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Casamento e Regime de Bens

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*Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka  –

Sumário:  1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. 2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção. 2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial. 2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. 3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002) e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916). 3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil. 3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil: 3.2.1. Do regime de comunhão parcial. 3.2.2. Do regime de comunhão universal. 3.2.3. Do regime de separação de bens. 3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.

1. A família e o casamento, ontem e hoje: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos. (1)

          Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade.

          A respeito de qualquer sociedade que se mencione, arcaica ou recente, ocidental ou oriental, bem sucedida ou não, cuja trajetória tenha contribuído mais, ou menos, para a formação do arcabouço histórico de todo o ciclo que o ser humano desenha sobre a face da terra, enfim, a respeito de qualquer sociedade, dois pólos são sempre obrigatoriamente referidos, como essencialmente integrantes de sua conjuntura: o pólo econômico e o pólo familiar.

          Alguma vez, a ênfase pendula para um dos pólos, em franco desprestígio do outro, e vice-versa. Alguma vez, o observador social refere melhor o aspecto econômico de uma sociedade – ou de parte temporal de sua construção – mas, em outra vez, referirá antes o paradigma da família, quando estiver intentando compreender e explicar as razões das mudanças comportamentais, ou de costumes, ou as sociais, ou as religiosas, ou quaisquer outras, enfim.

          No que diz de perto à entidade familiar, acentuada é, sem dúvida, a sua influência nos desmoldes e reestruturações humanas de toda a sorte, especialmente quando se leva em conta a diversidade de sistemas que, ao longo da história da civilização, registraram e esculpiram os diferentes modelos de família.

          Sempre importa, por isso, reconhecer o perfil evolutivo da família, ao longo da história, adequá-lo com o incidente social, econômico, artístico, religioso ou político de cada época, para o efeito final de se buscar extrair os porquês das transmudações, os acertos e os desacertos de cada percurso, a influência na consciência dos povos, sempre a partir do modus familiar e da relação efetivamente havida entre os seus membros, mormente entre o homem e a mulher.

          Muitos – e muito diferentes – foram, portanto, os grupos familiares e os valores que os nortearam, sendo verdade que alguns destes valores talvez ainda se encontrem em voga nos dias atuais, quer pela sua normal eternização, quer por terem sido ressuscitados após lapsos temporais mais ou menos longos.

          De resto importa constatar, desde logo, e ao que tudo indica, que há uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade, vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus que se renova sempre "como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social". (2)

          Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal.

          Parece não restar dúvida, afinal, em cultura como a nossa, de que o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, mostra-se "desintoxicado" do rigor – quase obrigatório – da legitimidade. O modelo que era oferecido pelo legislador do século passado já não se oferta mais como "único" ou "melhor", mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na "vida como ela é", de tão enorme, já não admite a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador contemporâneo, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas, e principalmente, a desmistificação de que a família só se constitui a partir do casamento civilmente celebrado; a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; a conseqüência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família, hoje. (3)

          Constituído o núcleo familiar, enfim, de toda a sorte e qualquer que seja a sua base estrutural, o fato é que efeitos patrimoniais derivarão dessa união de pessoas à volta do ideal comum de se associarem, perpetrando a espécie e buscando a efetivação de seus valores, sonhos e verdades.

          Interessa, hoje, neste conclave, e de modo mais específico, detalhar os efeitos patrimoniais que são os decorrentes do casamento como forma básica da formação de um núcleo familiar. Não se cuidará do regime de bens ocorrido na união estável ou em qualquer outra forma de fundação da família, mas se cuidará, afinal, apenas do regime patrimonial estabelecido entre cônjuges, isto é, entre aquelas pessoas que escolhem o casamento como forma de constituição de suas famílias.

2. O casamento e o estatuto patrimonial de regência dos bens conjugais, escolhido pelos nubentes, antes da celebração ou selecionado pela lei, em caso de não opção.

          Celebrado o casamento civil, portanto, os bens pertencentes a cada um dos cônjuges e também aqueles por eles adquiridos na constância da vida matrimonial, se submeterão a um regime patrimonial que tenha sido escolhido por eles, antes das núpcias, ou, no silêncio quanto a esta assunção voluntária de um regime, àquele que a lei disser, ou, em alguns casos, impuser.

          No passado, conforme a história legislativa de nosso país, o regime que o legislador decidiu oferecer aos que não produziam sua própria opção, foi o regime da comunhão universal de bens, pelo qual se comunicavam os bens de um e de outro dos cônjuges, quer os havidos antes do casamento, quer os adquiridos durante a sua constância, conformando, pois, um patrimônio único cuja alienação dependia também de uma comunhão de consentimentos.

          No final do século XIX, à guisa de justificar a escolha do legislador pátrio pelo modo de plena comunicabilidade dos bens, como o regime legal de bens, no casamento, o famoso jurista Lafayette escreveu que em sua natureza e efeito a comunhão é por certo o regime que mais se coaduna com a índole da sociedade conjugal, e a comunhão de bens reproduz no mundo material a identificação da vida e destino dos cônjuges e contribui poderosamente para fortifica-la e consolida-la, confundindo na mais perfeita igualdade os interesses de um e de outro. (4)

          Mas os tempos se alteraram, os cônjuges mudaram, a sociedade matrimonial se distanciou do modelo do outro século e, aos poucos, a universalidade de comunhão de bens cedeu o espaço exigido pela parcialidade de comunhão patrimonial, fato que se consubstanciou, enfim, pela Lei nº 6515/77, a lei do divórcio, que alterou o regime legal a ser adotado, se a hipótese fosse a de não outra escolha pelos nubentes, antes da celebração, por meio de pacto antenupcial.

          Nos dias que correm, ao lado do velho e sempre novo amor à primeira vista – como tão romanticamente diz Euclides de Oliveira (5) – permanece a ordem mais terrena, digamos assim, segundo a qual quem casa quer casa! Ora, esse é o descortinamento do matrimônio pelos seus palcos menos espiritualizados e mais racionais, o que não deve ser referido mal, já que o homem e a mulher, como a grande maioria dos animais, tem a necessidade e o desejo de abrigar sua prole sob confortável e seguro teto, provavelmente o da primeira casa que serve de lar à família que então se forma.

          Um homem, uma mulher, uma criança. Uma casa, um lar. Retrato da felicidade, quiçá.

          Mas, em alguns casos – na verdade mais numerosos do que seria desejável que o fossem – pode acontecer de o lar, conformado estreitamente em apenas um bem material, transmudar-se no signo da discórdia e do rompimento do retrato feliz de uma família consolidada. Afinal, quem é que não ouviu já falar no antigo gracejo, comum de ser contado e recontado entre os advogados, que afirma que esses profissionais, após a celebração de certas núpcias, apenas espreitam e aguardam o momento em que o meu bem (tratamento romantizado entre os que se amam) se transforme em meu bem (o grito de posse, a respeito do patrimônio familiar, por ocasião do rompimento da sociedade conjugal)?

          A partilha dos bens amealhados, no tempo em que meu bem significar apenas o reclamo possessório, costuma ser sempre muito disputada, bélica mesmo, e, por isso, dolorosa.

          No mais dos casos, contudo, a divisão obedecerá as regras já traçadas para aquele dos regimes de bens que norteou a conjugalidade que agora se dissipa e rompe. Obedecerá às normas pré-ordenadas pelo estatuto patrimonial dos consortes.

          Nem sempre será assim tão simples, no entanto.

          Para se examinar, pois, o perfil dos diferentes regimes de bens, mormente à face da nova Lei Civil (6), será útil rever os principais aspectos de cada um deles, bem assim alinhavar as principais modificações consolidadas pelo legislador da lei nova, e, finalmente, assinalar alguns dos eventuais problemas que o jurista, o operador do Direito e o aplicador da lei poderão enfrentar por conta da entrada em vigor do nosso Código Civil.

2.1. O regime de bens de eleição, assim escolhido pelos nubentes por meio de pacto antenupcial.

          Leve-se em conta, antes, que a nova Lei manteve aquela liberdade de os cônjuges expressarem a sua autonomia privada no que concerne ao regime de bens que desejam e escolhem – e que regerá seus interesses econômico-patrimoniais – sendo certo que o farão, então, exatamente como no direito positivo que ainda vige, por meio de pacto antenupcial (arts. 1639, 1640, § único e 1655, NCC). O pacto, caso elaborado pelos nubentes, deverá ser assentado, após o casamento, no Registro de Imóveis do domicílio conjugal, exatamente para que possa valer erga omnes, embora valha já, independentemente de registro, nas relações interpessoais dos cônjuges e entre eles e seus herdeiros.

          Mesmo o Código anterior, portanto, já admitia, como se sabe, que os nubentes escolhessem o seu estatuto patrimonial de casamento, sempre que não desejassem adotar o regime preferido pelo legislador pátrio, e exceto naquela hipótese que impunha o regime obrigatório da separação de bens (§ único, incisos I, II, III e IV do art. 258 do CCV), hipótese esta bastante revisitada e modificada pela doutrina e pela jurisprudência, nestas duas últimas décadas, especialmente (7).

          O pacto, para não padecer de nulidade, já se disse, deverá ser formalizado por meio de escritura pública, segundo a exigência do art. 1.653 do novo Código, que repete a regra do art. 256 do Código Beviláqua, que ainda vige. E mais: ele segue, como no Código Civil vigente, condicionado à realização do matrimônio. Ocorrendo a não realização das núpcias, o pacto se verá sem a sua respectiva eficácia jurídica, ainda que formalmente válido, tendo em vista não se tratar, na espécie, de negócio nulo.

