala em "acesso à Justiça", pensa-se logo numa Justiça eficaz, acessível aos que precisam dela e em condições de dar resposta imediata às demandas; enfim, uma Justiça capaz de atender a uma sociedade em constante mudança.

            A expressão "acesso à Justiça", registram CAPPELLETTI e BRYANT GARTH é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico, o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (1) Observam, porém, que o seu enfoque sobre o acesso à Justiça é primordialmente sobre o primeiro aspecto (acessibilidade), sem perderem de vista o segundo. E concluem: "Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.

            Para HORÁCIO W. RODRIGUES, (2) é necessário destacar, frente à vagueza do termo acesso à Justiça, que a ele são atribuídos pela doutrina diferentes sentidos, sendo eles fundamentalmente dois: o primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e acesso ao Poder Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. E conclui que esse último, por ser mais amplo, engloba no seu significado o primeiro.

            Para mim, o acesso à Justiça compreende o acesso aos órgãos encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem assim com a representação (em juízo) a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social. Além disso, o acesso só é possível com juízes vocacionados (ou predestinados) a fazer justiça em todas as instâncias, com sensibilidade e consciência de que o processo possui também um lado perverso que precisa ser dominado, para que não faça, além do necessário, mal à alma do jurisdicionado.

3. Ondas que traduzem o "acesso à Justiça" (3)

            Três são as ondas visualizadas por seus idealizadores, e que serão consideradas no desenvolvimento deste trabalho: 1ª) assistência judiciária para os pobres; 2ª) representação dos interesses difusos; e 3ª) acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça e um novo enfoque de acesso à Justiça.

            De todas as ondas, a mais importante, para a ordem jurídica nacional, é a terceira, por compreender uma série de medidas, desde a reestruturação do próprio Poder Judiciário, passando pela simplificação do processo e dos procedimentos, e desaguando num sistema recursal que não faça da parte vencedora refém da perdedora. Tudo com vistas a agilizar a prática judiciária, para que a parte que tem razão tenha a certeza de que receberá do Estado-juiz, ainda em vida, a prestação jurisdicional que lhe garanta o gozo do seu direito.

4. Primeira onda: "Assistência judiciária para os pobres".

            A primeira onda busca os meios de facilitar o acesso das classes menos favorecidas à Justiça, destrinçando os diversos modelos de prestação de assistência judiciária aos necessitados.

            Analisam os idealizadores das ondas de acesso à Justiça o Sistema Judicare, que resultou das reformas levadas a efeito pela Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei, em que os advogados particulares são pagos pelo Estado. A finalidade desse sistema é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação (em juízo) que teriam se pudessem pagar um advogado. Analisam, também, o modelo de assistência judiciária com advogados remunerados pelos cofres públicos, com um objetivo diverso do sistema judicare, o que reflete sua origem no Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, de 1965, em que os serviços jurídicos são prestados por "escritórios de vizinhança", atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe. (4)

            Alguns países buscam combinar os dois modelos, de forma que um complementa o outro, tendo assim procedido a Suécia e a Província de Quebec, no Canadá, oferecendo ao necessitado a escolha entre o atendimento por advogados servidores públicos ou por advogados particulares, embora o sistema sueco penda mais para o modelo do sistema judicare, em que os advogados públicos devem ser mantidos, essencialmente, através dos honorários pagos pelo Estado em benefício dos indivíduos assistidos, enquanto em Quebec os escritórios de advocacia são mantidos diretamente pelo governo sem que se leve em conta quão bem sucedidos eles sejam na competição com sociedades de advogados particulares. (5)

            As vantagens apresentadas por esses modelos levaram os reformadores de muitos países, incluindo a Austrália, a Holanda e a Grã-Bretanha a implementar sistemas nos quais centros de atendimento jurídico suplementam os esquemas estabelecidos de judicare, sendo de registrar, pela sua importância, os "centros de atendimento jurídico de vizinhança", da Inglaterra, localizados em áreas pobres, sobretudo ao redor de Londres, onde os "solicitadores" (e alguns advogados) realizam muitas das tarefas desempenhadas pelos advogados de equipe nos Estados Unidos. (6)

            Também a Suécia foi pioneira em algumas inovações, indo além do que foram outros países, inclusive a França, na extensão da assistência judiciária à classe média, em que pessoas com rendimentos de até certo valor de renda anual, automaticamente reajustado consoante o custo de vida no país, está apto a receber auxílio jurídico subsidiado. (7)

            As medidas adotadas nos diversos países têm contribuído para melhorar os sistemas de assistência judiciária, fazendo ceder as barreiras de acesso à Justiça.

5. Segunda onda: "Representação dos interesses difusos".

            Esta onda centra o foco de preocupação especificamente nos interesses difusos, forçando a reflexão sobre noções básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais (8) nos diversos sistemas jurídicos. Numa primeira percepção, são chamados de interesses difusos os "interesses coletivos ou grupais", diversos daquele interesse dos pobres, que caracteriza a primeira onda.

            A preocupação com a segunda onda resultou da incapacidade de o processo civil tradicional, de cunho individualista, servir para a proteção dos direitos ou interesses difusos. É que o processo civil foi sempre visto como campo de disputa entre particulares (Ticio versus Caio), tendo por objetivo a solução de controvérsia entre eles a respeito de seus próprios direitos individuais.

            De uma perspectiva equivocada, em que se pensava que se o direito ou interesse pertencia a todos é porque não pertencia a ninguém, percebeu-se que se o direito ou interesse não pertencia a ninguém é porque pertencia a todos, e, a partir desse enfoque, cuidou-se de buscar meios adequados à tutela desses interesses, que não encontravam solução confortável na esfera do processo civil.

            Essa nova percepção do direito pôs em relevo a transformação do papel do juiz, no processo, e de conceitos básicos como a "citação" e o "direito de defesa", na medida em que os titulares de direitos difusos, não podendo comparecer a juízo — por exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região — é preciso que haja um "representante adequado" para agir em benefício da coletividade. A decisão deve, em tais casos, ser efetiva, alcançando todos os membros do grupo, ainda que não tenham participado individualmente do processo. Também o conceito de coisa julgada deve ajustar-se a essa nova realidade, de modo a garantir a eficácia temporal dos interesses e direitos difusos. (9)

            Essa onda permitiu a mudança de postura do processo civil, que, de uma visão individualista, funde-se numa concepção social e coletiva, como forma de assegurar a realização dos "direitos públicos" relativos a interesses difusos. (10)

            O Ministério Público tem sido muito prestigiado na defesa dos direitos e interesses difusos, mas, por não dispor de treinamento e experiência necessários para tanto, o que exige, muitas vezes, qualificação técnica em áreas não jurídicas — como contabilidade, mercadologia (marketing), medicina, urbanismo, etc. — outras entidades têm sido legitimadas para sua tutela; além, evidentemente, dos entes públicos que, pela sua destinação constitucional, estão, naturalmente, comprometidos com ela.

            A melhor solução para garantir a efetividade da tutela dos direitos e interesses difusos, é, sem dúvida, a mista (ou pluralista), em que a iniciativa privada se conjuga com a atividade pública, neutralizando inclusive eventuais influências políticas que possam comprometer a eficiência da tutela de interesses que pertençam a toda a sociedade ou a determinado segmento dela.

6. Terceira onda: "Acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça, e um novo enfoque de acesso à Justiça."

            Essa onda encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações das formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas, como juízes e como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução, e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. (11) Esse enfoque não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial. (12)

            A diversidade dos litígios recomenda que os procedimentos sejam adequados à sua solução, e que esta se dê por órgãos jurisdicionais e parajudiciais, sempre com vistas no custo-benefício, que deveria ser o norte de qualquer reforma das estruturas judiciárias em qualquer lugar do mundo. Não tem sentido que questões altamente técnicas sejam entregues à solução de juízes de direito, que, para solucioná-las vão louvar-se em peritos, sendo mais lógico que sejam resolvidas por técnicos, integrantes de tribunais arbitrais.

            A reforma dos procedimentos judiciais é de suma importância, para modificar a engrenagem judiciária, de modo a adotar procedimentos simples para demandas simples, e procedimentos complexos para demandas complexas. Além disso, o procedimento deve contar com a presença de leigos com atividade de auxílio dos juízes, não apenas na movimentação do processo (juntada, vista, etc.), mas da própria instrução, que toma a maior parte do tempo do juiz. (13) Os princípios configuradores da oralidade, dentre os quais o da identidade física, que exige a presença física do juiz no comando das audiências, devem ser repensados, para que entrem em cena os servidores "instrutores". A partir daí, poderia cada juízo ter a seu serviço um certo número de servidores especializados na instrução de processos, notadamente na tomada de depoimentos de partes e testemunhas, reservando-se ao juiz o poder de reinquiri-las, caso entenda necessário para o esclarecimento dos fatos.

            Em face da diversidade cultural do país, é mais efetivo que, ao lado de um código nacional de processo, haja procedimentos adequados a cada Estado-membro, conforme o seu desenvolvimento, pois não se pode exigir para a diligência de arrombamento, por exemplo, a presença de dois oficiais de justiça, onde, muitas vezes, não existe nenhum.

            Os métodos alternativos de resolução dos conflitos, fora da justiça pública devem ser também prestigiados, estimulando os jurisdicionados a buscar justiça fora dos tribunais públicos, como forma de se obter decisão mais rápida e eficaz, como a arbitragem e a mediação. Muitos países conjugam a justiça pública com a justiça privada, permitindo, por exemplo, que o juiz de direito se transforme em árbitro ou, mesmo, num amigável compositor.

            A conciliação apresenta grandes vantagens na medida em que "aborta" o julgamento, um dos grandes responsáveis pela lentidão da justiça, em face da morosidade do procedimento e da deficiência da própria estrutura judiciária. É preciso, no entanto, que os conciliadores sejam pessoas vocacionadas para conciliar, com poder de persuasão, o que não é o caso dos juízes, que, acostumados a instruir processos e decidir lides, não têm paciência para vencer a resistência das partes na obtenção da transação. Essa alternativa depende muito do perfil do jurisdicionado, residindo aí a grande dificuldade em fazer com que a conciliação alcance seu real objetivo, pois o brasileiro é um litigante nato, e, mesmo sabendo morosa a Justiça pública, tem por ela uma inusitada predileção.

            Os juizados de pequenas causas e os juizados especiais, tanto cíveis quanto criminais, são duas especiais modalidades de se fazer justiça rápida, e uma não exclui a outra, podendo, ambas, conviver na solução dos conflitos (arts. 24, X, e 98, I, CF). (14)

            A justiça dos juizados deve ser feita em única instância, sem a preocupação com turmas recursais, que são um projeto mal concebido do duplo grau de jurisdição, para dar vazão ao instinto recursal das partes, e ao juiz a singular sensação de ser membro de um colegiado, verdadeira "medida provisória" de desembargador.

            O denominado princípio do duplo grau de jurisdição, ao contrário do que se supõe, não tem assento constitucional, e o fato de a Constituição prever a existência de juízes e tribunais, não significa que deva o legislador infraconstitucional, ao disciplinar os procedimentos, prever sempre a possibilidade de recurso. O direito ao recurso deve ser entendido, não como direito a que a lei preveja recurso, mas como direito ao recurso que a lei prevê; (15) de forma que, se a lei não prevê recurso, nenhum direito tem a parte de recorrer. (16)

            Pela natureza e valor das causas, os juizados especiais devem ser centrados basicamente em juízes leigos, com julgamentos segundo o critério de eqüidade, além dos conciliadores, pessoas capacitadas para "abortar", mediante acordo das partes, a grande massa de litígios que acorrem a essa justiça.

            Além disso, os juizados especiais devem ser uma justiça adequada ao exercício da cidadania, com as próprias partes postulando os seus direitos, sem a necessidade de patrocínio por advogado, pois o valor das causas quase sempre não compensa o trabalho desses profissionais. Nem nas turmas recursais deveria ser exigido o patrocínio de advogado, e, se com essa exigência, o que se pretende é desestimular recursos, mais razoável seria a lei não prevê-los.

7. Primeira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Assistência judiciária".

            A repercussão das idéias de CAPPELLETTI tem estimulado o acesso à Justiça, nas modalidades da segunda e terceira ondas, na medida em que a primeira (assistência judiciária) adquiriu consistência jurídica entre nós com a Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, incumbindo aos poderes públicos federal e estadual, independentemente da colaboração que possam receber dos municípios e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, a concessão da assistência judiciária aos necessitados nos termos desta Lei (art. 1º).

            A Lei n. 1.060/50 facilita de tal forma o acesso à Justiça que considera necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família (art. 2º, parágrafo único).

            A assistência judiciária compreende a isenção de taxas judiciárias e selos; de emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça; das despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais; das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no Distrito Federal, ou contra o poder público estadual, nos Estados; dos honorários de advogado e peritos; e das despesas com a realização do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade e maternidade (art. 3º, I a VI).

            Para gozar dos benefícios da assistência judiciária, basta que a parte afirme, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família (art. 4º, caput), presumindo-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos da Lei, sob a pena cominada de pagamento até o décuplo das custas judiciais, e sem prejuízo de que o pedido possa ser impugnado (art. 4º, §§ 1º e 2º) e até revogado (art. 7º).

            No Brasil, quem tem condições de pagar advogado, paga e ingressa em juízo; quem não tem, pode fazê-lo mediante o patrocínio de defensorias públicas, de assistências judiciárias, de escritórios-modelo, ou de advogado por ele escolhido, ou designado pela OAB. (17) Até os acadêmicos de direito, a partir da 4ª série, podem ser indicados pela assistência judiciária, ou nomeados pelo juiz para auxiliar o patrocínio das causas dos necessitados, ficando sujeitos às mesmas obrigações impostas pela Lei n. 1.060/50 aos advogados (art. 18).

8. Segunda onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Ações coletivas".

            A segunda onda chegou até nós por influência das idéias de CAPPELLETTI, embora CHIOVENDA, no início do século passado, já fizesse referência a direitos difusos, nestes termos:

            "Há normas que regulam a atividade pública para a consecução de um bem público, ou seja, próprio de todos os cidadãos em conjunto, da coletividade (tal é o interesse de haver uma boa administração, um bom exército, boas fortificações; o interesse pela manutenção das estradas, e semelhantes). Dessas normas derivam direitos coletivos (ou direitos cívicos gerais), em tal maneira difusos sobre um número indeterminado de pessoas, que não se individualizam em nenhuma delas em particular: o indivíduo não os pode fazer valer, a menos que a lei lhe conceda converter-se em órgão da coletividade. O indivíduo como tal só dispõe de um direito para com o Estado ou outra administração pública no caso em que a lei reguladora da atividade pública haja tido em mira seu interesse pessoal, imediato, direto. (18)

            As ações coletivas foram previstas pela Constituição de 1988 em diversos dispositivos, ora permitindo que as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, tenham legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente (art. 5º, XXI); ora concedendo mandado de segurança coletivo a partido político com representação no Congresso Nacional, ou a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5º, LXX, "a" e "b"); ora dispondo que ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; ora reconhecendo ser função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III), e defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V).

            Além disso, diversas leis ordinárias, como a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, dispondo sobre a ação civil pública, e a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, sobre a proteção do consumidor, disciplinam as ações coletivas, que compreendem inclusive os direitos e interesses difusos, projetando no direito brasileiro a segunda onda de acesso à Justiça.

9. Terceira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Nova estrutura do Poder Judiciário e os novos procedimentos".

            Não se consegue reformar a Justiça sem se reformar a estrutura do Poder Judiciário, pois a simples alteração de leis processuais, mesmo com a intenção deliberada de desfazer os pontos de estrangulamento, não produz por si só os almejados efeitos.

            Sob este aspecto, merece relevo a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, pela Lei n. 7.244/84, que vieram a ser substituídos pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, pela Lei n. 9.099/95, embora tivessem podido conviver, por não existir entre ambos qualquer incompatibilidade. Recentemente, foram instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, pela Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, facilitando o acesso à Justiça, em face dos entes públicos.

            Também por força dessa onda, tiveram lugar as minirreformas processuais, na última década do século passado, quando foram promulgadas diversas leis, buscando acelerar os procedimentos. (19)

            A conciliação foi igualmente prestigiada pelas minirreformas, tendo a recente Lei n. 10.444, de 7 de maio de 2002, instituído a audiência preliminar (art. 331, CPC), com o deliberado propósito de estimular a composição das partes, abortando, por essa forma, o litígio.

            Como solução alternativa, foi promulgada a Lei n. 9.307/96, disciplinando a arbitragem, com o que se espera que as partes prefiram solucionar os seus litígios através da justiça privada, em que todos sabem quando a demanda começa e quando termina, em vez da justiça pública, em que todos sabem quando começa, mas ninguém sabe quando termina.

            Num País que tem grande dificuldade em prover seus órgãos judiciais, mesmo os já existentes, com juízes togados, porquanto, nos concursos públicos, infelizmente, são as vagas que acabam disputando os candidatos, não vejo alternativa melhor do que os juizados especiais, especialmente os estaduais, que contam, na sua estrutura, com as figuras do juiz leigo e do árbitro; e, mesmo a arbitragem, que é excelente modalidade de se fazer justiça privada. (20)

 10. Obstáculos ao acesso à Justiça brasileira: "A estrutura judiciária, a morosidade dos procedimentos, e o uso indiscriminado de recursos".

            No Brasil, os obstáculos de acesso à Justiça não se ligam ao problema da assistência judiciária aos necessitados, configuradora da primeira onda de acesso, e nem à defesa dos interesses da coletividade, notadamente os interesses difusos, configuradora da segunda onda, mas à estrutura judiciária, à inadequação dos processos e dos procedimentos, e, basicamente, à dimensão que se dá ao princípio do duplo grau de jurisdição, para atender à ânsia recursal do jurisdicionado brasileiro.

            A nossa estrutura judiciária é sabidamente arcaica, montada no modelo francês, de inspiração napoleônica, e cujo objetivo era fazer dos órgãos superiores, constituídos pela vontade dos poderes executivo e legislativo, verdadeiros órgãos de dominação dos órgãos inferiores do Poder Judiciário. Não é por acaso que essa estrutura tem a forma piramidal. Ademais, embora tenha o Brasil importado um modelo francês de estrutura judiciária, infelizmente não pôde importar a cultura francesa, de forma que aquele modelo concebido para um país de primeiro mundo não funciona num mundo periférico.

            Os processos e procedimentos adotados pelo Código de Processo Civil desconhecem a geografia brasileira, sendo concebidos com as vistas voltadas para regiões desenvolvidas, como a sul e a sudeste, pelo que não se adequam a regiões de parco desenvolvimento econômico, como a norte e nordeste, sendo idênticos os prazos para a prática de atos numa região metropolitana, servida por metrô, e naquelas em que o transporte ainda se faz em canoa, movida a remo, ou em lombo de jegue, movido a chibata; embora o art. 182 outorgue ao juiz, nas comarcas onde for difícil o transporte, prorrogar quaisquer prazos, mas nunca por mais de sessenta (60) dias.

            Por isso, essa terceira onda só cumprirá o seu objetivo quando, além de um sistema processual uniforme para todo o País, tivermos uma diversidade procedimental que atenda a essa diversidade geográfica, deixando a cargo de cada Estado-membro normatizar os procedimentos judiciais, de acordo com os seus padrões sociais, econômicos e culturais. Não se pode pretender, por exemplo, que os juizados especiais funcionem com a colaboração de estagiários (conciliadores) e advogados (juízes leigos) em localidades situadas a centenas de quilômetros de uma Faculdade de Direito.

            No que tange aos recursos, parte-se da falsa suposição de que a Constituição, ao elencar os diversos órgãos que compõem o Poder Judiciário (art. 92, I a VII), teria consagrado de forma inarredável o duplo grau de jurisdição, o que não é, no entanto, verdadeiro. Os recursos são a grande praga que não permite que a Justiça produza bons frutos, contaminando a esperança de tantos quantos a ela recorrem, que só vêem satisfeito o seu direito material quando já exaustos de tanto demandar.

            Mesmo quando se criam juizados especiais para determinadas causas, ou causas simples até determinado valor, ou sem nenhuma complexidade, que podem ser resolvidas pelo critério de eqüidade, por qualquer juiz leigo, o culto ao recurso faz com que, mesmo sem admitir o acesso à Justiça em segundo grau, se criem turmas recursais, espécie de segundo grau dentro do próprio primeiro grau, integrado por juízes de inferior instância, para reexaminar as sentenças proferidas por juízes de igual hierarquia. No fundo, o recurso ordinário, nos juizados especiais, não passa de uma malquista modalidade de embargos infringentes do julgado, na inferior instância, só que, em vez de serem julgados pelo mesmo juiz que proferiu a decisão recorrida, o é por uma turma recursal, composta de juízes de primeiro grau.

            Ainda quando a lei processual estabelece que o recurso não impede a execução da sentença, como na previsão do art. 497, primeira parte, (21)ou que o recurso será recebido apenas no efeito devolutivo, como na previsão do art. 542, § 2º, (22) ambos do CPC, o STJ e o STF admitem ação cautelar para dar aos recursos extraordinário e especial um efeito que ex vi legis eles não têm, obstaculizando a execução da sentença antes de passar materialmente em julgado. Mesmo quando não tem cabimento nenhum recurso, ou mesmo correição parcial, ou reclamação, entra em cena a tolerância dos pretórios, admitindo, para se corrigir decisões que se convencionou denominar "teratológicas", o uso do mandado de segurança contra ato judicial, a mais inusitada teratologia que se poderia conceber para esse fim.

            Não é que os recursos não sejam necessários, porque são, mas deveriam ser disciplinados conforme a importância da matéria decidida, de forma que nem toda causa subisse aos tribunais de segundo grau; muito menos, aos tribunais superiores, que deveriam ser os guardiães da lei infraconstitucional naquilo em que tivesse transcendência sobre a pretensão individual das partes. O mesmo se diga do STF que, sendo o guardião da Constituição, deveria proceder ao reexame apenas de matérias (questões), que pudessem, pelo fenômeno da transcendência, interessar à Nação como um todo. As brigas de vizinhos devem ficar confinadas aos juizados especiais, com direito ao arremedo recursal para as turmas recursais.

            As decisões interlocutórias, no processo civil, à exceção daquelas que antecipam a tutela ou decidem sobre a tutela cautelar, deveriam ser irrecorríveis, reservando-se ao recorrente o direito de vê-las reexaminadas por ocasião do julgamento da apelação; justo como acontece no juízo arbitral e na Justiça do Trabalho.

            Mas, mesmo quando o Código de Processo Civil restringe o alcance dos recursos, por ato do relator, no tribunal, sob o pretexto de que se trata de uma decisão singular, concede, geralmente, outro recurso para o colegiado, mediante a interposição de agravo interno, tornando quase etérea a restrição.

            No que tange ao processo de conhecimento, deve-se admitir apenas a apelação, para corrigir eventual erro ou injustiça da sentença, e, no âmbito dos tribunais, apenas os embargos infringentes, desde que na sua função de uniformizar a jurisprudência das turmas ou câmaras isoladas, com a das turmas ou câmaras reunidas, ou seções, conforme a organização do tribunal. É um equívoco supor que os embargos infringentes se destinam a dar ao sucumbente mais um recurso, em função do voto vencido, porque a finalidade desses embargos é possibilitar que um órgão superior às turmas ou câmaras isoladas uniformize a jurisprudência no âmbito interno da corte, fazendo com que o voto vencido na turma ou câmara –, mas ajustado à jurisprudência do grupo de turmas ou câmaras –, prevaleça sobre os votos vencedores, o que, de outro modo, só seria possível por decisão dos tribunais superiores. (23)

            Neste particular, as minirreformas introduziram modificações importantes, limitando as hipóteses de cabimento de embargos infringentes nos tribunais, de modo que só cabem tais embargos quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente a ação rescisória, sendo que, se o acordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência (art. 530, CPC). Desta forma, tornaram-se irrecorríveis mediante embargos infringentes as decisões sobre questões processuais, mesmo havendo voto vencido, nem as sentenças de mérito que vierem a ser confirmadas pelo tribunal. (24)

            Um dos grandes obstáculos ao gozo do direito tem sido a interposição de embargos de declaração, para os fins do art. 535 do CPC, que, apesar de cabíveis apenas para dissipar obscuridade ou contradição (inciso I) ou suprir omissão do julgado (inciso II), vêm sendo utilizados em doses homeopáticas, às vezes quatro ou cinco vezes seguidas (embargos de embargos de embargos de embargos, etc.), chegando-se até a admitir efeitos modificativos ao último dos embargos de declaração interpostos, que funcionam como uma verdadeira superapelação. Poder-se-ia até admitir os embargos de declaração nos legítimos casos em que se fizerem necessários para integrar o julgado, mas dever-se-ia, também, punir os embargos improcedentes com uma multa em favor do embargado, pelo tempo de espera de julgamento desse recurso que, a final, revelou-se sem fundamento; isso, independentemente da existência de dolo ou culpa do embargante.

            Os recursos extraordinário e especial foram também alcançados pelas minirreformas, de modo a possibilitar a sua retenção quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar ou embargos à execução, sendo processados apenas se reiterado pela parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões (art. 542, § 3º). No entanto, as interlocutórias de mérito, que decidem sobre pedido de tutela antecipada, ficaram, por construção pretoriana, fora do âmbito da retenção, bem assim aquelas que, não sendo decididas desde logo (versando sobre a penhora de bens, por exemplo), possam causar à parte prejuízo grave e de difícil reparação. Aqui tem-se quase sempre uma "solução de Pirro", (25) pois uma vez retido o recurso, enseja sempre o agravo interno, para o órgão do tribunal competente para o julgamento do agravo, não fosse a retenção. Esse é o grande problema dos recursos, pois, em vez de se vedar agravo da decisão singular do relator, que só seria objeto de exame por ocasião do julgamento do recurso principal, concede-se novo agravo contra tal decisão (agravo interno), apenas postergando o julgamento colegiado para um momento posterior.

11. Considerações finais

            Estas considerações têm o objetivo de estimular os operadores do direito, especialmente os que militam em sede acadêmica, a buscar novos rumos para o acesso à Justiça, surfando nessa terceira onda, que, de todas, é a que melhores condições oferece de superar os obstáculos a uma justiça rápida e eficaz.

            Como disse, o problema do acesso à Justiça não é uma questão de "entrada", pois, pela porta gigantesca desse templo chamado Justiça, entra quem quer, seja através de advogado pago, seja de advogado mantido pelo Poder Público, seja de advogado escolhido pela própria parte, sob os auspícios da assistência judiciária, não havendo, sob esse prisma, nenhuma dificuldade de acesso. O problema é de "saída", pois todos entram, mas poucos conseguem sair num prazo razoável, e os que saem, fazem-no pelas "portas de emergência", representadas pelas tutelas antecipatórias, pois a grande maioria fica lá dentro, rezando, para conseguir sair com vida.

            Este é o grande problema e o grande obstáculo que enfrentamos, cabendo à doutrina, através de concepções voltadas para a realidade brasileira, sem copiar modelos estrangeiros, contribuir para a formação de uma onda de "descesso" (saída) da Justiça, para que o sistema judiciário se torne mais racional na entrada, mas, também, mais racional e humano na saída.

Notas

            01. CAPPELLETTI, Mauro; e GARTH Bryant. Acesso à Justiça, trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 8.

            02. RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 28.

            03. O acesso à Justiça foi preconizado pelos seus autores sob a forma de ondas reformistas, falando-se amiúde nas ondas cappelletianas, por influência de Mauro Cappelletti, sem atentar-se para a contribuição de Bryant Garth, sendo essas ondas, também, de certa forma, garthianas.

            04. RODRIGUES, Horácio Wanderley. Op. cit., pp. 39-40. Observou HUBER que "O objetivo era utilizar o dinheiro dos contribuintes de modo a obter a melhor relação custo-benefício". ("Não racionarás a Justiça: história e bibliografia da assistência judiciária na América, in George Washington Law Review, v. 44, 1976, pp. 754 e 760).

            05. Idem, pp. 43-44

            06. Idem, pp. 44-45.

            07. Idem, p. 46.

            08. Idem, p. 49.

            09. Nos Estados Unidos, a class action permite que, em certas circunstâncias, uma ação vincule os membros ausentes de determinada classe, a despeito do fato de eles não terem tido qualquer informação prévia sobre o processo. RODRIGUES, Horácio Wanderley. Op. cit.,, pp. 50-51.

            10. Idem p. 51.

            11. Idem, p. 71.

            12. Idem, p. 71.

            13. No Rio de Janeiro, a Justiça Federal de Primeira Instância já teve varas com mais de 22.000 mil processos, o que inviabilizava cada processo a elas distribuído diariamente.

            14. No entanto, o legislador brasileiro não se deu conta disso, na medida em que, tendo criado os juizados de pequenas causas através da Lei n. 7.244/84, extinguiu-os quando da criação dos juizados especiais pela Lei n. 9.099/95.

            15. ESTAGNAN, Joaquin Silguero. La tutela jurisdiccional de los interesses colectivos a través de la legitimacion de los grupos. Madrid: Dykinson, 1995, p. 95.

            16. Penso que se os recursos são, na sua maioria, desprovidos pelas turmas recursais, fica demonstrada a desnecessidade destas, e, se providos, fica demonstrada superfluidade dos juízes singulares, a recomendar o julgamento, desde logo, pelo órgão colegiado.

            17. Vide a respeito o art. 14 da Lei n. 1.060/50: "Art. 14. Os profissionais liberais designados para o desempenho do cargo de defensor ou de perito, conforme o caso, salvo justo motivo previsto em lei ou, na sua omissão, a critério da autoridade judiciária competente, são obrigados ao respectivo cumprimento, sob pena de multa de mil cruzeiros a dez mil cruzeiros, sujeita ao reajustamento estabelecido na Lei n. 6.205, de 29 de abril de 1975, sem prejuízo da sanção disciplinar cabível. § 1º Na falta de indicação pela assistência ou pela própria parte, o juiz solicitará a do órgão de classe respectivo. § 2º A multa prevista neste artigo reverterá em benefício do profissional que assumir o encargo na causa."

            18. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, trad. de J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969, v. 1, p. 7.

            19. Leis ns. 8.455/92 (sobre a perícia); 8.637/93 (sobre a identidade física do juiz); 8.710/93 (sobre a citação e a intimação); 8.718/93 (sobre aditamento do pedido); 8.898/94 (sobre liquidação de sentença); 8.950/94 (sobre recursos) ; 8.951/94 (sobre consignação em pagamento e usucapião); 8.952/94 (sobre os processos de conhecimento e cautelar); 8.953/94 (sobre o processo de execução); 9.079/95 (sobre a ação monitória); 9.139/95 (sobre o agravo); 9.245/95 (sobre o procedimento sumário); 9.668/98 (sobre a má-fé processual); 9.756/98 (sobre o processamento de recursos no âmbito dos tribunais); 10.352/01 (sobre recursos e reexame necessário); 10.358/01 (sobre o processo de conhecimento); 10.444/02 (sobre o processo de conhecimento e o processo de execução). Além disso, a Lei n. 9.307/96 introduziu no ordenamento jurídico nacional a arbitragem.

            20. É possível instalar em cada município (ou até distritos), um órgão judiciário estruturado pelos Estados-membros e mantido com o auxílio dos próprios municípios, com o que se permite à própria sociedade fazer justiça, através do critério da eqüidade. Se é a sociedade que gera os litígios, é ela que deve solucioná-los, mesmo porque é a maior interessada na pacificação social entre os seus membros.

            21. "Art. 497. O recurso extraordinário e o recurso especial não impedem a execução da sentença; a interposição do agravo de instrumento não obsta o andamento do processo, ressalvado o disposto no art. 558 desta Lei."

            22. "Art. 542. (…) § 2º Os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo."

            23. Esse objetivo vem sendo desvirtuado por alguns tribunais, concedendo embargos infringentes para o próprio órgão julgador, com a sua composição modificada –, melhor diria, com a participação de outros membros do mesmo órgão –, de forma que, havendo um voto vencido no julgamento da apelação (2 x 1), em que geralmente votam três juízes (art. 555, CPC), votam os demais juízes que compõem a turma ou câmara, com a possibilidade de prevalecer o voto vencido (3 x 2). No entanto, a divergência continua existindo, na medida em que outras turmas ou câmaras votem de forma diversa, em que os fundamentos vencedores numa sejam vencidos na outra, porquanto o julgamento não é remetido ao grupo de turmas ou de câmaras. Não vejo muito sentido em que, havendo um voto vencido contra dois se dê recurso ao sucumbente para o mesmo órgão, e havendo dois votos vencidos e três vencedores não se dê; situações como esta estão a exigir que a doutrine entre em campo para corrigir os rumos da jurisprudência.

            24. A explicação é simples: é que a sentença, apesar de proferida pelo juiz inferior, tem agora a eficácia equivalente a um voto de juiz do tribunal, pelo que, se ela for por exemplo de procedência e dois juízes do tribunal votarem pela sua confirmação, tem-se uma maioria qualificada de votos de 3 x 1, quer dizer, a sentença + dois votos do tribunal, não cabendo embargos infringentes; mas, se essa mesma sentença de procedência vier a ser reformada por dois votos, tem-se uma maioria simples de votos de 2 x 1, mas, por ter um dos votos mantido a sentença, tem-se um como resultado 2 x 2 (dois votos vencedores de um lado e um voto vencido e a sentença de outro), tendo cabimento os embargos infringentes.

            25. Vitória de Pirro é a "vitória em que as perdas do vencedor são tão grandes quanto as do vencido", e a solução de Pirro é aquela que não resulta em vantagem para ninguém, nem para o recorrente e nem para o órgão julgador."

 


Referência  Biográfica

J. E. Carreira Alvim  –  Juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, professor da PUC/SP, doutor em Direito pela UFMG, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – 2004

E-mail: jedal@uninet.com.br

Home-page: usuarios.uninet.com.br/~jedal

O novo Código Civil versus o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

0

* Rogério Roberto Gonçalves de Abreu 

A redução da menoridade civil

            Entrou em vigor, neste mês de janeiro de 2003, o novo Código Civil brasileiro e, assim, nossa sociedade vive mais uma vez a instabilidade criada por uma tal profunda alteração no ordenamento jurídico nacional, dada a inevitável interação entre os diversos ramos do Direito, todos permeados pelos conceitos e normas do Direito Civil.

            Dentre as diversas modificações introduzidas pelo novel Código, uma, de grande relevo em razão da influência que exercerá em vários ramos jurídicos, já começa a despertar a curiosidade dos intérpretes e operadores do Direito. Trata-se da redução da menoridade civil, de 21 para 18 anos de idade. A partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002, será civilmente capaz, para todos os atos jurídicos, aquele que, não interditado, haja atingido seus 18 anos.

            As mais cáusticas dúvidas que têm aparecido na discussão sobre o tema são relacionadas à interdependência entre os ramos do Direito, principalmente quando uma dada disciplina jurídica tende a atrair (real ou aparentemente) o conceito civil de maioridade como pressuposto ou condição de sua eficácia. No direito penal, por exemplo, prescreve o respectivo código (art. 65, I) ser "circunstância atenuante" o fato de contar o réu com menos de 21 anos de idade na data do fato criminoso, bem como que se lhe haverá de contar pela metade o prazo prescricional (art. 115). Com a redução da menoridade civil para 18 anos indaga-se: tais normas estariam revogadas pelo NCC ou, ao contrário, não teriam sofrido o impacto na novel estipulação legal de maioridade civil?

            Outra questão que vêm ganhando considerável fôlego nas conversas de bastidores (enquanto não se tornarem violentas discussões judiciais), é se estaria ou não revogado o parágrafo único do artigo 2.º do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual prescreve que, "nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade". Entendendo-se que tal norma foi realmente revogada, uma vez submetido o adolescente a medida sócio-educativa de internação, teria que ser compulsoriamente liberado ao completar 18 anos de idade, alterando-se, portanto, a regra do artigo 121, § 5.º, do ECA, a qual determina a liberação compulsória do internado que atinge 21 anos completos.

            Em ambos os casos acima tratados, ou seja, tanto nos exemplos do Código Penal como nestes pinçados do Estatuto da Criança e Adolescente, na verdade, não houve alteração ou revogação das referidas normas com a vigência do NCC. Por outras palavras, a redução da menoridade civil não lhes causou impacto. O entendimento é simples. A redução da maioridade civil tem efeitos precisos na área da capacidade civil de exercício, enquanto que as normas do CP e do ECA jamais tiveram por fim proteger o civilmente incapaz ou, melhor dizendo, a incapacidade civil. Caso assim tivessem feito, teriam expressamente excluído o emancipado que, embora menor de 21 anos, seria plenamente capaz para os atos da vida civil. Todos sabemos que, a despeito de emancipado, continuava o réu menor de 21 anos a fazer jus à circunstância atenuante e ao privilégio do prazo prescricional contado pela metade (CP, 65, I e 115).

            No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao prefixar a idade de 21 anos como excepcional limite de aplicação de suas normas, não tinha em mente o legislador do ECA proteger o civilmente incapaz, eis que, como se falou, caso houvesse sido realmente este seu intento, teria feito exclusão do emancipado. Assim não fez, justificando o entendimento de que, a exemplo do Código Penal, estabeleceu-se a idade de 21 anos como uma simples tarifação legal. Poderia ter sido escolhida outra idade, como 22 anos, 25 anos etc. Escolheu o legislador, contudo, a idade de 21 anos para ter efeitos nos sistema do próprio Estatuto, não atraindo do Direito Civil, neste caso específico, o conceito de maioridade, motivo pelo qual a alteração legislativa desta não lhe poderia causar qualquer impacto.

            A entrada em vigor do novo Código Civil, com a efetiva vigência e aplicação da norma que reduz a maioridade civil, deverá, num primeiro momento, dar azo a uma considerável celeuma de posições doutrinárias, principalmente acerca da acomodação dessa regra às normas interdependentes hauridas de outros ramos do Direito. A partir da judicialização dos conflitos regidos por tais normas é que teremos a exata dimensão do quão tormentoso nos promete ser a resolução definitiva de tais conflitos. Lançado está, mais uma vez, o convite ao debate, e certamente a última palavra ainda está longe de ser dada.

  


Referência  Biográfica

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu  – Promotor de Justiça na Paraíba, professor da Universidade de João Pessoa e da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Paraíba, pós-graduando em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes

rogerioroberto@hotmail.com

A estabilidade acidentária e o ônus probatório das partes

0

* Luiz Fernando Pereira

            O Direito do Trabalho se destaca dos demais ramos do Direito por seu aspecto protetor, que visa garantir ao empregado, figura mais fraca na relação empregatícia, direitos mínimos e condições adequadas de trabalho. Nesse sentido, a saúde do trabalhador recebe atenção especial da lei, que além de estabelecer restrições contratuais (como limites à jornada de trabalho, proibição de trabalho insalubre ou perigoso para menores, etc.) cria obrigações a serem cumpridas pela empresa, como observância às normas de saúde e segurança no trabalho, fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) entre outras.

            Com o advento da Lei 8.213/91 um novo avanço se deu em termos de proteção a saúde do empregado. É que o artigo 118 da citada lei garante a estabilidade no emprego ao trabalhador que sofrer acidente de trabalho, pelo prazo mínimo de doze meses após o afastamento pela Previdência Social. A estabilidade se estende ainda aos casos de acidente de trajeto e doença profissional ou do trabalho. Embora essa lei já tenha completado mais de uma década de existência, muito se discute sobre o alcance da estabilidade mencionada.

            Para aquisição da estabilidade a lei estabelece dois requisitos básicos: a existência de acidente do trabalho ou doença laboral, e a percepção do auxílio-doença acidentário. Este último não se confunde com o auxílio-doença comum, benefício previdenciário concedido nos casos de doença comum ou acidentes estranhos ao trabalho. Também independe da percepção do auxílio-acidente, que é devido no caso de acidentes com seqüelas permanentes que acarretem a diminuição da capacidade laborativa do segurado.

            Para que o empregado receba o benefício do auxílio-doença acidentário é necessária a apresentação da CAT (Comunicação de Acidente do Trabalho) ao Instituto Previdenciário, e sua emissão, a princípio, é obrigação da empresa (artigo 22 da referida lei), embora possam emiti-la o sindicato da categoria, o médico que assistir o empregado, autoridades locais ou mesmo o próprio segurado e seus dependentes (parágrafo 2o). O que muitas vezes ocorre é que algumas empresas, com o intuito de evitar a aquisição do direito à estabilidade acidentária pelo empregado, deixam de emitir a CAT, e este, por falta de conhecimento, não utiliza a faculdada mencionada. Evidente que diante do desconhecimento do acidente/doença do trabalho, o Instituto Previdenciário acaba por conceder o benefício do auxílio-doença comum, não preenchendo assim, o empregado, os requisitos legais para a aquisição da estabilidade.

            Impossível seria aceitar que o empregador tirasse vantagem da própria torpeza, pois não cumprindo ele obrigação imposta pela lei, acabaria por prejudicar o empregado em benefício próprio. Nessas situações, a Justiça do Trabalho tem proferido decisões favoráveis aos empregados, garantindo o direito à estabilidade mesmo sem a percepção do auxílio-doença acidentário:

            REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO – ESTABILIDADE ACIDENTÁRIA – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – Se a empresa reclamada deixa de fazer o exame demissional, não impugna a existência do acidente de trabalho e deixa de emitir a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), a que também estava obrigada, é óbvio que todos esses atos acabaram culminando na impossibilidade do autor de ver reconhecida, pela própria empresa, a estabilidade do art. 18 da Lei nº 8.213/91. Assim, correta a decisão que declarou nula a resilição contratual e determinou a reintegração do reclamante no emprego. (TRT 8ª R. – RO 4339/2001 – 3ª T. – Rel. p/o Ac. Juiz Marcus Augusto Losada Maia – J. 11.10.2001) (grifo nosso)

            ESTABILIDADE PROVISÓRIA – DOENÇA PROFISSIONAL COMPROVADA – NÃO EMISSÃO DE CAT – Restando comprovado o nexo causal entre o trabalho executado e a doença profissional diagnosticada – tendinite II/III -, e verificando-se que os afastamentos ocorridos superaram quinze dias anuais, sem que, no entanto, fosse emitida a competente CAT, deve a empresa suportar o ônus da indenização pecuniária, referente ao período estabilitário a que faria jus a autora, uma vez que o hipossuficiente não pode ser prejudicado por ato omissivo do empregador. (TRT 15ª R. – Proc. 12238/00 – (40613/01) – 1ª T. – Rel. Juiz Luiz Antonio Lazarim – DOESP 01.10.2001 – p. 25) (grifo nosso)

            Todavia, a questão é bastante delicada, muitas vezes dependendo de prova técnica para comprovação do fato gerador do direito. Podemos citar aqui algumas situações que ocorrem com certa freqüência: empregado afastado por doença/acidente comum em virtude da não emissão da CAT pela empresa; empregado afastado por doença/acidente do trabalho tendo a CAT sido emitida por uma das pessoas enumeradas no parágrafo 2o do artigo 22 da Lei 8.213/91; empregado doente/acidentado que não percebeu qualquer tipo de benefício previdenciário. Cada um desses casos apresenta solução processual diferente, que tentaremos analisar a seguir.

            No primeiro caso (afastamento por doença comum sem emissão da CAT) cabe ao empregado fazer prova do nexo causal entre o acidente/doença e o trabalho exercido. No caso de acidente, normalmente essa prova é a testemunhal, pois se relaciona com um fato ocorrido no local de trabalho ou no trajeto para o mesmo. Já no caso de doença, é necessária a produção de prova técnica (através de perícia realizada por médico do trabalho) para atestar ser a doença ligada ao trabalho ou não. O ônus probatório, portanto, é do empregado.

            Na segunda situação (afastamento por doença/acidente do trabalho, com CAT emitida por empregado, sindicato, médico, etc.) não é necessária a prova do nexo causal entre a doença ou acidente com o trabalho, pois cabe ao órgão previdenciário avaliar a situação do segurado e lhe conceder o benefício devido. Tendo o INSS reconhecido a doença/acidente como sendo relativa ao trabalho, desnecessária é a produção de prova por parte do empregado (além da juntada da própria comunicação e do deferimento do benefício pelo órgão previdenciário). Já o empregador pode produzir prova no sentido de desconstituir as informações da CAT, pois não foi ele seu emissor. Esse ônus decorre da interpretação do artigo 818 da CLT ("a prova das alegações incumbe à parte que as fizer") em conjunto com o artigo 20, §2o da Lei 8.213/91, pois se existe a autorização legal de o empregado ou terceiro emitir a CAT, tem ela total validade, admitindo porém, prova em contrário. O mesmo entendimento se extrai do artigo 389, I do CPC, pois afirma aquele dispositivo que o ônus da prova cabe à parte que alega a falsidade do documento, sem mencionar ser a falsidade formal ou material. As provas seriam as mesmas utilizadas na situação retro, ou seja, testemunhal em relação ao fato do acidente e pericial em relação ao tipo de doença.

            Na terceira hipótese (empregado que, embora tenha contraído doença/sofrido acidente, não percebe nenhum benefício do órgão previdenciário) é necessária uma análise mais profunda dos dispositivos relacionados à estabilidade acidentária para se atingir conclusões mais precisas. Já foi visto anteriormente que é um requisito fundamental para aquisição do direito à estabilidade a percepção do benefício previdenciário. Este, por sua vez, só é devido após o afastamento do empregado por 15 (quinze) dias, a cargo da empresa, passando em seguida a perceber o benefício previdenciário (artigo 60 da Lei 8.213/91). Logo, se a incapacidade cessa em tempo inferior àquele previsto na lei, direito algum tem o empregado, pois não foi preenchido requisito essencial (tempo mínimo de afastamento).

            Mas o que dizer quando o empregado, estando incapacitado por tempo igual ou superior ao mínimo exigido, acaba por ser demitido neste ínterim? Neste caso a demissão pode ser considerada obstativa da estabilidade, mesmo porque o período inicial de afastamento (15 dias a cargo da empresa) é considerado como de interrupção do contrato de trabalho – suspensão da prestação de serviços com pagamento de salário – garantindo a lei "todas as vantagens que, em sua ausência, tenham sido atribuídas à categoria a que pertencia na empresa" quando de seu retorno ao serviço (CLT, artigo 471). Se a lei concede vantagem mais ampla, certamente deve assegurar direito básico, a manutenção do próprio emprego. Assim, entendemos que no decorrer desse período a demissão é nula, por força do citado dispositivo, em conjunto com o artigo 60 da lei de benefícios da Previdência Social.

            Agora indagamos: qual o caminho processual a ser trilhado? Evidente que o empregado deverá propor ação trabalhista postulando a reintegração ao emprego ou indenização correspondente, cabendo a ele provar não só a existência de doença ou acidente do trabalho, como o fato de a suspensão ser superior a 15 dias. Caso tenha o empregado percebido auxílio-doença por mais de 15 dias após a demissão – o que é plenamente possível, pois ele mantém a qualidade de segurado mesmo após a dispensa, durante os prazos e condições estabelecidas pela Lei Previdenciária – o aspecto objetivo (tempo de afastamento) já estaria satisfatoriamente comprovado, faltando comprovar o início do sinistro ou moléstia e a ligação entre aquela e o trabalho exercido. O que se nota é que, quanto maior a má-fé ou descumprimento da lei por parte da empresa, tanto maior é a dificuldade da prova a ser produzida pelo empregado.

            Embora possa parecer que a lei (art. 118 da Lei 8.213/91) estabeleça requisitos claros para aquisição da estabilidade, tal dispositivo precisa ser interpretado segundo os fins sociais por ele visados (artigo 5o da LICC, Decreto-lei 4657/42. Nesse sentido devemos lembrar que no Direito do Trabalho prevalece a interpretação mais favorável ao empregado, conforme rege o Princípio Protetor, viga mestra do Direito Laboral, plenamente aplicável ao caso em estudo. ). Não há dúvida que no caso da estabilidade acidentária o que se busca é proteger o empregado, vítima do próprio trabalho. Assim, deve-se adaptar a letra fria da norma e acomodá-la às situações reais da vida, pois somente assim atingiremos um sistema jurídico justo e que garanta efetiva proteção ao trabalhador .

 


Referência  Biográfica

Luiz Fernando Pereira   –   advogado em Joinville (SC)

E-mail: fernando@pp.adv.br

Home-page: www.pp.adv.br

Cidadania e participação popular

0

* Weverson Viegas 

INTRODUÇÃO

            O presente texto pretende trabalhar com a questão da incorporação da cidadania dentre o rol dos direitos elencados na Constituição de 1.988, uma vez que este princípio está presente na Carta como um fundamento da República Federativa do Brasil, que se pretende um Estado Democrático de Direito.

            E é exatamente a partir do princípio de um Estado Democrático é que defendemos, neste trabalho, uma efetiva participação cidadã, nas decisões da administração que alcancem toda a coletividade.

            Aqui, a cidadania é vista como um "pano de fundo" para que, juntamente com a noção de soberania popular que, frise-se, também é preceito constitucional, possam servir de sustentáculo para a participação eficaz da população.

            A participação pode se dar diretamente, através da chamada democracia direta, com a utilização de instrumentos como o referendo, o plebiscito ou a iniciativa popular, como também pode ser proposta a partir de meios que, juntamente com a administração pública, pretendem cooperar para uma administração participativa, que pode se dar através de subprefeituras ou com a participação de cidadãos em conselhos públicos municipais, ou ainda pelos chamados conselhos autônomos que, apesar de não pertencerem, não serem subordinados à administração pública, podem fiscalizar e até mesmo participar da administração nos assuntos que forem pertinentes a toda coletividade.

            O que não se pode perder de vista é que, nada disso terá sentido ou, nada disso terá eficácia, se não for assegurado à coletividade o direito à informação que também é consagrado na Carta de 05 de outubro de 1.988, como direito fundamental do cidadão, ter o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse da coletividade, desde que não seja assunto relativo à segurança da sociedade e do Estado.

            Enfim, o que procuramos demonstrar neste trabalho que a cidadania pode ser exercida como mecanismo transformador de uma sociedade, todavia, esta mesma cidadania deve ser vista em todos os seus aspectos, principalmente no sentido que, através dela, se almeja uma sociedade com vida digna para todos.

1 – A CIDADANIA

            Antes de adentrarmos, especificamente, o tema da cidadania, gostaria de tecer algumas considerações que, ao meu sentir, são de grande relevo, e servirão de pano de fundo para este trabalho.

            A cidadania é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de acordo com o que preceitua o inciso II, do artigo 1º da Constituição da República.

            Todavia, penso que o local mais propício para um exercício efetivo da democracia é o município, que é onde ocorrem as decisões mais próximas da comunidade, em que o individuo tem maior poder de ingerência nestas decisões.

            A partir deste momento, faremos uma breve incursão sobre a história da cidadania e de seu desenvolvimento diferenciado no âmbito europeu e no âmbito nacional.

            Há um trabalho muito precioso de T. H. Marshal, que explica o desenvolvimento histórico da cidadania, dividindo em três momentos.

            O primeiro momento é aquele no qual foram afirmados os direitos civis, ou os direitos de liberdade. Num segundo momento o que se tinha era o direito de participação política, então, é a fase dos chamados direitos políticos. E a terceira fase é aquela em que se firmaram os direitos sociais. Dessa forma, Marshal defende que os direitos da cidadania não nasceram todos juntos, mas foram se formando com o tempo.

            Ocorre que, esta classificação vale para a Europa, principalmente no caso da Inglaterra, mas essa classificação não ocorreu na mesma ordem no caso do Brasil. Aqui, a primeira fase é a dos direitos sociais, vindo depois os direitos civis e políticos.

            Hoje já se fala nos direitos transindividuais, que são denominados, por alguns, de direitos de 4ª geração.

            O momento dos direitos civis surgiu no século XVIII, que são os direitos necessários à liberdade individual como liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento, e ainda os direitos à propriedade e à justiça.

            Esses são os chamados direitos negativos ou contra o Estado, isto porque exigem uma abstenção do Estado. Porque se tratava de dar liberdade aos indivíduos num Estado Absoluto.

            Essa abstenção, num primeiro momento, pode parecer que o Estado não precisa fazer nada para garantia de determinado direito. O Estado deveria simplesmente respeitar a atividade do cidadão. Ocorre que, pelo simples fato de fazer com que aquele direito fosse respeitado, já exigia uma atuação efetiva e concreta do próprio Estado. Se pensarmos dessa maneira, vamos concluir que não há direitos negativos, pois todos eles exigem uma prestação positiva do Estado. Acontece que, como se tratava de um Estado Absolutista, esse era o primeiro estágio a ser ultrapassado, e era tão sutil que, por vezes, fazia parecer que o Estado não atuava.

            O momento dos direitos políticos, ocorrido basicamente no século XIX, é reconhecido pela possibilidade de o indivíduo participar do poder político do Estado. Dito de outra forma, compreende o direito de votar e de ser votado como meios de participação na esfera pública. Além disso pode-se falar na institucionalização dos parlamentos, nos sistemas eleitorais e nos sistemas políticos em geral, que ajudam a formar os direitos políticos.

            Nesse momento, aparece a democracia representativa como forma de legitimação do poder, por meio de eleições.

            Ainda neste período, o Estado de Direito se apresenta como forma de realização da democracia, uma vez que num Estado de direito a legitimidade dos atos do Estados provém de uma lei que determine sua atuação.

            O momento dos direitos sociais se dá no século XX e se desenvolve no momento em que havia um amplo desenvolvimento do chamado welfare state, ou Estado do bem estar social, principalmente na Inglaterra e Europa Ocidental.

            Esses direitos sociais só vêm a se desenvolver após a Segunda Grande Guerra, e têm como referência as classes trabalhadoras e o seu desenvolvimento a partir do Estado Providência.

            Assim, cidadania, segundo Marshal (1), "se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade".

            No caso dos direitos sociais, o que se exige, é uma ação eficaz do Estado, para garantir políticas sociais para a sociedade.

            Se, naquele primeiro estágio, o momento dos direitos civis, em que se dava a liberdade para os cidadãos, a tarefa do Estado não parecia ser tão ativa, a ponto de se dizer que se tratava de uma simples ação negativa do Estado, aqui, neste 3º momento, o dos direitos civis, o que se quer é uma atuação do Estado para propiciar aos indivíduos pelo menos, adequada aos padrões de vida daquele período histórico ou, o que seria ideal, que fosse propiciado condições de vida digna para todos.

            O que Marshal diz é que a cidadania se aperfeiçoa quando ela se aproxima da igualdade entre os cidadãos, ou seja, à medida que as pessoas vão sendo cada vez menos desiguais entre si, elas vão atingindo o chamado status da cidadania.

            Esse "estado de cidadania" é um ponto, um local de igualdade entre os indivíduos visto que, quando se fala em cidadãos, estabelece-se direitos mínimos, dentro de um locus em que todas as pessoas são iguais, não formalmente, mas há uma igualdade real, em direitos e obrigações.

            Marshal não pretende, com isso, dizer que as desigualdades irão se acabar com a cidadania. O que haverá é, pelo menos, uma igualdade básica, suportada pelo sistema imposto pelo mercado.

            Há um aspecto integrador na cidadania, segundo Marshal, para a formação da consciência nacional. Ele diz que "a cidadania exige um elo de liderança diferente, um sentimento de direito de participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio comum. Compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum. Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos". (2)

            No caso brasileiro, como dissemos, as fases do desenvolvimento da cidadania não acompanharam a Inglaterra. Entre nós, primeiramente houve o aparecimento dos direitos sociais, em 1930, na era Vargas. Os direitos civis e políticos vieram com a Constituição de 1988. A partir daí é que se pode falar em liberdade política e as outras liberdades garantidas constitucionalmente, após um

            período de ditadura militar. Pensamos que o medo quanto à volta do antigo regime fez com que se assegurasse, inclusive com condição de cláusula pétrea, que não pode ser modificada na Constituição, as liberdades individuais.

            Numa sociedade liberal, como bem diz Boaventura de Sousa Santos, (3) muitos indivíduos livres e autônomos não são cidadãos, pelo simples fato de não poderem participar politicamente das atividades do Estado.

            A cidadania não pode ser entendida somente como direito ao voto. Porque neste caso, estaríamos apenas diante do mecanismo da representação. Segundo o qual, existem algumas pessoas que reapresentariam a coletividade e nesse sentido, Kant (4) diz que "a representatividade dos representantes é tanto maior quanto menor for o seu número e quanto maior for o número de representados".

            Aqui, penso ser importante fazer uma distinção básica entre democracia representativa e democracia participativa. Na primeira, há uma eleição das pessoas que representarão o povo, devendo corresponder aos anseios deste, e após as eleições, não há mais uma participação do povo, que só voltará ao cenário quando da eleição seguinte. Na democracia participativa, ou chamada democracia real, os cidadãos fazem parte diretamente da discussão que será capaz de modificar, ou não, suas vidas.

            Há autores que defendem a complementaridade entre os dois modelos. Essa é a posição de Maria Victoria Benevides (5) que, ao aprofundar a discussão, dizendo que "o que proponho estudar é a complementaridade entre as formas de representação e de participação direta – isto é, o aperfeiçoamento da democracia pelo ingresso direto do povo no exercício da função legislativa e da produção de políticas governamentais".

            A essa complementaridade, ela dá o nome de democracia semidireta, na qual além do exercício do voto, se verifica votação de questões de interesse público.

            Se se pensa como Rousseau, no princípio da comunidade, o que deve haver é a atuação dos cidadãos, em conjunto, para que se alcance, não a igualdade formal, vez que esta já não basta, mas o que se propõe é a busca de uma igualdade real, substantiva.

            A cidadania, segundo Boaventura, (6) o mecanismo que regula a tensão entre a sociedade civil e o Estado é a cidadania, vez que "por um lado, limita os poderes do Estado, por outro, universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de modo a facilitar o controle social de suas atividades".

            No primeiro estágio de desenvolvimento da cidadania, que se deu no período do capitalismo liberal, os direitos civis e políticos não iam de encontro com as características do mercado, ao contrário, eram compatíveis com o princípio do mercado.

            Mas hoje eu já posso falar numa crise da cidadania. Isso ocorre por alguns motivos que podemos destacar.

            Podemos dizer, com Marshal, que no período do capitalismo organizado, houve uma passagem dos direitos cívicos e políticos, para os direitos sociais, a partir de uma luta por esses direitos. (Não queremos, aqui, entrar na discussão que se trava entre os que pensam que o papel das lutas populares foi fundamental para as conquistas dos direitos sociais, ou se esses são advindos de uma maior preocupação e atenção do Estado).

            Neste sentido, a cidadania não é monolítica. Dito de outra forma, não é igual em todas as sociedades, visto que se compõe de diferentes direitos e instituições.

            Acontece que, com a crise do Estado Providência, houve também o início da crise da cidadania, que continua até nossos dias.

            A representação democrática perdeu o contato com os anseios e as necessidades da população representada, fazendo-se refém dos interesses corporativos poderosos, assim, os cidadãos perdem a forma de participação através da representação e não têm uma nova forma de participação política.

2 – O ESTADO E A CIDADANIA

            Neste momento, devemos partir do pressuposto que a essência do Estado democrático é a igualdade política, pelo menos.

            Há algumas formas de os cidadãos exercerem um certo tipo de controle sobre o Estado.

            Adam Przeworski (7), seguindo O’Donnell, diz que há mecanismos horizontais e verticais de controle do Estado.

            Os mecanismos horizontais são os chamados checks and balances, conhecido no Brasil como sistema de freios e contrapesos, segundo o qual, um poder seria capaz de fiscalizar os outros.

            Há que se dizer que no modelo puro de separação dos poderes, cada poder (ou função) exerceria somente aquilo que lhe caberia. Desta forma, a função do legislativo é legislar, a do judiciário é julgar e a do executivo é administrar.

            Uma conclusão que chegaríamos, invariavelmente é que haveria um poder sobre o qual não haveria o controle, o chamado unchecked power. Como forma de evitar esse poder sem controle, foi criado o sistema de freios e contrapesos, em que o legislativo, por exemplo, para promulgar uma lei, tem que passar pela aprovação também do chefe do executivo. E assim todos os poderes exercem a sua função essencialmente, mas também exercem funções de outros poderes, que são chamadas funções atípicas. Com efeito, o executivo, tem a função típica de legislar, mas também administra e julga. E da mesma forma ocorre com os outros poderes.

            Esse seria, em suma, o mecanismo horizontal de controle.

            Mas o que nos interessa, nesse trabalho são os mecanismos horizontais, pois segundo Przeworski são as eleições e a "democracia participativa".

            Acontece que ele diz que as eleições são uma espécie de mecanismo rude de controle do Estado, uma vez que, para que funcione, é imprescindível uma informação completa acerca do que acontece no governo e não somente do que o governo quer que saibamos. Ele finaliza dizendo que "precisamos de comissões eleitorais independentes, escritórios de prestação de contas independentes, agências estatísticas independentes". (8)

            O outro tipo de mecanismo de controle do Estado pelos cidadãos seria a chamada "democracia participativa".

            Hoje, se por um lado, em todas as democracias, os direitos políticos são universais, em muitas delas as pessoas não têm condições de exercer a cidadania de forma efetiva.

3 – A PARTICIPAÇÃO POPULAR

            Existem múltiplas dimensões de participação.

            A participação popular pode ser minimalista, onde se constata que há um déficit de participação e de construção de atores relevantes, o que acaba por gerar uma crise de legitimidade e de governabilidade.

            O campo mais propício para a efetiva participação popular é a gestão municipal. Todavia poucos são os municípios que desenvolvem a participação no sentido da radicalidade democrática, exercida concretamente através da participação popular na administração pública.

            A participação popular é um importante instrumento para o aprofundamento da democracia que, a partir da descentralização, faz com que haja maior dinâmica na participação, principalmente no âmbito local.

            Como o Estado Brasileiro é caracterizado por ser um Estado Democrático de Direito, é imprescindível que haja a efetiva participação popular para que se dê legitimidade às suas normas.

            Nessa ordem de idéias, pensamos como Carlos Ayres Brito que diz que "a participação popular não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas obriga o Estado a elaborar o direito de forma emparceirada com os particulares (individual ou coletivamente). E é justamente esse modo emparceirado de trabalhar o fenômeno jurídico, no plano de sua criação, que se pode entender a locução ‘Estado Democrático’ (figurante no preâmbulo da Carta de Outubro) como sinônimo perfeito de ‘Estado Participativo’". (9)

            De acordo com o princípio da participação popular, ficam abertas novas possibilidades de relações entre o Estado e a sociedade civil, por meio de referendo, plebiscito ou mesmo iniciativa popular.

            A participação popular visa estabelecer parcerias entre Estado e sociedade civil, para que, juntos, possam atingir o objetivo desejado por todos, que é a melhoria das condições de vida de toda a população.

            Os instrumentos da participação popular são, de acordo com o artigo 14 da Constituição de 1988, o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, que são formas de manifestação da soberania popular.

            O plebiscito e o referendo são mecanismos de democracia direta, pelos quais o povo opina acerca de determinada matéria.

            A lei nº. 9.709/98 regulamentou a execução do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular.

            Tanto o plebiscito quanto o referendo são consultas feitas ao povo, para que este delibere sobre matérias relevantes de natureza constitucional, administrativa ou legislativa.

            No plebiscito há uma consulta prévia à população, de determinada matéria que será posteriormente submetida à apreciação do Congresso Nacional. O plebiscito precede uma decisão importante ou elaboração de uma lei ou reforma da constituição.

            Cinco anos após a Constituição de 1988, foi realizado um plebiscito para submeter à vontade popular qual seria a forma de governo, se continuaríamos com a forma republicana ou se nos transformaríamos numa monarquia, além de se questionar acerca da mudança, ou não, do sistema de governo, de presidencialista para parlamentarista. Sendo que, ao final a população escolheu a manutenção da forma e do sistema de governo preexistentes.

            O referendo é uma consulta posterior sobre determinado ato governamental, para que o povo ratifique ou rejeite tal ato, ou ainda, servirá para conceder eficácia ao ato, no caso de uma condição suspensiva ou para retirar sua eficácia, no caso de condição resolutiva.

            É importante salientar que somente aquele que está no gozo dos direitos políticos, ou seja, quem pode votar e ser votado, tem capacidade para participar de ambos os mecanismos, tanto o plebiscito quanto o referendo.