          O art. 1.655 do novo Código Civil reescreve, com o mesmo viés sujeito a críticas, a norma contida no art. 257 do Código Civil de 1916, declarando ser nula convenção ou cláusula firmada no pacto antenupcial, que contravenha disposição absoluta da lei. No meu sentir, não teria sido necessário que o legislador incluísse, nesse passo, regra que é de caráter absoluto e geral, uma vez que qualquer convenção, qualquer pacto – e não apenas o pacto antenupcial – que atentar contra norma de ordem pública será cravado pelo estigma da nulidade.

          Contudo, se não houver qualquer convenção antenupcial estabelecida entre os nubentes, ou se, havendo, ela restar nula ou ineficaz, vigorará entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial (art. 1.640, NCC e art.258 do CC/1916).

          2.2. Na ausência de pacto antenupcial, vigorará, entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial, posto ser o regime legal.

          Regime legal de bens é aquele ao qual o Código dá preferência, isto é, é aquele da escolha posterior à vontade dos nubentes, escolha esta, agora, do próprio legislador que, no silêncio das partes, decide ser este – e não outro – o melhor estatuto de regência das relações patrimoniais do casamento. O regime legal do Código Civil ainda em vigor é o da comunhão limitada de bens, conforme determinado pelo art. 258 do CC/1916, com a redação que lhe deu a Lei do Divórcio, a Lei 6515/77.

          Antes do advento desta Lei, prevalecia, entre nós, o regime legal da comunhão universal de bens, estabelecendo a comunicação de todo o conjunto patrimonial dos cônjuges, quer fossem bens aprestos, vale dizer, os bens adquiridos antes da celebração das núpcias, quanto bens aqüestos, vale dizer, os bens adquiridos na constância do casamento, talvez porque, como se referem os doutrinadores históricos, foi sempre muito acentuada e forte a influência da Igreja nas relações matrimoniais, imaginando-as contraídas para se perpetuarem por toda a existência dos nubentes.

          O Código Civil de Miguel Reale manteve a mesma regra no seu art 1.640, dispondo que na falta de convenção ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.

          Sobre as razões, ou fundamento, desta seleção do legislador da Lei do Divórcio e mantida pelo novo Código Civil, fico com as apontadas por Arnaldo Rizzardo (8) que atribui ao caráter contratual do casamento, o fato de se ter eleito, como regime legal, este que encerra a preservação do patrimônio de cada cônjuge, já existente antes de casar, admitindo a comunicação apenas dos bens amealhados na vigência da relação conjugal como fruto do esforço comum do marido e da mulher. Parece mesmo ser, este regime, aquele que melhor respeita a idéia de que o casamento é uma estreita comunhão de vida e que, portanto, os cônjuges devem ter os mesmos direitos sobre os bens adquiridos, na constância do matrimônio, como resultado do trabalho e do esforço comum. Dividem os cônjuges o produto econômico de sua sociedade nupcial, sem misturar riquezas oriundas de suas famílias de origem e que não tiveram o menor concurso do consorte na construção dos aprestos (9).

3. Os diversos regimes de bens elencados pelo legislador contemporâneo (Código Civil de 2002)
e a análise comparativa com o direito positivo que ainda vige (Código Civil de 1916).

          O novo Código Civil descreve e regulamenta quatro regimes de bens do casamento, vale dizer: a comunhão parcial, a comunhão universal, a total separação de bens e o regime de participação final nos aqüestos (arts. 1.672 a 1.686, NCC), este como a grande novidade da nova Lei, e que substitui o espaço legislativo antes destinado ao regime dotal, regulado pelo Código Bevilaqua, mas que não teve, de modo algum, qualquer repercussão que houvesse sido significativa, verdadeira letra morta, efetivamente, a qual, já não sem tempo, é excluída da regulamentação pátria.

          3.1. As disposições de caráter geral e a principiologia de regência econômica das relações conjugais, na nova Lei Civil.

          Guardando a mesma estrutura do Código de 1916, o Direito Patrimonial de Família do novo Código Civil – rubrica que não tem correspondência com o Código Bevilaqua – expõe preambularmente um corpo de normas que anuncia a principiologia deste conteúdo patrimonializado das relações conjugais, disciplinando a sua abrangência, a propriedade e a administração dos bens, bem como a fruição e a disposição deles, por parte do marido e/ou da mulher e, ainda, as obrigações que eles poderão eventualmente assumir (arts. 1639 a 1652, NCC).

          Nota-se, gratamente, pelo exame prévio e comparativo dos dois diplomas legais, que anda melhor o legislador atual, pois a estrutura formal e a redação escolhida para regulamentar o assunto é condizente com a proposta axiológica da nova Carta Constitucional Brasileira, de igualdade entre marido e mulher, deixando, felizmente, de se referir à mulher casada, para referir-se a marido e mulher, bem como deixando de lado a antiga e inócua, hoje, referência à presunção de autorização do marido a favor da mulher (como faz o art. 247 do Código Civil de 1916, ainda em vigor, entre nós).

          O art. 1.642 do novo Código, por sua vez, estabelece regras acerca da autonomia de administração (ainda que de certa forma limitada) dos cônjuges na manutenção e conservação do seu acervo comum, bem como estabelece o direito de demandar pela defesa e de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis que, porventura, tenham sido doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino ou à concubina (10) , repetindo regra já anteriormente estampada no Código de 1916 (art. 248, IV e 1177) e dando por anulável a alienação assim produzida.

          Neste acento ainda preambular do direito patrimonial no casamento, segundo a normativa do novel Código, talvez a mais sofrida discrepância ou involução esteja contida nesse mesmo art. 1642, em seu inciso V (parte final), que dispôs sobre o direito de cada um dos cônjuges de reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes,[se o casal estiver separado de fato há mais de 5 (cinco) anos.] (grifos e destaques meus). Diz-se involução pelo fato de já restar assentado entre nós, há bom tempo, em ambiência jurisprudencial, que a separação de fato prolongada traz, como conseqüência em prol da justiça e da moralidade, a incomunicabilidade dos bens havidos por qualquer dos separados, no curso desta separação, tendo em vista a ausência do ânimo socioafetivo, na feliz expressão de Rolf Madaleno (11).

          Este jurista gaúcho diz, com propriedade (e tem toda a razão), que está pacificado pela jurisprudência brasileira que a separação fática acarreta inúmeros efeitos jurídicos, especialmente o da incomunicabilidade de bens entre cônjuges fatualmente separados […] e que não existe nenhum sentido lógico em manter comunicáveis durante cinco longos anos, bens hauridos em plena e irreversível separação de fato dos cônjuges, facilitando o risco do enriquecimento ilícito, pois o consorte faticamente separado poderá ser destinatário de uma meação composta por bens que não ajudou a adquirir (12).

          Nesses casos, o que desponta com clareza, e com exatidão se descreve, é aquela situação que determinado segmento muito lúcido da doutrina nacional denomina de casamento meramente residual. Segismundo Gontijo, inspirado em Thereza Alvim, diz que se trata de uma circunstância conjugal de cuja existência restou mero assentamento no registro público, e não pode prevalecer sobre a realidade fática de ele ter deixado de existir até mesmo sensorialmente para cada um dos cônjuges, bem como para a comunidade circundante que até os supõe casados com os atuais companheiros (13).

          É comumente repetido – e não é demais repeti-lo, também aqui, pois que preciso e precioso – o acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que teve como relator o Desembargador Silvério Ribeiro, e que assim descreve a situação que está em tela, agora: […] não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem a ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que de forma alguma não teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens – prossegue o acórdão famoso – é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedade e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos (14).

          O sentimento do injusto presente na voz dos Tribunais, como acontece com o acórdão mencionado, espalha-se por tantas outras decisões (15) e fortalece a idéia evolutiva do pensamento doutrinário e jurisprudencial, entre nós, sobre o assunto, já bem antes do criticado inciso V (última parte) do art. 1642 do novo Código vir a lume, por aprovação e sanção presidencial, de sorte que não é sem razão que paira a sensação de retrocesso, para a comunidade jurídica, à face da conservação da arcaica regra.

          Por isso, tal postura do legislador representa mesmo o engessamento das relações afetivas que se renovam, já que conviventes que não promoveram a sua precedente separação judicial e a correspondente partilha de seus bens conjugais, arriscam sofrer a invasão de seus bens, até cinco anos depois de iniciada a sua fática separação, se não ostentarem provas contundentes de que as suas atuais riquezas materiais decorreram do esforço comum do par convivente (16).

          É certo que, mesmo sendo pessoalmente partidária desta corrente que entende se dar a incomunicabilidade dos bens havidos por um dos cônjuges, no curso de prolongada separação de fato, não posso deixar de mencionar os vieses da corrente contrária, mesmo porque os que a sustentam merecem toda a consideração do ambiente jurídico, pelo fato de serem consagrados juristas nacionais, de nome e renome inscritos nas páginas do direito brasileiro, os quais reúno, aqui, na pessoa do ilustre professor Eduardo Oliveira Leite que, ao responder uma consulta sobre o tema, em 1992, expandiu suas fundamentadas considerações em sentido contrário. A formalidade ali estampada prendeu-se, àquela época, ao princípio maior da imutabilidade do regime patrimonial de bens entre cônjuges, presente no Código de 1916, mas já ausente do Código Civil por entrar em vigor, em 2003. De toda a sorte, e em homenagem ao pensamento distinto, registro a informação e a fonte de consulta ao referido, e muito bem escrito, parecer (17).