            José Luiz Quadros de Magalhães (10) diz que "o questionamento que se coloca num referendo é muito mais complexo do que o de um plebiscito que consiste num sim ou não a uma idéia genérica".

            No âmbito local, é preciso asseverar que o município tem competência para dispor sobre os temas que deverão ser objeto de aplicação de tais instrumentos, para aprovação pela Câmara Municipal.

            A iniciativa popular de lei, consagrada como instrumento de soberania popular, prescrita no inciso III, do artigo 14 da CR/88, poderá ser exercida através da apresentação, à Câmara dos Deputados, de um projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, devidamente distribuído por, pelo menos, cinco estados e com não menos de três décimos de eleitores de cada um deles.

            A Constituição da República prescreve que as constituições estaduais deverão prever a iniciativa popular para as leis estaduais (art. 27, §4º, da CR/88).

            No município também será possível a participação popular através da iniciativa popular de lei, nos termos do inciso XIII, do artigo 29, da Constituição da República. Neste caso impende que haja a manifestação de pelo menos cinco por cento do eleitorado municipal, sendo necessário que o projeto de lei seja de interesse do município, da cidade ou dos bairros.

            Cabe à lei orgânica organizar o processo de votação, os prazos de tramitação na câmara municipal.

            Outro importante mecanismo de participação da coletividade na administração pública é a audiência pública.

            Através deste instrumento, que já está incorporado nas questões que concernem ao meio ambiente, a partir da Resolução nº. 09 de 03.12.87, do CONAMA, que torna obrigatória a audiência para que seja aprovado o relatório de impacto ambiental.

            A lei n.º 10.257, o chamado Estatuto da Cidade, assegura que a gestão orçamentária participativa será um instrumento de planejamento municipal e a realização de audiência pública é considerada condição obrigatória para a sua aprovação pela Câmara Municipal.

            Nessa ordem de idéias, concluímos que a exclusão da maioria da população sobre questões relevantes para a comunidade se tornam, cada vez mais, indesejáveis e ilegítimas, vez que está consagrado, entre nós, os princípios da soberania popular, através do exercício da democracia direta, que são, inegavelmente componentes do Estado Democrático de Direito.

            Todavia, todo esse aparato para uma efetiva atuação dos cidadãos na construção de uma nova sociedade não terá muita eficácia se as pessoas que participam do processo não têm acesso às informações pertinentes aos interesses da coletividade.

            É de suma importância que seja garantido o direito à informação para que haja possibilidade de ingerência, pelos cidadãos, na administração pública, sendo em maior escala no âmbito municipal contudo, não nos esquecendo que o direito à informação é preceito constitucional que deve ser exercido em todos os níveis de governo.

            Como bem ensina Saule Júnior (11), "essa consulta popular tem como pressuposto o respeito ao direito à informação, como meio de permitir ao cidadão condições para tomar decisões sobre as políticas e medidas que devem ser tomadas para garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade". E finaliza dizendo que "a participação popular propicia uma nova relação entre o Estado e a sociedade, onde a cidadania ativa se transforma no elemento condicionante para o estabelecimento das leis, políticas e instrumentos inerentes às funções de governo e administração".

            O direito à informação é um instrumento de significativa importância para o desenvolvimento do Estado e da participação da pessoa no exercício da cidadania. Neste sentido, Ana Graf (12): "O direito às informações de que o Estado dispõe fundamenta-se no princípio da publicidade dos atos administrativos e na eliminação dos segredos públicos. Neste sentido, o direito à informação constitui um indicador significativo dos avanços em direção a uma democracia participativa: oponível ao Estado, comprova a adoção do princípio da publicidade dos atos administrativos; sob o ponto de vista do cidadão, é instrumento de controle social do poder e pressuposto da participação popular, na medida em que o habilita para interferir efetivamente nas decisões governamentais e, se analisado em conjunto com a liberdade de imprensa e banimento da censura, também funciona como instrumento de controle social do poder".

4 – FORMAS DE EXERCÍCIO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA GESTÃO MUNICIPAL

            Como dissemos anteriormente, pensamos estar no município o principal local para o exercício da cidadania.

            Para que esse exercício seja completo, é preciso que meios eficazes de participação na administração pública municipal se desenvolvam.

            A partir deste momento, traremos alguns mecanismos de participação cidadã na gestão municipal.

            O professor Saule Júnior (13) enumera algumas formas de gestão democrática, as quais traremos à baila para que possamos tecer comentários sobre tais instrumentos e como eles poderão ser aproveitados, de forma eficaz, pelas cidades brasileiras.

            Em primeiro lugar temos as subprefeituras e as administrações regionais.

            As subprefeituras funcionam como órgãos administrativos auxiliares do governo. Elas não têm personalidade jurídica, em outras palavras, elas são produto de um mecanismo de desconcentração, que ocorre quando há, simplesmente, uma distribuição interna de competências decisórias, para que haja maior precisão e agilidade nas decisões administrativas, sem que seja necessária a criação de uma nova pessoa jurídica.

            Importante ressaltar que os subprefeitos não terão as atribuições especificas do prefeito, as quais continuam sendo deste, privativamente. Dentre tais atribuições, podemos citar a sanção ou a publicação de uma lei ou mesmo o veto de um projeto de lei.

            Algumas prefeituras como a de São Paulo já estabeleceram, na lei orgânica, a possibilidade da implantação de subprefeituras que, inclusive, terão dotação orçamentária própria.

            Nada impede, que haja uma eleição dos subprefeitos, para que haja uma maior participação da comunidade desde o limiar de uma estrutura que permite uma maior interação entre a administração e os administrados, vez que será exercitado num território menor.

            Assim como as subprefeituras, a administração regionalizada se presta a dar mais agilidade para a administração, visto que se encontra dentro dos locais onde serão implementadas as obras para o desenvolvimento daquela população específica. Todavia, precisamos asseverar que a competência de cada subprefeitura ou administração regional deve ser regulamentada por lei.

            Outro mecanismo importante para a gestão municipal é a implementação de conselhos setoriais.

            Com efeito, esses conselhos são órgãos colegiados, que serão verdadeiros canais institucionais de participação popular.

            São compostos de representantes do poder público e da sociedade civil, tendo a característica de ser um órgão integrante da administração pública.

            Sua finalidade é assegurar a participação da comunidade na implementação e elaboração das políticas públicas, além de fiscalizar as ações do Poder Público.

            Atualmente, algumas prefeituras implantaram conselhos para discutir as questões de educação e saúde. Contudo, pensamos ser de fundamental relevância a implantação, em todas as cidades, de um conselho responsável pelo orçamento do município. Neste sentido Feddozzi (14), citando o deputado José Joffily, que dizia que "o orçamento, via de regra, é o retrato de corpo inteiro dessa política de clientela, que nos transforma em despachantes de luxo".

            Em terceiro lugar, mas não menos importante, encontramos os canais de participação popular autônomos do Poder Público.

            Esses conselhos são chamados conselhos populares visto que são formados apenas por pessoas da sociedade civil, que não têm vínculo com a administração e, a sua principal característica é a de serem autônomos, não sendo subordinados à administração pública.

            Como esses conselhos são autônomos, podem perfeitamente exercer com maior imparcialidade o acompanhamento da fiscalização das ações do poder público.

            Através desses conselhos é possível o exercício da cidadania, visto que a população pode participar de assuntos de interesse coletivo da comunidade onde está inserido.

            A cidade de Porto Alegre já permite em sua Lei orgânica a implantação desse tipo de conselho municipal autônomo, que devem ser reconhecidos pelo Poder Público.

            Sublinhe-se que a obrigação de reconhecer é do poder público. E no caso do não reconhecimento, pensamos ser possível a fiscalização das ações do poder público vez que, de acordo com a Constituição de 1988 todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral. E, em sendo constatada qualquer irregularidade será cabível Ação Popular, que se trata de um remédio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão, e se presta a invalidar atos ou contratos administrativos ilegais, lesivos ao patrimônio público.

NOTAS

            01. Marshal, T. H. Cidadania, classe social e status. Zahar: Rio de Janeiro, 1967. Apud, Luciano Fedozzi. Orçamento Participativo. Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal (FASE/IPPUR) 2ª edição, 1999.

            02. Marshal, T. H. Cidadania, classe social e status. Zahar: Rio de Janeiro, 1967. Apud, Luciano Fedozzi. Orçamento Participativo. Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal (FASE/IPPUR) 2ª edição, 1999.

            03. Santos. Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

            04. Kant, Immanuel. Projet de Paix Perpétuelle. Paris: J. Vrin, 1970. Apud, Boaventura de Sousa Santos. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

            05. Benevides. Maria Victoria. Apud (…) Poder Local X Exclusão Social: a experiência das prefeituras democráticas no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2000.

            06. Santos. Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

            07. Przeworski, Adam. O Estado e o cidadão. In Bresser Pereira, LC, Wilheim, J. Sola, L. (org). Sociedade e Estado em Transformação: ENAP. Brasília, 1999.

            08. Przeworski, Adam. op. cit.

            09. Carlos Ayres Brito. Distinção entre "controle social de poder"e "participação popular’. Rev. Trim. de Direito público – II, 1993. pág. 85. Apud, Nelson Saule Junior. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1997.

            10. Magalhães. José Luiz Quadros de. Revista Direito e Cidadania. nº. 07 ano 03. jul/out 1999.

            11. Saule Júnior, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1997.

            12. Ana Cláudia Bento Graf. "O direito à informação ambiental, Direito Ambiental em Evolução. Curitiba, Juruá, 1998. Apud, Sidney Guerra, O direito à informação. Revista Ibero-Americana de Direito Público vol. 05.

            13. Para maiores considerações acerca do tema, conferir Saule Júnior, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1997.

            14. Joffily, José. Anais da Câmara dos Deputados, 29/10/1961, apud, Luciano Fedozzi. Orçamento Participativo. Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal (FASE/IPPUR) 2ª edição, 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

            BECKER, Ademar José (org.). A cidade reinventa a democracia. Porto Alegre: Prefeitura municipal de Porto Alegre, 2000.

            BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. In Revista Lua Nova. nº. 33, 1994.

            CALDERÓN, Adolfo Ignácio. Democracia local e Participação Popular. São Paulo: Cortez, 2000.

            CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001.

            COMPARATO. Fábio Konder. A nova cidadania. In Revista Lua Nova. Nº. 28/29, 1993.

            DALLARI. Dalmo de Abreu. Estado de Direito e cidadania. In Revista de Direito e Cidadania. Nº 04 ano 02.

            FEDOZZI, Luciano. Orçamento Participativo. Reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre, Tomo Editorial; Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal (FASE/IPPUR) 2ª edição, 1999.

            GUERRA, Sidney. O direito à informação. In Revista Ibero-Americana de Direito Público. Vol. 05

            MAGALHÃES. José Luiz Quadros de. O diretório não partidário, o legislativo municipal e o "ombudsman". In Revista de Direito e Cidadania. Nº07 ano 03.

            PANDOLFI, Dulce Chaves. Percepção dos direitos e participação social. In Cidadania, Justiça e Violência. organizadores Pandolfi, Dulce Chaves [et al]. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

            PRZEWORSKI. Adam. O Estado e o cidadão. In Bresser Pereira, LC, Wilheim, J. Sola, L. (org). Sociedade e Estado em Transformação: ENAP. Brasília, 1999.

            REQUEJO, Ferran. Pluralismo Cultural e Cidadania Democrática. In Revista Lua Nova. Nº. 47.

            SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1997.

            VIEIRA. José Ribas. A cidadania sua complexidade teórica e o direito. In Revista de Direito e cidadania. Nº04, ano 02.

            VIEIRA. Liszt. Cidadania Global e Estado Nacional. In DADOS Revista de Ciências Sócias. Volume 42 nº3, Rio de Janeiro, 1999.

 


Referência  Biográfica

Weverson Viegas  –  advogado em Campos dos Goytacazes (RJ), mestrando em Direito na Faculdade de Direito de Campos

weverson@hotmail.com

O Estatuto das Cidades – Lei 10.257/01

0

* Clovis Brasil Pereira –

INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA  VINCULADOS  AO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL 
 

1.    GENERALIDADES 
 

O Estatuto da Cidade, originado da Lei 10.257/2001, tem como pontos importantes:

–  O ordenamento  das cidades em proveito da dignidade humana, princípio que vem consagrado no artigo 1º, inciso III,  da Constituição Federal.

–  Criar condições adequadas para satisfazer os preceitos constitucionais mínimos garantidos no artigo 5º, tais como direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o artigo 6º, ao garantir o chamado piso vital mínimo, representado pelos direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados.

–  Incrementar as disposições constitucionais de tutela mediata, conforme artigo 225 da Constituição Federal, de proteção geral ao meio ambiente, e de tutela imediata, com a regulamentação dos artigos 182 e 183, possibilitando através no novo instrumento jurídico, a execução de uma política urbana voltada para o aprimoramento do meio ambiente artificial.

–  Preocupação bem definida em criar condições favoráveis à busca do bem coletivo, a segurança e o bem estar, bem como o equilíbrio ambiental (art. 1º, § único, Lei 10.257/01).

–  Organização do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, com objetivo de garantir o direito a cidades sustentáveis, mediante rígido planejamento, oferta de equipamentos urbanos, transporte coletivo e serviços públicos em geral.

–  Estimulo à gestão democrática, com o envolvimento efetivo da população, através de suas associações e organizações, na formulação e execução da política urbana, em prol do meio ambiente artificial.

Para assegurar a plena execução da política urbana e atingir os princípios perseguidos na Constituição Federal e os objetivos determinados no estatuto da Cidade, notadamente em seus artigos 1º e 2º, foram disciplinados vários instrumentos, relacionados no artigo 4º, a saber:

I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

III – planejamento municipal;

IV – institutos tributários e financeiros

V – institutos jurídicos e políticos

VI – estudo prévio de impacto (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

 
2.     OS INSTRUMENTOS DA POLÍTICA URBANA VINCULADOS AO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL 
 

Pelo artigo 4º,  do Estatuto da Cidade,  o legislador ordinário dotou os administradores públicos dos instrumentos adequados ao cumprimento da política urbana, prevista pelo artigo 182, da CF, mas que ainda estava à mingua de meios para a sua execução.

A viabilização dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, logicamente, exigirá uma perfeita integração e sintonia entre as ações de política urbana implantadas pelos municípios, com  planejamento e formulação de política urbana incrementada pelos Estados, notadamente para a harmonização do desenvolvimento metropolitana e regional.

O planejamento urbano é implementado mediante a elaboração de normas legais que o normatizam e, sobretudo, mecanismos de inclusão para a participação e intervenção da comunidade e entidades no processo de reflexão sobre a cidade em si.

Na visão de Eliane D’arrigo Grenn,  [1] “o planejamento urbano do Município deve ser capaz de pensar a cidade estrategicamente, garantindo um processo permanente de discussão e análise das questões urbanas e suas contradições inerentes, de forma a permitir o envolvimento de seus cidadãos.”

Por sua vez, o transporte urbano intermunicipal, o saneamento básico, o tratamento de água, o meio ambiente natural, dentre outros, exigem ações que extrapolam o âmbito territorial de cada  município, e se mostram indispensáveis ao meio ambiente artificial. 

Dessa forma, exigem uma planificação harmonizada, através de planejamento que direcione os objetivos comuns a serem perseguidos, para a efetiva qualificação de vida da população das cidades, em cumprimento ao que dispõe os incisos I e II, do referido artigo 4º.

Observe-se que o planejamento previsto no Estatuto da Cidade, por disposição do artigo 174 da Constituição Federal, já era obrigatório para o setor público, não sendo portanto uma novidade trazida no novo instrumento legal, que apenas o consolidou, ao lado de outros instrumentos de organização essenciais, denominados planos nacionais, regionais e   estaduais visando a ordenação do território e o desenvolvimento econômico e social.

A organização  do planejamento municipal, que  deve ser executado pelo município, destaca o inciso III, as seguintes ações:

a)   o plano diretor

b)  disciplina do parcelamento, do uso e ocupação do solo

c)  zoneamento ambiental

d)  plano plurianual

e)  diretrizes orçamentárias e orçamento anual

f)  gestão orçamentária participativa

g)  planos, programas e projetos setoriais

h)  planos de desenvolvimento econômico e social

Analisando referidos instrumentos, o plano diretor se mostra de vital importância, sendo exigido para todas as cidades com mais de  20.000 habitantes ou integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, dentre outras previsões, com disciplina no Capítulo III,  artigos 39 a 42.

Segundo o diploma legal, é pelo plano diretor que devem ser reguladas as exigências fundamentais de ordenação da cidade, fazendo com que a propriedade urbana cumpra sua função social, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, desde que respeitadas as diretrizes previstas no artigo 2º da Lei.

O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo, devendo ser revisto pelo menos, a cada dez anos, para  adequá-lo às mudanças decorrentes da dinâmica das cidades.

Dentro de uma visão democrática e participativa, na sua elaboração, deverão ser promovidas pelo poder público, através dos Poderes Legislativo e Executivo,  audiências publicas e debates com a participação da população e de associações representativas da comunidade; deverá haver a garantia da  publicidade quanto aos documentos e informações produzidos, bem como garantido o acesso de qualquer interessado a tais documentos e informações.

Por fim, para garantir sua aplicação e plena execução, o plano diretor deve prever em seu bojo, dentre outras exigências, um sistema de acompanhamento e controle, possibilitando à população em geral uma eficaz fiscalização.

Quanto ao plano plurianual e diretrizes orçamentárias e orçamento anual (alíneas “d” e “e”), e os planos, programas e projetos setoriais e planos de desenvolvimento econômico e social (alíneas “g” e “h”), devem ser elaborados pelo gestor das cidades, com aprovação do poder legislativo, submetendo tais instrumento à gestão orçamentária participativa, onde a população deverá ser previamente consultada e chamada a opinar, e sua importância está diretamente relacionada com a Lei de Responsabilidade Fiscal, através da delimitação do que pode ser efetivamente comprometido e realizado pelo poder público.

Os demais instrumentos, passam a ser analisados de forma  mais pormenorizada, uma vez que nos parecem mais importantes, na efetiva busca da melhoria do meio ambiente artificial.

3.     PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO DO SOLO 
 

O Estatuto da Cidade, ao disciplinar o parcelamento, uso e ocupação do solo, visa, como ponto básico, atribuir efetividade ao texto constitucional, de função social da propriedade urbana. Assim, quando se verificam casos em que esse desiderato não é alcançando ou atribuído, pode o poder público, por comando do Plano Diretor previamente aprovado, [2]“poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado” mediante a fixação de condições e prazos para implementação de tal obrigação.

A não destinação adequada da propriedade, aos fins sociais a que se destina, nas condições impostas no plano diretor previamente aprovado,  pode acarretar ao proprietário sanção pecuniária, via tributo (IPTU) progressivo, segundo a previsão do artigo 7º do aludido Estatuto.

Com essa nova concepção da propriedade, e face a importância do meio ambiente artificial, como protagonista da dignificação da pessoa humana,  embora reconhecida e garantida na Constituição, acabou perdendo seu caráter absoluto, passando a ser exigida, para seu reconhecimento pleno, que atenda de forma concreta, sua função social[3].

Têm-se assim, que a Lei 10.257/01, veda a utilização da propriedade com o fim meramente especulativo, ao consagrar instrumentos que visem  diminuir as desigualdades sociais e a marginalização, atendendo aos preceitos constitucionais que asseguram às populações a promoção do bem comum, através de ações efetivas para a melhoria do meio ambiente artificial.

ZONEAMENTO AMBIENTAL
 

É um dos instrumentos essenciais colocados no estatuto da Cidade, para assegurar aos moradores urbanos, o meio ambiente artificial.

Deve ter por objetivo, segundo o professor Dr. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, [4] “disciplinar de que forma deve ser compatibilizado o desenvolvimento industrial, as zonas de conservação da vida silvestre e a própria habitação do homem, tendo em vistas sempre a manutenção de uma vida com qualidade às presentes e futuras gerações (art. 225 da CF)”.

Está assim vinculado ao propósito de garantir bem-estar aos habitantes de determinado município. Se faz necessário estabelecer a reserva de espaços determinados, para a preservação e proteção do meio ambiente.

A política de zoneamento ambiental, possibilita a regulamentação a respeito da repartição do solo urbano e a atribuição de seu uso.

Conforme destaca o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo[5], a limitação  do uso do solo já vinha contemplado na Lei 6938/81, “como importante instrumento da política nacional do meio ambiente”, onde prevê áreas para pesquisas ecológicas,  parques públicos,  áreas de proteção ambiental,  costeira e industrial.

GESTÃO ORÇAMENTÁRIA PARTICIPATIVA
                                   

Uma inovação  de importância fundamental, para a democratização da gestão da política urbana, e do meio ambiente artificial, é a chamada gestão orçamentária participativa, disciplina no artigo 44, Capítulo IV, que trata da gestão democrática da cidade.

Referido instrumento se efetiva pela realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento an8ual, como condição obrigatória para sua aprovação na Câmara Municipal.

A participação direta da população na gestão participativa, parece-nos a normatização mais importante, para alcançar os fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, e a efetividade da tutela do meio ambiente artificial.

Outra forma de atuação da população, contemplada no mesmo capítulo, é a previsão de projeto de lei, por iniciativa popular (art. 43, IV).

Alguns dos instrumentos contemplados a partir do inciso  IV, do artigo 4º da Lei 10.257/01,  têm como característica principal a finalidade sancionatória, como é o caso do IPTU progressivo no tempo, como estudaremos mais adiante, porém, tais sanções só foram efetivamente aplicadas após o advento do Estatuto da Cidade, uma vez que a norma constitucional do art. 182, clamava por regulamentação.

 
Nesse passo temos:
 
Os Institutos Tributários e Financeiros, assim compreendidos: 
 

a)       imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana-IPTU;

b)       contribuição de melhoria;

c)       incentivos e benefícios fiscais e financeiros.

Os Institutos jurídicos e políticos,  conforme segue: 
 

a)       desapropriação;

b)       servidão administrativa;

c)       limitações administrativas;

d)       tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;

e)       instituição de unidades de conservação;

f)        instituição de zonas especiais de interesse social;

g)       concessão de direito real de uso;

h)       concessão de uso especial para fins de moradia;

i)        parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

j)        usucapião especial de imóvel urbano;

k)       direito à superfície;

l)        direito de preempção;

m)      outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;

n)       transferência do direito de construir;

o)       operações urbanas consorciadas;

p)       regularização fundiária;

q)       assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos;

r)        referendo popular e plebiscito.

Cuidaremos de estudar os institutos tributários e financeiros, e os jurídicos e políticos, sendo mais  pormenorizadamente  os contidos nos incisos I, II e III do art. 182 da CF, pois tem mais influência na formação do meio ambiente artificial, e de forma geral os demais instrumentos citados anteriormente.

O PARCELAMENTO, EDIFICAÇÃO OU UTILIZAÇÃO COMPULSÓRIOS (art. 5º e 6º)
 

Esse instrumento é utilizado pelo Poder Público Municipal, como forma de condicionar (daí a expressão compulsório), o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, em utilizar socialmente e adequadamente a área urbana em conjunto com o Plano Diretor e por prazo razoável de implementação, estabelecido em lei municipal específica.

O IPTU  PROGRESSIVO NO TEMPO( art. 7º)
 

A cobrança deste imposto de forma progressiva no tempo, será utilizado quando o proprietário descumprir os prazos previstos para o parcelamento, utilização ou edificação estudados anteriormente, e, não será objeto de isenção e nem de anistia, eis que tem natureza sancionatória; sua alíquota será majorada pelo prazo de 5 anos consecutivos até chegar á alíquota máxima de 15% (quinze por cento), até que seja cumprida a obrigação.

DESAPROPRIAÇÃO PARA REFORMA URBANA (art. 8º)
 

Também chamada de desapropriação-sanção ou extraordinária, é exceção da regra da desapropriação indenizável em dinheiro (art. 5º inciso XXIV), e, é utilizada quando, após decorrido o prazo de 5 anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário viesse a atender à função social da área, o Poder Público Municipal se vê com poderes para proceder então a desapropriação, fundamentada em interesse social para reforma urbana, com pagamento em títulos da dívida pública com aprovação prévia do Senado Federal, resgatáveis pelo prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas.

USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO INDIVIDUAL E COLETIVO (art. 9º e 10) 
 

O artigo 9º do Estatuto reproduz o artigo 183 parágrafo 1º da Constituição Federal, que preceitua que “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptos e sem oposição, utilizando-a para usa moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”; deste modo, o Estatuto da Cidade, garante àquele homem ou mulher em adquirir pelo usucapião à propriedade, desde que atendidas as exigência legais.

Já o art. 10 do Estatuto, inovou criando a possibilidade de se adquirir a propriedade de forma coletiva, quando para “áreas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suceptíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.

CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA (art. 15)  

A concessão de uso especial para fins de moradia, visa a conceder ao particular o uso de um bem público, sem lhe transmitir a propriedade, a fim dê a destinar social e adequadamente o bem, sob pena de extinção.

DIREITO DE SUPERFÍCIE (art. 21 a 24) 

É a possibilidade do proprietário de área urbana, conceder a outrem, o direito de superfície do seu solo, subsolo ou espaço aéreo relativo ao terreno, por tempo determinado ou indeterminado, de forma onerosa ou gratuita, para que o superficiário, realize a função social da propriedade de outrem.

DIREITO DE PREEMPÇÃO (art. 25 a 27) 

Trata-se do chamado direito de preferência conferido ao Poder Público Municipal, para adquirir imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares, que está incluído no Plano Diretor e desde que observadas as necessidades do Poder Público em adquirir áreas para atender:

–  regularização fundiária;

–  execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;

–  constituição de reserva fundiária;

–  ordenamento e direcionamento da expansão urbana;

–  implantação de equipamentos urbanos e comunitários;

–  criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;

–  criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; e

–  proteção de áreas de interesse histórico, cultural e paisagístico.

OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR E DE ALTERAÇÃO DE USO  (art. 28 a 31)
 

O Poder Público poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico, mediante contrapartida do beneficiário, essa contrapartida, que será o dinheiro, será aplicado nas finalidades do artigo 26, como por exemplo na regularização fundiária, na constituição de programas e projetos habitacionais e etc.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS (art.32 a 34)     

É  o conjunto de especial de intervenções urbanísticas e medidas ordenadas pelo Poder Público Municipal, com a participação de proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar uma transformação estrutural de um setor da cidade, uma melhoria social e a valorização ambiental.

TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR (art. 35 ) 

Ocorre quando o imóvel for considerado necessário para fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários, de preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social e cultural e quando servir a programas de regularização fundiárias, pode o Poder Público autorizar que o proprietário construa ou venda o direito de construir em outro local a fim de preservar as características do bem e da política urbana.

ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA – EIV  (art. 36) 

Denominado pelos doutrinadores, como o mais importante instrumento de atuação no meio ambiente para assegurar o princípio da dignidade humana (art. 1º, III da CF), o EIV, tem como objetivo compatibilizar o trinômio capitalista, como ensina Celso Antonio Pacheco Fiorillo, vida-trabalho-consumo.

Para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento é preciso obter o EIV, que contempla os efeitos positivos e negativos do empreendimento de formas preventiva, em relação ao bem estar da população que mora nas proximidades da área. Resta esclarecer, que o EIV não substitui o EIA (estudo de impacto ambiental).

CONCLUSÃO

O estudo do Estatuto da Cidade, que foi traçado em linhas gerais neste trabalho, teve o objetivo de cuidar principalmente dos aspectos de Ordenação dos Instrumentos de Política Urbana Vinculados ao Meio Ambiente Artificial, por acreditar, que tais instrumentos devem ser aplicados efetivamente na gerência das Cidades, buscando a finalidade da lei, que é proporcionar e garantir o chamado Piso Vital Mínimo de existência do ser humano, tendo como base o Direito à Habitação.

Deste modo, este trabalho fez uma reflexão positiva, mencionando quais os possíveis instrumentos que o Chefe do Poder Executivo Municipal, têm em mãos para executar efetivamente o planejamento de sua cidade, visando efetivamente a melhoria do meio ambiente artificial, tendo como fundamento  básico, dar efetividade  ao princípio constitucional da dignidade humana, princípio este  preconizado na Constituição Federal de 1988, respeitando sempre a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei da Improbidade Administrativa, que são consideradas leis de balizamento da gestão da res pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS  

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Curso de direito ambiental brasileiro, 4ª ed. – São Paulo; Saraiva, 2003.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Estatuto da Cidade Comentado, Editora RT, 2002.

SILVA, José Afonso da, Direito ambiental constitucional, 3ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2000.

MUKAI, Toshio, O Estatuto da Cidade, 1ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001.

NUNES, Rizzatto, O Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo, Saraiva, 2002.

NOTAS  

[1] Sistema Municipal de Gestão do Planejamento,  www.portoalegre.rs.gov.br/planeja 

[2] Lei 10.257/2001, artigo 5º

[3] Constituição Federal, art. 5º, XXII e XXIII

[4] Estatuto da Cidade Comentado, p. 36, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002

[5] Obra citada, p. 37

 


Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  Advogado, Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito, Professor Universitário.

prof.clovis@terra.com.br

Desafios à Bioética

0

* Juliana Frozel de Camargo

Nunca se falou tanto sobre ética no comportamento humano com o objetivo de buscar um modelo de vida inspirado no respeito ao homem, como nos últimos anos.  Essa preocupação saiu do âmbito filosófico-acadêmico e está fazendo com que as pessoas comuns reflitam: O que é certo ou errado? Como pensar e agir? Até onde a ciência pode avançar? Dignidade humana?

A chave para responder a estas perguntas está na utilização do conhecimento para a melhoria da qualidade de vida humana, já que o saber e a ciência devem ser vistos como patrimônio da humanidade.

O avanço da biotecnologia tem trazido muitas conquistas à humanidade, mas também, muitos riscos, assim, a aplicabilidade dos procedimentos na investigação científica, precisa ser revista e repensada, pois embora possa ser científico nem sempre é ético. Afinal de contas, até que ponto a ciência "age" em benefício da humanidade?

Daí a necessidade de se compreender a bioética.

Bioética: “bíos” (vida) “éthos” (costume, comportamento, ética) – de vida e ética – é um neologismo que, significa ética da vida, adequação da realidade da vida com a da ética.[1]

Por tratar de vida, percebe-se a enorme abrangência da matéria e, embora tenha-se tentado delimitar seu conteúdo, a bioética não tem fronteiras, não se definindo como as demais disciplinas. Eis, aqui, um primeiro desafio!

O termo "bioética" foi criado em 1971 pelo oncologista e biólogo americano Van Rensselaer Potter,  em seu livro “Bioética: Ponte para o Futuro”, estabelecendo uma ligação entre os valores éticos e os fatos biológicos.[2]

Segundo Potter:

Necessitamos de biólogos que nos digam o que podemos e devemos fazer para sobreviver e o que não devemos fazer, se esperamos manter e melhorar a qualidade de vida nas próximas décadas. O destino do mundo depende da interação, preservação e extensão do conhecimento que possui um reduzido número de homens que, somente agora, começam a se dar conta do poder desproporcionado que possuem e quão enorme é a tarefa de a realizar.[3]

A princípio, a bioética resumia-se ao Juramento Hipocrático: "Usarei meu poder para ajudar os doentes com o melhor de minha habilidade e julgamento; abster-me-ei de causar danos ou de enganar a qualquer homem com ele", ou seja, tinha a função de orientar as obrigações da classe médica baseando-se no bem-estar do paciente.

Com o passar do tempo, verificou-se uma evolução na história humana, com novas descobertas mudando a vida das pessoas. Esta evolução teve seus aspectos positivos mas também trouxe estagnação e retrocessos.

O mais perigoso desses regressos à barbárie foi visto com Hitler e seus seguidores, inspirados no desprezo à pessoa, criando uma ciência completamente equivocada em que se utilizava seres humanos como cobaias. Ressalte-se que essas experiências absurdas não permitiram um único progresso científico válido. Foram simplesmente grotescas e desumanas.

As experimentações levadas a cabo pelo regime nazista da Alemanha e a subseqüente condenação pelo Tribunal de Nuremberg em 1947, de médicos considerados culpados de conduta contrária aos valores do humanitarismo, assentaram uma nova fase da bioética.