          Quanto à iniciativa judicial conferida a ambos os cônjuges de demandarem pelas ações previstas nas hipóteses de infração aos incisos III, IV e V deste art. 1.642, ainda em pauta de menção, o que se anota, gratamente, foi o cuidado do legislador da nova Lei Civil de atentar para a igualdade constitucional destes partícipes da ordem conjugal uma vez que, na regra anterior (que ainda vige, até 2003) tal iniciativa é conferida somente à mulher ou aos seus herdeiros (art. 249, CC/1916), exatamente porque a administração dos bens conjugais, até a promulgação da atual Constituição Federal, competia somente ao marido, participando a mulher como mera colaboradora do lar.

          Ainda neste lapso de apreciação inicial das disposições do novo Código sobre o estatuto patrimonial de regência das relações econômicas entre os cônjuges, penso ser assunto da mais alta importância e indagação a substancial alteração realizada, acerca da passagem de imutabilidade para mutabilidade do regime de bens originalmente escolhido (18).

          O art. 1639, em seu § 2º, dispôs ser admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

          Sempre se ladearam, entre nós, mormente em sede jurisprudencial, as opiniões controvertidas acerca de ser, ou não, mais benéfica que prejudicial, a conversão da disposição legislativa de proibição da mudança do regime de bens, para um sistema de permissão, ainda que sob rígidas regras de apreciação judicial e resguardo dos direito de terceiros.

          A mais antiga e acentuada posição acerca da possibilidade de reversão encontra-se, entre nós, na opinião de Orlando Gomes que, desde a década de 80 já colocava à exposição, as entranhas do assunto, perguntando quais as razões que teriam levado o legislador de 1916 a traçar a regra da imutabilidade do regime de bens, e, principalmente, se essas razões ainda sobreviviam, a justificar a mantença da regra (19). O jurista ilustre demonstrava a sua estranheza quanto ao assunto, especialmente quando trazia à luz o fato de poderem, os nubentes, livremente escolher o seu regime de bens, antes das núpcias, mas não poderem reenquadrá-lo, quando e se fosse conveniente ao casamento, respeitados, claro, os direitos de terceiros. Tanta liberdade numa fase, e uma proibição peremptória na fase imediatamente seguinte, em nome de quais princípios, de quais valores ou de qual segurança, nunca se saberá bem (20).

          Sem dúvida, os partícipes desta corrente de possibilidade de alteração do regime de bens do casamento, na constância dele, recomendavam, como bem o fez o próprio Orlando Gomes, que todas as medidas de segurança e preservação de direitos de terceiros, principalmente, fossem adotadas. Como escreve Rolf Madaleno (21), o jurista baiano já aconselhava que a mudança do regime ficasse subordinada à autorização judicial, a requerimento judicial de ambos os cônjuges, que precisariam justificar a sua pretensão, verificando o juiz da plausibilidade do seu deferimento e preservando a segurança de terceiros, mormente credores, a fim de que não fossem prejudicados no exercício de seus direitos, ressalvando em qualquer caso essa hipótese, com ampla publicidade da sentença a ser transcrita no registro próprio.

          Como se vê, e uma vez mais, tinha razão o professor Orlando Gomes, tanto é que o legislador brasileiro adotou exatamente a sua opinião a respeito do assunto, bem como as cautelas que ele sugeriu (art. 1639, § 2º, NCC).

          É bem provável que o legislador anterior, em 1899, tenha preferido a regra da imutabilidade porque temeu, àquela época, que o cônjuge mais frágil na relação conjugal – a mulher, a bem da verdade, e na maioria dos casos do passado – fosse enganado por razões muito distintas da verdadeira intenção do outro cônjuge, se houvesse ficado em aberto a possibilidade da alteração de regime. Ou mesmo que a alteração camuflasse apenas uma simulação ou uma fraude a credores, desativando o patrimônio responsável pelo cumprimento de obrigações por meio de um expediente doloso, como esse, em certos casos.

          Parece bem ter razão Silvio de Salvo Venosa (22) quando, a respeito do que se cuida, menciona que a proteção do legislador de 1916 corria a favor da mulher casada do século XIX, já que era tida como dotada de menor experiência no trato das riquezas econômicas do casamento, quase sempre administradas pelo marido.

          Compreensível, quiçá, e então, a cautela do legislador de antanho, mas completamente incompreensíveis suas razões nos dias atuais, quando a igualdade entre marido e mulher, na esfera do casamento, não é apenas uma figuração constitucional, mas, bem mais que isso, uma realidade da contemporaneidade.

          O mesmo e festejado Rolf Madaleno escreve, e com toda a razão, que considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental do que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma, desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro (23).

          Além disso, é interessante anotar a opinião de Débora Gozzo (24), segundo a qual a maioria dos nubentes se sente constrangida para discutir questões de cunho patrimonial antes do casamento, entendendo que essa natural inibição inicial poderia levar a escolhas erradas quanto ao regime, além de instalar um clima mais propício para os casamentos por interesse. Seria certo então deduzir que com o passar do tempo, quanto mais sedimentado o relacionamento conjugal, quanto maior a intimidade dos cônjuges quanto mais fortalecidos os seus vínculos familiares e as suas certezas afetivas, mais autorizada estaria a modificação de seu regime patrimonial no curso do casamento, facilitando a correção dos rumos escolhidos quando ainda eram pessoas jovens e inexperientes (25).

          Mas, enfim, resta a pergunta que foi deixada inicialmente, no enfrentamento desse assunto: a alteração significativa trazida pelo novo Código Civil, admitindo a possibilidade de modificação do regime de bens do casamento, na sua constância, trará mais benefícios que prejuízos às relações familiares e às relações obrigacionais, no seio da sociedade brasileira, a partir de 2003? O fato de ter se rendido, a novel legislação, a essa tendência mundial à volta da mutabilidade do regime de bens do casamento, terá conseguido mesmo a proeza de ter extirpado os malefícios do passado, ter consolidado a situação jurídica da mulher no casamento, ter cercado o deferimento da alteração do regime com as necessárias e rígidas cautelas assecuratórias de direitos de terceiros, tanto quanto baste para ser boa a transformação perpetrada, ou, ao contrário, terá apenas admitido que o abuso tenda a aumentar, restando a cargo do judiciário mais essa tarefa de buscar adivinhar as verdadeiras intenções que podem se esconder nas dobras de um pedido bilateral, dos cônjuges, a respeito da modificação das regras de regência de seu estatuto patrimonial de casamento?

          Sabe-se, pelo peso da verdade, que não será lei ou norma que, em qualquer circunstância, irá coibir as práticas ilícitas e as operações camufladas. Daí, a buscar com desmesurado cuidado uma resposta para tal indagação, me parece excesso de racionalidade. Os atos viciados, e por isso nulos ou anuláveis, estão pululando todo o tempo na realidade da vida negocial e na esfera econômica dos homens, quer a norma jurídica seja mais dura ou mais rígida, quer a opção legislativa tenda para um lado ou para outro, nas considerações mais polemizadas, como é o caso desse assunto da mutabilidade ou imutabilidade do regime matrimonial de bens.

          Por isso, segundo a minha visão pessoal, só o tempo dirá, e por mera consideração estatística, sob a égide de qual das tendências legislativas (a de 1916, pela imutabilidade, ou a de 2002, pela mutabilidade) terá ocorrido o maior número de casos de alteração do estatuto patrimonial calcada em razões que não as verdadeiramente apontadas como justificadoras do pedido. Penso assim justamente por considerar que, mesmo antes da aprovação do novo Código, as regras mais fechadas da legislação Bevilaqua já se encontravam abrandadas, quer pela possibilidade de doações entre cônjuges, quer pela edição da Súmula 377, do STF, que transformou o regime legal ou obrigatório da separação de bens (§ único do art. 258, CC/1916) em regime de comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, quer pela promulgação da Lei do Divórcio e seu art. 45 que abrandou a regra dura do regime obrigatório (26), ou quer, finalmente, pela possibilidade de se realizar pacto antenupcial condicionado, o que admitiria a possibilidade de alteração incidental do regime adotado, pela superveniência de outro fato derivado do implemento da condição como, por exemplo, o nascimento de um filho.

          Como diz Rolf Madaleno, as possibilidades todas de fraude, simulação, ou mau uso da regra mais branda estampada no Código Civil de Miguel Reale, só o tempo é que dirá, e só as ocorrências é que cuidarão de demonstrar se o legislador acertou ao revogar o princípio da imutabilidade do regime de bens, ou se seguirá prevalecendo o nítido sentimento de que às vésperas da ruptura não anunciada, mesmo nos dias de hoje, um cônjuge ainda consegue abusar da fraqueza do outro (27).

3.2. As modalidades de regime de bens do casamento adotadas pelo novo Código Civil. (28)

          3.2.1. Do regime de comunhão parcial.

          Como já se disse, este é o regime oficial de bens, no casamento, selecionado, pois, pelo legislador pátrio, desde a promulgação da Lei do Divórcio, em 1977, pelo qual comunicar-se-ão apenas os bens adquiridos na constância do casamento, e revelando, por isso mesmo, um acervo de bens que pertencerão exclusivamente ao marido, ou exclusivamente à mulher, ou que pertencerão a ambos.