Os avanços do conhecimento científico indicavam que estávamos vivendo um mundo novo, caracterizado pela explosão da ciência e da inovação tecnológica, que evidenciavam as vulnerabilidades da natureza e do corpo humano.

Assim, a bioética impôs-se como uma reação à realidade que a pesquisa científica no campo da vida apresentou, desde a barbárie nazista, até os recentes experimentos em manipulação genética. Ela surgiu da indignação com relação aos novos acontecimentos, ou seja, quando foi possível imaginar conseqüências desastrosas  advindas dos avanços da biotecnologia.[4]

Portanto, surgindo a partir da ética nas ciências biológicas, a bioética é hoje, também, uma disciplina voltada para o biodireito e para a legislação com a finalidade de garantir mais humanismo nas ações e relações médico-científicas. A bioética apresenta-se, ao mesmo tempo, como reflexão e ação. Reflexão porque tem o diferencial de realmente parar para refletir sobre as conseqüências psicossociais, econômicas, políticas e éticas advindas dos avanços da ciência e Ação, porque, após a reflexão, é capaz de posicionar-se de forma a assegurar o sucesso desse tipo de relação, impondo limites e ditando regras que estabeleçam um novo contrato social entre povo, médicos, governos etc.[5]

Esse novo ramo da ética apresentou, desde o princípio, uma nítida vocação reguladora, mas não dogmática, do comportamento humano. Deste modo, a bioética procurou formular princípios gerais, que pudessem servir como "mandatos de otimização", na criação de princípios aplicáveis às pesquisas e tecnologias genéticas.[6]

Os últimos anos vêem a bioética ocupar um espaço importante da reflexão humana. Pode-se dizer que a bioética tem um grande futuro pela frente.

Surge a bioética oferecendo uma contribuição decisiva na construção de uma vida mais digna para todos, na discussão de questões e problemas concretos.

A bioética não se utiliza simplesmente dos conhecimentos de outras ciências, mas cria um espaço de diálogo interdisciplinar, começam a sentar à mesa de discussão advogados, teólogos, filósofos, antropólogos, sociólogos, médicos e muitas pessoas sensibilizadas com essa temática.

O movimento dialético, inerente à interdisciplinaridade, permite rever o tradicional para torná-lo contemporâneo, já que em todo conhecimento novo existe algo de antigo. Busca-se o equilíbrio, novidade com responsabilidade.

Outra observação fundamental e indispensável ao Brasil é a necessidade de criação da própria visão de bioética,  não podendo simplesmente aceitar passiva e acriticamente as propostas e marcos conceituais provenientes de países do Primeiro Mundo. Precisa-se adaptar a bioética de acordo com a realidade nacional, levando-se em conta a fome, o abandono, a exclusão social, o racismo etc.

O fator tempo também deve ser visto como um valor ético, porque cada minuto perdido ou discussão protelada significa mortes e evolução para a irreversibilidade da deterioração da questão ecológica.[7]

Sobram desafios sim, mas não falta o idealismo ético aliado a um compromisso com a vida. Neste sentido, a bioética começa a dar uma contribuição significativa na sensibilização e compromisso pelo resgate do sentido da dignidade humana e qualidade de vida.

O desenvolvimento da biotecnologia é, sem dúvida, um fenômeno cultural que representa não só um grande acúmulo de conhecimento pelo homem, mas também e, principalmente, um novo entendimento sobre a situação do ser humano no mundo. A bioética é uma ciência da qual o homem é sujeito e não somente objeto.

Baseia-se a bioética em três princípios: da beneficência, da autonomia e da justiça – é a chamada “trindade bioética”, cujos protagonistas são: médico, paciente e sociedade.[8]

O Princípio da Beneficência ou não-maleficência é aquele baseado na obrigatoriedade do profissional da saúde (médico) de promover, em primeiro lugar, o bem-estar do paciente, tem a função de "fazer o bem", passar confiança e evitar danos, tratamentos inúteis e desnecessários.[9]

Segundo Sgreccia[10], o princípio da beneficência representa algo mais que o hipocrático primum non nocere, ou seja, o princípio do não-malefício, pois não comporta somente o abster-se de prejudicar, mas implica, sobretudo, o imperativo de promover o benefício.

Com o Princípio da Autonomia o ser humano (paciente) tem o direito de ser responsável por seus atos, de exercer seu direito de escolha (autodeterminação) respeitando-se sua vontade, valores e crenças, reconhecendo seu domínio pela própria vida e o respeito à sua intimidade.

Pelo Princípio da Justiça está a sociedade, que deve exigir eqüidade na distribuição de bens e benefícios. Este princípio impõe que, inobstante suas diferenças, as pessoas sejam tratadas de forma igualitária no exercício da medicina e nos resultados das pesquisas científicas.

A bioética, pela sua abrangência, está caracterizada pela interdisciplinaridade, interculturalidade e metodologia do diálogo, e é, por excelência, disciplina da alteridade.

A alteridade é critério fundamental da bioética, o que se quer dizer que a pessoa é o fundamento de toda reflexão e de toda prática bioética. Portanto, a alteridade significa o respeito pelo outro, trata-se de aprender a conviver com as diferenças, buscando equilíbrio entre os diversos pontos de vista.

É assim que se dá a alteridade e, por isso, ela permite não só a fundamentação, mas, também, a estruturação e a articulação dos conteúdos da bioética.

A relação da bioética com o Direito (Biodireito) surge da necessidade do jurista obter instrumentos eficientes para propor soluções para os problemas que a sociedade tecnológica cria, em especial no atual estágio de desenvolvimento no qual a biotecnologia desponta como a atividade empresarial que vem atraindo mais investimentos.

É necessário promover a valorização da dignidade da pessoa humana, em respeito à Constituição Federal, esta é a tarefa do jurista, sendo a bioética um fundamental instrumento para que se atinja este objetivo.

A bioética analisa os problemas éticos dos pacientes, de médicos e de todos os envolvidos na assistência médica e pesquisas científicas relacionados com o início, a continuação e o fim da vida, como as técnicas de reprodução humana assistida, a engenharia genética, os transplantes de órgãos, as técnicas para alteração do sexo, prolongamento artificial da vida, os direitos dos pacientes terminais, a morte encefálica, a eutanásia, dentre outros fenômenos. Enfim, visa a analisar as implicações morais e sociais das técnicas resultantes dos avanços nas ciências, nos quais o ser humano é simultaneamente ator e espectador.[11]

O grande objetivo da vida, para Aristóteles, seria a felicidade, e esta seria possível graças à qualidade especificamente humana, que diferencia o homem dos outros seres, sua capacidade de raciocínio, a qual lhe permitiria ultrapassar e governar todas as outras formas de vida. Presumia o filósofo que a evolução dessa faculdade traria realização pessoal e felicidade. Mas o filósofo não previu que essa mesma peculiaridade faria o homem conquistar campos inimagináveis, que o colocariam no limiar da sua própria natureza. [12]

Talvez nunca se tenha pensado que esse domínio do homem pudesse ameaçar a qualidade e a sobrevivência da vida em si mesma. Mas isso já aconteceu. Toda comunidade científica está em alerta já que as descobertas da biotecnologia se sobrepõem com uma rapidez inigualável. É preciso fazer com que a ética consiga ao menos se aproximar desses avanços e trazer perspectivas melhores à humanidade.

A grande questão que se impõe é: face aos avanços da engenharia genética e da biotecnologia, qual o comportamento a ser adotado pelos profissionais das diversas áreas ao enfrentarem os desafios decorrentes dessa evolução? Talvez a resposta fosse mais simples se a própria sociedade já tivesse traçado suas diretrizes para o assunto, mas também ela está perplexa.

Diante do que foi visto, é possível perceber que o homem pode muito mais do que deve. E ainda: não há que se falar em princípios éticos absolutos, já que a ética muda conforme a história da sociedade.

Chegar a um consenso é praticamente impossível, então, deve-se buscar a tolerância junto com a responsabilidade.

Parafraseando Aldous Huxley, estamos diante de um “Admirável Mundo Novo”, em que o saber científico produz uma sociedade totalitária e desumanizada.

Portanto, a bioética deve pronunciar-se entre a manipulação e a humanização.[13] A bioética não pretende calar a ciência, proibir as pesquisas, mas sim, caminhar com elas, tentando verificar os problemas antes que eles ocorram, avaliar o que realmente vale a pena, no sentido de prevenção.

Como se vê, é de extrema importância transferir essa temática também para as pessoas não especialistas, para que todos possam compreendê-la e decidir com segurança qual o melhor caminho a seguir. É essencial que a sociedade mude sua postura com relação à ciência e busque controlar de forma eficaz mecanismos de controle social e ético para que os "Homens-Deus" parem de brincar com a vida alheia.

O poder do homem sobre a vida mostra-se como uma realidade esperançosa, mas ao mesmo tempo, perigosa demais. É importante que o homem seja capaz de assumir decisões éticas que possibilitem um futuro plenamente humano.[14]

O progresso científico, aos poucos, deve ceder aos limites éticos e legais.

A bioética, sem dúvida, é questionamento em busca da conveniência e da oportunidade. Está voltada para o futuro com sucesso já no presente.

É claro que a bioética não significa estagnação e, portanto, estará sempre em transformação, guiada pela evolução da ciência e transformação da sociedade. Deverá acompanhar estes avanços tendo como principal objetivo a garantia da integridade do ser humano, tendo como linha mestra o princípio básico da defesa da dignidade humana.

Deve chegar o momento da ciência com consciência, rumo à priorização da função social das biociências.  Surge um "tempo novo" e nova mentalidade deve acompanhá-lo. O desafio é a construção de uma ética nova, baseada na solidariedade em que o pensamento do "eu" passe a ser o pensamento do "nós"!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

BERNARD, Jean. Da biologia à ética – Bioética. Paris: Editorial PSY, 1994.

BOLZAN, Alejandro. Reprodução Assistida e Dignidade Humana. São Paulo: Paulina, 1998.

DENNY, Ercílio A.. Ética e Sociedade. Capivari: Opinião, 2001.

GASSEN, Hans Gunter. Biotecnologia em discussão. São Paulo: Konrad-Adenauer, 2000.

GOLDIM, José Roberto. Introdução à Bioética. Disponível em: <http://www.hcpa.ufrgs.br/bioeticaf.htm>.  Acesso em: 24 mar. 2001.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 24. ed. São Paulo: Globo, 1998.

LADUSÃNS, Stanislavs (Coord.). Questões Atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1990.

OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. São Paulo: Moderna, 1997.

PESSINI , L.; BARCHIFONTAINE, C. P. (Orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996.

RIBEIRO, Antônio de Pádua. Biodiversidade e Direito. Revista Consulex. Ano IV, nº39. Março, 2000.

SANTOS, Maria Celeste C. Leite. O Equilíbrio do Pêndulo a Bioética e a Lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998.

SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Loyola, 1996. I v.

NOTAS:

[1] PESSINI , L.; BARCHIFONTAINE, C. P. (Orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996,  p. 30.

[2] SANTOS, Maria Celeste C. Leite. O Equilíbrio do Pêndulo a Bioética e a Lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998,  p. 38.

[3] POTTER, Van Rensselaer apud  PESSINI , L.; BARCHIFONTAINE, C. P. (Orgs.), op. cit.,  p. 33.

[4] GOLDIM, José Roberto. Introdução à Bioética. Disponível em: <http://www.hcpa.ufrgs.br/bioeticaf.htm>.  Acesso em: 24 mar. 2001.

[5] OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. São Paulo: Moderna, 1997,  pp. 47-48.

[6] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993,

pp. 86-87.

[7] PESSINI , L.; BARCHIFONTAINE, C. P. (Orgs.), op. cit.,  pp. 27-28.

[8] SANTOS, Maria Celeste C. Leite, op. cit., pp. 42-45.

[9] OLIVEIRA, Fátima, op. cit.,  pp. 55-56.

[10] SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Loyola, 1996,  p. 167.

[11] BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,  p. 2.

[12] GOLDIM, José Roberto, op. cit.,  pp. 5-10.

[13] DENNY, Ercílio A.. Ética e Sociedade. Capivari: Opinião E., 2001, p. 50.

[14] SANTOS, Maria Celeste C. Leite,  op. cit. p. 37.

 


Referência  Biográfica

Juliana Frozel de Camargo  –  Advogada. Mestre em Direito Civil. Membro do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental, Empresarial e Propriedade Intelectual – NEDAEPI. Membro da Comissão Organizadora e Revisora da Revista "Cadernos de Direito" – UNIMEP. 2004

camafroju@hotmail.com

Rito Sumaríssimo no Processo do Trabalho

0

* José Mechango Antunes

CONCEITO

Para iniciar o trabalho sobre o tema proposto, vejamos primeiramente o conceito de De Plácido e Silva,(1)  do que seja rito e, também, sumaríssimo.

“RITO. Do latim ritus (modo, forma, maneira), no sentido jurídico entende-se o conjunto de formalidades ou de regras instituídas para que sirvam de forma ou de modelo à execução de um ato ou de uma diligência.

O rito, portanto, prescreve as regras formais ou as solenidades indispensáveis à validade jurídica do ato.

Na linguagem forense, rito e processo trazem o mesmo sentido: consignam as regras para que se promovam as ações ou se executem os atos necessários a seu andamento.”

“SUMARÍSSIMO. Superlativo de sumário” – do latim summarium – (resumo, compêndio) – “é a expressão usada para designar o processo, em que tudo se faz com brevidade, ou em que tudo se resolve de plano, isto é, sem a satisfação de formalidades usualmente dispostas para os processos comuns.”

“Assim, é o sumaríssimo indicativo do processo que deve ser tratado com uma brevidade superlativa, para que de igual modo seja pronunciada a decisão da questão, ou do assunto, que nela se debate.”

IDÉIA DE BREVIDADE  

Em alentado comentário ao tema, o Professor Amador Paes de Almeida,(2) inicia dizendo que a expressão sumaríssimo designa “um procedimento despido de maiores formalidades, sucinto, breve, simples, rápido”. Observa o autor que a expressão pode a princípio parecer inadequada, como ocorreu com idêntico instituto no processo civil ao prever a modalidade ritual, sem que existisse um procedimento sumário, ensejando a que o legislador alterasse para sumário a anterior denominação, por via da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994.

Diz ainda o mestre, que tal equívoco “não ocorre no processo do trabalho, em que, desde 1970, existe o procedimento sumário, instituído pela Lei nº 5.584/70”.

Conclui-se, pois, que o rito sumaríssimo é caracterizado pela brevidade, pela redução das formalidades processuais, em benefício das partes, que vêem de imediato a solução da pendência apresentada ao Juízo.

Diz célebre frase, que deve merecer permanente reflexão dos julgadores, que “justiça tardia é injustiça”.

Entretanto, não é nova a proposta de brevidade nos julgamentos de dissídios trabalhistas; ao contrário, a idéia é de que sejam unas as audiências.

A Consolidação das Leis do Trabalho, no artigo 849, prevê que será contínua a audiência de julgamento e concluída no mesmo dia, salvo na hipótese de força maior, em que o Juiz Presidente da Junta (hoje, Vara) marcará a sua continuação, “para a primeira desimpedida”. Quer-se dizer, não é nova a idéia de brevidade dos julgamentos na Justiça do Trabalho. Nesse sentido, o artigo 845 dispõe que as partes comparecerão à audiência acompanhadas das suas testemunhas, bem como naquela apresentarão as demais provas. Cuida-se aqui do princípio da concentração, a exigir que todas as provas sejam ofertadas naquela audiência, ressalvando-se, por óbvio, as que demandam tempo maior à sua produção, tais como perícia, oitiva de testemunhas por precatória, ou não-comparecimento de testemunha a que se pode requerer condução coercitiva, etc.                        

Ponto que merece destaque, e não de todos conhecido, é o que dispõe o parágrafo único do artigo 850 da CLT, no sentido de que o Presidente da Junta (hoje, Vara), após propor a solução do dissídio, tomará os votos dos juízes classistas e, em caso de empate “poderá desempatar ou proferir decisão que melhor atenda ao cumprimento da lei e ao justo equilíbrio entre os votos divergentes e ao interesse social”.

Tal observação se faz necessária, eis que os juízes classistas, peças importantes na solução dos conflitos, foram aos poucos perdendo o sentido, na medida em que deixaram de exercer corretamente os misteres conciliatórios, ou por despreparo dos que eram nomeados, ou por atropelamento dos juízes presidentes, cujos motivos determinantes da atitude refogem a este tratado. Daí a inevitável extinção da representação classista.

Também merece consideração o fato de que, na audiência de julgamento (artigo 843 da CLT) é facultado ao empregador fazer-se substituir por gerente ou qualquer outro preposto – cujas declarações obrigarão o proponente (§ 1º), bem como, em caso de doença ou motivo ponderoso (e não “poderoso”, como equivocadamente vêm grafando algumas obras), devidamente comprovado, o empregado poderá fazer-se substituir por outro, da mesma profissão, ou pelo sindicato (§ 2º). 

Bem de ver que, no caso de representação do empregador, a interpretação jurisprudencial tem se direcionado a que seja o representante sócio, diretor ou empregado da empresa representada, portanto pessoa jurídica. Não é, contudo, o que diz o artigo consolidado, por isso mesmo mais abrangente, porquanto alude no caput, a que o representante “tenha conhecimento do fato”.

A REALIDADE 

O que tem se verificado, entretanto, é que a Justiça do Trabalho, malgrado as disposições supra citadas, não tem acompanhado a demanda das ações, com sérios prejuízos principalmente aos empregados, partes hipossuficientes nas relações de emprego. Impotente, ante o elevado número de ações e as absurdas possibilidades recursais, máxime na fase de execução (que beneficiam apenas o empregador), tem deixado esta Justiça especializada rolarem-se os processos por anos seguidos, em detrimento da eficaz prestação jurisdicional, sendo comum o reclamante receber seus haveres após a morte, através do espólio, ou simplesmente não recebê-los. Outra ocorrência é quando o empregado, ante a demora da solução, acaba por fazer acordo aviltante, muitas vezes instigado pelo seu patrono, ávido por receber seus honorários.

Tudo isso ensejou o advento do Rito Sumaríssimo, acolhido com insólito entusiasmo por grande segmento do mundo jurídico, vislumbrando a possibilidade de que o novel instrumento venha a ser o ponto de partida para a aceleração das pendengas trabalhistas.

Os mais céticos, entretanto, propalam inevitável desengano dos que se revelam exageradamente entusiasmados com a novidade, isto com respaldo na tradicional morosidade da justiça brasileira, e, sem sombra de dúvida da do trabalho.

Ainda no entender de Amador Paes de Almeida,(3) o procedimento sumaríssimo, embora inquestionavelmente melhor estruturado,

            “não colherá resultados tão promissores. E isso porque o problema maior na prestação jurisdicional no Brasil, nas três esferas, estadual, federal e trabalhista, reside, sobretudo, no campo estritamente processual, ou seja, na pletora de recursos”.

            “O número e as espécies de recursos (e o mal está presente na Lei nº 9.957/2000) existentes no processo do trabalho tornam impraticável a prestação jurisdicional trabalhista.”

LEGEM HABEMUS  

Veio a lume, aos 13 de janeiro de 2000, sancionada que fora na data antecedente, a Lei nº 9.957, a qual “acrescenta dispositivos à Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, instituindo o procedimento sumaríssimo no processo trabalhista”.

Restou assim acrescida a lei trabalhista da “Seção II-A – Do Procedimento Sumaríssimo”, por acréscimo à “Seção A” e, por conseguinte, acrescidos os artigos de 852-A a 852-I, assim como alterados os artigos 895 e 896, adicionando-se ainda o artigo 897-A àquele diploma.

O artigo 852-A dispõe que os dissídios individuais, não excedentes ao valor de quarenta vezes o salário mínimo (hoje, R$ 9.600,00) na data do ajuizamento da reclamação, submetem-se ao novel procedimento na esfera trabalhista. Excluem-se (parágrafo único) as demandas em que for parte a Administração Pública direta, autárquica e fundacional.

Na dicção do artigo 852-B, o pedido deverá ser certo ou indeterminado, indicando o valor correspondente, bem como que não será feita citação por edital, constituindo incumbência do autor a correta indicação do nome e do endereço do reclamado (incisos I e II). Prevê o inciso III que a apreciação da reclamatória deverá ter lugar no prazo máximo de quinze dias, sendo possível, caso se revele necessário, de pauta especial.

Há que se observar que o prazo máximo de 15 dias determinado para julgamento, se necessário em pauta especial, representa certo privilégio aos autores, frente aos milhares de outros que aguardam em fila de vários anos a solução de suas causas, submetidas ao procedimento ordinário, deixando-se aqui escapar, por analogia, a equanimidade exigida para todos.

Manoel Antonio Teixeira Filho,(4) assim afirma:

            “No fundo, como se percebe, o legislador, ainda que não o desejasse, acabou por criar ato discriminatório ao separar as causas de “pequena monta” das de “grande monta”, sob a perspectiva econômica, como se esse critério fosse correto para definir a necessidade que possui o trabalhador, quando em juízo, de obter, em menor ou maior espaço de tempo, a prestação da tutela estatal. Toda discriminação é odiosa; a discriminação entre miseráveis, além disso, é perversa.”

Verifica-se portanto que, se por um lado, o sumaríssimo beneficia alguns trabalhadores, vem por certo em detrimento de muitos outros, remanejados ao fim da fila, por assim dizer, falando-se em causas de maior valor. Neste ponto, já demonstram habilidade os patronos dos reclamantes, criando, na peça exordial, direitos utópicos com o fito, nada profissional, de escapar ao novo rito.

Em contrapartida, outros patronos, ávidos de ganho imediato, reduzem o petitório, na busca de imediatos resultados financeiros, principalmente objetivando o acordo na primeira audiência, nem sempre benéfico ao reclamante.

Dispõe o artigo 852-B que as demandas pertinentes ao rito sumaríssimo serão instruídas e julgadas em audiência única – de resto o objetivo primeiro do processo trabalhista, já citado alhures, e reiteradamente descumprido, pelo que já também se disse.

Já o artigo 852-D repete prerrogativa processual (artigos 126 a 128 e 131 do CPC), no sentido das prerrogativas e da persuasão racional do julgador.

Todas as provas deverão ser produzidas em audiência, ainda que não requeridas previamente, a teor do artigo 852-H, tal como leciona o artigo 845 da CLT, igualmente se procedendo no tocante às testemunhas e com as mesmas ressalvas, por comparação.

No tocante à exclusão da Administração Pública direta, autárquica e fundacional, do procedimento sumaríssimo, soa ela como absurda, na medida em que, se todos são iguais perante a lei, sem qualquer discriminação (artigo 5º, caput da Constituição Federal), não se justificando, a princípio, tal exclusão.

Nesse sentido, ainda, a opinião de Amador Paes de Almeida:(5)

            “Lamentamos a exclusão da Fazenda Pública, responsável direta pelo acúmulo de recursos que abarrotam os tribunais brasileiros, e não encontramos qualquer justificativa plausível para a exclusão das fundações, ainda que públicas.”

Ficamos contudo com aqueles que atribuem a limitação ao fato de que os entes públicos são beneficiários do Decreto-lei nº 779/69, que lhes confere prazos elásticos para os recursos processuais, aliás, situação que está a merecer reflexão, à vista inclusive de que tais entes são detentores de estruturas jurídicas satisfatórias para responderem em tempo igual às interpelações de que são alvo.

Já sob o aspecto ético, é possível assegurar-se que não se justifica tal discriminação, sendo cediço que, conquanto maus pagadores (os piores) são os beneficiários do decreto-lei, arrastando à exaustão os recursos permitidos, mormente na fase executória, em detrimento dos que já têm a seu favor a res judicata. Haja vista a lentidão dos precatórios da Fazenda Pública, em detrimento de quem, desventuradamente, demanda contra a mesma. 

Outro ponto que merece crítica é o inciso II do artigo 852-B, na medida em que impõe ao autor injustificado ônus, no que pertine à correta indicação do nome e endereço do reclamado, exigência inexistente no rito ordinário trabalhista:

            “não se fará citação por edital, incumbindo ao autor a correta indicação do nome e endereço do reclamado;”

Com efeito, trata-se de verdadeiro grilhão imposto ao reclamante (aqui tratado autor, em contraposição à forma tradicional adotada no processo do trabalho), na medida em que não poucas vezes o reclamado desaparece sem deixar vestígios; uma cômoda inversão de atribuições, que bem poderia ser evitada, mantendo-se a prudente figura do oficial de justiça. São maiores as dificuldades e as limitações impostas a quem pretender invocar a tutela jurisdicional a bem do direito pretendido, vislumbrando-se que não serão raras as oportunidades de desistência ante a dificuldade de localização do possível devedor. Assim haverá, embora de forma caolha, uma diminuição de ações, a bem do decantado desafogamento.

Ressalte-se aqui a desídia de alguns patronos, habituados às ações fáceis, com possibilidades de acordos – ganho imediato – no sentido de que não orientam suficientemente o seu constituinte-trabalhador no sentido de buscar a localização do empregador “fugitivo”.

Assim, não serão raras as vezes em que o empregado ver-se-á na contingência de recorrer, munido de alguns artifícios talvez, ao “antigo” procedimento, à míngua de informações mais detalhadas sobre o seu ex-empregador.

De resto, o que se verifica é que pouco de novidade trouxe o novo procedimento, porquanto o rito sumário instituído pela recém promulgada norma adota, como medidas de celeridade, algo idêntico ao já existente no texto consolidado, não se falando, obviamente, da questão dos prazos, estes, certamente de impossível cumprimento, na grande maioria  dos casos, como estudado neste trabalho.    

Portanto, o legislador não criou nada de novo, uma vez que a legislação existente já previa uma forma ritual mais rápida no processo do trabalho. Além disso, o sumaríssimo da nova lei, não é assim tão sumário; na verdade, o é menos que o da Lei n 5.584/70, considerando-se a possibilidade de interposição de recurso ordinário, bem como de revista, nas hipóteses que a lei prevê.

            O que, na verdade, atravanca a possibilidade de que a prestação jurisdicional seja rápida são o número e as espécies de recursos possíveis no processo trabalhista:      

·        Da sentença de 1º grau cabem embargos declaratórios (artigo 897-A da CLT);

·        Julgados os embargos, cabe recurso ordinário ao TRT (art. 895 da CLT);

·        Se denegado seguimento ao RO, cabe agravo de instrumento (art. 897, b da CLT);

·        Julgado o RO, cabem embargos declaratórios (art. 897-A da CLT);

·        Do RO cabe recurso de revista ao TST (art. 896 da CLT);

·        Negado processamento pelo juízo de admissibilidade a quo (Presidência do TRT), cabe agravo de instrumento (art. 897, b, da CLT);

·        Denegado processamento pelo Juízo ad quem (relator da Turma do TST), cabe agravo regimental para a mesma Corte (RITST, art. 332, parágrafo único);

·        Do julgamento do RR (se houver divergência entre Turmas ou entre Turmas e a Seção Especializada em Dissídios Individuais), cabem embargos de infringência para a mesma Seção (Lei nº 7.701/88, art. 3º, inciso III, alínea b;

·        Em caso de violação à Lei Federal ou à Constituição, cabem embargos de nulidade para a Seção acima (Lei nº 7.701/88, art. 3º, inciso III, alínea b, in fine;

·        Na hipótese de a decisão contrariar disposição constitucional, cabe recurso extraordinário para o STF (CF, art. 102, III, alíneas a, b e c;

·        Negado processamento pelo Juízo de admissibilidade a quo (Presidência do TST), cabe agravo de instrumento (artigo 897, alínea b da CLT);

·        OBS  – É obrigatória, na fase recursal, a manifestação da Procuradoria do Trabalho, ainda que a questão não envolva interesse público.

·        Na fase de execução, o executado dispõe do recurso de embargos à execução (art. 884 da CLT), buscando tornar sem efeito a eficácia executiva da sentença exeqüenda;

·        Das decisões proferidas pelo Juiz do Trabalho na fase executória, cabe agravo de petição (art. 897, alínea a, da CLT);

·        Na fase alienatória a parte dispões de embargos à arrematação (art. 746 do CPC e art. 769 da CLT);

·        Da decisão do recurso supra, cabe agravo de petição para o TRT (art. 897, alínea a, da CLT);

Nas sentenças contra a Fazenda Pública, há obrigatoriedade do recurso ex officio (recurso por imperativo legal), que no mais das vezes é acompanhado do recurso voluntário. 
 

RECURSO ORDINÁRIO
 
Proferida sentença definitiva nas causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo, cabe recurso ordinário, com efeito devolutivo, que permite a extração de carta de sentença e, bem assim, a execução provisória, nos termos do artigo 895, “a”, da CLT.

Assim, o recurso será imediatamente distribuído a uma das turmas (artigo 895, inciso II da CLT), tendo o relator o prazo máximo de dez dias para sua liberação, o qual deverá de imediato ser posto em pauta para julgamento, sem a figura do revisor. Terá parecer oral do representante do Ministério Público do Trabalho, presente à sessão de julgamento e o acórdão consistirá unicamente em certidão de julgamento, não sem as razões de decidir, embora de forma sucinta. Este fato é deveras preocupante, ante a possibilidade – natural – de o juiz relator deixar passar algum equívoco, que poderia ser verificado pelo revisor.

Os tribunais poderão designar turma específica para tais julgamentos, visualizando-se aqui, mais uma vez, atitude em detrimento àqueles reclamantes cujo valor da ação seja de maior monta que aquela jungida ao procedimento sumaríssimo, situação de difícil acomodação.

No que toca à ausência de revisor, cabe, concessa venia dos que entendem em contrário, uma crítica, pois exsurge clara a possibilidade de julgamentos sem o necessário acuro na apreciação, dado o grande volume de feitos, de vez que o revisor, se atento à sua responsabilidade, atua verdadeiramente como um segundo relator, o que conduz a uma melhor apreciação, mesmo em se tratando do sumaríssimo.

Qualquer que seja o feito, em grau de apelação, é imprescindível a prudente figura do revisor, havendo lamentável equívoco em sua supressão.

Cabe aqui assinalar que, neste ponto, fazemos o comentário pertinente com esteio na experiência de mais de sete anos no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, como juiz classista, em cujas sessões são julgados, regra geral, mais de uma centena de processos, dificultando uma mais acurada apreciação de cada um. Ressalto que a distribuição média, nesse período, foi de trinta e cinco processos por juiz, como relator, e outros tantos, ou mais, como revisor, sendo que os embargos declaratórios (exigíveis, para prequestionamento da matéria perante a instância ad quem) vêm por acréscimo, ensejando a reapreciação parcial dos autos.

RECURSO DE REVISTA  

Havendo a pretensão ao Recurso de Revista, tal só será possível em caso de ferimento a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho, ou violação direta a Constituição da República (artigo 896, § 6º), em arremedo ao caput do mesmo artigo, com a redação dada pela Lei nº 9.756/98; porém, em necessária adequação em razão da lei nova.

Entretanto, salutares reputo as críticas, equivocada se revela a redação do parágrafo 6º, na sua dicção, ipsis litteris, com grifos nossos:

            “Nas causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo, somente será admitido recurso de revista por contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho e violação direta da Constituição da República.”

Na verdade, deveria o texto ser assim grafado, na interpretação, no mínimo lógica, do legislador:

            “…súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho ou violação direta da Constituição da República.” 

Com efeito, à literal interpretação do texto (e assim se dará, indubitavelmente, máxime quando a apreciação couber aos legalistas, quer-se dizer, àqueles que, por convicção ou comodismo, atêm-se à fria letra da lei) haverá, como pressuposto para interposição do recurso “derradeiro”, a necessidade de duplo ferimento: a súmula de jurisprudência uniforme do Excelso Pretório e à Constituição da República.

Será, por certo, mais uma oportunidade para se invocar, dando asas à sanha protelatória, a interpretação do julgador, no compulsar do artigo 85 do Código Civil, aplicado subsidiariamente ao Direito do Trabalho, ex vi do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Cabe consignar sábia frase do insigne magistrado Dr. Francisco Antonio de Oliveira,(6) que estudaremos neste trabalho:

            “O legislador opera em sede de utopia e, lamentavelmente, demonstra desconhecer por completo a realidade trabalhista no País.”

De se lamentar, também, o desconhecimento, dos princípios e regras elementares regentes de nossa língua…

Evidentemente, o que ocorreu foi um equívoco – lamentável, diga-se – pelo que urge a adoção de providência, pelo Tribunal Superior do Trabalho, via de enunciado, a fim de que se pacifique o entendimento sobre a matéria, sob pena de se verificarem injustiças quando da denegação de seguimento do recurso de revista. 

OBJETIVO PRIMEIRO DA LEI  

Preconizando a celeridade na Justiça do Trabalho (a mais célere, no dizer da douta Juíza do Trabalho Dra. Catia Lungov)(7) – assertiva com a qual concordamos – embrionou-se a Lei em comento, vindo ela a lume sem o necessário burilamento, como soe ocorrer, quer-se dizer, sem a consulta prévia aos enumeráveis juristas que apreciariam opinar adrede sobre a matéria, resultando por certo em maior eficácia da norma.

Perquire a douta Juíza, em indagação que também é nossa, 

            “se é frutífero centrar nossa atenção na obsessão pela redução da atividade judiciária, através da criação de dificuldade à propositura de ação e ao exercício do direito de recurso, ou na extinção dos processos sem a apreciação do mérito, pelas mais variadas justificativas, como se com isso se estivesse restaurando a paz social”.

Com efeito, parece que há exacerbada decisão de, pela via inversa, resolver-se, ao revés do norte, as questões judiciais, na medida em que se depara com a dificuldade de aprimoramento da Justiça, no seu todo, atuando-se de forma canhestra na busca de uma solução para o assustador acúmulo de feitos.

Assim se manifesta a Juíza Kátia(8), abordando a questão do prazo a ser cumprido para a solução das demandas no sumaríssimo:

            “Ao se fixar um prazo, desprezou-se que a Justiça do Trabalho é campeã imbatível, numericamente, na solução de litígios e que ainda é a mais célere.”

            Mais adiante:

            “Desprezou-se que há um acúmulo já de anos nas pautas, com processos aguardando instrução, processos esses que não merecem ser preteridos porque propostos anteriormente à nova lei.”

A mesma preocupação é verificada pelo Dr. Narciso Figueirôa Júnior,(9) que assim refere:

            “Embora mereça encômios a preocupação do legislador com a agilização nos julgamentos dos processos trabalhistas, não acreditamos que os objetivos da referida lei serão alcançados, pelo menos a curto prazo, tendo em vista o acúmulo de processos existentes tanto na primeira quanto na segunda instância.”

É verdade. Necessário se faz a agilização da Justiça, a fim de que a prestação jurisdicional não se transforme, pela demora, em manifesta injustiça. Porém, inolvidável que as partes – autor ou réu – não podem se sentir mutiladas vendo que se trata dos seus direitos subjetivos de forma algo atabalhoada, a toque de caixa, sem a necessária apreciação pelo estado-juiz, como é de se esperar.

Impende sopesar se necessitamos de regras novas ou se, melhor atuando, se façam cumprir as já existentes, num redimensionamento das atividades pertinentes, visando a uma agilização por vontade política, por assim, dizer, sem necessidade de adoção de novidades, nem sempre férteis.

DIFICULDADES POSSÍVEIS  

Diversos juízes e advogados têm-se manifestado céticos no que toca à prática do rito sumaríssimo, segundo os quais, o cumprimento dos prazos previstos é a principal dificuldade, em especial nos grandes centros, sendo que no interior sua viabilidade é mais palpável. Um problema que não foi bem avaliado quando da elaboração do texto milagroso (assim parece que o querem) é a questão da notificação em tempo hábil no prazo exíguo de quinze dias, ponto em que se desavantaja o reclamado, quase impossibilitado de elaborar defesa adequada à lide proposta. O serviço de correio também não é adequado o bastante a essa situação, sendo necessário um segmento do mesmo à permanente disposição da Justiça do Trabalho, como seu apenso, dir-se-ia.

Verifica-se, por exemplo, a exigência de unicidade da audiência, regra processual já existente desde antanho, no ordenamento processual trabalhista, não se constituindo, pois, novidade. Se não tem sido observada, já o dissemos acima, é pelos mesmos motivos que também tornarão possível o emperramento dos feitos submetidos ao novo rito, o que vislumbro inevitável. Não se trata aqui, especificamente, de crítica, mas de análise da realidade.

Em feliz abordagem deste particular, o eminente Juiz Francisco Antonio de Oliveira,(10) supra citado, alude à dificuldade de sucesso do novo rito, nos grandes centros, decorrente do avassalador volume de ações, “que hoje se eleva a patamares preocupantes”, diferentemente das pequenas co-marcas, onde a novidade se revela desnecessária, com o procedimento ordinário satisfazendo a contento a demanda.

Transcrevo crítica do autor, no sentido de que:

            “A cultura legiferante do País funciona como ato de constrição que coloca o poder político (Executivo e Legislativo) numa redoma de vidro fosco a retirar-lhe qualquer visão da realidade. Para o poder político, a lei funciona como espécie de panacéia que, editada e sancionada, passa a corrigir todos os males, ungida que estaria de poderes deificantes” (di-los-ia apoteóticos), “como se ato proveniente dos deuses.”

Seria, por assim dizer, um lavar-de-mãos bíblico (tal como quando Pilatos entregou à malta ululante o inocente Jesus de Nazaré) com a edição de texto tido e havido como milagroso – já se disse alhures – deixando aos enfermos o remédio duvidoso, não suficientemente elaborado no laboratório que deveria primar pela competência.

Parida a norma, gestada que foi currente calamo, entregam-na envolta na placenta irremovível às partes e aos julgadores, partindo para outra gestação, na busca de justificar sua permanência nos postos que ocupam, por delegação popular.

Mais adiante, arremata o mestre que a Lei sob comento, apesar de bem intencionada, eiva-se de utopia, não tendo vocação para milagreiros os juízes:

            “Não existe possibilidade de exigir-se julgamento em 15 dias na primeira instância ou que o relator libere o processo em dez dias para julgamento nos tribunais. Aconselha-se que os senhores deputados e senadores conheçam o País e verifiquem a realidade de cada região (são 24 regiões trabalhistas) e as dotem de varas, turmas, funcionários e de todas as necessidades materiais para que a lei não permaneça em berço esplêndido, como quase tudo no País.”

            Manoel Antonio Teixeira Filho,(11) é enfático:

            “O legislador, como se nota, fez ouvidos moucos à sábia ponderação de Chiovenda de que, no terreno das leis processuais, devemos sempre ‘aspirar a uma reforma profunda, ou renunciar à esperança de um certo progresso’. O que nos deu o legislador foi um texto tímido, quase inexpressivo, produto de pastiches e de amálgamas de normas legais forâneas, com os quais procurou fazer crer, visionariamente, que este seria ‘o melhor dos mundos possíveis, na expressão de Pangloss, personagem de Voltaire em ‘Cândido’.”

De se observar, por oportuno e necessário, que o texto em comento se amolda perfeitamente, comparativamente e pela via inversa, fato abordado acima, com referência à extinção da representação paritária na Justiça do Trabalho, quando o entendimento era no sentido de que impossível a cura do membro enfermo, culminando-se pela amputação.

POSSIBILIDADES DA LEI 

Tentemos buscar as vantagens da nova modalidade, com certeza bem poucas.

Daqueles que consideram o Rito Sumaríssimo como grande conquista para a modernização do processo do trabalho, ousamos discordar, data venia, à vista de razões já acima expostas, quais sejam, de que o processo do trabalho já seria, por si próprio, suficientemente célere, nos moldes do Sumaríssimo (artigo 849 da CLT). Os motivos são aqueles já supra expostos, no sentido de que, por vezes, torna-se difícil a prática prevista no indigitado artigo, por impossível a produção das provas necessárias.

Com efeito, hoje, quase quatro anos após, verifica-se que pouco ou nada mudou, no sentido de agilização do processo trabalhista.

Curial observar-se que, muitas vezes, pretender-se-á, debalde, aplicar o novo rito para solução de pendência decorrente de relação empregatícia duradoura, quer-se dizer, por vários anos, cuja relação jurídica ocorreu diariamente, oito ou mais horas por dia, cuja prestação e contraprestação foi variada nas suas peculiaridades: marcação diária de ponto; atrasos; excedimento da jornada ou carga horária contratual, mesmo que em minutos diários; repouso semanal não cumprido; turnos de revezamento; labor em condições agressivas, nem sempre reconhecido pelo empregador e de demorada comprovação; desvio de função; afastamento do empregado por motivo de enfermidade, inclusive da gestante; comportamento inadequado das partes – empregado e empregador, este, inclusive por seus prepostos – ensejando a ruptura do pacto laboral por justo motivo; etc.

Para uma melhor adequação ao novo sistema, necessário que as convenções coletivas prevejam as possibilidades aqui elencadas, no sentido de viabilizar a aplicação legal sem qualquer possibilidade de perda para os trabalhadores – parte frágil da relação trabalhista, máxime nestes tempos de desemprego, com os sindicatos enfraquecidos e nem sempre representando os legítimos interesses profissionais, preferindo seus dirigentes a cômoda situação de mando e poder perante a categoria.

Não se afigura possível, a curto prazo, esta possibilidade, dada a existência de perpetuação dos dirigentes sindicais, no “poder”, quase sempre danosa ao bom exercício de seus misteres, de vez que o continuísmo é sempre pernicioso, tal como nos mandatos legislativos, onde, no meu entender, deveriam ser limitados, a bem da renovação.

Contrariamente a este entendimento, vêm os argumentos no sentido de que o dirigente sindical teria dificuldades de retornar às suas atividade produtivas na empresa, ou noutra qualquer, ficando “marcado” pelos empregadores. Entretanto, repito que a renovação é necessária.

ENTRE PARÊNTESES:

Comissões de Conciliação Prévia  

Em auxílio à nova lei, foram instituídas as Comissões de Conciliação Prévia (Lei nº 9.958, de 12 de janeiro de 2000), dispondo ainda sobre a execução de título extrajudicial na Justiça do Trabalho.

Assim, acresceu-se à Consolidação das Leis do Trabalho o “Título VI-A – das Comissões de Conciliação Prévia”.

As Comissões de Conciliação Prévia repita-se, representam uma possibilidade alentadora de solução dos conflitos à margem do Poder Judiciário. Entretanto, sempre com a possibilidade de prejuízo para os hipossuficientes, a não ser que estes estejam convenientemente assistidos por seus lídimos representantes, principalmente sindicais.

José Eduardo Haddad(12) é de opinião que,

            “o procedimento sumaríssimo, dentro de uma máquina judicial menos acionada, em vista da triagem prévia, e, por isso, mais ágil, poderia ser imposto a todas as demandas trabalhistas, até porque adota princípios que a própria CLT já prevê para o rito ordinário trabalhista. De nada adianta a instituição de um procedimento mais célere dentro de uma estrutura que sofre com a acúmulo de processos, posto que, para o cumprimento dos exíguos prazos impostos pelo procedimento sumaríssimo, os juízes serão obrigados a privilegiar os feitos regidos por este, em detrimento das ações impulsionadas no rito ordinário.” (Grifo nosso.)

Não é demais, nem representa lucubração negativa, lembrar que a parte mais forte da relação de emprego poderá valer-se de expedientes inescrupulosos, coagindo, por assim dizer, os conciliadores a fim de que se rendam a uma solução forçada, mediante determinada vantagem. Bem melhor seria a atuação dos representantes classistas, na primeira instância, desde que devidamente preparados para tanto. É certo que, ultimamente, o que se verificou foi que os classistas quase nunca se empenharam na solução do litígio em primeira audiência, quer por despreparo, omissão, ou porque, simplesmente, não tinham a necessária representatividade. Quer-se dizer, ou pertenciam a entidades criadas com o fito único de indicar classistas, ou, o mais lamentável, eram pessoas que não diziam respeito, absolutamente, à classe que representavam, lá estando apenas atraídos pelo considerável ganho e pela possibilidade de aposentadoria com vencimentos maiores.

Abordando a matéria em ora inserta, o Doutor Jorge Pinheiro Castelo(13), ressalta a condição desfavorável do trabalhador, assim:

            “Aliás, a vulnerabilidade econômica do trabalhador após a rescisão contratual, ou seja, como desempregado, é maior do que a do empregado, acentuando-se, ainda mais, se tiver idade avançada ou for aposentado.”

O autor aborda ainda a questão da constitucionalidade da Lei nº 9.958/2000, uma vez que a “conciliação” é obrigatória, afastando a priori a faculdade, constitucionalmente assegurada, de recorrer ao Judiciário; este fato que deve merecer estudos mais aprofundados dos estudiosos. Considera ele patente inconstitucionalidade a imposição de uma etapa “administrativa” conciliatória ao trabalhador que já sofre a inadimplência do empregador, para então, num segundo momento (ou num terceiro, a se considerar o ato de homologação) ingressar em juízo.

Com efeito, seria de se perguntar: se é obrigatória, como pode ser tratada como conciliação?

Transcrevo excerto:

            “Manifestamente inconstitucional a exigência ou obrigatoriedade da conciliação prévia, visto que com o afirmado inadimplemento, no plano material, está configurado e satisfeito o interesse de agir processual próprio do direito constitucional de ação, não se podendo exigir a presença de um segundo interesse de agir administrativo, para só então se poder demandar em juízo.”

No que tange ao decantado desafogamento da Justiça do Trabalho, não creio que possa ocorrer, ainda pela possibilidade de que, apostando na brevidade da solução, muitas ações temerárias sejam intentadas, buscando-se acordos, estes muitas vezes aceitos pelos empregadores, por se tornarem menos onerosos que o arrastamento da ação por tempo maior, referência, é claro, àqueles que primam pelo cumprimento de suas obrigações perante os trabalhadores, quer por detestarem a intervenção judiciária, quer porque simplesmente preferem estar conformes à lei, e nisto estão corretos, obviamente.

Como se pode verificar, as possibilidades de sucesso são poucas, vislumbrando-se que não haverá desafogamento da Justiça do Trabalho e, tampouco, benefício às partes. 

Fosse adotado o princípio da irrecorribilidade das decisões (Lei nº 5.584/70) – regra que não fere o dispositivo constitucional (art. 5º, inciso LV), porquanto a Constituição Federal assim o prevê (art. 121, § 3º) – o resultado seria mais satisfatório, fechando as portas às irresignações de caráter meramente protelatório, que beneficiam, repita-se, apenas a parte mais forte na relação de trabalho, a empresa, conquanto interesse a alguns advogados inescrupulosos que, patrocinando ações dos trabalhadores, apostam no “desaparecimento” destes, aos quais não repassam, após longo tempo de espera, os valores auferidos na demanda.

NOS  TRIBUNAIS  

Aspecto importante é a possibilidade de lavratura dos acórdãos, nos tribunais, de forma lacônica, ou seja, por simples certidão em que restará consignado que a sentença é mantida “por seus próprios e jurídicos fundamentos”, prática omissiva, porquanto, ao revisar o julgado a quo, tem obrigação o juiz de exarar, salvo raras exceções, os motivos que o levaram a tal convencimento, tendo-se que nas razões recursais, via de regra, há questionamentos que demandam análise não apenas perfunctória do caso, mais uma completa reapreciação. Assim, não se justifica a adoção dos fundamentos objeto da irresignação da parte.

Cabe comento também no que se refere à aplicabilidade do artigo 557 do CPC (diploma processual aplicável no processo trabalhista), em que o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente etc., em especial na aplicação da multa prevista no § 2º, na interposição de agravo inadmissível ou infundado.

Na primeira hipótese, o caput, tem-se na prática que, no Processo do Trabalho, é a empresa que mais incide no recurso protelatório, beneficiada pela vantagem econômica de que é detentora frente ao empregado. Assim, no mais das vezes, teremos a penalidade aplicada à empresa, devendo o julgador atentar também para a outra parte, sem desconsiderar tratarem-se de pólos economicamente díspares na relação comum, não podendo descurar da aplicabilidade ao mais fraco. Entretanto, isto causaria, a meu ver, constrangimento por vezes prejudicial ao empregado, dada a falibilidade possível do relator e a incorreta apreciação do agravo, pelo tribunal, em razão do excesso de trabalho. São apenas possibilidades, mas que merecem reflexão.

CONCLUSÃO  

Em suma, o que se observa é que o chamado novo procedimento sumaríssimo não constitui novidade, se considerarmos que as soluções adotadas com vistas à aceleração do julgamento dos processos trabalhistas, não são novas. Ao contrário, estão há decênios na Consolidação das Leis do Trabalho – sempre atual, no nosso modesto entender, necessitando apenas de alguns reparos; jamais de ampla reforma – sendo certo que, se as novidades realmente apresentadas referem-se aos prazos, bastaria a competente adequação ao texto então vigente, o consolidado.

O que ocorre é que o Judiciário trabalhista rema contra a enxurrada de feitos, desaparelhado do ponto de vista humano – falando-se em número – com o que se vêem os magistrados e funcionários envoltos em pilhas intermináveis de processos, sem tempo para atualizar-se a pauta.

Mais grave ainda é o fato de que, dada a correria processual, surge a imperfeição dos julgados, ensejando a interposição recursal, e assim, num verdadeiro círculo vicioso, a roda d´água vai cada vez mais impregnando-se e ficando mais pesada, emperrada, o que dificulta sua normal movimentação.

A criação de novos mecanismos é medida que se impõe, na busca de soluções justas e rápidas para as demandas (e aí temos as decantadas Comissões de Conciliação Prévia, com enormes possibilidades de insucesso, já se disse), as quais, com o tempo, poderão contribuir para o desafogamento da Justiça obreira – bela na sua essência, eis que de natureza alimentar – caso, é claro, não se deixem desvirtuar, pelas possibilidades que são muitas, caso em que, mais uma vez, o grande prejudicado será o trabalhador, parte fraca na relação empregatícia, que busca, às vezes só o conseguindo post mortem, a paga dos sagrados direitos dela decorrentes.

Tivesse o legislador a sensibilidade e a sensatez necessárias para os problemas decorrentes do acúmulo de feitos, por certo o rumo tomado seria outro, que não a parição de nova lei, em respeito ao diploma trabalhista, idoso mas não envelhecido, e dotado de todos os instrumentos possíveis para a rápida solução das questões apresentadas ao Judiciário. A celeridade ritual não se resolve, no mais das vezes, com a criação de normas, mas com a correta aplicação daquelas já existentes, para tanto bastando boa vontade e método de aplicação. 

BREVE RESUMO

             Do estudo efetuado, pudemos extrair o seguinte:

·        A condição inicial para ajuizamento pelo sumaríssimo é que o valor reclamado seja até 40 salários mínimos, incluindo-se aí todas as cominações e correções;

·        Dissídios coletivos não estão abrangidos;

·        A Administração Pública direta, autárquica e fundacional está excluída do novel procedimento, em prejuízo para o trabalhador;

·        O pedido deve ser sempre certo e determinado, bem como e forma correta liquidado, o que facilita nos casos em que tal é possível;

·        Obrigatoriedade da apreciação da reclamatória em 15 dias, nem sempre possível, como se verá e que, de resto, pretere reclamantes outros, pelo procedimento ordinário;

·        Indeferimento da petição nos casos de indicação insuficiente ou incorreta de endereço, razão social e outros requisitos, situação em que haverá condenação em custas, sendo possível a isenção – ao arbítrio do juiz;

·        A citação não será feita por edital, mas via postal ou oficial de justiça, dificultando a atuação quando a empresa não mais se encontrar no endereço anteriormente conhecido – cabe às partes (diga-se, reclamante) comunicar qualquer alteração de endereço, pena de ineficácia da intimação;

·        Como no processo comum, o juiz indeferirá as provas que entender impertinentes;

·        A conciliação será proposta em todas as fases do processo, quer-se dizer, aqui, na mesma audiência, lembrando-se que será ela sempre única; à falta de acordo, o reclamado aduzirá, em 20 minutos, a sua defesa; poderá ser dispensada a leitura da peça inicial;

·        Os atos processuais são resumidos; é permitida a gravação da audiência, vislumbrando-se aqui a possibilidade de indeferimento da mesma, pois cabe ao juiz a direção do processo; de se lembrar que irrecorríveis as decisões interlocutórias e que os incidentes serão analisados na própria audiência;

·        Será necessário um maior preparo dos advogados, principalmente do reclamante, para que não sofra, este, prejuízo de difícil ou impossível reparação;

·        As testemunhas serão convidadas – não, intimadas – via carta contra recibo; se não comparecerem, poderão ser conduzidas coercitivamente, além de multadas (neste caso, a audiência não mais será uma); provas orais, técnicas e documentais sempre permitidas, mesmo que não requeridas previamente;

·        A manifestação sobre os documentos juntados será oral, pela outra parte, na própria sessão – prática por vezes difícil ou impossível, conforme a característica e/ou o teor do documento;

·        Havendo necessidade de perito, será nomeado na própria audiência, com prazo para entrega do laudo específico – novamente não será uma a audiência;

·        Quesitos sobre o objeto da perícia serão ofertados em audiência, bem assim a indicação de assistente técnico, ensejando acuidade do advogado para o preparo dos quesitos;

·        Haverá cinco dias para manifestação sobre as conclusões do laudo técnico, sendo esse prazo comum;

·        O relatório da sentença é dispensável (não dispensado, a meu ver), e resumida a sentença, que é definitiva, da qual cabe recurso ordinário em oito dias; neste caso, indispensáveis os pressupostos de admissibilidade, como no procedimento comum;

·        O recurso ordinário, tão logo recebido, será distribuído a um relator, que terá 10 dias para elaborar o voto e devolver os autos – lapso temporal de difícil cumprimento, pelo menos por ora; não existe a figura do revisor, medida que sugere preocupações, dado o acúmulo de feitos e a possibilidade de excessiva confiança no trabalho do relator – pessoa humana; portanto, falível;

·        O parecer do Ministério Público será oral, situação já verificada em algumas situações, no procedimento comum (que, por vezes, como já visto, desagrada a julgadores e advogados);

·        O acórdão será resumido, permitindo-se, em caso de manutenção da sentença, será bastante a alusão aos termos da mesma e a certidão – o que pode ensejar, pura e simplesmente, uma perfunctória apreciação dos autos, em velada e cômoda negativa de prestação jurisdicional;

·        Caberá recurso de revista de acórdão, desde que haja contrariedade a súmula do TST e (!…) violação à Constituição Federal; deveria a redação – como supra citado – dizer: “…súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho ou violação direta da Constituição da República.”; os pressupostos de admissibilidade são os mesmos do procedimento comum;

·        Sempre cabem embargos de declaração – em cinco dias – inter-rompendo-se o prazo para os demais recursos; se manifestamente protelatórios, assim declarados pelo juiz ou tribunal, haverá condenação em multa, não superior a 1% do valor da causa; em caso de reincidência, a multa será de até 10%; o depósito de tais valores é condição para a interposição do recurso seguinte;

·        Eventuais erros de ordem material são passíveis de correção, ex officio ou mediante a provocação da parte interessada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  

1.SILVA, De Plácido e – “Vocabulário Jurídico”, 13ª edição atualizada por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves, Forense, Rio de Janeiro, 1997.

2.ALMEIDA, Amador Paes de – (“Procedimento Sumaríssimo no Processo do Trabalho – Comentários à Lei nº 9.957/2000” – Boletim Informativo Saraiva, LTr, Ano 9, Número 1, Março de 2000). Magistrado aposentado do TRT da 2ª Região e professor doutor, titular de Direito Comercial e do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da qual é vice-diretor. Autor de inúmeros livros, em especial nas áreas de Trabalhista (Direito e Processo) e Comercial.

3.ALMEIDA, Amador Paes de, ob cit.

4.TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio – (“O Procedimento Sumaríssimo no Processo do Trabalho” – Comentários à Lei nº 9.957/2000, LTr, São Paulo). É Juiz do Trabalho – Professor da Faculdade de Direito de Curitiba – Membro do Instituto Latioamericano de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social – da Societé Internationale de Droit du Travail et de la Securité Sociale – do Instituto dos Advogados do Paraná – da Academia Nacional de Direito do Trabalho – da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. 

5.ALMEIDA, Amador Paes de – ob.  cit.

6.OLIVEIRA, Francisco Antonio de – (“Tribuna do Direito”, de Abril de 2000). Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, presidente do Egrégio Sodalício – gestão de Setembro/2000-Setembro/2002. Doutor em Direito do Trabalho.

7.LUNGOV, Catia – (“Rito Sumaríssimo”, Tribuna do Direito, Junho de 2000). Juíza do TRT da 2ª Região.

8.LUNGOV, Catia – ob. cit.

9.FIGUEIRÔA JÚNIOR, Narciso – (“Tribuna do Direito, Abril de 2000). Advogado, pós-graduado em direito do Trabalho pela PUC-SP. Foi juiz classista do TRT da 2ª Região.

10  OLIVEIRA, Francisco Antonio de – ob. cit.

11.TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio – ob. cit.

12.HADDAD, José Eduardo – (“Comissões de Conciliação, o Procedimento Sumaríssimo e a crise do Judiciário Trabalhista” LTr, 64-02/187, Fevereiro de 2000). Advogado, mestre em Processo Civil, Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UNIP – Campinas.

13.CASTELO, Jorge Pinheiro – (LTr, 64.04, Vol. 04, Abril de 2000). Advogado, especialista (pós-graduação lato sensu), livre docente em Direito do Trabalho pela FADUSP.           

 


Referência  Biográfica

José Mechango Antunes  –   Advogado; Professor de Direito; Especialista em Direito da Cidadania; Mestrando pela UNIMES (Universidade Metropolitana de Santos). Foi Juiz Classista da 2º Região, por três mandatos (um como suplente).  2004 

jmechango@adv.aobsp.org.br

Reconsideração versus revisão: uma distinção que se impõem

0

* Maria Berenice Dias

A lei cria um sistema de recursos e o coloca à disposição de quem se sente prejudicado por uma decisão judicial. Ainda assim, há uma acentuada tendência de pedir ao próprio juízo o reexame do decidido, na tentativa de reverter a manifestação anterior. De maneira singela, a doutrina e a jurisprudência não emprestam qualquer relevo nem concedem efeitos a pedidos de reconsideração, quer por falta de previsão legal, quer por parecer mera insistência impertinente de quem teve sua pretensão desacolhida.

Se eventualmente se pode entender como procrastinatória a reclamação da parte que se sentiu lesada pelo indeferimento de sua pretensão, o mesmo rótulo não merece quem está pela primeira vez trazendo à apreciação do juízo sua versão, para livrar-se do prejuízo que a decisão lhe causou, sem que tivesse tido anteriormente oportunidade de se manifestar.

Assim, imperioso revisitar este tema, pois essa sutil e importante diferenciação carece ser feita. Não mais cabe continuar confundindo pedido de reconsideração com pedido de revisão, distinção que se faz importante tanto para a identificação do marco de fluência do prazo recursal como para se evitarem recursos desnecessários, sem contar com a afronta a um dos princípios fundamentais em matéria de recursos: o do duplo grau de jurisdição.

Por tais motivos, há que distinguir pedido de reconsideração, que é o veiculado pela parte cuja pretensão foi desatendida pelo juiz, de pedido de revisão, formulado por quem se sujeitou à decisão que foi proferida em favor da parte ex adversa e que vem pela vez primeira a juízo trazendo suas razões.

Formulado por uma das partes determinado pedido, sendo este desacolhido pelo juízo, quem viu sua pretensão frustrada deve se insurgir contra o decidido por meio de recurso à instância superior. O prazo para manifestar a irresignação inicia no momento em que teve ciência de que sua pretensão não foi atendida. Nada impede que a parte, se pretender que o juiz reveja o que decidiu, isto é, reconsidere a decisão proferida, veicule pedido de reconsideração. Tal proceder, todavia, não possui efeito interruptivo do prazo recursal, que começou a fluir da intimação da primeira decisão proferida. O desacolhimento do pedido não dá início a novo prazo para a oposição de recurso.

A justificativa para não conferir efeito suspensivo ao pedido de reconsideração é elementar. Não pode ficar exclusivamente ao alvedrio da parte deslocar a fluência do prazo recursal. Transferir o início da fluência do prazo a partir da ciência da segunda manifestação do juízo – que sequer dispõe de conteúdo decisório – daria ensejo a que a parte recuperasse, a qualquer tempo, a possibilidade de recorrer. Imperiosa é a identificação de um marco inicial para o uso do recurso, não havendo como emprestar efeito suspensivo ao pedido de reconsideração formulado pela parte cuja pretensão já obteve uma manifestação judicial. Assim, rejeitada determinada pretensão, descabido facultar à parte que viu frustrado seu intento de, a qualquer tempo, recorrer, pela só formulação – e desacolhimento – de mero pedido de reconsideração.

Esse raciocínio, no entanto, não pode prevalecer quando a manifestação judicial traz prejuízo à outra parte, ou seja, quando o juiz, ao acolher pedido de uma das partes, causa prejuízo à outra. Nessa hipótese, o magistrado decidiu atentando exclusivamente nos argumentos e dados probatórios apresentados por uma parte, fazendo uso dos elementos de convicção que lhe foram trazidos por quem formulou o pedido. Acolhida a pretensão, a parte contrária, que resultou prejudicada ou se sentiu lesada pela decisão, não só pode, mas deve manifestar sua irresignação ao próprio juiz que lhe causou gravame. Nesse momento, o magistrado terá oportunidade de rever o que decidiu atentando nos argumentos trazidos pela parte que se sentiu atingida. Evidente que esse pedido revisional, formulado pela parte lesada, não se confunde com pedido de reconsideração, pois é trazida toda uma linha argumentativa da qual o magistrado não tinha conhecimento no julgamento anterior.

Tratando-se de pedido de revisão, a parte verte os seus fundamentos para que o juiz reaprecie o que decidiu, atentando nos fundamentos que não foram sopesados quando apreciou o requerimento da outra parte. Não se trata de um mero pedido de reconsideração. O pedido é de reavaliação, e a nova decisão será proferida levando em conta uma linha de argumentação trazida pela primeira vez à apreciação judicial. A mantença do decidido, portanto, dispõe de conteúdo decisório, pois significa rejeição à pretensão formulada pela parte sucumbente.

A diferença entre as duas figuras é clara. Basta identificar quem vem pedir ao magistrado que ele volte atrás, ou seja, reveja a manifestação exarada anteriormente. A depender de quem pede a retratação, se está frente a um pedido de reconsideração ou um pedido de revisão. Só se pode identificar como reconsideração o pedido veiculado pela própria parte que teve desatendida sua pretensão formulada ao juízo. No entanto, se o acolhimento da pretensão formulada por uma das partes gera gravame à outra parte, esta não está impedida de pedir ao juízo monocrático.a revisão do que foi decidido antes de ter tido oportunidade de se manifestar.

O pedido de revisão, como não se confunde com pedido de reconsideração, suspende o prazo para esgrimir agravo de instrumento. Só na eventualidade de o magistrado manter a decisão anterior é que se abre o prazo recursal. É imperioso emprestar efeito suspensivo à pretensão revisional, uma vez que descabe ser chamada a instância superior para rever decisão que, ao ser proferida, não levou em conta os subsídios do agravante, que só são trazidos no recurso. Aliás, o uso da via revisional deveria ser imperativa, sob pena de se estar subtraindo um grau de jurisdição e afrontando o princípio que o consagra como um dos basilares em matéria recursal. Nessa hipótese, é chamado o tribunal a se manifestar sobre algo de que o juízo de origem não tomou conhecimento, isto é, fundamentos, fatos e provas que não foram alvo da apreciação na primeira instância.

Imperioso impor ao magistrado o dever de se manifestar ante o pedido de revisão, por meio de decisão fundamentada. Assim, não se pode afirmar que o ônus – ora transformado em obrigação –, previsto no art. 526 do CPC, de dar ciência ao juízo do agravo interposto dá ensejo a que o juiz reconsidere sua decisão. Nessa hipótese, como não é obrigatória a manifestação do juízo, se está subtraindo do magistrado o dever de decidir, transformando a reavaliação em uma mera faculdade.

O trato diário com matéria de Direito de Família permite trazer exemplos que emprestam clareza à questão. Em uma ação de alimentos, pedidos alimentos provisórios em determinado valor, fixada a verba alimentar aquém do montante pretendido, insatisfeito o autor, mister que de imediato interponha agravo de instrumento junto ao órgão recursal. Se, eventualmente, pedir reconsideração ao juiz prolator da decisão, tal pedido não dispõe de efeito suspensivo e a mantença da decisão não irá reabrir o prazo recursal.