          Com a dissolução da conjugalidade, restará comunicável, então – e por isso passível de partilha entre os cônjuges que se afastam – o acervo dos bens comuns, ficando excluídos, dessa partilha, os bens ressalvados pelos arts. 1659 e 1661 do novo Código Civil, dispositivos esses que repetem as mesmas exclusões já anteriormente previstas pelos arts. 269 e 272 do Código Civil de 1916. Excluídos estavam, e permanecem, então, os bens que cada cônjuge já possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do matrimônio por doação, sucessão ou sub-rogados em seu lugar (art.269, inciso I, CC/1916 e 1659, inciso I, CC/2003).

          Relativamente aos bens sub-rogados, anote-se que caminhou bem o novel legislador, ao incluir disposição que os alcança, para deles estabelecer, também, a incomunicabilidade, já evidente por todas as letras, mas não expressamente prevista no Código anterior.

          Nas relações de bens que se excluem e de bens que se comunicam, nesse regime, poucas foram as alterações, sendo que se deve apontar, mais nitidamente, para o fato de a nova Lei ter excluído da comunicabilidade os frutos civis do trabalho, ou indústria de cada cônjuge, que integravam o rol, na legislação de 1916 (art. 271, VI). Não foi a melhor solução esta, encontrada pelo legislador do novo Código, de retirar tais frutos do rol dos bens que se comunicam e encaixá-los, assim simplesmente, no rol dos que não se comunicam. Na realidade, melhor teria sido se o Código que entrará em vigor tivesse apenas declarado comunicáveis os frutos civis do trabalho ou indústria dos cônjuges, quer no regime da comunhão parcial, quer no regime da comunicação universal, por se tratar especialmente das economias de cada cônjuge, oriundas do seu próprio trabalho e resultantes, no mais das vezes, dos naturais sacrifícios que marido e mulher realizam, abdicando de viagens, supérfluos, reduzindo despesas, consumos e serviços, em intensa e esforçada economia doméstica para somar valores destinados ao futuro dos filhos ou à velhice dos consortes. (29)

          Mas se esta dose de sacrifício não for de ambos, por acaso, e se apenas um deles reservar as suas economias havidas dos rendimentos de seu trabalho, em detrimento do outro que, em significativo número de vezes sequer atividade remunerada desempenha, além das tarefas do lar, propriamente ditas, então é possível que ocorra uma enorme injustiça, em conseqüência da opção realizada pelo legislador de incluir tais rendimentos entre os que não se comunicam com o outro cônjuge.

          Por outra visão, poderá ocorrer, também, que o cônjuge que desempenha uma atividade profissional, melhor remunerada, esteja encarregado de arcar com um mais significativo número de encargos doméstico-financeiros, enquanto que o outro, até mesmo por ganhar menos, seja capaz de maiores peripécias econômicas, amealhando um acervo de bens resultantes desta economia e que não se comunicarão com o seu consorte, em caso de dissolução da sociedade matrimonial.

          Mas, enfim, quer por qual lado se examine a questão, parece que sempre haverá uma conseqüência que pode ser desastrosa, derivada desta ingênua tentativa do legislador atual de melhorar discrepâncias, entre regimes, ocorridas no Código de 1916.

          Os artigos derradeiros do capítulo do novo Código, acerca do regime da comunhão parcial – os arts. 1663 a 1666 – oferecem uma redação mais objetiva à administração conjugal do patrimônio comum, em redação contextualizada com a Lei nº 4.121 de 1962 (Estatuto da Mulher Casada) e com a igualdade constitucional dos cônjuges, como ao seu modo e com as suas limitações já regulavam os artigos 274 e 275 do Código de 1916, conforme bem analisa Rolf Madaleno.

          3.2.2. Do regime de comunhão universal.

          Este regime foi aquele que, entre nós, e até o advento da Lei do Divórcio, posicionou-se como o regime legal, casando-se sob sua regulamentação a esmagadora maioria de brasileiros, até 1977.

          Conforme suas regras, comunicam-se entre os cônjuges todos os seus bens presentes e futuros, além de suas dívidas passivas, ocorrendo um enorme amálgama entre os bens trazidos para o casamento pela mulher e pelo homem, bem como aqueles que serão adquiridos depois, formando um único e indivisível acervo comum, passando, cada um dos cônjuges, a ter o direito à metade ideal do patrimônio comum e das dívidas comuns. (30)

          No novo Código Civil, o regime da comunhão universal de bens, o regime da unificação patrimonial mais completa, encontra-se disciplinado entre os arts. 1667 a 1671.

          A redação mais enxuta do art. 1668 do novo Código, e seus cinco incisos, repetem – conforme comenta Rolf Madaleno – embora não na mesma ordem, os incisos I, II, III, VI, VII, VIII, IX (parcialmente), XI e XIII do art. 263 do Código Civil de 1916.

          Restarão revogados no futuro – prossegue o referido autor – os incisos IV, V, IX (parcialmente), X e XII desse mesmo artigo 263 do Código que ainda vige. São disposições respeitantes ao regime dotal, revogado pela nova codificação, à fiança prestada pelo marido sem a outorga da mulher e a figura do bem reservado que já havia desaparecido do direito brasileiro com a igualdade constitucional dos cônjuges, deixando de admitir que pudesse seguir a mulher sendo privilegiada com a não comunicação dos bens que, uma vez comprados com os seus próprios recursos financeiros, restavam considerados como sendo bens de sua exclusiva propriedade. (31)

          3.2.3. Do regime de separação de bens. (32)

          Relativamente a este regime de bens, isto é, o regime que visa promover a completa separação patrimonial do acervo de bens pertencente a cada um dos cônjuges, alinho-me, claramente, entre aqueles que anotam ter sido um retrocesso do legislador contemporâneo a inclusão das arcaicas regras contidas na legislação de 1916, estas em franca decadência, depois de fortemente modificadas pela Súmula 377 do STF.

          O novo Código Civil, assim como o Código vigente, em apenas três artigos reescreve, ainda que com redação melhorada, o inteiro contexto proibitivo já anteriormente expressado pelos arts. 276 e 277 do Código Bevilaqua.

          Assim, a nova legislação, no art. 1641 declara as circunstâncias que levarão à obrigatoriedade da separação total, reproduzindo, de certa forma, o que já era invocado, desde 1916, como a circunstância de alguém se casar com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, ou a circunstância de ter mais de 60 anos o nubente (33), ou, ainda, a circunstância de depender, a pessoa que quer se casar, de suprimento judicial.

          A inserção deste dispositivo no novo Código trouxe a renovação de sua aplicação cogente, quiçá, mesmo em face da extensa e robusta jurisprudência de abrandamento, consolidada na Súmula 377 do STF (34), revelando-se como significativo e preocupante retrocesso.

          Rolf Madaleno identifica os problemas que poderão surgir e adverte que a ausência de revogação expressa da Súmula 377 vai ocasionar enormes divergências, sem saber se ela será ou não aplicável, após a entrada em vigor do novo Código Civil. Expressa o autor sua opinião, à face da mantença de um tal dispositivo legal, da seguinte maneira: manter a punição da adoção obrigatória de um regime sem comunicação de bens, porque pessoas se casaram sem observar as causas suspensivas da celebração do casamento (art.1.641, inciso I, do NCC) ou porque contavam com mais sessenta anos de idade (art. 1.641, inciso II do NCC), ou ainda porque casaram olvidando-se do necessário suprimento judicial (art. 1.641, inciso III do NCC), é ignorar princípios elementares de Direito Constitucional, respeitantes à igualdade das pessoas, que não podem ser discriminadas em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil. Sobretudo – ele prossegue – porque atinge direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana, cujos valores já vinham sendo preconizados pela Súmula 377 do STF, ao ordenar a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se estivesse tratando da comunhão parcial de bens. (35)

          Alinho-me, portanto, a esse modo de pensar. Se as dúvidas terão, ou não, procedência, só o tempo dirá. A história jurídica matrimonial brasileira nos dirá, depois.

          Antes de encerrar a análise deste regime de bens do casamento, o regime da separação total, não devo esquecer de mencionar que ele pode ser adotado, pelos nubentes, como fruto da eleição ou escolha, convencionando-lo por meio de pacto antenupcial. Se assim for, o regime em pauta vai se desvendar como um excelente regime patrimonial, no casamento, tendo em vista que ele representa exatamente o contrário disso, quer dizer, ele é a total ausência de regime patrimonial, mantendo bem separados e distintos os patrimônios do marido e da mulher.

          Talvez mesmo tenham integral razão aqueles que prognosticam ser este regime, quando convencionado pelos nubentes, o que se revela como o regime das futuras uniões conjugais […], na medida em que cada um dos cônjuges […] irá concorrer com as suas economias pessoais para atender às cargas específicas da sociedade afetiva, mantendo intactos os seus bens ou as suas fortunas no caso de separação. Especialmente quando se habilitam para um recasamento, conclui Rolf Madaleno, ocorrendo nessas ocasiões, uma forte influência econômica pelo temor de poder arcar com novo prejuízo de uma separação que já lhes tomou anteriormente, significativa parcela dos bens materiais. (36)

          3.2.4. Do regime de participação final nos aqüestos.

Cria, o legislador civil nacional, outro regime de bens, que vem ocupar o lugar deixado pelo regime dotal, sem que, no entanto, guarde relativamente a este qualquer semelhança. Ocupa o lugar, não as características. Ao contrário, o regime da participação final nos aqüestos guarda semelhanças e adquire características próprias a dois outros regimes, na medida em que se regulamenta, em seu nascedouro e suas constância por regras semelhantes às desenhadas pelo legislador para o regime da separação de bens, em que cada cônjuge administra livremente os bens que tenha trazido para a sociedade conjugal, assim como aqueles que adquirir, por si e exclusivamente, durante o desenrolar do matrimônio. Por outro lado, assume de empréstimo regras muito parecidas àquelas dispensadas ao regime da comunhão parcial, quando da dissolução da sociedade conjugal por separação, divórcio ou morte de um dos cônjuges.

          Nesse sentido, cada cônjuge possui patrimônio próprio, que administra e do qual pode dispor livremente, se de bens móveis se tratar, dependendo da outorga conjugal apenas para a alienação de eventuais bens imóveis (CC, arts. 1.672 e 1.673). Mas se diferencia do regime da separação de bens porquanto, no momento em que se dissolve a sociedade conjugal por rompimento dos laços entre vivos ou por morte de um dos membro do casal, o regime de bens como que se transmuda para adquirir características do regime da comunhão parcial, pelo que os bens adquiridos onerosamente e na constância do matrimônio serão tidos como bens comuns desde a sua aquisição, garantindo-se, assim, a meação ao cônjuge não-proprietário e não-administrador.

          Desta feita e porque afastado um dos cônjuges da administração dos bens adquiridos, traça o Código Civil uma série de disposições que, pormenorizadamente, visam disciplinar a apuração dos bens partíveis em meação, pelo valor e no montante verificados na data em que cessou a convivência dos cônjuges (art. 1.683), tudo para evitar se consubstancie qualquer espécie de lesão ao direito do cônjuge que até então figurava como não-proprietário e não-administrador.

          Assim é que o art. 1.674 determina quais os bens que se qualificam como bens aqüestos, excluindo dessa classe aqueles bens que cada um dos cônjuges possui já antes de convolar as justas núpcias, bem como aqueles bens que, no lugar daqueles primeiros se sub-rogaram (inciso I); exclui ainda os bens que sobrevieram ao cônjuge, na constância do casamento, mas em decorrência de liberalidade só a ele dirigida (posto que se instituída em favor de ambos, esse bem seria bem em co-propriedade dos mesmos) ou em decorrência de sucessão (inciso II); e exclui, por fim, as dívidas que sobre esses bens exclusivos pesem, uma vez que, não aproveitando esses bens ao outro cônjuge, a ele não podem também prejudicar (inciso III).

          O art. 1679 institui quotas iguais em créditos estabelecidos em decorrência do trabalho conjunto dos cônjuges, bem como determina o condomínio em mesmas condições na hipótese dos bens terem sido adquiridos na constância do casamento e com a comunhão de esforços laborais, pelo que, como co-proprietários desses bens, aos cônjuges será lícita a administração conjunta dos mesmos e, em caso de dissolução do matrimônio, ser-lhes-á lícito demandar a dissolução do condomínio, se possível e pelos modos legais. Caso contrário, podem optar pela venda do bem e a divisão do valor auferido.

          Em seguida o Código traça regras para que terceiros tenham ciência da real titularidade dos bens pertencentes aos membros do casal que se uniu em matrimônio e que escolheu esse novel regime para lhes reger as relações patrimoniais. Assim é que pelo art. 1.680, presume-se que as coisas móveis, perante os credores de um dos membros do casal, ao devedor pertencem, salvo se o cônjuge não devedor conseguir provar que o bem sob litígio é bem de seu uso pessoal, como uma linha telefônica utilizada exclusivamente pelo não-devedor, uma linha de telefonia móvel nessas mesmas condições, um veículo automotor utilizado da mesma forma.

          No que aos bens imóveis respeita, o Código repete o velho princípio de que titular do domínio é aquele que constar do registro, mas excepciona no parágrafo único do art. 1.681, dispondo que uma vez impugnada a titularidade do bem (por um credor do cônjuge não-proprietário, por exemplo), caberá ao proprietário provar a aquisição regular do bem ou dos bens.

          O Código desenha, ainda, as regras aplicáveis ao caso de o cônjuge proprietário e administrador ter obrado em detrimento da meação futura, quer por ter alienado bens sem a necessária outorga do seu comparsa, ainda que gratuitamente, quer por ter contraído dívidas que em nada aproveitaram à sociedade conjugal.

          Assim, quando da verificação do montante dos bens aqüestos os valores dos bens que tenham sido doados por um dos cônjuges em detrimento da meação do outro, porquanto pendente da necessária autorização conjugal, serão apurados pelo valor que possuiriam no momento mesmo da dissolução, devendo ser computados no monte como forma de se repor a parte lesada, isso se o cônjuge prejudicado ou seus herdeiros não optarem por reivindicar o bem doado, direito que se lhes assiste (art. 1.675). Para Rolf Madaleno, possível é, ainda, a compensação do bem doado por outro de mesmo valor, se com isso concordar o prejudicado (37). O mesmo se dá com os bens alienados em detrimento da meação (art. 1.676).

          Relativamente às dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges e posteriormente ao casamento (porquanto as anteriores só ao devedor digam respeito), por elas responderá o cônjuge que a contraiu, salvo se provar que, de alguma forma, total ou parcialmente, reverteu o crédito tomado em favor do outro, quando, então, este último também responderá (art. 1.677).

          Na hipótese de um cônjuge solver dívida contraída pelo outro e em seu benefício exclusivo, poderá o que pagou com seus bens exclusivos imputar tal dívida paga à meação do devedor beneficiado (art. 1.678).

          Em qualquer hipótese, as dívidas exclusivas de um dos cônjuges que sejam superiores à sua meação não podem obrigar nem ao outro cônjuge, nem aos herdeiros do devedor, caso se trate de dissolução da sociedade conjugal por morte, conforme dispõe o art. 1.686.

          Verificado o montante e descontadas as dívidas imputáveis em comum ou a cada qual do s cônjuges pelas regras assinaladas, há de se proceder à partição do patrimônio. Mas pode ser que a divisão de todos os bens em natureza não seja aconselhável, pelo que é possível que se proceda ao cálculo do valor de alguns bens para que o cônjuge não-proprietário receba sua parte em dinheiro. Se não for possível o pagamento em espécie pelo cônjuge proprietário, é permitida, mediante apreciação judicial, a avaliação e venda de tantos bens quantos bastarem para ultimar a partilha (art. 1684).

          Para o caso de dissolução da sociedade por morte de um dos cônjuges, verificar-se-á o monte sucessível após a separação dos bens conforme as regras traçadas acima, entrando então os herdeiros (descendentes, ascendentes ou mesmo o cônjuge supérstite, em sendo esse o caso) nos bens que constituam a meação do cônjuge morto e em seus bens exclusivos, tudo de acordo com a disposição do art. 1.685.

Notas

As considerações que a autora faz, nesse sub-item deste estudo já foram igualmente registradas, em uma conferência denominada Família e Casamento em evolução, proferida em 15.04.1999, no I Seminário "Desafios e perspectivas do Direito de Família" promovido pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Gustavo Tepedino. "Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio". Temas de Direito Civil, p. 326.

Para aprofundar este assunto, v. Silvana Maria Carbonera. "O papel jurídico do afeto nas relações de família". Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Coord. Luiz Edson Fachin, p. 273 e seguintes.

Direito de Família, Rio, 1889, p. 98, citado por Daniela Maria Cilento Morsello, no artigo denominado "O regime de bens entre os cônjuges, no Projeto de Código Civil". Revista do Advogado, nº 58, p. 91-95.

Leia-se, a respeito, o artigo de Euclides de Oliveira denominado "Separação de fato – Comunhão de bens – Cessação", publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, nº 5, p. 142-154.

Novo Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

O mencionado art 258, § único, incisos I a IV do Código Civil de 1916, foi abrandado pela Súmula 377 do STF, pela qual: "No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Na prática, como bem esclarece Rolf Madaleno ("Regime de bens entre os cônjuges", na obra coletiva Direito de Família e o novo Código Civil), a Súmula 377 do STF elimina o regime obrigatório da separação de bens, subsistindo apenas o regime convencional da separação de bens. Nessa direção, registra o autor gaúcho, pode ser consultado o Recurso Especial nº 208.640 – RS, do STJ, da 3ª Turma, j. 15.02.01, sendo Relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito e com essa ementa: "Casamento. Separação obrigatória. Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes da Corte. 1. Não violenta regra jurídica federal o julgado que admite a comunhão dos aqüestos, mesmo em regime de separação obrigatória, na linha de precedentes desta Turma. 2. Recurso especial não conhecido." Por outro lado – e ainda é Rolf Madaleno quem completa – a jurisprudência também vinha abrandando o rigor do inciso II, deste art. 258, § único, quando impõe a adoção cogente do regime da separação de bens em casamentos de homem maior de 60 e mulher maior de 50 anos de idade. Aresto nesse sentido pode ser conferido na Apelação Cível nº 007.512-4/2-00 da 2ª Câmara de Direito Privado do TJSP, j. 18.8.1998, sendo Relator o Desembargador Cezar Peluso e publicado na Revista de Direito de Família do IBDFAM, da Editora Síntese, Porto Alegre, vol. 1, 1999, p. 98 e seguintes.

Arnaldo Rizzardo. Direito de Família, vol. I, p. 275-276.

Conforme Rolf Madaleno, ao referir-se à lição de José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz.