Cabe figurar a hipótese distinta. Fixados os alimentos provisórios tomando por base as informações do autor sobre os ganhos do alimentante, este, ao tomar ciência do montante estabelecido, pode pedir a revisão do quantum fixado, trazendo a prova de seus rendimentos, a evidenciar que não percebe a remuneração afirmada pelo autor, dado que serviu de base para a fixação do pensionamento. Esse pedido deve ser dirigido ao juiz de origem e dispõe de efeito suspensivo para efeitos recursais. Revela-se de todo despiciendo e oneroso impor à parte que de imediato interponha agravo de instrumento, quando muito provavelmente o juiz, ao tomar conhecimento de seus rendimentos, reequacione o valor dos alimentos provisórios. Somente ao tomar ciência do desacolhimento de seu pedido revisional é que terá início o prazo de recurso a ser manifestado perante o segundo grau de jurisdição.

O não-reconhecimento desse diferencial tem levado indistintamente à interposição  imediata de agravo de instrumento, o que vem abarrotando os tribunais de recursos muitas vezes desnecessários, pois acaba o relator se substituindo à função revisional que cabia ao juízo de origem. Outra prática corrente é a parte concomitantemente pedir revisão e agravar. Mas o uso do recurso tem inibido os magistrados de reverem sua decisão, limitando-se a aguardar o julgamento do recurso, afirmando, muitas vezes, que o decidido merece ser revisto, mas relegando tal tarefa aos tribunais. Evidente o desnecessário desgaste que dita situação sinaliza.

Por todos esses comemorativos, mister que essa distinção seja estabelecida por lei com a precisa indicação do procedimento a ser adotado em cada uma das hipóteses. Mas, enquanto não houver expressa determinação legal de que a parte prejudicada por decisão proferida a pedido da parte ex adversa deve primeiro se dirigir ao juiz prolator da decisão, imperioso que a jurisprudência vinque essa diretriz. Basta de confundir pedido de reconsideração com pedido de revisão. Necessário que se pacifique o entendimento de que o pedido feito pela própria parte não dispõe de efeito suspensivo, preservando-se claramente o posterior uso da via recursal a quem formula prévio pedido revisional.

Essa diretriz já vem sendo acolhida pela Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que tenho o privilégio de integrar (Agravo de Instrumento nº 70004072799 e Agravo de Instrumento nº 70001860956).

Urge que tal distinção seja levada a efeito, seja para não suprimir um grau de jurisdição, seja para não afogar a corte recursal com pretensões que, se manifestadas na origem, poderiam ser revistas por singela reavaliação do juiz, ao tomar conhecimento dos novos elementos que lhe foram trazidos.

 


Referência  Biográfica

Maria Berenice Dias  –  .Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Pós-Graduada e Mestre em Processo Civil pela PUC-RS ; Professora da Escolas Superiores da Magistratura e da Advocacia.

Home-page:  www.mariaberenicedias.com.br

A Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor

0

* Felícia Ayako Harada

Sumário:

 Resumo. 

1. Introdução.
    1.1. O Poder Judiciário atual. 
    1.2. A necessidade do direito alternativo.
    1.3. É possível a arbitragem nas relações de consumo? 
 
 2. Da arbitragem.
    2.1. Evolução histórica.
   2.2. A Lei 9.307/96.
   2.3. Quem pode se submeter à justiça arbitral?
   2.4. O que pode ser objeto de arbitragem?
   2.5. Do árbitro.
   2.6. Da Cláusula compromissória e o compromisso arbitral.
   2.7. Procedimento arbitral.
   2.8. Sentença arbitral. 
 
3. Do Código de Defesa do Consumidor.
      3.1. Algumas considerações.
    3.2. Do consumidor e do fornecedor.
           3.2.1. Do consumidor.
           3.2.2. Do fornecedor.
 
     3.3. Dos direitos do consumidor.
            3.3.1. Dos direitos do consumidor propriamente ditos.
            3.3.2. Das sanções administrativas.
            3.3.3. Das infrações penais.
            3.3.4. Da defesa do consumidor em juízo. 
 
  4. Conclusões.
  5. Bibliografia.

Resumo

Trata-se do tema "A arbitragem e Código de Defesa do Consumidor". A primeira instituída pela Lei 9.307/96 e o segundo pela Lei 8.078/90, assinalando-se, desde já, que a lei de arbitragem é posterior à lei de proteção ao consumo. 

Logo de início, se nos afigura a primeira questão: se os direitos patrimoniais do consumidor enquadram-se nos direitos patrimoniais disponíveis de que trata a arbitragem. Por outro lado, a segunda questão é se a lei de arbitragem revogou dispositivos do CDC no que se refere a proibição da cláusula compromissória nos contratos de adesão. E, por derradeiro, como ficaria a tutela estatal que se quer imprimir na relação de consumo.

Para tanto, abordamos, após, algumas considerações iniciais à respeito do tema, resumidamente, a lei de arbitragem, e, da mesma forma, cuidamos do Código de Defesa do Consumidor em seus dispositivos pertinentes ao tema

Assim fazendo, objetivamos, principalmente, entre os direitos arrolados do consumidor, quais seriam os disponíveis que se enquadrariam nos termos dos direitos patrimoniais disponíveis de que trata a lei de arbitragem e a validade da cláusula compromissória nos contratos de adesão. Apontamos, ainda, a preocupação do Estado em tutelar a relação do consumo. Esta tutela poderia inviabilizar a disponibilidade patrimonial necessária para submeter o litígio à arbitragem. Porém, o próprio CDC permite, e não poderia ser diferente, ao consumidor buscar em ações civis o seu direito, e, com o advento da lei de arbitragem abriu-se este leque.

A nosso ver, no que conflita e dispôs a lei de arbitragem revogou dispositivos do CDC, por ter a mesma natureza de lei ordinária e por ser posterior. Ademais, quanto à matéria processual, principalmente, no que se refere à execução de sentença, como não dispôs expressamente a lei de arbitragem, alguns dispositivos do CPC foram modificados por leis específicas.

Mas, a par dessa preocupação em harmonizar a lei de arbitragem com dispositivos legais existentes, surge um obstáculo, que é nosso problema cultural em aceitar a justiça arbitral. Só o tempo poderá saná-lo, só o tempo dirá se a justiça arbitral efetivamente veio contribuir para dar rapidamente a justiça que tanto se busca.


1. Introdução

1.1. O Poder Judiciário Atual

Em que pese o esforço de todos os envolvidos com a problemática da prestação jurisdicional, não podemos nos olvidar de que ela atualmente está toda comprometida, não se efetiva e, em não raros casos, quando se efetiva, é falha e tardia. Se formos à procura das causas as encontraremos sem muitas dificuldades. Não nos cabe, entretanto, aqui alongarmos na procura delas, mas, cumpre pela sua importância, ressaltar que uma das causas mais gritante da falta da prestação jurisdicional é a demora em obtê-la.

Embora do conhecimento de muitos, vale transcrever o que disse o sempre lembrado e festejado Rui Barbosa:

"A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça, qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade." (Elogios Acadêmicos e Oração de Paraninfo, Edição da "Revista de Língua Portuguesa". 1924, p. 381).

O Poder Judiciário, como todos os outros, passa por crises incomensuráveis e não poderia subsistir divorciado de toda a realidade que assola o país. Inúmeras tentativas foram feitas para agilizá-lo, ora com edição de leis, ora com reformulações em sua estrutura, ora com a promessa da reforma do judiciário, porém, todas vãs. O Poder Judiciário perdeu a sua credibilidade junto ao povo. A mídia certa ou erradamente, também, contribuiu para tal estado de coisas.

1.2. A necessidade do direito alternativo

A demora em obter a necessária prestação jurisdicional obriga o cidadão comum do povo a procurar outras soluções, outras alternativas, para compor seus eventuais litígios.

Primeiramente, é óbvio, que as partes envolvidas irão envidar esforços para um acordo, isto é, partirão para uma conciliação. Nada obtendo, irão procurar por um mediador, que irá mostrar-lhes as razões de cada uma e levá-las a uma composição. Aqui existe a intervenção de um terceiro para a solução de um conflito, sem qualquer poder coercitivo. E, por último, a solução alternativa, muito procurada e mais apropriada para as relações internacionais, que é a justiça arbitral.

A justiça arbitral, necessariamente, é a justiça alternativa para a solução de conflitos nos tempos atuais, onde a solução tardia não condiz com a necessidade de rapidez no mundo hoje globalizado. A atual realidade social exige reformulações rápidas nos meios judicantes, defasados e inaptos a acompanhar a velocidade das modificações de natureza econômica e social.

Por oportuno, vale mencionar aqui o que constou no artigo publicado a respeito, na RT 607, p 24, do Prof.Guilherme Gonçalves Strenger:

"A arbitragem em nossos dias assumiu importância fundamental, não só no plano doutrinário como prático, bem assim o abrangimento dessa modalidade de solução de litígios, cuja extensão compreende a área nacional e internacional, sendo matéria dispositiva em praticamente todos os sistemas jurídicos existentes."

No dizer da Dra. Ângela Bitencourt, na revista "Panorama da Justiça", pg. 28, sobre justiça arbitral, merece destaque:

"Com todos os internautas usando o termo Política Mundial de Globalização da Economia e com o ambiente informal da Internet, qualquer contrato ou compromisso estabelecido na rede acabava caindo na vala comum da morosa Justiça, com os seus incontáveis atalhos e obstáculos processuais que atrasavam, por vezes, uma contenda muito simples de ser dirimida…………

As coisas do comércio, principalmente o comércio eletrônico, devem ser tratadas sem a liturgia, paramentos ou ainda protocolos próprios nos processos do Judiciário comum, pois o que se quer é um resultado rápido."

1.3. É possível a arbitragem nas relações de consumo?

Como veremos e discorreremos adiante, a arbitragem tem por objeto a solução de litígios que envolvem direitos patrimoniais disponíveis. O Código de Defesa do Consumidor protege direitos patrimoniais disponíveis ou não na relação de consumo.

A grande indagação que surge é se os direitos patrimoniais que envolvem relações de consumo são direitos disponíveis passíveis de arbitragem ? Onde residiriam os conflitos? Como harmonizá-los?

Para tanto, faremos, inicialmente, em rápidas pinceladas, um estudo sobre arbitragem, para em seguida discorrer sobre os direitos do consumidor, e, finalmente, concluir da possibilidade de se submeter litígios que envolvem o consumo à arbitragem.

2. Da arbitragem

2.1. Evolução histórica

Sabemos que a humanidade, durante sua evolução utilizou-se de vários meios para a solução de conflitos, quer sejam, autotutela, autocomposição, a arbitragem e a decisão judicial. A arbitragem remonta às mais antigas civilizações, com peculiaridades próprias. Entretanto, o chamado direito alternativo tomou forma na Itália, nos idos de 70, tendo como inspiração, além do direito livre, o direito vivo e o jusnaturalismo.

Sem dúvida, entretanto, o que mais contribuiu para a instalação da arbitragem foi o comércio internacional. A base deste segmento, quer seja a " lex mercatoria" é a grande responsável por inúmeros procedimentos na área arbitral, sem citar que é a própria responsável pelo surgimento da justiça arbitral. E, é exatamente neste setor de comércio internacional que ela mais se faz necessária pela rapidez de sua decisão, não se discutindo qual foro judicial, qual a lei do país a ser aplicada, etc.

No Brasil, a primeira legislação sobre a arbitragem foi o regulamento de 1850, que do seu art. 411 a 475, tratou de temas que deveriam ser submetidos à arbitragem, principalmente, em relação a contratos de locação mercantil. Posteriormente, a lei nº 1350, de 1866 revogou o juízo arbitral compulsório e vários artigos do Código Comercial. Porém, dada a influência que, neste sentido, sempre exerceu o comércio marítimo, volta-se a cuidar novamente de justiça arbitral.

A arbitragem constou no antigo Código de Processo Civil e consta no atual (art. 1072 e 1102). Também, está prevista no atual Código Civil (art. 1037 à 1048).

Com o advento da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, todos os dispositivos anteriores pertinentes foram revogados, e, assim, viabilizou-se a utilização da justiça arbitral internamente, sem que antes se deparasse com inúmeras objeções, sendo a mais importante o questionamento quanto a sua constitucionalidade, já reconhecida pelo STF.

Neste passo, esclareça-se que o Brasil é signatário de inúmeros Protocolos, Convenções e Tratados que cuidam da matéria.

Apenas, a título de curiosidade, em 1990, o Jornal da Tarde traz a seguinte manchete: "Juízes Gaúchos Colocam o Direito Acima da Lei". Esta manchete visava atingir um grupo de estudos constituído por magistrados sobre direito alternativo com o objetivo de desmoralizá-lo. Entretanto, ao contrário, o movimento tornou-se mais forte e o estudo sobre direito alternativo começou a ganhar importância.

Sem dúvida, com muitas críticas favoráveis e contrárias, a Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, fortaleceu todas as tendências e estudos para a utilização do direito alternativo, qual seja a arbitragem.

2.2. A Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996

Uma das grandes virtudes da lei de arbitragem, como ficou conhecida a Lei 9307/96, foi a de conferir executividade compulsória à convenção de arbitragem, nela englobando a cláusula arbitral e o compromisso arbitral. Por outro lado, estabeleceu um desnecessário procedimento judicial complexo, obrigando as partes a recorrerem ao juízo estatal em uma séries de situações, o que muitas vezes vem enfraquecer o mais forte argumento para a existência da justiça arbitral, a celeridade das soluções. Com a sua promulgação foi aberto um caminho para a frente , abrindo as portas do país para a modernização da economia, neste mundo sem fronteiras.

Promulgada a lei de arbitragem, surgem vários estudos à seu respeito, que certamente levarão a correções e modificações que se fizerem necessárias, principalmente confrontando-se a lei em comento com ordenamentos jurídicos existentes, apontando-se suas divergências e convergências, e, neste particular, com o Código de Defesa do Consumidor, nossa proposta neste trabalho e a tentativa de enriquecer esta novel temática de direito.

2.3. Quem pode se submeter à justiça arbitral?

A própria Lei 9.307 dispõe em seu art. 1º sobre as pessoas que podem recorrer à arbitragem. Senão vejamos:

"Art. 1º – As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."

O dispositivo em comento refere-se a "pessoas capazes de contratar". De início, já somos levados a procurar dois institutos no direito privado, o relativo à capacidade das pessoas e o relativo a contrato.

Quanto à capacidade, podemos dizer que é a aptidão que a pessoa possui para o exercício do direito. São, pois, capazes as pessoas maiores de vinte e um anos que não se enquadrem nas hipóteses previstas nos arts. 5º e 6 º do Código Civil ( que tratam, respectivamente, dos incapazes e os relativamente incapazes).

Quanto ao contrato, nada poderemos adiantar sem antes defini-lo, simples e objetivamente, como " a convenção estabelecida entre duas ou mais pessoas para constituir, regular ou extinguir entre elas uma relação jurídica patrimonial", acrescentando, neste passo, que para a sua validade são necessários: manifestação de vontades, agente capaz, objeto lícito, determinado e possível. (art. 82 do Código Civil).

Infere-se daí que as pessoas capazes de contratar podem ser físicas ou jurídicas que por sua vez são públicas ou privadas, ao teor dos artigos 13 , 14 e 16 do Código Civil Brasileiro que dispõem:-

"Art.13. As pessoas jurídicas são de direito público, interno, ou externo, e de direito privado.
Art.14. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I – A União.
II – Cada um dos seus Estados e o Distrito Federal.
III – Cada um dos Municípios legalmente constituídos.
Art.16.São pessoas jurídicas de direito privado:
I – As sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações.
II – As sociedades mercantis.
III – Os partidos políticos."

Mister se faz aqui esclarecer que as autarquias também são pessoas jurídicas de direito público interno e os partidos políticos o deixaram de ser nos termos do art. 17, § 2º da Constituição Federal.

Porém, como se deduz do já referido art. 1º da Lei de Arbitragem, só podem a ela recorrer as pessoas capazes de contratar, porém, titulares de direitos patrimoniais disponíveis.

A nosso ver, as pessoas jurídicas de direito público interno não podem recorrer à arbitragem, em nenhuma hipótese, pois, não tem disponibilidade dos seus direitos patrimoniais. Isto é incontroverso.

O bem patrimonial necessariamente tem de ser transigível. E ao administrador público não cabe dispor, dos direitos patrimoniais do ente público fora dos ditames legais, sob pena de crime de improbidade administrativa. Não possui o ente público a necessária transigibilidade dos direitos patrimoniais para legitimar a alternativa de se submeter a solução do conflito à arbitragem.

2.4. O que pode ser objeto de arbitragem?

O já referido art. 1º da lei de arbitragem define o seu objeto ao dispor que "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."

De início, já estão excluídos os direitos referentes ao estado e capacidade das pessoas, pois, a referência é sobre direitos patrimoniais.

Direitos patrimoniais são aqueles que tem por objeto um determinado bem, inerente ao patrimônio de alguém, tratando-se de bem que possa ser apropriado ou alienado. Patrimônio é o complexo de bens, materiais ou não, direitos, ações, posse e tudo o mais que pertença a uma pessoa ou empresa e seja suscetível de apreciação econômica.

Porém, tais direitos patrimoniais suscetíveis à arbitragem, necessariamente, por disposição legal, só podem ser os disponíveis.

Direitos disponíveis são os de livre disposição pelas partes.

Os direitos tidos como indisponíveis, ou sejam, impossíveis de serem vendidos, doados, cedidos, negociados, quer por situação fática quer por determinação legal, serão assim insuscetíveis de arbitragem.

Portanto, a característica inerente dos direitos patrimoniais passíveis de arbitragem é a sua transigibilidade.

Entre muitos exemplos de direitos patrimoniais indisponíveis, poderemos citar os direitos sobre bens gravados com cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade; bens em nome de incapazes; bens de falido; bens objetos de constrição legal, etc.

Como corolário da definição de contrato, cumpre ressaltar que exige-se que o objeto da arbitragem seja lícito, determinado e possível.

A nosso ver, embora, haja posicionamento em contrário, os direitos patrimoniais das pessoas jurídicas de direito público interno e das a elas equiparadas não podem submeter-se à justiça arbitral. Num país, onde todos sabemos que corrupção, prevaricação, impunidade andam às soltas, é muito imprudente e leviano deixarmos tal alternativa nas mãos do administrador público. E, mais, dado o nosso problema cultural, a parte vencida, com certeza, tentará anular o julgado correndo às barras dos tribunais, com fundamento de que o ente público não pode transacionar a nível de arbitragem qualquer direito patrimonial de que é titular.

Concluindo, só pode ser objeto de arbitragem direito patrimonial disponível, lícito, possível e determinado.

2.5. Do árbitro

Quando se fala em arbitragem, após, definidas as pessoas que podem levar a solução de conflitos à arbitragem, determinado o seu objeto , surge a questão: quem é o árbitro?

Segundo a Lei 9307/96, pode ser árbitro qualquer pessoa capaz que mereça confiança das partes. Dispôs, ainda, a referida lei sobre a forma de sua nomeação, como se proceder no caso de mais de um árbitro, dos impedimentos a que estão sujeitos, e, principalmente, sobre sua responsabilidade civil e criminal. Como se vê, a lei não exige qualquer formação específica do árbitro, mas, exige que seja de confiança das partes e o responsabiliza civil e criminalmente por erro cometido no processo arbitral, principalmente, quanto à sentença.

Disso tudo se conclui, que o fator confiança das partes advém do próprio consenso entre elas na escolha do árbitro. Se a parte não concordar com a indicação do árbitro passa-se a outra indicação. Como poderá ser responsabilizado civil e criminalmente, o árbitro, é óbvio, pelo menos deve ser pessoa que assim possa ser responsabilizado.

Existe um caráter jurisdicional do árbitro. A jurisdição da qual é investido, após, atendidos todos os requisitos que a lei impôs, é a mesma de um juiz estatal. A diferença, entrementes, reside no fato de que o juiz arbitral é escolhido pelas partes, enquanto o juiz estatal decorre da comunidade como um todo, nos termos constitucionais. A comunidade delega ao Estado poderes para declarar em seu nome, o direito. A justiça arbitral seria a que reservou a si a própria comunidade, em suas prerrogativas, não transferidas ao Estado para resolver algumas controvérsias. É absolutamente necessária esta colocação para entender o papel do árbitro, cujo poder jurisdicional repousa na autoridade a ele conferida pelas partes. Portanto, a jurisdição, tanto do juiz arbitral como do estatal, em última análise, advém da comunidade, e, este último por delegação da própria comunidade ao Estado.

Os requisitos para ser árbitro variam de instituição para instituição, mas, basicamente são:- bom senso, neutralidade, imparcialidade, livre de preconceitos e com necessários conhecimentos técnicos e legais. Não nos cabe aqui alongarmos à respeito, mesmo porque o tema não é específico sobre a arbitragem, embora necessárias rápidas pinceladas para abordarmos o tema objeto deste trabalho.

2.6. Da Cláusula Compromissória e Compromisso Arbitral

Dispõe o artigo 4º da lei de arbitragem:

"Art. 4º – A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
§ 1º A cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em documento apartado que a ele se refira.
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula."

Dessa forma, "cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato."

As partes podem assumir tal compromisso arbitral em duas hipóteses:

A primeira quando da assinatura do contrato, no qual o compromisso é firmado através da cláusula compromissória. Nada mais é que uma cláusula do contrato, onde as partes já se comprometem a levar, qualquer litígio a ser dirimido, à apreciação do juízo arbitral.

A qualquer tempo pode ser firmado o compromisso arbitral, mesmo encontrando-se as partes em litígio judicial.

A cláusula arbitral não submete a questão automaticamente ao juízo arbitral, é necessário o compromisso arbitral, mas obriga as partes a levarem a questão à arbitragem. Ela não deve ser vazia, sob pena de tornar-se inócua. Deve conter todos os elementos do compromisso arbitral.
O que nos é de suma importância, pelo propósito deste trabalho, é o que dispõe o § 2º do art. 4º da lei de arbitragem cima transcrito sôbre os contratos de adesão.

Tais contratos de adesão encontram sua definição no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 54, que assim dispõe:

"Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo".

Exatamente, porque não pode discutir as cláusulas estabelecidas unilateralmente, é que a lei visando proteger o consumidor deixou claro que a cláusula compromissória só é válida se estiver em negrito com assinatura aposta, especificamente para essa finalidade ou em documento anexo. Quer nos parecer, que há perfeita harmonia entre a lei de arbitragem e CDC quanto à compulsoriedade da cláusula compromissória. O CDC proíbe a tal compulsoriedade e a lei de arbitragem é clara, no sentido, de tirar tal compulsoriedade quando dispõe dever ser ela nos contratos de adesão, em negrito, ou em documento à parte com expressa concordância apondo, ainda , a assinatura.

Mesmo sendo parte integrante de um contrato, o questionamento da validade deste, necessariamente, não leva ao questionamento da validade da cláusula compromissória.

O compromisso arbitral , nos termos do art. 9º da lei nº 9307/96, "é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial."

O compromisso arbitral deve conter:

  • caracterização das partes,
  • resumo da controvérsia,
  • que será (ão) o (s) árbitro (s),
  • prazos,
  • local onde será prolatada a sentença,
  • procedimento a ser adotado durante a arbitragem.

Concluindo, há duas formas de pacto arbitral: cláusula compromissória e compromisso arbitral. Diferem quanto aos seus efeitos, simplesmente quanto ao momento em que são efetuadas.
Quanto à natureza jurídica, a cláusula compromissória é uma obrigação de fazer e o compromisso arbitral é um contrato com fins processsuais, que, além de se incluir nas obrigações de fazer, cria efeitos que levam a criação de um novo processo.

2.7. Da sentença arbitral

A sentença arbitral, pronunciamento que põe fim ao processo, deve ser proferida no prazo estipulado pelas partes ou no prazo de seis meses se nada avençado à respeito. Ao teor do art. 24, "caput" da lei de arbitragem ela deverá ser escrita e conter os requisitos do art. 26.

A sentença arbitral tem todos os efeitos decorrentes de sua natureza jurisdicional, embora sem qualquer efetividade executória, porque o poder coercitivo para dar cumprimento a essa sentença é do Estado. Portanto, constitui título executivo judicial, submetendo-se à execução forçada, e. como tal, passível de embargos à execução. Em sede de embargos à execução pode ser levantada a hipótese de nulidade da sentença, que não deixa de ser, em última análise um recurso contra a sentença arbitral ou obtê-la através de ação própria de nulidade, nos termos do CPC.

O que é de suma importância para conferir celeridade na arbitragem é que a sentença arbitral é irrecorrível, e, faz coisa julgada entre as partes, e, em seguida, pode ser levada à execução.

Só para complementar, a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com tratados e convenções, com eficácia no ordenamento interno, estritamente dentro dos termos da lei 9307/96. Como não poderia ser diferente surtirá efeitos após homologação pelo STF, depois de atender vários requisitos previstos em lei.

Com este conhecimento genérico sobre a arbitragem nos moldes da Lei 9307/96, passaremos ao estudo, também, rápido e genérico dos direitos protegidos na relação de consumo.

3. Do Código de Defesa do Consumidor

3.1. Algumas considerações

Em primeiro lugar, urge determinarmos os direitos abrangidos pelo Código de Proteção do Consumidor (Lei 8.078/90), se são disponíveis ao teor do art. 1º. da Lei 9.307/96,se são passíveis de apreciação pela arbitragem.

A relação de consumo não envolve simplesmente a relação entre o consumidor e o fornecedor de bens e serviços. Há uma preocupação do Estado em protegê-lo contra a voracidade do comerciante e ou das empresas mercantis ou órgãos públicos na prestação de serviços ou fornecimento de bens, protegê-lo das promessas enganosas ou da má prestação em si.

Daí o status constitucional que a Constituição Federal conferiu aos direitos do consumidor.

Dispõe o art. 1º. Do Código de Proteção ao Consumidor:

"O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias."

Como se verifica, a Constituição Federal cuidou do direito do consumidor em vários de seus artigos.

Primeiramente, em seu art. 5º. Inciso XXXII, coloca-o como um dos direitos fundamentais do cidadão, conforme: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor."

Tal dispositivo já nos leva ao seu art. 24, que trata da competência concorrente, elencando entre tal competência a "responsabilidade por dano ao consumidor". O termo Estado é aplicado no sentido genérico abrangendo os Estados e Distrito Federal. O Município pode atuar e legislar sobre a matéria com base no art. 30, inciso II da CF, no que couber.

Em segundo lugar, a Constituição Federal deu à matéria o mesmo status constitucional dado ao direito de propriedade, a livre concorrência, da busca do pleno emprego, etc.

Senão vejamos:

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
……………………………
V – defesa do consumidor;
……………………………"

Ademais, conclui-se que a variedade de normas que tutelam ou deveriam tutelar o consumidor pertencem não só ao direito civil e comercial, como também ao direito penal, ao processual, ao administrativo e inclusive ao constitucional o que dificulta sobremaneira os limites desse setor de interesses.

Da leitura do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor, deduz-se tratar-se de um interesse difuso e não simplesmente coletivo. Ainda, por tratar-se a defesa do consumidor um princípio da ordem econômica e uma obrigação, um dever do Estado de promovê-la, o interesse não só é coletivo, mas difuso.

Não se trata de discussão meramente acadêmica, mas, dela resulta a possibilidade ou não de se falar em interesse difuso do consumidor, ou, ao revés, simplesmente de interesse coletivo de uma mera categoria ou parcela de consumidores. Não havendo um interesse homogêneo dos consumidores como um todo não se pode falar em interesse do consumidor em geral. Além do mais, não existe unanimidade na doutrina quanto a conceitos de interesses coletivos e difusos. Entre várias doutrinas, quer nos parecer brilhante a esposada pela Profª Ada Pellegrini Grinover, no sentido de identificá-los. Seja coletivo ou individual, o certo é que a Constituição Federal considerou-o como um direito individual e coletivo (art.5º, XXXII) e difuso pelo fato de a defesa do consumidor ser considerado um princípio de ordem econômica (art. 170, V).

3.2. Do consumidor e do fornecedor

3.2.1. Do consumidor

A própria Lei 8.078/90 conceitua em seu art. 2º, o consumidor nos termos seguintes:

"Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único – Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo."

Como muito bem observou o Prof. Antonio Herman V. Benjamin (Revista dos Tribunais 628:69-70): "… é a definição de consumidor que estabelecerá a dimensão da comunidade ou grupo a ser tutelado e, por esta via, os limites da aplicabilidade do Direito especial. Conceituar consumidor, em resumo, é analisar o sujeito da relação jurídica de consumo tutelada pelo Direito do Consumidor."    

Portanto, pela própria definição de consumidor, podemos concluir que:

o consumidor pode ser pessoa jurídica (como destinatário final) ou pessoa física;

  • quanto ao objeto, o consumidor pode ser de bens (produtos), sendo aqui o consumidor stricto sensu, ou de serviços (ou usuário);
  • ainda aqui, os bens e serviços podem ser públicos ou privados;
  • a pessoa jurídica de direito público pode ser consumidor.

3.2.2. Do fornecedor

Quando se fala em consumidor imediatamente nos vem à mente a figura do fornecedor que o art. 3º do Código de Proteção do Consumidor se encarregou de assim defini-lo:

"Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvam atividades de produção, montagem, criação, constituição, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."

Frise-se, neste passo, uma importante distinção: que o fornecedor pode ser toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, de bens e serviços.

3.3. Dos direitos do consumidor

3.3.1. Dos direitos do consumidor propriamente ditos

Assim, o consumidor tem uma série de:

  • direitos básicos (art. 6º);
  • direitos relativos à qualidade do produto, à prevenção e à reparação de danos (arts. 8º a 28);
  • às práticas comerciais (arts. 29 a 44);
  • à proteção contratual (arts. 46 a 54);
  • à proteção garantida pelas sanções administrativas (arts. 55 a 58) e criminais (arts. 61 a 80);
  • à defesa em juízo (arts. 81 a 104);
  • ao sistema nacional de defesa do consumidor (arts. 105 e 106);
  • convenção coletiva de consumo (art. 107).

Embora todos de igual importância, aqui, é interessante que se traga os direitos básicos do consumidor que o CDC cuidou em seu art. 6º nos termos:

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

  • a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos e nocivos;
  • a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
  • a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
  • a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
  • a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
  • a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos;
  • o acesso a órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
  • a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência;
  • ( vetado );
  • a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Da leitura deste dispositivo, conclui-se que alguns destes direitos arrolados podem ser submetidos à arbitragem, principalmente o direito a reparação de dano patrimonial. Se se objetiva dar proteção ao consumidor. tirar-lhe a chance de obter uma reparação de seu patrimônio rapidamente, não é protegê-lo, e, sim, puni-lo mais ainda. A justiça arbitral pode dar-lhe essa solução de litígio mais rapidamente.

Alguns autores argumentam que o CDC protege o consumidor quanto ao ônus da prova em processo civil e isto não poderia ocorrer na arbitragem. Acontece que o princípio básico da arbitragem é a concordância das partes, entre outros itens para julgamento, a prova também é determinada mediante concordância das partes, pelo que o ônus da prova estaria de antemão resolvido.

O que é importante frisar que alguns dos direitos do consumidor são patrimoniais disponíveis e podem ser objeto de arbitragem. Porém, outros como os direitos coletivos e os difusos, como os que protegem a saúde a segurança, isto é, há um interesse coletivo a ser protegido, é claro, o direito não é disponível.

Não se deve perder de vista que a arbitragem está toda assentada na concordância e confiança das partes, e, existem situações que tal não poderia se efetivar.

Como se verifica, ao lado dos direitos do consumidor existem as sanções administrativas e criminais, exatamente, para impor ao fornecedor, fabricante, importador, prestador de serviços uma sanção pelo desrespeito ao consumidor.

3.3.2. Das sanções administrativas

Pelo fato de o CDC dispor em seus arts. 55 a 60 sobre as sanções administrativas conclui-se que há preocupação constante do Estado em tutelar o consumidor. Por exemplo:

"Art. 56 – As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:

    • multa;
    • apreensão do produto;
    • inutilização do produto;
    • cassação do registro do produto ao órgão competente;
    • proibição de fabricação do produto;
    • suspensão de fornecimento de produtos ou serviço;
    • suspensão temporária de atividade;
    • revogação de concessão ou permissão de uso;
    • cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;
    • interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade;
    • intervenção administrativa;
    • imposição de contrapropaganda.

Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicada cumulativamente, inclusive por medida cautelar antecedente ou incidente de procedimento administrativo."

A simples leitura deste dispositivo, entre outros, revela a intervenção do poder público para tutelar o consumidor, e, desta forma, o direito do consumidor, embora possa ser patrimonial não é disponível, ou melhor, nem sempre disponível, pois, o interesse do Estado, é punir aqueles que se aproveitam dos mais vulneráveis, no caso, o consumidor. É a intervenção do Estado na ordem econômica.

3.3.3. Das Infrações Penais

Da mesma forma, como tratou o CDC das sanções administrativas, arrola as infrações penais em seus artigos 61 a 80. Estes dispositivos trazem a tipicidade do crime, a objetividade jurídica (patrimônio do consumidor que se visa proteger), os sujeitos ativo (fornecedor) e o passivo (o consumidor), a conduta criminosa e a respectiva pena.

A notícia de qualquer conduta criminosa tipificada nestes dispositivos leva o Ministério Público a instaurar a devida ação penal. Independentemente da vontade do consumidor.

Entretanto, se o Ministério Público não promover a ação penal no prazo estabelecido em lei, de quinze dias para réu solto e de cinco para réu preso (Código de Processo Penal, art. 46 e § 3º), o ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo poderá apresentar a queixa, que substitui nesse caso a denúncia. Tem início, então a ação privada subsidiária ou supletiva.

O que é importante frisar é que tais dispositivos nos levam a concluir que o consumidor per si não pode ser o único interessado em ver solucionado um litígio que envolva direitos arrolados no Código de Defesa do Consumidor. A relação de consumo, como anteriormente dissemos, não é uma relação só individual, mas, há um interesse coletivo ou difuso a ser protegido pelo Estado.

Apenas para complementar, é necessário lembrar que a Lei 8.137, de 27/12/90, trata, também, de algumas infrações penais referentes à relação de consumo. Também crimes de ação pública.

3.3.4. Da Defesa do Consumidor em Juízo

Dispõe o art. 81 do Código de Defesa do Consumidor:

"Art. 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

    • interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
    • interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por um relação jurídica base;
    • interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."

Além da tutela administrativa em vários de seus dispositivos, o CDC, cuida neste título da tutela jurisdicional, especialmente a coletiva.

Como dispõe a própria lei, no dispositivo acima, a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e da vítima poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

O CDC dá ênfase à defesa coletiva. Possibilita o ressarcimento dos cidadãos individualmente lesados, especialmente através de disciplina dos interesses individuais homogêneos e da ação coletiva criada para obter reparação nos casos em que aqueles sejam lesados (arts. 91 e §s).

A própria lei se encarrega de classificar os interesses do consumidor a serem abrangidos pela defesa coletiva em:

  • interesses ou direitos difusos,
  • interesses ou direitos coletivos,
  • interesses ou direitos individuais homogêneos.

Os interesses difusos seriam, conforme o CDC, os transindividuais, de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Exemplificando, o interesse difuso seria aquele violado em decorrência de publicidade enganosa sobre certo produto básico de alimentação: a lesão se estende, instantânea e indeterminadamente, por toda a coletividade.

Enquadra o CDC interesses ou direitos difusos como espécie do gênero transindividuais de natureza indivisível.

Isto quer dizer, que realçam a circunstância de que aqueles interesses depassam a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente considerados, para surpreendê-los em sua dimensão coletiva.

Os interesse difusos caracterizam-se pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço."

No caso dos direitos ou interesses difusos a indivisibilidade se resume na titularidade indefinida: pessoas indeterminadas e ligadas a circunstâncias de fato. Ela abrange toda um categoria de indivíduos unificados, pode ser por um número indefinido de pessoas, uma comunidade, uma etnia ou mesmo a toda a humanidade.

Como os interesse ou direitos difusos, os coletivos também são espécie do gênero transindividuais de natureza indivisível. Porém, com característica própria: os interesses coletivos diferem dos difusos quanto à titularidade, que como consta na lei pertinente seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

No dizer de Celso Bastos os interesses coletivos são os "afetos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membro de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre o indivíduo e o Estado."

Como conceitua a própria lei, os interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Para melhor entendimento necessário trazer aqui o art. 94 do CDC, que dispõe:

"Art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor."

Frise-se, neste passo, que o citado artigo encontra-se inserido no Capítulo II do Título III, ou seja na parte que trata especificamente das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos.

Exemplificando, poderíamos citar a cobrança abusiva de mensalidades escolares, as frustrações e prejuízos causados a integrantes de planos para aquisição de telefones, casa própria, ou ainda os que confiaram na "segurança" das cadernetas de poupança e as tiveram bloqueadas.

Os interesses ou direitos individuais homogêneos não são coletivos em sua essência, nem no modo como são exercidos, mas denotam certa uniformidade, pelo fato de seus titulares enquadrarem-se em certas circunstâncias ou segmentos sociais que lhes confere coesão ou aglutinação suficiente para destacá-los da massa de indivíduos isoladamente considerados. E, aqui , ressalte-se, que sobre direitos individuais, ainda que homogêneos admite-se a jurisdição arbitral, cuja decisão fará coisa julgada entre as partes.

Importante aqui frisar que, ainda, o Estado visando dar maior proteção ao consumidor possibilita a "Legitimatio ad causam" concorrente.

No dizer do Prof. Alfredo Bugaid é a "pertinência subjetiva da ação". Entre a condição da ação destaca-se a legitimação ativa e passiva para postular ou defender em juízo.

Ensina o Prof. Donaldo Armelin que a legitimação é "uma qualidade jurídica que se agrega à parte no processo, emergente de uma situação processual legitimante e ensejadora do exercício regular do direito de ação, se presentes as demais condições da ação e pressupostos processuais, com o pronunciamento judicial sobre o mérito do processo".

Dispõe o art. 82 do CDC sobre a legitimação ativa concorrente:

"Art. 82. Para os fins do art. 100, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

    • o Ministério Público;
    • a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
    • as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que se personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direito protegidos por este Código;
    • as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear.

§ 1º. O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas no art. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido."

Como já afirmamos, os litígios que envolvem interesses coletivos, difusos não podem ser objeto de arbitragem, e, como, vimos, entre outros, o artigo acima transcrito demonstra toda a preocupação estatal à respeito.    

Ainda, o CDC dispõe em seu art. 83:

"Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela."

Muitos estudiosos criticam o excesso de cautela deste artigo, mas, ele tem uma razão de ser. A idéia do legislador foi a de afastar qualquer dúvida que poderia surgir em confronto com outros ordenamentos como a da Lei 7.347/85, que cuidou da tutela dos consumidores, através de ação civil pública, Assim, objetiva também afastar dúvidas sobre os remédios processuais utilizáveis, e, com o advento da Lei 9.2307/96 o consumidor, guardadas as limitações previstas, podem buscar a arbitragem para solução de seus conflitos individuais.

É compreensível a preocupação estatal em proteger o consumidor, entretanto, não pode tirar-lhe o remédio jurídico colocado a sua disposição.

Se o próprio CDC coloca alternativas para o consumidor lesado utilizar para obtenção de conserto de produto ou troca de produtos deve, também permitir que vá buscá-lo, como indivíduo lesado, o mais rápido possível.

Não se pode deixar de citar que, ainda, cabe contra o causador de danos ao consumidor a responsabilidade civil por sua ação ou omissão.

De tudo o mais, o que se conclui é que a relação de consumo não nos parece uma simples relação entre o consumidor e o fornecedor, mas, uma relação subordinada a intervenção econômica social do Estado.

4. Conclusões

A própria lei de arbitragem determina que somente os direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de arbitragem. Indaga-se: os direitos decorrentes da relação de consumo podem ser considerados patrimoniais disponíveis? Num primeiro momento, poderíamos dizer que não, pois, há um interesse do Estado em tutelá-los, e, logo não poderiam em eventual litígio serem submetidos à arbitragem. Entrementes, numa relação de consumo, onde o próprio CDC dá ao consumidor alternativa para buscar um conserto ou troca de produto, há um interesse do consumidor em obter, rapidamente, a solução do litígio. Neste caso, quer nos parecer, que não há qualquer obstáculo para que o consumidor seja satisfeito em sua pretensão. Aqui, há um interesse individual do consumidor. A grande verdade é que há casos evidentes de exploração do consumidor, quer por veiculação indevida de propaganda, quer em relação a perigos de determinados produtos, por deterioração ou mal embalados, quer por falta da quantidade de produtos,em que além do interesse individual do consumidor, que o Estado deve tutelar e proteger a relação de consumo, inclusive com punições administrativas e penais. Por isso, muitos autores são categóricos em afirmar que a lei de arbitragem não se aplica na relação de consumo.

Cumpre ressaltar que sempre será admitida a arbitragem quando se tratar de direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, e a decisão arbitral fará coisa julgada entre as partes envolvidas.

Podemos afirmar que alguns dispositivos foram revogados, mormente, o relativo a anulação de contratos que determinem a utilização compulsória da arbitragem ( art. 51,VII, do CDC). Aliás, alguns autores concluem que não se pode invalidar o contrato de adesão com cláusula compromissória, pois, o dispositivo proibitivo do CDC estaria revogado. Entendemos porém, que o art. 51,VII do CDC não foi revogado e harmoniza-se perfeitamente com o disposto no art. 3º, § 2º da lei de arbitragem. O que o CDC proíbe é a utilização compulsória da arbitragem e a cláusula compromissória, da forma como foi prevista na lei de arbitragem, vem exatamente possibilitar a eliminação da compulsoriedade para trazê-la com expresso consentimento e vontade do consumidor. Portanto, resta claríssimo, que a opção pela arbitragem não foi compulsória, e, sim, de livre opção do consumidor. A compulsoriedade deve ser entendida para o fornecedor de serviços e bens e não para o consumidor.

Finalmente, o que se poderia questionar é que escaparia da tutela estatal determinadas relações em que ao Estado interessa a punição, administrativa ou penal dos maus comerciantes, porém, em fase executória, o magistrado se perceber que há necessidade de efetiva tutela estatal, neste particular, tem meios para possibilitá-la.

O que não podemos nos olvidar é que a justiça arbitral é uma realidade, é um instrumento importante e imprescindível neste mundo moderno e globalizado que não pode esperar inerte a tutela jurisdicional estatal que nunca chega ou chega falha e tardiamente.

5. Bilbiografia

STRENGER, Irineu. Comentários à Lei Brasileira de Arbitragem. São Paulo: LTr, 1998.

PARIZATTO, João Roberto. Arbitragem. São Paulo: Editora de Direito, 1997.

RODRIGUES, Sílvio. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999.

NEGRÃO, Theotônio. Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.

NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1999.

MUKAI, Toshio . (et al). Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991.

FILOMENO, José Geraldo de Brito. Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 1998.

Revista JUSTILEX, Ano I, nº 1-Janeiro de 2002.

Revista PANORAMA DA JUSTIÇA, Ano VI, nº 34.

FÉRES, Marcelo Andrade. Repensando as condições de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil. II Congresso Brasileiro de Direito do Estado. Jus Navigandi.

VITAGLIANO, José Arnaldo. Limites da coisa julgada e recursos na arbitragem. Jus Navigandi.

PASSOS,Anderson. Direito Alternativo, Realidade ou Ficção. Jus Navigandi.

     


Referência  Biográfica

Felícia Ayako Harada –  advogada sócia do escritório Harada Advogados Associados.

felicia@haradaadvogados.com.br

FRAUDE À EXECUÇÃO

0

* Ederaldo Paula da Silva

INTRODUÇÃO
 
O instituto da fraude à execução tem atormentado não somente o mundo jurídico, mas também as relações negociais, porque essas têm sido atingidas em sua essência.

Os contratos mais abrangidos pela fraude proclamada têm sido as compras e vendas, bem assim as hipotecas dadas em garantia a contratos de mútuo, oportunidade em que o imóvel objeto da alienação ou da garantia é subtraído do patrimônio do novo adquirente para ser alienado judicialmente em execução judicial movida contra o alienante. Daí o enorme interesse do tema, tanto para o autor que demanda seu crédito, como para terceiros, representados nas categorias dos adquirentes ou credores por direito real.  

Pode-se incluir no mesmo rol de interessados outros exeqüentes na disputa, segundo prelação.

Tem sido praxe que os magistrados, motivados por justa reclamação do litigante preterido, proclamem pura e simplesmente a ocorrência da fraude, determinando o prosseguimento da ação contra o alienante, ficando indiferente ao que está a ocorrer no mundo das transações imobiliárias ou do que se lançou no Ofício Registral. O alheamento seria total, e a execução prosseguiria irremediavelmente para o fim colimado, qual seja, a venda judicial com a entrega do produto ao credor.

A Fraude é instituto de variadas manifestações e desdobramentos, daí decorrendo múltiplos e inconfundíveis efeitos: no direito civil, há a fraude contra credor, que possibilita a anulação do ato; no comercial, a fraude possibilita a desconsideração da pessoa jurídica, fazendo incidir a responsabilidade diretamente  sobre o sócio; no penal, o estelionato e outras fraudes conduzem à aplicação de sanções; no processo, a caracterização da fraude à execução torna ineficaz perante o exequente, o ato fraudulento.

A pesquisa teve início na vigência do Código Civil, instituído pela Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, porém, sua conclusão foi realizada já na vigência do NOVO CÓDIGO CIVIL, Lei 10.406/2002, motivo pelo qual serão citados os artigos da nova Lei. 

A freqüência com que a matéria aflora nos Tribunais, recebendo tratamento diferenciado, em inúmeros julgados, é que ensejou uma reflexão sobre o tema.

Busca-se detectar o momento em que se verifica o ato dispositivo, em relação ao instante da fase procedimental da demanda, para a exata distinção do instituto com o da fraude contra credores. Desta forma, o objetivo principal é a elaboração de uma exposição monográfica que indique a evolução histórica do princípio, as problemáticas por ele suscitadas e o tratamento legal, doutrinário e jurisprudencial que o referido assunto recebe. Buscando tornar efetivo o princípio de que o processo deve constituir-se em eficaz instrumento da jurisdição, o legislador de 1973, além de coibir a litigância de má-fé, classificou determinadas situações como atentatórias à dignidade da Justiça, dentre as quais incluiu a fraude à execução.

 
DO PROCESSO DE EXECUÇÃO
 
Toda execução tem por base um título executivo judicial ou extrajudicial.  São títulos executivos judiciais a sentença condenatória civil, a sentença penal condenatória transitada em julgado, a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que verse matéria não posta em juízo, a sentença estrangeira, homologada pelo STF, o formal e  certidão de partilha e a sentença arbitral. (art. 584 do CPC).

São títulos executivos extrajudiciais: a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture, o cheque, a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores; os contratos de hipoteca, de penhor de anticrese e de caução, bem como de seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade; o crédito decorrente de foro, laudêmio, aluguel ou renda de imóvel, bem como encargo de condomínio desde que comprovado por contrato escrito; o crédito de serventuário de justiça, de perito, de intérprete, ou de tradutor, quando as custas, emolumentos ou honorários forem aprovados por decisão judicial; a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, Estado, Distrito Federal, Território e Município, correspondente aos créditos inscritos na forma de lei e demais títulos, a que por disposição expressa, a lei atribuir força executiva.

O processo de execução inicia-se pela petição inicial acompanhada do título executivo.  No caso de execução por título judicial, a execução correrá nos mesmos autos em que correu o processo de conhecimento (art. 589 do CPC).

O juiz poderá indeferir a petição inicial, se entender que não está formulada de modo adequado.  Poderá ordenar também que o exequente a corrija ou emende.  Se a petição e os documentos estiverem formalmente em ordem, o juiz ordenará então que se proceda à citação do executado.

Mas no processo de execução para dar quantia certa, ao contrário do que ocorre no processo de conhecimento, o devedor não é citado para apresentar defesa.  A citação agora é para que ele pague em 24 horas ou ofereça bens para serem penhorados.  Se o devedor não pagar nem oferecer bens à penhora, o oficial de justiça penhorar-lhe-á tantos bens quantos forem necessários para o pagamento da dívida.

O art. 659, § 4º, do Código de Processo Civil estabelece que a penhora de imóveis faz-se mediante auto ou termo de penhora e registro no Cartório de Registro de Imóveis, sendo que a Lei Federal nº 10.444, de 7 de maio de 2002, acrescentou ainda que o registro junto ao ofício imobiliário será realizado mediante a apresentação de certidão de inteiro teor do ato e independentemente de mandado judicial.

Da mesma forma, o § 5º que foi acrescentado ao artigo 659 do Código de Processo menciona que, quando da apresentação da respectiva matrícula, a penhora de imóveis, independentemente de onde se localizem, será realizada por termo nos autos, do qual será intimado o executado, pessoalmente ou na pessoa de seu advogado, e por este ato constituído depositário.

Com a nova redação, não será necessário o exequente requerer a expedição de Carta Precatória para penhora de bens do executado localizados em outra comarca, bastando cumprir integralmente o que dispõe o  § 5º do artigo 659, do Código de Processo Civil.

Em caso de resistência à penhora, o juiz poderá ordenar o arrombamento de portas, móveis e gavetas, requisitando, se necessário, força policial a fim de auxiliar os Oficiais de Justiça na penhora dos bens e na prisão de quem resistir à ordem.

Certos bens, porém, não podem ser penhorados, por serem considerados absolutamente impenhoráveis, como por exemplo, o anel de casamento e os retratos de família, os salários em geral e os instrumentos necessários para o exercício de qualquer profissão.  A Constituição de 1988 tornou também impenhorável a pequena propriedade rural por débitos decorrentes de sua atividade produtiva (art. 5º, XXVI).  São também impenhoráveis as moradias familiares próprias e os móveis que as guarnecem, e outros bens arrolados na Lei 8.009/90 (bem de família).

Com a penhora os bens ficam gravados e vinculados à execução.  O oficial de justiça os arrecada e os entrega à guarda de um depositário, que pode ser o próprio devedor.  Os bens são avaliados e vendidos em leilão ou praça, conforme se trate de móveis ou imóveis, e com o produto da venda se fará o pagamento ao credor.

Se o devedor achar que tem elementos para impedir o seguimento da execução, poderá propor ação paralela contra o credor, dentro de 10 dias da juntada aos autos da intimação da penhora, ação essa, que tem o nome de embargos do devedor.  Servem de fundamento para os embargos, a invalidade do título, a ilegitimidade de parte, a prova de pagamento anterior, a prescrição, a compensação, etc…

Embora considerados ação em separado, os embargos do devedor correm em apenso aos autos da execução.

Chama-se arrematação o ato de transformar-se o bem em pecúnia, em que o Oficial de Justiça apregoa e um licitante os adquire, pelo maior lance.  O juiz não é obrigado a aceitar o lance de preço vil, ou seja, por preço tão baixo que prejudique grandemente o devedor, sem vantagem para o credor (art. 692 do CPC).

No caso de bens móveis, basta o auto de arrematação e a entrega da coisa ao arrematante.  No caso de imóveis, porém, além do auto de arrematação, lavra-se também carta de arrematação, que é depois registrada no Registro de Imóveis.

Se os bens não forem arrematados, poderá o credor requerer que os mesmos lhe sejam adjudicados, por preço não inferior ao que consta do edital de leilão ou de praça.  A adjudicação portanto, é o ato em que o credor recebe a coisa penhorada, em pagamento total ou parcial de seu crédito.

Outro ponto interessante no processo de execução é a chamada remição.  Remir, vem do latim “re-emere”, adquirir de novo, resgatar, tirar  do cativeiro ou do poder alheio, alforiar.

Há duas espécies de remição. A primeira chama-se remição da execução e se refere ao devedor ou a qualquer interessado. O bem pode ser liberado antes da assinatura do auto de arrematação ou da sentença de adjudicação, pagando-se ou consignando-se o valor da dívida, mais juros, custas e honorários advocatícios (art. 651 do CPC).

A segunda espécie de remição chama-se remição de bens e se refere ao cônjuge, ao descendente ou ao ascendente do devedor.  Essas pessoas podem liberar os bens penhorados dentro de certo prazo, depositando apenas o preço por que foram arrematados ou adjudicados (art. 787 do CPC).

Além da execução comum, que o Código de Processo Civil chama de execução por quantia certa contra devedor solvente, existem outras espécies de execução, como a execução para a entrega de coisa, a execução das obrigações de fazer e de não fazer, a execução de prestação alimentícia e a execução por quantia certa contra devedor insolvente, cada uma com detalhes próprios.  A execução por dívidas fiscais regula-se por lei especial própria (L 6.830, de 22.9.80).

DA FRAUDE À EXECUÇÃO
 
Consoante o art. 593 do Código de Processo Civil, considera em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:

I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real;

II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;

III – nos demais casos expressos em lei.

Fraude de execução é o ato voluntário do devedor que, para descumprimento de uma obrigação, desvia bens suscetíveis de garantir suas dívidas, procurando com isso lesar os direitos dos credores.  

A fraude de execução é considerada como ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 600,I),  eis que implícita a intenção do devedor de lesionar os direitos do credor, em prejuízo da seriedade do judiciário e sua autoridade na constrição de bens do devedor, sujeitando-se o devedor ao pagamento de uma multa a ser fixada pelo juiz, em montante não superior a 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material. Tal multa será revertida em proveito do credor, e será exigível na própria execução (CPC, art. 601, com a redação dada pela Lei nº 8.953, de 13-12-94).

Lembra JOSÉ FREDERICO MARQUES, Manual de Direito Processual Civil, v. IV, Ed.  Saraiva, 1979, p. 47 que:

"A fraude de execução constitui verdadeiro atentado contra o eficaz desenvolvimento da função jurisdicional já em curso, porque lhe subtrai o objeto sobre o qual a execução deverá recair. Daí a ineficácia da alienação de bens feita em fraude de execução: é que a ordem jurídica não pode permitir que enquanto pende o processo, o réu altere a sua posição patrimonial”.

Os bens de propriedade do devedor estão sujeitos à expropriação (CPC, art. 591 e 592), para garantir suas dívidas, constituindo, pois, a garantia do credor com referência ao recebimento de seu crédito.  Se o devedor desvia seus bens, ficando o credor sem garantias, há o amparo legal que considera as hipóteses de fraude.

O devedor alienando ou onerando seus bens, quando sobre eles pender ação fundada em direito real, ou havendo demanda capaz de reduzi-lo à insolvência e nos demais casos expressos em lei (CPC, art. 593, incisos I a III), estará fraudando a execução e consequentemente os direitos assegurados pela lei aos credores.

A fraude de execução não se confunde com a fraude contra credores (CC, art. 158, parágrafos 1º e 2º e art. 159).  A primeira é totalmente ineficaz  em relação à execução e ao credor, ao passo que a segunda é anulável pelos credores, quando ocorra transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, feitos pelo devedor já insolvente ou por tais atos a tanto reduzido, bem como nos casos em que o devedor venha onerar seus  bens quando sua insolvência for notória ou ocorram motivos para ser conhecida pelo outro contratante.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR, in "Processo de Execução", Ed.  LEUD, 1984, p. 154, lembra que:

"De inicio, cumpre não confundir a fraude contra credores com a fraude de execução.  Na primeira são atingidos apenas interesses privados dos credores (arts. 106 e 107 do Cód.  Civil). Na última  o ato do devedor executado viola a própria atividade jurisdicional do Estado (art. 593 do Cód.  Proc. Civil)”.

A 1ª Câm.  Cív. do TAMG, aos 29-3-85, no AI 4.062, entendeu que:

"A fraude contra credores atinge apenas interesses privados dos credores, podendo ser desfeita mediante ação pauliana, enquanto a fraude de execução viola a própria atividade jurisdicional do Estado, sendo ineficazes os atos que a constituem ". (RJTAMG 23/283).

Na fraude de execução, sendo esta reconhecida, o próprio juízo da execução poderá determinar o cancelamento do registro da alienação fraudulenta (RT 689/167), sendo que nos termos do art. 216 da Lei nº  6.015, de 31-12-73, o julgado sobre fraude de execução anula o registro efetuado da venda do bem pelo devedor.

Considera-se em fraude de execução, quando ocorre alienação ou oneração de bens, pendendo sobre eles ação fundada em direito real.  Direito real se diz da relação jurídica que atribui ou investe a pessoa física ou jurídica na posse, uso e gozo de uma coisa, corpórea ou incorpórea, que é de sua propriedade. 

Trata-se do direito da pessoa sobre as coisas móveis ou imóveis, sendo oponível contra todos, valendo “erga omnes”.  O art. 1.225 do Código Civil estabelece os casos de direitos reais, sendo eles; a propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a hipoteca e a anticrese.

Nota-se que foi excluída a enfiteuse dentre os direitos reais, bem como as rendas expressamente constituídas sobre imóveis; na nova redação consta como direito real no inciso VII, o direito do promitente comprador do imóvel.

Ocorrendo oneração ou alienação de bens, quando sobre eles havia uma pendência fundada em direito real, ou seja,  sobre a coisa onerada ou alienada pelo devedor, estaremos diante de uma fraude de execução, valendo a pena lembrar que o dispositivo em apreço protege as alienações eventualmente feitas pelo devedor antes mesmo de ser decidida a ação que tenha por objeto um direito real, não se exigindo, pois, tenha havido sentença sobre a questão posta em demanda.

O que caracteriza a fraude de execução em tal caso, é a alienação ou a oneração de bens feita pelo devedor quando, à época da alienação ou oneração, corria contra si, demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. 

Para configuração de tal fraude, torna-se necessária a existência de demanda contra o devedor que com a alienação ou oneração de bens, ficou em estado de insolvência, não possuindo mais bens capazes de acudir eficazmente o pagamento da condenação.

A insolvência se dá quando as dívidas excedem a importância dos bens do devedor (CPC, art. 748), ou seja, quando seus bens são insuficientes para o pagamento de suas dívidas.

Sempre houve imensa controvérsia quanto ao momento inicial a partir do qual a alienação de bens seria considerada em fraude de execução. Para uns, bastaria o ajuizamento da ação(CPC, art. 263); para outros, seria necessária a citação.

Cabe ao credor, no seu interesse, proceder ao registro da penhora no Cartório de Registro de Imóveis, tal como prevê a Lei dos Registros Públicos, acautelando-se de forma segura contra uma eventual alienação do bem por parte do devedor.

Trata-se de providência sempre recomendável, evitando-se com isso situações de eventual fraude de execução, porquanto, existente o registro, o adquirente não logrará registrar o título aquisitivo. O registro é providência obrigatória (Lei nº 6.015/73, art. 169).

Evitando-se fraudes de execução, o art. 659, parágrafos 4º e 5º, do Código de Processo Civil, com a nova redação dada pela Lei nº 10.444, de 07 de maio de 2002, estabeleceram  que a penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora e inscrição no respectivo registro, protegendo-se assim os direitos do credor.  Aliás, a nova redação tornou dispensável a expedição de mandado de registro de penhora, devendo o registro junto ao ofício imobiliário ser feito com a apresentação de certidão de inteiro teor do ato.

Na verdade, a falta de inscrição não impede a alegação de fraude contra a execução e sim,  somente, tem a significação de ficar o exeqüente com o ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento, ou de que sobre os bens estava sendo movido litígio fundado em direito real, ou de que pendia contra o alienante capaz de lhe alterar o patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido à  insolvência.

Duas são, portanto, as situações a considerar:

a) se a citação estiver inscrita no Registro lmobiliário, "a fraude independe de prova, porque se presume do fato do registro, pelo qual se tem registrado como do conhecimento de todos e, portanto, do adquirente";  

b) não havendo inscrição, incumbirá ao credor o ônus de provar "as condições legais da fraude à execução", isto é, deverá demonstrar que o adquirente conhecia a existência da ação pendente contra o alienante.

O adquirente, em qualquer caso, para defender seus direitos terá de ingressar com embargos de terceiro, nos termos do art. 1.046 do Código de Processo Civil, considerando-se parte estranha ao processo de execução onde tenha sido efetuada a constrição sobre o bem, quando terá que demonstrar a inexistência da fraude de execução para livrar o bem da constrição, sendo cabível tal discussão no âmbito dos embargos de terceiro.

O art. 593, III, do Código de Processo Civil, entende ser caso de fraude de execução, a alienação ou oneração nos demais casos expressos em lei.  Tais casos  encontram-se previstos no Código de Processo Civil, no Código Tributário Nacional e no Código Penal.

Segundo o art. 672 do Código de Processo Civil: “A  penhora de crédito, representado por letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque ou outros títulos, far-se-á pela apreensão do documento, esteja ou não em poder do devedor.  Parágrafo 3º  Se o terceiro negar o débito em conluio com o devedor, a quitação, que este lhe der, considerar-se-á em fraude de execução”.

O Código Tributário Nacional em seu art. 185 estabelece que:

"Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução ". Consoante o parágrafo único do artigo citado: "O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados pelo devedor bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida em fase de execução ".

No Código Penal, o art. 179  trata do crime de fraude à execução.  Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas,

Pena – detenção, de 6(seis) meses a 2(dois) anos, ou multa.  

Parágrafo único. Somente se procede mediante queixa.

Vale ainda acrescentar que na modalidade acima, o objeto jurídico é o patrimônio e o sujeito ativo é o devedor acionado para pagamento de dívida.

É necessário que não seja comerciante. Se o for, o crime será falimentar. Não é necessário que seja o depositário do bem.

O sujeito passivo é credor que promove o procedimento judicial para recebimento de seu crédito, sendo que a conduta típica consiste em fraudar execução de sentença condenatória, evitando a penhora por intermédio de alienação de bens, desvio, destruição ou sua danificação, ou por simulação de dívidas.

A tentativa nesse tipo de crime é admissível, sendo a ação penal privada, procedendo-se mediante queixa. Quando o crime é cometido em detrimento da União,  Estado e Município a ação penal é pública incondicionada, nos termos do artigo 24, parágrafo 2º, do  CPP.

A objetividade jurídica do crime de fraude à execução reside na proteção dada pelo Estado, ao patrimônio do devedor em face do seu credor. 

Secundariamente, vez que a fraude de execução é considerada como um ato atentatório à dignidade da justiça, tutela-se a administração da Justiça.

Tudo o que se disse sobre a penhora aplica-se ao arresto e ao seqüestro, medidas cautelares de efeito similar à penhora.  Se o devedor era de início solvente e efetuou várias vendas de bens livres, para só a final tomar-se insolvente, a fraude de execução só terá ocorrido a partir do ato que gerou de fato insuficiência para garantir a dívida ajuizada.  A execução deverá pois atingir tão-somente os bens dispostos nas últimas alienações, em ordem regressiva "até o equivalente na dívida".

Não existe  a fraude de execução na iminência do processo.  Antes de ser instaurada a relação processual, seja condenatória ou executória, a fraude é apenas contra credores.

Não é só a venda e outros atos de disposição como a doação que ensejam a fraude de execução. Também os atos de oneração de bens como a hipoteca, o penhor, promessa irretratável de venda, alienação fiduciária etc., quando causem a insolvência do devedor ou a agravem, são considerados como fraudulentos e lesivos à execução,  apresentando-se, por isso mesmo, ineficazes perante o credor.

DA FRAUDE  CONTRA CREDORES E DAS DIFERENÇAS COM A FRAUDE À EXECUÇÃO. 

Diz-se haver fraude contra credores, quando o devedor insolvente ou na iminência de tornar-se tal, pratica atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio, reduzindo, desse modo, a garantia que este represente, para resgate de suas dívidas  

As regras contidas neste capítulo do Código Civil se inspiram  num princípio  informador de todo o Direito das Obrigações, ou seja, no princípio de que o patrimônio do devedor responde por suas  dívidas.  

De modo que, se o devedor maliciosamente e para tornar ineficaz a cobrança de seus débitos, afasta de seu patrimônio ou de qualquer modo diminui a garantia que este representa para seus credores, a lei, no intuito de proteger estes últimos e ocorrendo certos pressupostos, confere-lhes a prerrogativa de desfazer os atos praticados, restabelecendo integralmente a primitiva garantia.  