Entenda-se aqui, como já muito bem explica Rolf Madaleno no capítulo que escreveu para pertencer à obra coletiva publicada em 2001 (1ª edição) pela Editora Del Rey e nomeada Direito de Família e o novo Código Civil, que ‘a expressão concubina não respeita à convivência estável, mas sim à figura da amante, uma relação concomitante ao casamento e portanto, típica de infidelidade ou de adultério conjugal.’

Idem, ibdem.

Idem, ibdem, p. 158 (1ª edição).

Segismundo Gontijo. "Do regime de bens na separação de fato". RT, n° 735, p. 131-160.

TJSP, 3ª C., AC 188.670-1/4, J.11.05.1993, v.u., conforme mencionado por Euclides de Oliveira, no ótimo artigo sobre o assunto, já mencionado em nota anterior (n. 7).

Confira-se, ainda com Euclides de Oliveira, no mesmo artigo já mencionado.

Rolf Madaleno. idem, ibdem.

Eduardo Oliveira Leite. "Aquisição de bens durante a separação de fato". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, vol. 59, p. 139-149.

O regime jurídico brasileiro aceita, no entanto, e desde 1977, uma especialíssima possibilidade de alteração do regime de bens da relação matrimonial. Trata-se da hipótese aventada no § 5º do art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil, com a redação que lhe foi dado pela mesma Lei do Divórcio atrás referida. Este parágrafo autoriza o estrangeiro que adquirir a nacionalidade brasileira pelo processo da naturalização e sendo ele casado sob um regime de bens que se diferencie do regime da comunhão parcial, que requeira a adoção deste último regime, no momento da entrega do decreto de naturalização, mediante expressa autorização do cônjuge e respeitados os direitos de terceiro, procedendo-se ao registro de tal modificação.

Na exposição de motivos de seu Anteprojeto ao Código Civil, Orlando Gomes já havia defendido: Tão inconveniente é a imutabilidade absoluta como a variabilidade incondicionada. Inadmissível seria a permissão para modificar o regime de bens pelo simples acordo de vontade dos interessados. O Anteprojeto aceita uma solução eqüidistante de extremos, ao permitir a modificação do regime matrimonial a requerimento dos cônjuges, havendo a decisão judicial que a defira, o que implica a necessidade de justificar a pretensão e retira do arbítrio dos cônjuges a mudança.

Orlando Gomes. O novo Direito de Família, p. 19-20.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil, Direito de Família, vol. V, p. 150.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Também registrada por Rolf Madaleno, no precioso capítulo de livro já citado.

Débora Gozzo. Pacto antenupcial, p. 126-127.

Art. 45 da Lei do Divórcio: Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por dez anos consecutivos ou da qual tenham perdurados filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, § único, II, do Código Civil.

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

As anotações que alinhavo, a respeito dos diversos regimes de bens, à luz da nova legislação civil brasileira, para os contornos deste estudo, retiro-as, principalmente da excelente análise já realizada por Rolf Madaleno – ilustre colega de IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) – a quem rendo minha especialíssima homenagem (Vide o capítulo – já tantas vezes referido – que ele escreveu na obra coletiva já referida – e da qual igualmente participo –, denominada Direito de Família e o novo Código Civil Brasileiro, capítulo esse intitulado "O regime de bens entre os cônjuges").

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Conf. Maria Helena Diniz. Código Civil anotado, p. 244.

Idem, ibdem.

Este item é tomado – quase que integralmente – da referida construção capitular de Rolf Madaleno inserida na obra coletiva já mencionada, denominada Direito de Família e o novo Código civil Brasileiro, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001, da qual esta autora também faz parte.

O Projeto de Lei nº 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, que visa dar nova redação a inúmeros artigos do Código Civil de 2002, propõe aumentar de 60 para 70 anos esse limite etário para os efeitos da proibição de livre adoção de regime de bens.

Súmula 377 do STF: "No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento".

Rolf Madaleno. Idem, ibdem.

Idem, ibdem.

Rolf Madaleno. Idem, p. 173.

Referências Bibliografias

          CARBONERA, Silvana Maria. "O papel jurídico do afeto nas relações de família". Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Coord. Luiz Edson Fachin, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1998.

          DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 1995.

          GOMES, Orlando. O novo Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984.

          GONTIJO, Segismundo. "Do regime de bens na separação de fato". RT, n° 735, jan/1997, p. 131-160.

          GOZZO, Débora. Pacto antenupcial. São Paulo: Saraiva, 1992.

          LEITE, Eduardo Oliveira. "Aquisição de bens durante a separação de fato". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, vol. 59, jan-mar/1992, p. 139-149.

          MADALENO, Rolf. "Regime de bens entre os cônjuges". Direito de Família e o novo Código Civil. Coord. Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2001.

          MORSELLO, Daniela Maria Cilento. "O regime de bens entre os cônjuges, no Projeto de Código Civil". Revista do Advogado, nº 58, mar/2000, p. 91-95.

          OLIVEIRA, Euclides de. "Separação de fato – Comunhão de bens – Cessação". Revista Brasileira de Direito de Família, nº 5, abr-jun/2000, p. 142-154.

          RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família, vol. I, Rio de Janeiro: AIDE, 1994.

          TEPEDINO, Gustavo. "Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio". Temas de Direito Civil. Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999.

          VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: vol. V, Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2001.

   


 REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka   –   Procuradora Federal em São Paulo (SP); Doutora em Direito pela USP; Professora de Direito Civil da USP e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam)

 


Diferenças entre as sentenças de pronúncia e de condenação no Júri Popular

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* Felipe Luiz Machado Barros

1. INTRODUÇÃO

        O presente trabalho tem a finalidade de expor de maneira prática e didática o conteúdo semântico e formal dos institutos de Direito Processual Penal acima mencionados, de forma que ao final sejam elencadas as principais diferenças entre as sentenças de pronúncia e condenatória no âmbito do Tribunal do Júri.

2. BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DO TRIBUNAL DO JÚRI

        Antes de estudarmos as sentenças de pronúncia e de condenação no Tribunal do Júri, vejamos qual o conceito deste que é o mais popular e famoso instituto de nosso ordenamento jurídico-processual penal, pois, afinal de contas, qual o estudante de Direito que nunca ouviu falar, desde os primeiros passos em uma faculdade, das audiências do Júri Popular? Passemos, então, a uma análise conceitual deste instituto.

        Sem dúvida alguma, o Tribunal do Júri é o mais romântico e democrático dos institutos de Direito Processual Penal, tendo sido criado para proteger os cidadãos contra tiranias e perseguições, de forma que prevalecesse a democracia pelo julgamento do homem pelos seus próprios pares. Não obstante estarmos de acordo com ideais tão essenciais à feitura da justiça, verificamos que hoje em dia há uma subversão à essência do Júri, pela total falta de um justo julgamento dos acusados. Ao dizermos justo julgamento, não estamos nos referindo ao júri popular como se este fosse um tribunal de exceção; estamos falando, sim, que existe um grande despreparo, até mesmo psicológico, daquelas pessoas que são escolhidas para compor a tribuna popular, de forma que, ao serem abordadas por advogados ou promotores que utilizam-se de artifícios de ordem "sentimental", são levadas a julgar de acordo com suas emoções, revelando uma total atecnia, que, na maioria das vezes, acarreta absolvição de um acusado o qual, ao acaso fosse processado dentro de critérios estritamente técnicos, sem sombra de dúvidas, restaria condenado. Outro fator de fundamental importância para o impedimento de um justo julgamento por parte dos acusados em um júri popular é o fator político. Principalmente nas comarcas do interior de nosso Brasil verificamos que as decisões políticas interferem de sobremaneira no pesar de todas aquelas pessoas imbuídas da tarefa de compor o corpo de jurados, de tal forma a ser escolhido "a dedo" o conselho de sentença, a fim de que aquele que procura a via da corrupção do sistema, pelo uso da "politicagem" (parodiando os dizeres do eminente Prof. Paulo Lopo Saraiva), tenha um "justo julgamento". Enfim, verificamos, até mesmo pela maior profissionalização do juiz de direito, ser dispensável o Tribunal do Júri, pelo menos nas comarcas do interior, de forma que esperamos que algum dia prevaleça a técnica sobre o emocional, caso o júri popular não seja modificado, a fim de que os culpados paguem aqui pelos seus atos ilícitos.

        Mas, e qual o conceito de Tribunal do Júri? LEIB SOIBELMAN, em sua Enciclopédia Jurídica (Vol. II, Ed. Rio) nos fornece um conceito geral e bastante técnico: "Tribunal composto de jurados sob a presidência de um juiz togado, cabendo àquele decidir da responsabilidade do réu (questões de fato) e a este a fixação da pena em função das respostas". Conforme os ensinamentos dos FÜHRER, em Resumo de Direito Processual Penal (Vol. VI, Ed. Malheiros, 1999), é o Tribunal do Júri "um órgão de 1ª instância, ou 1º grau, da Justiça Comum", podendo ser da esfera estadual ou federal. É composto de 1 juiz de direito, que é o seu presidente, e de 21 jurados, sorteados entre os alistados. Apenas 7 destes 21 formam o conselho de sentença, em cada sessão. E a competência do Júri, qual seria? Bem, esta nos é fornecida pela CF/88, em seu art. 5º, XXXVIII, sendo competente para julgar os casos que versem sobre crimes dolosos contra a vida, podendo lei ordinária ampliar eventualmente esta competência.

        Enfim, neste trecho do trabalho expomos de maneira bem efêmera o que seria o Tribunal do Júri, sua organização e sua competência, apenas para fornecer subsídios introdutórios à matéria central do trabalho, dependente que é do tema já abordado, qual sejam, as sentenças de pronúncia e condenatória prolatadas em sede de júri popular. É o passo seguinte a se tomar em nosso breve estudo.

3. A SENTENÇA DE PRONÚNCIA. CONCEITO. MOMENTO EM QUE É PROFERIDA. NATUREZA JURÍDICA. PRESSUPOSTOS. A FORMA DA PRONÚNCIA.

        Conceito. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná (RT 544/425), é a sentença de pronúncia mero juízo de admissibilidade, cujo objetivo é submeter o acusado ao julgamento popular.

        Momento em que é proferida. A pronúncia encontra-se, doutrinariamente falando, na fase denominada "sumário de culpa", que é a primeira fase do procedimento do Júri, indo do recebimento da denúncia até a sentença pronunciativa. Aí se dá o exame da admissibilidade da acusação, partindo-se ou não para um julgamento popular. Outro aspecto importante a ser analisado é que na oportunidade da pronúncia outras providências pode o juiz tomar, preterindo-se o pronunciamento. É o caso da ocorrência da impronúncia (quando há negativa de admissibilidade), absolvição sumária (quando existir alguma excludente de ilicitude) ou desclassificação (quando o crime sub examine não for considerado doloso contra a vida, fugindo da competência do júri popular e indo para a álea do Juiz singular).

        Natureza jurídica. A natureza jurídica desta pronúncia é discutida entre os doutrinadores, devido ao fato de uns acharem que se trata de sentença, e outros a denominarem de decisão interlocutória. Os que defendem a idéia de que a pronúncia é sentença dizem que esta se trata de uma sentença "processual", vez que trata de matéria procedimental, sem conteúdo material, não produzindo res judicata; é o entendimento de MIRABETE (Código de Processo Penal Interpretado, Ed. Atlas, 5ª edição, 1997). Já para os que argüem ser a pronúncia decisão interlocutória, defendem sê-la uma decisão interlocutória "não-terminativa", ou seja, que não põe fim ao processo, mesmo sendo uma forma de despacho judicial, cabendo aí recurso em sentido estrito; é o que nos ensina os FÜHRER (Ob. e v. acima cits.). Aderimos à segunda opinião, apesar de o instituto levar o nomen juris de "sentença de pronúncia", vez que, em sentença, analisamos o mérito do feito (CPC, art. 162, § 1º), o que não é o caso da pronúncia, em que o juiz apenas analisa a admissibilidade de se levar o caso ao julgamento popular, e, aí sim, proferir-se uma sentença de mérito, seja condenatória, ou de absolvição.

        Pressupostos. Já vimos então, que no momento da conclusão da 1ª fase do procedimento do Júri, ou seja, a fase "sumário de culpa", o juiz proferirá a sentença pronunciativa, a qual carrega em seu conteúdo a admissibilidade de julgamento de determinado fato perante o povo. Mas e quais os pressupostos legais determinadores de tal admissibilidade? Tais nos são revelados pelo CPP em seu art. 408, caput: "Se o juiz se convencer da existência do crime e de indício de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento". São, então, pressupostos para a pronúncia: a) existência do delito e b) convencimento de que o réu seja o autor. Deverá o julgador, ao pronunciar-se, motivar o seu entendimento acerca da admissibilidade, de acordo com o princípio do livre convencimento do juiz, podendo este buscar nos autos, ou através de diligências, as provas necessárias para a formação dos pressupostos para a sua decisão de pronunciar ou não o acusado. Assim não fosse, estaríamos incorrendo em grave erro de justiça.

        A forma da pronúncia. A função da pronúncia, como já vimos, é admitir que há possibilidade de o acusado ser levado ao Júri, de forma que o juiz, para que não haja injustiça com o pronunciado, e sob pena de nulidade do ato em comento, deverá fundamentar as razões pelas quais criou seu juízo de admissibilidade. Mas não é só isso. Deve também o julgador observar a classificação do crime e suas qualificadoras, também sob pena de nulidade caso não o faça, ou o fazendo, não fundamente as razões que o motivaram a tal. Assim deve o juiz tipificar o delito e suas qualificadoras, a fim de que o acusado saiba pelo o quê está sendo levado a julgamento popular.

4. SENTENÇA CONDENATÓRIA

        A sentença condenatória no Processo de Júri é diferençada da homônima que se passa em sede de Processo Criminal comum. No Processo Criminal comum há apenas um órgão encarregado de julgar e delimitar o quantum da pena a ser aplicada ao acusado: é o juiz ou o tribunal. Já no Processo de Júri a sentença condenatória é ato jurisdicional complexo, na lição de MIRABETE (Ob. cit.), em que os jurados decidem sobre o crime (fato principal, ilicitude, culpabilidade, circunstâncias) e o juiz presidente sobre a aplicação das sanções penais. Fica desta forma a sentença condenatória dividida em duas partes, quando em processos da álea do Júri Popular: a 1ª parte correspondendo à condenação ou não do acusado (ou acusados), de acordo com os quesitos apresentados ao jurados pelo juiz-presidente do tribunal, e a 2ª parte dizendo respeito à dosimetria da pena em caso de condenação, devendo o juiz-presidente obedecer, para tanto, o que foi respondido nos quesitos, de forma que assim estar-se-á respeitando uma prerrogativa constitucional conferida aos jurados, que é a soberania de seus veredictos (CF, art. 5º, XXXVIII, c), de maneira que demonstra-se inconstitucional o disposto no CPP, art. 492, § 1º, que diz: Se, pela resposta a quesito formulado aos jurados, for reconhecida a existência de causa que faculte diminuição de pena, em quantidade fixa ou dentro de determinados limites, ao juiz ficará reservado o uso dessa faculdade. Aí, ao nosso ver, não há o que se discutir. A CF/88 revogou por total este parágrafo do art. 492 do CPP, vez que não há que se falar em faculdade conferida ao juiz, e sim obrigatoriedade em seguir as respostas aos quesitos formulados aos jurados e por estes respondidos. E assim é o que pensa o STJ:

        Dosimetria da pena. Negativa de vigência ao art. 492, I, do CPP. Caracterização. Acórdão que, em caso de tentativa de homicídio simples, sem que o Júri tenha reconhecido qualquer circunstância agravante ou causa de aumento, fixa a pena final da tentativa em oito anos de reclusão, montante superior ao mínimo legal do homicídio consumado. Dosimetria que se afasta das respostas aos quesitos e se apresenta injustificadamente exarcebada. Recurso especial conhecido e provido para cassar o acórdão e restabelecer a sentença (RSTJ 71/247-8).

CONCLUSÃO

        Após uma breve exposição dos institutos sob comento passemos agora a uma conclusão que apenas se justifica pelo objetivo do presente trabalho que é uma comparação entre as sentenças de pronúncia e de condenação no âmbito do Tribunal do Júri.

        Quanto à natureza conceitual, é a sentença de pronúncia instituto pelo qual o juiz submete o acusado ao julgamento popular, devendo tal pronunciamento ser fundamentado pelas razões que levaram o julgador a tal convencimento, até mesmo para que o pronunciado saiba por que crimes, e em que circunstâncias, será levado ao Tribunal do Júri. Já a sentença condenatória, como o próprio nome nos informa, refere-se ao resultado de todo o Procedimento no Júri, ou seja, ocorre no final do processo, de maneira a declarar culpado o réu, o que é feito pelos jurados, devendo o juiz apenas, e de maneira fundamentada, aplicar a dosimetria penal, conforme acima verificamos mais detalhadamente.

        Quanto ao momento em que são proferidas as sentenças de pronúncia e de condenação, ocorre a primeira na fase denominada "sumário de culpa", que vai do recebimento da denúncia até a sentença pronunciativa. Seria a "porta de entrada" do procedimento no júri popular. Já quanto à segunda (sentença de condenação), ocorre na 2ª fase que transcorre do libelo até o julgamento em plenário, onde ocorre o julgamento de mérito. Seria, ao contrário da fase "sumário de culpa", onde aí encaixa-se a pronúncia, a "porta de saída" do procedimento do júri.

        Em relação à natureza jurídica da sentença de pronúncia, apesar de haver discussão doutrinária acerca do assunto (sé é sentença propriamente dita ou decisão interlocutória), somos favoráveis à idéia, com a devida venia dos que pensam em contrário, de que trata-se a pronúncia, não obstante levar o prenome de "sentença", de decisão interlocutória, por tratar-se de mero juízo de admissibilidade e não entrar no mérito da questão, conforme acima já discorremos, mais detalhadamente. Em contraponto, pacífica e mansa é a doutrina quanto à natureza jurídica da sentença condenatória, sendo esta sentença propriamente dita, na acepção da palavra, vez que, aí sim, analisa-se o mérito da questão, de forma que cabível é o recurso de apelação contra a mesma.

        Os pressupostos para a pronúncia são a existência do delito e o convencimento de que o réu seja o autor, apenas pelo juiz. Já para a prolatação da sentença condenatória é necessário que seja o réu condenado pelas respostas apresentadas pelos jurados nos quesitos que lhes são apresentados e que o juiz-presidente apresente o quantum da pena a ser cumprida pelo condenado.