O Código Civil de 1916, em seu artigo 106, parágrafo único, mencionava que: “Só os credores que já o eram ao tempo desses atos, podem pleitear-lhes a anulação”. Já, o novo Código Civil, que disciplina a fraude contra credores a partir do artigo 158, substituiu o parágrafo único acima descrito, pelos parágrafos 1º e 2º a seguir;

Artigo 158, do NOVO CÓDIGO CIVIL – Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.;
 
Note-se, porém, que a fraude contra credores só se caracteriza quando for insolvente o devedor, ou quando se tratar de pessoa que, por atos malsinados, venha tornar-se insolvente, porque, enquanto solvente o devedor, ampla é sua liberdade de dispor de seus bens, pois a prerrogativa de aliená-los é elementar do direito de propriedade.  Entretanto, se ao transferi-los a terceiros já se encontrava insolvente o devedor, permite a lei torne-se sem efeito tal alienação, quer pela prova do “consilium fraudis”, quer pela presunção legal do intuito fraudulento.

Aqui o direito de livre disposição do devedor esbarra na barreira representada pelo interesse dos credores; aliás, pela modificação na Legislação atual, aquele que na qualidade de credor constata a insuficiência de suas garantias junto ao devedor, poderá também pleitear em juízo a anulação do ato. (parágrafo 1º, artigo 158 do C.C).

Se tivermos em conta que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, se considerarmos que o patrimônio de um indivíduo se compõe de ativo e passivo, e se imaginarmos que o devedor insolvente é aquele cujo passivo supera o ativo, podemos concluir que, ao afastar bens de seu patrimônio, o devedor insolvente, de certo modo, está dispondo de valores que não mais lhe pertencem, pois tais valores se encontram vinculados ao resgate de seus débitos.

Daí permitir o Código Civil que, ocorrendo determinados pressupostos, possam os credores desfazer os atos fraudulentos praticados pelo devedor, em detrimento de seus interesses.

Dois elementos compõem o conceito de fraude contra credores.  Um elemento objetivo, ou seja, o “eventus damni”, consistente em todo ato capaz de prejudicar o credor, quer por tornar insolvente o devedor, quer por já haver sido por ele praticado em estado de insolvência.  E um elemento subjetivo, isto é, o “consilium fraudis”, caracterizado pela má-fé, pelo intuito malicioso de ilidir os efeitos da cobrança.  

A lei aponta os atos por meio dos quais a fraude se pode apresentar e cuida dos demais requisitos, necessários para que ela se configure. Ela aparece, em regra, nos seguintes tipos de negócios jurídicos: a) atos de transmissão gratuita de bens ou de remissão de dívida; b) atos a título oneroso; c) pagamento antecipado de dívidas vincendas; d) constituição de direitos de preferência a um ou a alguns dos credores quirografários.  

Conquanto digressionem amplamente doutrina e jurisprudência a respeito das distinções entre os dois institutos, permite-se afirmar desde logo que a fraude de execução representa uma especialização da fraude contra credores.  

Aliás, mesmo em seus antecedentes históricos e no direito comparado, tem-se que tais institutos apresentam elementos promíscuos, sabido que no direito romano, a fraude contra credores representou um incidente de execução concursal, enquanto, na generalidade das legislações, a defraudação da execução é apreciada como forma agravada de fraude contra credores, no pressuposto da existência de processo em curso, afirmando-se mesmo que a disciplina processual brasileira de fraude de execução não encontra símile no direito comparado. 

Afirmar que a fraude de execução é uma especialização da fraude contra credores não quer dizer que ambos os institutos se identifiquem por inteiro, mas tão-apenas que, não obstante apresentarem caracteres específicos, preservam certa similitude originária.  

Assim, ambas em sua gênese e na evolução histórica, participam, “in genere”, das medidas conservatórias da solvabilidade do patrimônio do devedor, tendo em comum, como fundamento, a lesão cansada ao credor do alienante.  

E nelas se identificam a citada fraude na alienação de bens por parte do devedor; a eventualidade de “consilium fraudis” pela ciência da insolvabilidade por parte do adquirente, requisito que, na alienação gratuita do art. 158 e na fraude de execução, é presumido, dispensada a respectiva prova; e o prejuízo do credor “eventus damni”, por ter o devedor se reduzido à insolvência quando já existia dívida quirografária, ou por ter alienado os bens, quando pendia contra o mesmo demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.  

Mas, no consenso da doutrina e conforme aliás decorre de nosso sistema jurídico, a fraude à execução é instituto processual, enquanto a fraude contra credores integra-se no direito material; ali, ocorre a violação da função processual executiva, e portanto os interesses molestados são ditos como de ordem pública; aqui, a fraude contra credores apresenta-se como defeito dos atos jurídicos, implicando a lesão de interesses privados. 

Embora tanto na fraude contra credores como na fraude à execução ocorra o pressuposto comum da anterior existência de um débito da responsabilidade do alienante, frustrado o seu pagamento pela insolvência do obrigado é certo que, na fraude à execução, procura-se coibir com maior rigor a intenção fraudulenta pelo fato de que a ordem jurídica não pode permitir que, enquanto pende o processo, o réu altere a sua posição patrimonial, dificultando a realização da função jurisdicional; com isto, já estamos colocando como fundamental, para a distinção ora tentada, o momento em que o ato fraudatório é praticado.  

Assim, a simples insolvência não é suficiente para que se configure a fraude de execução, pois se exige a presença de outro pressuposto representado pela litispendência: inexiste fraude de execução na iminência do processo, pois antes de instaurar-se a relação processual, condenatória ou executiva, a fraude será contra credores; enquanto isso, na fraude à execução, coloca-se como pressuposto indispensável a instauração de relação processual, a existência de uma demanda em andamento, tendo o ato fraudulento sido praticado pelo devedor para frustrar-lhe a execução.  

A má-fé do alienante representa elemento subjetivo que participa da essência tanto da fraude contra credores, como da fraude à execução; mas, à diferença do que ocorre na fraude contra credores, na fraude de execução a intenção fraudulenta está “in re ipsa”, sob forma de presunção absoluta a dispensar-lhe a respectiva prova.  

Quanto à forma de impugnação do ato lesivo, impõe-se reconhecer que a orientação dominante na jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, define-se no sentido da necessidade de ação pauliana para a revocabilidade dos atos praticados em fraude contra credores, inadmitido o seu reconhecimento quando alegado como defesa em embargos de terceiro; somente a fraude de execução seria passível de ser reconhecida incidentemente no próprio processo executório ou nos embargos de terceiro.  

Muito se tem discutido a respeito do juízo que reconhece a fraude contra credores e do juízo que reconhece a fraude de execução, quanto à natureza do julgado e aos seus efeitos.  

Se é tranqüilo o entendimento de que o ato praticado em fraude de execução se reputa simplesmente ineficaz em relação ao credor exeqüente que, embora alienado o bem, poderá excuti-lo em mãos do terceiro adquirente, tem-se como certo, contudo, que a renovação dos estudos doutrinários a respeito da fraude contra credores vem demonstrando que sem embargo da literalidade do art. 171, II, do Código Civil,  a sentença pauliana também se resolve em simples juízo de ineficácia do ato alienatório, deixando subsistir os seus efeitos entre as partes como negócio jurídico válido; tanto que se o crédito vem a ser extinto por qualquer modo, o negócio remanesce válido e eficaz na sua plenitude.  

Urge salientar que pela nova redação Código Civil, no inciso II, do art. 171, exclui-se do negócio jurídico anulável a simulação e incluiu o estado de perigo, completando também o item fraude do Código em vigência por Fraude contra credores, passando a ter a seguinte redação já em vigor;  

Artigo 171, do Código Civil ;  Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico.

I  –  por incapacidade relativa do agente;

II –  por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.  

A fraude contra credores não se confunde com fraude à  execução, embora ambas visem à declaração de ineficácia da alienação fraudulenta.  Encontra-se hoje superado, o entendimento de que a fraude contra credores torna o ato anulável e a fraude à execução o torna nulo.

Na realidade, a alienação é apenas ineficaz em face dos credores.  Tanto que, se devedor-alienante, que se encontra em estado de insolvência, conseguir, em razão de algum fato eventual (loteria, por exemplo) pagar a dívida, mantém-se válida a alienação.

A fraude contra credores é defeito do negócio jurídico, regulado no Código Civil. A fraude à execução é incidente processo, disciplinado pelo direito público.  A primeira caracteriza-se quando ainda não existe nenhuma ação ou execução  em andamento contra o devedor, embora possam existir protestos cambiários. A segunda pressupõe demanda em andamento, capaz de reduzir o alienante à insolvência (CPC, art. 593, II).  A jurisprudência dominante nos Tribunais é no sentido de que esta somente se caracteriza quando o devedor já havia sido citado, à época da alienação. A doutrina, entretanto, considera fraude à execução qualquer alienação efetivada depois que a ação fora proposta (distribuída, segundo o art. 263 do CPC). 

Sem dúvida, é a corrente mais justa, por impedir que o réu se oculte, enquanto cuida de dilapidar o seu patrimônio, para só depois então aparecer para ser citado, e a que mais se ajusta às expressões do art. 593, II, do Código de Processo Civil: "quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência". 

A fraude contra credores deve ser pronunciada em ação pauliana, enquanto a fraude à execução pode ser reconhecida mediante simples petição, nos próprios autos.  A jurisprudência já admitiu a discussão da fraude contra credores em concurso de credores (CPC, art.  768) e em embargos de terceiro.  

"Fraude contra credores.  Apreciação em  embargos de terceiro.  Possibilidade.  Revestindo-se de seriedade as alegações de “consilium fraudis” e do “eventus damni” afirmadas pelo credor embargado, a questão pode ser apreciada na via dos embargos de terceiro, sem necessidade de o credor ajuizar ação pauliana" (REsp 5.307-RS, 4ª T., Rel.  Min.  Athos Carneiro, j. 16.6.1992, DJU, mar. 1993, p. 3119).  Assim também já decidiu o 1º  Tribunal de Alçada Civil do Estado (RT, 566:107).

Por outro lado, o maior empecilho à admissão de sua discussão em embargos de terceiro é o art. 161 do Código Civil, que exige a presença do alienante na ação.  E os embargos de terceiro têm por partes o terceiro adquirente como embargante, e o credor exeqüente, como embargado, que argüi a fraude na contestação, deles não participando o  devedor alienante. 

Tal questão é relevante eis que se fosse admitida a alegação, discussão e até reconhecimento da fraude contra credores em sede de embargos de terceiro, estar-se-ía decidindo sem que a relação processual estivesse completa, pois que faltaria o devedor-executado em tal processo, ficando esse sem defesa em violação flagrante à Carta Magna.

 A 3ª Câm. Cív. do TAMG, aos 17.05.83, na Ap. Civ. 21.720, decidiu que:

“ Inadimissível o exame de fraude contra credores quando não presente à relação processual o executado que teria praticado o ato que se pretende anulado”

(RJTAMG 16/176)  

 CANDIDO RANGEL DINAMARCO, in “ Fundamentos do Processo Civil Moderno”, Ed. RT, 1986, p. 441, escreveu que:

 “ A fraude a credores não é suscetível de discussão nos embargos de terceiro, porque o negócio fraudulento é originariamente eficaz e só uma sentença constitutiva negativa é capaz de lhe retirar a eficácia prejudicial ao credor. Essa sentença de desconstituição é a que acolhe a chamada ação pauliana e, sem ou antes que ela seja dada, o bem não responde pela obrigação do vendedor e a penhora é indevida e ilegal. “

O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, assim editou a Súmula 195; “Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”.

Pode ser lembrado, por último, que a caracterização da fraude contra credores nas alienações onerosas, depende de prova do “consilium fraudis”, isto é, da má-fé do terceiro (prova esta dispensável somente quando se trata de alienação a título gratuito ou de remissão de dívidas), enquanto a referida má-fé é sempre presumida, na fraude à execução.  Aduza-se que o adquirente, porventura, já transferiu o bem a outra pessoa, não se presume a má-fé desta (a qual deve, então, ser demonstrada), salvo se a alienação se deu depois do registro da penhora do bem.

DO MOMENTO DA DECLARAÇÃO DA FRAUDE À EXECUÇÃO 

Para configuração da fraude de execução, torna-se necessário a ocorrência de um dos requisitos do art. 593 do Código de Processo Civil, em especial que haja ação em andamento, pois do contrário poder-se-á questionar somente sobre a fraude contra credores.  

 Na fraude de execução o “consilium fraudis” é presumido, sem necessidade, pois, de sua demonstração.  ENRICO TULLIO LIEBMAN, lembra que: "a intenção fraudulenta está  “in re ipsa” e a ordem jurídica não pode permitir  que, enquanto pende o processo, o réu altere a sua posição patrimonial, dificultando a realização da função jurisdicional".  

A alienação em fraude à execução é ineficaz perante o credor. Assim, diante desse, é como se a alienação inexistisse e o bem continuasse a integrar o patrimônio do devedor. Reconhecida a fraude à execução, e decretada a ineficácia da alienação, o credor poderá fazer a execução recair sobre o bem alienado, em mãos de terceiro, sem que ele possa opor-se por meio de embargos de terceiro. Afinal, nos termos do artigo 42, parágrafo 3º do Código de Processo Civil o adquirente ou cessionário da coisa litigiosa fica sujeito aos efeitos da sentença.   

É conhecida a orientação do Pretório Excelso, que reiteradamente proclama:

Fraude à execução. Não há cuidar, na espécie, da boa ou má-fé do adquirente do bem do devedor para figurar a fraude. Basta a certeza de que, ao tempo da alienação, já corria demanda capaz de alterar-lhe o patrimônio, reduzindo à insolvência. Proposta a execução, desnecessária a inscrição da penhora para a ineficácia de venda posteriormente feita, sendo suficiente o desrespeito a ela, por parte da executiva" (RT 122/348) in CPC e Legislação Processual em Vigor, Theotonio Negrão, 31ª ed., nota de roda-pé ref. art. 593, 9ª ed.  

Como se vê, essa orientação dispensava o exame do elemento subjetivo do adquirente, bem assim o registro da penhora. Como decorrência, ao exeqüente bastava comprovar a lide, e a alienação do bem. Configurada estaria a fraude.  

Em sentido mais moderado surgiu a tese doutrinária ostentada por Décio Antonio Erpen, há mais de uma década, de que:  o registro da penhora, em caso de execução, seria prova pré-constituída da fraude, dispensável qualquer outra providência para a caracterização da mesma, ou  se ausente tal registro, caberia ao credor demonstrar a má-fé do adquirente porque todo o sistema jurídico pátrio se assentava no princípio da boa-fé.  

A jurisprudência, até então tranqüila, passou a receber forte divisão pretoriana, mormente porque aos Tribunais de Alçada competia o julgamento das execuções por título extrajudicial, e nesses feitos é que ocorria, sabidamente, a alienação do bem constrito.  

O Pretório Excelso, mais tarde, passou a explicitar que a litigiosidade só existiria se houvesse prévia citação válida, considerando demanda ajuizada aquela em que já houvesse a mesma citação.

Tem-se que nos termos do art. 219 do Código de Processo Civil, a criação da litigiosidade da coisa, pela citação válida do devedor, daí que a fraude de execução somente poderia ocorrer após a citação válida do devedor, não bastando a propositura da ação;  

FRAUDE À EXECUÇÃO – Requisitos – Alienação de imóvel ocorrida após a citação para a ação de execução – Caracterização – Desnecessidade, ademais, da averbação da penhora no registro de imóveis, até porque o processo judicial interposto contra o alienante é público, incumbindo aos adquirentes a cautela de providenciarem certidões judiciais a respeito – Embargos de terceiro improcedentes Recurso Improvido.

EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL – Fraude à execução. Ocorrência. Alienação de imóvel após citação. Presunção de insolvência. Não pagamento do débito. Irrelevante a boa ou má-fé do adquirente. Análise de doutrina e jurisprudência. Recurso improvido (1º TAC – 7ª Câm.; AP nº 793.992-6-Descalvado; Rel. Juiz Álvares Lobo; j. 15/12/1998; v.u.) LEXTAC 176/124.

EMBARGOS DE TERCEIRO – Fraude à execução – Citação – Alienação de bens – Ineficácia – Coisa julgada – Processo de execução – Declaração incidental.

Se em recurso anterior já havia sido reconhecida a fraude à execução, com declaração de ineficácia da venda perante o credor, tal decisão não comporta discussão nova. A partir da citação do devedor já é vedada a alienação de bens capaz de reduzi-lo à insolvência. A venda fraudulenta do imóvel configura fraude à execução e é ineficaz perante o exeqüente, sendo cabível a declaração incidental no processo de execução (TAMG – 3ª Câm. Civ.; AC nº 269.966-1-BH; Rel. Juiz Wander Marotta; j. 2/12/1998; v.u.) RJTAMG 74/196.  

Logo, pelo entendimento acima, sem a litispendência, não se poderia falar em fraude de execução, pelo que a alienação ou oneração ocorrida antes da citação não servirá para fins de caracterização da fraude de execução, podendo, sendo o caso, questionar-se acerca da fraude contra credores.  

A 4ª Turma do STJ, no REsp. 37.011-6-SP, rel.  Min.  Sálvio de Figueiredo, decidiu que: "Na linha dos precedentes da Corte, não se considera realizada em fraude de execução a alienação ocorrida antes da citação do executado-alienante.  Para que não se desconstitua penhora sobre imóvel alienado posteriormente à efetivação da medida construtiva, ao exeqüente que a não tenha levado a registro cumpre demonstrar que dela os adquirentes embargantes tenham ciência, máxima quando a alienação a estes tenha sido realizada por terceiro, que não o executado ".  

Há ainda o entendimento de á HHáH   que para configuração da fraude de execução, não é necessário esteja registrada a citação no Cartório de Registro de Imóveis, conforme prevê o art. 167, nº I , inciso 21, da Lei nº 6.015, de 31-12-73 (RT 48/78 e -552/107), cuidando-se de condição facultativa, cabendo em sua falta que o credor prove a fraude de execução.  

MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Ed.  Saraiva, 1979, pp. 236-6, escreveu que:

"Não tendo a citação sido levada àquele registro, conquanto ainda aí exista a fraude, cumpre ao exeqüente prová-la, o que vale dizer que insta a este provar que o terceiro adquirente ou beneficiária com a oneração dos bens, tenha conhecimento da ação pendente contra o alienante ".  

De tal sorte, não tendo sido inscrita a citação no Registro de Imóveis, caberá ao credor provar a existência da fraude, demonstrando que o adquirente tinha conhecimento da demanda, para então falar-se em fraude de execução.  Havendo o registro da citação, o direito do credor estará colocado a salvo, justamente porque o adquirente terá conhecimento desta ao levar seu título para registro.

Duas contudo, são as considerações a serem feitas, a saber: necessidade ou não do registro da citação nos casos dos incisos I e II do artigo 593 e a necessidade ou não do registro das penhoras, arrestos e seqüestros.  

Doutrinou sobre o assunto Amilcar de Castro, com maestria: ‘O fato, porém, de não ter sido registrada, ou inscrita, a penhora, o arresto, o seqüestro ou a citação, não impede a alegação de fraude contra a execução, e sim, somente , tem a significação de ficar o exeqüente no ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento, ou de que estava sendo movido litígio fundado em direito real, ou que pendia contra o alienante demanda capaz de Ihe alterar o patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido à insolvência. Feita a inscrição, as alienações posteriores peremptoriamente se presumem feitas em fraude de execução, independentemente de qualquer outra prova. Não sendo feita a inscrição, o exeqüente deve provar as condições legais de existência de fraude à execução. Vale dizer: a inscrição só tem efeito de publicidade, e vale como prova presumida, irrefragável, de conhecimento das condições legais de fraude por parte de terceiros’  

FRAUDE À EXECUÇÃO – Embargos de terceiro – Penhora – Aquisição do imóvel penhorado quando já pendia execução contra o vendedor – Constrição não registrada – Discussão sobre a relevância da boa-fé dos adquirentes, os quais procuraram cercar-se das cautelas devidas, inclusive exibindo certidão negativa de ônus – Inocorrência de modificação do artigo 593, II do mesmo Código – Caracterização do pressuposto básico da fraude como sendo a existência de demanda capaz de reduzir o alienante à insolvência – Embargos improcedentes 

– Recurso improvido voto vencido.

EMBARGOS DE TERCEIRO – Argüição de inocorrência de fraude, pois, a penhora de bem imóvel não foi registrada. Necessidade de averbação da penhora junto ao registro de imóveis que criou novo pressuposto processual para o desenvolvimento válido da ação de execução, bem como para tornar eficaz o ato processual da penhora perante terceiros, mas que não revoga o instituto da fraude de execução, previsto no artigo 593, inciso II do estatuto processual, e que tem como requisito básico para sua incidência a pendência de demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência. Sentença de improcedência mantida. (1º TAC – 9ª Câm.; AP nº 752.523-5-SP; Rel. Juiz Luís Carlos de Barros; j. 1º/9/1998; maioria de votos) LEXTAC 175/131

FRAUDE À EXECUÇÃO – Caracterização – Alienação do imóvel depois do ajuizamento da execução – Irrelevância de que a penhora não tenha sido registrada.
Fica caracterizada a fraude à execução, se o devedor aliena o imóvel depois do ajuizamento da execução, sendo irrelevante para a fraude que a penhora não tenha sido registrada (1º TAC – 8ª Câm.; AI nº 884.718-3-Araraquara; Rel. Juiz Márcio Franklin Nogueira; j. 27/10/1999; v.u.) RT 776/260.

Mister detectar-se o momento preciso que serve de marco à identificação da fraude à execução, que leva viciamento do ato traslativo do bem, sujeito à constrição judicial, eis que pacificado na doutrina que o mais evidente elemento diferenciador deste instituto processual com a fraude contra credores, e que habita a órbita do Direito Material, é o momento em que ocorreu o ato dispositivo.

Por esta razão surge a tese de que a repressão para a venda ou alienação de bens deve ser mais efetiva e imediata, ou seja, é a existência de relação processual que serve de divisor para que se reconheça o ato fraudulento.

Desde que haja ação, não importa se a mesma se rege pelo processo de conhecimento ou pelo processo executivo: desde a propositura, a alienação ou oneração pelo devedor determinarão a fraude de execução, se a hipótese enquadra-se num dos incisos do artigo 593 do CPC.

Sendo a existência de relação jurídica processual a envolver o alienante, o dado objetivo e prático para detectar a exacerbação dos efeitos da transação, mister que se fixe o momento de seu nascimento, em face do verbo legislativo sem especificidade, eis que o inc. I do art. 593 do CPC fala em ‘pender ação’ e a norma seguinte em ‘correr demanda’.

Assevera com propriedade Araken de Assis que, em face dos termos do art. 263 do CPC, agasalhou o Direito brasileiro a forma da relação processual angular, que se estabelece entre o autor e o Estado, sendo ‘dispensável a citação do réu’.

Apesar da posição isolada na doutrina de Mário Aguiar Moura  ainda mesmo que já aparelhado se ache o processo pela distribuição ou despacho, em linha de princípio, a alienação, que se efetiva nesse interregno e antes da citação, não enseja a argüição de fraude de execução. Poderá favorecer a verificação da fraude contra credores. Vem a jurisprudência gaúcha fixando-se na data da citação, ou na da penhora. Duas decisões recentes, porém, já antecipam o marco para o momento da instauração da relação processual.

A posição majoritária, no entanto, distancia-se da postura uniforme da doutrina, eis que Amílcar de Castro fala em ‘demanda incidente’, Mendonça Lima e Pontes de Miranda em ‘desde ou após a propositura’, enquanto Yussef Cahali diz: ‘Impõe-se reconhecer, portanto, que se vai consolidando o melhor entendimento no sentido da configuração da ‘lide pendente’, para os efeitos do art. 593, II, do CPC, com o ‘simples ajuizamento da ação’, ainda que a citação não tenha sido efetivada: o CPC vigente clareou ainda mais o entendimento, quando, no art. 263, considera proposta a ação tanto que a petição inicial seja despachada pelo Juiz ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma Vara, sendo irrelevante o fato de a citação ainda não ter sido realizada para que se caracterize a alienação em fraude de execução.

Fixando a lei processual, em seu art. 263, o momento em que se instaura a relação jurídica processual, considera-se proposta a ação tanto que a petição inicial seja despachada pelo Juiz, ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma Vara, e, estabelecendo o seu art. 593 como pressuposto para comprovar a fraude de execução, a existência de demanda, não se pode afastar tal marco para momento posterior, sem que isto disponha de falta de absoluto respaldo legal.

Por esta razão, em que pese o entendimento contrário de que a Fraude à Execução resta-se configurada somente após a citação válida do devedor, restam outros entendimentos de que logo após o ajuizamento da ação, a alienação feita pelo devedor já é considerada fraude à execução, o que se conclui ser a mais correta.(RT/601/125, MAIORIA, 609/107, RJTJESP 114/215).

Neste último acórdão, encontra-se a seguinte fundamentação: “O CPC em vigor não mais exige, para a instauração da instância, a citação do réu e, portanto, o art. 593, inciso II, se satisfaz com a existênca da demanda em curso. A ação se considera proposta, de acordo com a sistemática do código, com o simples despacho da petição inicial. Havendo mais de um juízo, no mesmo foro, a distribuição, independente do despacho, basta para que a ação se considere proposta”.

Considera-se ainda Fraude à Execução fiscal a alienação de imóvel quando já tiver sido iniciada a execução ainda que não procedida a citação do executado”( RSTJ 83/49). No mesmo sentido: RSTJ 68/255, JTJ 162/58, 171/191, RJTJESP 118/140.

Outras decisões sobre o assunto;

FRAUDE À EXECUÇÃO – Ocorrência – Alienação anterior à citação da execução – Irrelevância – Suficiência do ajuizamento da ação para o reconhecimento da fraude, independentemente de ser a ação de conhecimento ou de execução – Embargos de terceiro rejeitados – Recurso não provido.

Ementa oficial: Fraude à Execução. Alienação ou oneração pelo devedor. Caracterizada desde a propositura da ação, independente de ser ação de conhecimento ou de execução. Bem alienado após sentença de processo de conhecimento transitada em julgado. Ocorrência. Recurso não provido (TJSP – 4ª Câm. de Direito Privado; AC nº 37.973-4-SP; Rel. Des. Barbosa Pereira; j. 7/5/1998; v.u.) JTJ 206/63.  

FRAUDE À EXECUÇÃO – Penhora – Transferência de bem imóvel após o ajuizamento de ação de cobrança – Inadmissibilidade – Ineficácia do ato jurídico para o fim de elidir a penhora – Constrição mantida – Recurso improvido.  

FRAUDE DE EXECUÇÃO – Transferência do bem imóvel após o ajuizamento de ação de cobrança. Ineficácia desse ato jurídico para o fim de elidir a penhora. Recurso improvido (1º TAC – 5ª Câm.; AI nº 823.013-1-SP; Rel. Juiz Cunha Garcia; j. 7/10/1998; v.u.) LEXTAC 174/34.  

FRAUDE À EXECUÇÃO – Caracterização – Alienação de bens realizada após o ajuizamento da execução – Irrelevância da data da citação dos executados   Interpretação do artigo 593, II, do CPC.  

Caracteriza-se a fraude à execução se a alienação de bens for realizada após o ajuizamento da execução, independentemente da data de citação dos executados, conforme interpretação do art. 593, II, do CPC (1º TAC – 11ª Câm.; AI nº 816.281-8-SP; Rel. Juiz Maia da Cunha; j. 31/8/1998; v.u.) RT 761/275.  

Na mesma ordem de idéias e tomando por conta a orientação jurisprudencial acima mencionada, pode-se afirmar que a partir do ajuizamento da ação, resta-se configurada a Fraude à Execução, caso o devedor efetue a venda de seus bens; aliás, é indiferente que se trate de ação de execução ou de processo de conhecimento (JTA 96/260); e a fraude ainda mais se patenteia quando o devedor, enquanto se furta à citação, pratica ato de alienação.  

CONCLUSÃO 

No processo de execução e nas demais ações em que a lei prevê o registro obrigatório do ato judicial, deve o juiz exigir do litigante o cumprimento integral da diligência, com isso resguardando a eficácia e o prestígio da própria atividade, bem assim evitando a disseminação de lides de parte de terceiros injustamente atingidos.  

Um dos princípios basilares do processo executivo, por influência do Cristianismo, é aquele segundo o qual a execução se realiza no patrimônio e não na pessoa do executado.  

A fraude à execução é instituto de direito processual, regido pelo direito público, penalmente punível, que dispensa a perquirição da prova da má-fé e ação para desconstituição do ato fraudulento. O ato na fraude à execução, não é anulável, nulo ou inexistente, mas ineficaz.  

Por outro lado, a fraude contra credores torna o ato anulável, eis que o devedor buscou de alguma forma tornar ineficaz a cobrança de seus débitos, afastando bens de seu patrimônio. A lei coloca como principal pressuposto ainda, que o devedor esteja em estado de insolvência ou em sua iminência.    

O instituto da fraude à execução é mais grave do que a fraude contra credores porque, além de lesar o credor, ainda atenta contra o eficaz desenvolvimento da função jurisdicional, razão pela qual reclama reação mais vigorosa.  

Mister ainda concluir que a alegação de fraude contra credores, tem como via adequada a ação pauliana; a alegação da fraude contra credores em embargos de terceiro, encontra como barreira o fato da relação processual não estar completa, pois faltaria o devedor-executado no referido processo, exigência esta que encontra-se no artigo 161, do Código Civil.  

Como abordado, a relação processual se estabelecesse a partir da propositura da ação através da distribuição da petição inicial ou pela determinação do ato citatório, nos precisos termos do artigo 263 do Código de Processo Civil.  

Nesse momento, reconhece-se a fraude à execução, pois passa a correr demanda contra o devedor e se depois deste instante ocorrer a alienação ou disposição do acervo patrimonial, os referidos atos não dispõem de qualquer eficácia perante o credor.  

 Vale ainda acrescentar que não se deve levar em conta a época da citação ou da penhora do bem; basta para o reconhecimento da fraude, a distribuição da ação ou até mesmo o despacho citatório proferido pelo magistrado.  

Da mesma forma, ultrapassado o argumento de que se não houver a comunicação da penhora no registro imobiliário, não ocorre a fraude à execução. Como amplamente abordado basta a existência de lide pendente capaz de reduzir o devedor à insolvência, sem necessidade, portanto, do ato de penhora e consequentemente de seu registro.  

Não há fraude à execução com sustentação em meros protestos, necessário se faz a propositura da ação pela distribuição da petição inicial.

BIBLIOGRAFIA
CAHALI, Yussef Said, Fraude Contra Credores, 3ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais – 2001.
 FUHRER, Maximilianus Cláudio Américo, Resumo de Processo Civil, 21ª ed. Malheiros Editores – São Paulo – 2000.

 GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios, Processo Civil: Processo de Execução e Cautelar, volume 12 – 2. Ed. Ver. São Paulo; Saraiva, 1999. (Coleção Sinopses Jurídicas).

 JESUS, Damásio E. de, Código Penal Anotado / Damásio E. de Jesus – 8 ed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 1998.

 MONTEIRO, Washington de Barros – Curso de Direito Civil – 33ª ed. Washington de Barros Monteiro – São Paulo: Saraiva, 1995.

 NEGRÃO Theotônio, Código Civil e legislação em vigor, 21º ed. São Paulo: Saraiva , 2002.

 NEGRÃO, Theotônio, Código de Processo Civil e legislação em vigor, 34ª ed., São Paulo, 2002.

 NOVO CÓDIGO CIVIL, Lei 10.406/2002, em vigor a partir de Janeiro de 2003.

 PARIZATTO, João Roberto. Dos Embargos de Terceiro. Editora de Direito, 1997.

 RODRIGUES, Maria Stella Souto Lopes – ABC do Processo Civil, 8ª ed. Ver. E atual. – São Paulo- Editora Revista dos Tribunais, 2000.

 SANTOS, Moacyr Amaral, Primeiras Linhas de direito Processual Civil, 19ª ed. Moacyr Amaral Santos – São Paulo: Saraiva, 1997.

 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, 20ª ed. Humberto Theodoro Júnior – Rio de janeiro: Forense, 1997.

 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de processo penal Comentado / Fernando da Costa Tourinho Filho – São Paulo, Saraiva, 1996.

 


Referência  Biográfica

Ederaldo Paula da Silva  –  Advogado,  Especialista em Processo Civil  e Professor Universitário – 2003.

edeadv@ig.com.br