        Assim, encerramos, com esta comparação didática entre SENTENÇA DE PRONÚNCIA E DE CONDENAÇÃO, no âmbito do Tribunal do Júri, o presente trabalho, de forma que esperamos que de algo sirvam estas poucas e humildes palavras, tanto para o nosso aprendizado, como para o de quem conosco o queira compartilhar.

       


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Felipe Luiz Machado Barros:  Assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte

felipe1207@hotmail.com

http://www.qjuris.adv.br

A Lei nº 10.695/03 e seu Impacto no Direito Autoral Brasileiro

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* Guilherme C. Carboni 

No dia 2 de agosto de 2003 entrou em vigor a Lei nº 10.695, que altera dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal em questões relativas à tipificação do crime de violação de direito autoral e às medidas processuais correspondentes. A seguir, examinaremos alguns aspectos da Lei 10.695/03 que entendemos causarem maior impacto no direito autoral brasileiro.

 Anteriormente à entrada em vigor da Lei 10.695/03, o artigo 184 do Código Penal tipificava como crime apenas a violação a direito de autor. Com a nova redação, foram incluídos na tipificação penal os direitos conexos aos de autor, os quais, de acordo com o artigo 89 da Lei nº 9.610/98 (“Lei de Direitos Autorais”), são aqueles pertencentes aos artistas intérpretes ou executantes, aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão.

 No entanto, a referida lei cometeu um deslize nos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 184 ao fazer menção apenas aos artistas intérpretes ou executantes e aos produtores fonográficos, deixando assim de incluir as empresas de radiodifusão na tipificação legal. Portanto, a rigor, apenas a regra geral estabelecida pelo caput do artigo 184 seria aplicável à violação de direitos conexos detidos por empresas de radiodifusão.

 Apesar de o artigo 184, caput, do Código Penal, tipificar o crime de violação de direito de autor e direitos conexos sem intuito de lucro, parece-nos que a tônica da Lei 10.695/03 é penalizar, principalmente, a prática que tenha intuito de lucro direto ou indireto, conforme expressamente estabelecem os parágrafos 1º, 2º e 3º desse mesmo artigo. Para esses casos, o legislador aumentou a pena, com o claro intuito de combater a prática da pirataria de obras protegidas por direitos autorais, inclusive nas novas tecnologias, como a Internet, cujo tipo penal foi definido pelo parágrafo 3º do artigo 184.

 Além disso, a Lei 10.695/03 resolve definitivamente a polêmica questão acerca da cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, ao inserir o parágrafo 4º no artigo 184, que exclui tal prática, de forma expressa, da incidência das penas previstas nos parágrafos precedentes. Portanto, copiar obra integral, em um só exemplar, para uso exclusivamente privado, sem intuito de lucro, não é tipificado como crime.

 Essa, porém, não era a regra do nosso ordenamento jurídico até a entrada em vigor da Lei 10.695/03, razão pela qual tal alteração é muito bem vinda. De fato, o artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, diz que não constitui ofensa aos direitos de autor “a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. Portanto, a limitação ao direito de autor contida no referido artigo legal seria aplicada apenas à reprodução de pequenos trechos e não de obra integral. É por essa razão que a cópia integral de uma obra qualquer, como um livro, por exemplo, até a entrada em vigor da Lei 10.695/03, era tipificada como crime de violação de direito de autor.

No entanto, apesar de a Lei 10.695/03 ter expressamente excluído da tipificação penal a reprodução privada da obra para uso particular do copista, em um único exemplar, sem intuito de lucro, o fato é que continua em vigor a regra do artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais. Portanto, o titular dos direitos autorais ainda pode ingressar com uma ação na esfera cível, visando a apreensão das obras reproduzidas ou a suspensão da prática, além do pagamento de uma indenização pela reprodução integral não autorizada. Por essa razão, já existem diversos estudos em andamento visando alterar a redação do artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, de forma a permitir a cópia integral nos mesmos termos estabelecidos pela Lei 10.695/03.

Assim, podemos dizer que uma das características mais louváveis da Lei 10.695/03 foi a de ter estabelecido pesos diferentes para as penas aplicáveis à reprodução com e sem intuito de lucro, além de ter excluído da tipificação penal a cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, uma vez que cada uma dessas práticas tem diferentes impactos na esfera social e econômica.

Apesar disso, ainda perduram algumas dúvidas acerca da tipificação penal da troca de arquivos de música na Internet, através da tecnologia peer-to-peer, que hoje é uma das formas mais discutidas de aquisição de obras intelectuais. Para tanto, é necessário, num primeiro momento, verificar se a disponibilização da obra na Internet ocorreu com o consentimento do titular dos direitos autorais. Em caso afirmativo, decorre que a cópia única dessa obra, para uso particular, sem intuito de lucro, realizada posteriormente à sua disponibilização na Internet, não tipificaria o crime de violação de direitos autorais e conexos. No entanto, se a obra foi disponibilizada na Internet sem a autorização do titular dos direitos autorais, a pessoa que a disponibilizou e os respectivos copiadores privados incidiriam no tipo penal previsto no caput do artigo 184 do Código Penal. Caso haja intuito de lucro, ainda que indireto, da parte de quem a disponibilizou sem autorização, o tipo penal a ser aplicado é o estabelecido pelo parágrafo 3º do referido artigo legal.

Finalmente, outra novidade da Lei 10.695/03 que merece atenção é a revogação do artigo 185 do Código Penal, que, em linhas gerais, tipificava como crime a atribuição de falsa autoria a obra literária artística e científica. Sabemos que o direito autoral vem sofrendo uma profunda transformação no sentido de privilegiar o seu aspecto patrimonial, o que pode ser verificado pela própria regulamentação internacional da matéria no âmbito da OMC-TRIPS. Também contribuíram para essa transformação os novos valores trazidos pela Internet e pela tecnologia digital que acabam por revestir de certa “moralidade” alguns atos que, nas obras analógicas, seriam considerados “imorais” ao autor. A produção de obras digitais derivadas, através de recombinações de obras preexistentes, muitas vezes sem autorização do autor primígeno, é apenas um dos exemplos da prática que vem ganhando aceitação social, apesar das restrições legais.

Porém, se há um direito moral de autor que necessariamente tem de ser preservado, inclusive com a manutenção do tipo penal específico para incriminar a respectiva violação, é o direito de o autor ser reconhecido como o criador de uma determinada obra. A preservação desse direito não mais tem como fundamento apenas o interesse individual do autor, mas de toda a coletividade, de forma a garantir às pessoas a correta informação acerca da procedência das informações e das obras intelectuais disponibilizadas.

Dessa forma, não vemos razão para a Lei 10.695/03 ter suprimido o artigo 185 do Código Penal. Na verdade, a criação de uma tipificação criminal com pena específica para a falsa atribuição de autoria, na redação anterior do Código Penal, justificava-se pelo valor relevante que esse direito moral de autor representa para a nossa sociedade.

Podemos assim concluir que o impacto da Lei 10.695/03 sobre o sistema do direito de autor brasileiro foi positivo, pois, de um lado, atende aos interesses da indústria e do governo no combate à pirataria e, de outro, o dos usuários de obras intelectuais, que não mais são penalizados criminalmente pela realização de cópias privadas de obras intelectuais, sem intuito de lucro.

           


Referência  Biográfica

Guilherme C. Carboni:   Advogado responsável pela área de Propriedade Intelectual do Escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.

Honorários advocatícios e demais despesas processuais

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* Irene Sayuri Ito

Ao Estado cabem as despesas gerais com a administração da justiça; os litigantes respondem pelas despesas com os serviços que o Estado lhes presta, ou seja, pelas despesas inerentes aos processos de que são partes; aos litigantes necessitados, como tais considerados aqueles que não se acharem em condições de pagar as despesas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, se assegura a gratuidade da justiça.

Despesas envolvem os gastos promovidos para a prática de atos processuais das partes processuais, abrangendo as custas dos atos do processo, como também a indenização de viagem, diária de testemunha e remuneração do perito e do assistente técnico.

Por custas processuais se compreendem todos os gastos que se fazem com e para o processo, desde a petição inicial até a sua extinção. São despesas inerentes ao processo, correspondentes aos atos do processo, e devidas ao Estado, aos sujeitos da relação processual, enfim todas às pessoas que colaboram no desenvolvimento do processo.

Por custas se entendem aquela parte das despesas relativas à expedição e movimentação dos feitos, taxadas por lei, destinada aos cofres públicos.

Dá- se o nome de honorários, a remuneração devida ao advogado que servindo à justiça, aconselha, auxilia e representa as partes em juízo.

Três são os tipos de honorários: convencionados, arbitrados judicialmente e de sucumbência.

Os convencionados são aqueles contratados por escrito ou verbalmente entre o advogado e o cliente. É aconselhável que os serviços prestados pelo advogado sejam previamente estipulados por escrito, conforme prevê o art. 35 do Código de Ética e Disciplina, contendo as especificações e a forma de pagamento, inclusive no caso de acordo.

Como forma de evitar a desvalorização da profissão, os Conselhos Seccionais da OAB fixam valores mínimos de honorários a serem cobrados pelos profissionais. Muito embora, o art. 36 do Código de Ética e Disciplina disponha que os honorários devam ser fixados de acordo com: “ I- a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; II- o trabalho e o tempo necessários; III- a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV- o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional; V- o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente; VI- o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado; VII- a competência e o renome do profissional; VIII- a praxe do foro sobre trabalhos análogos”, nada impede que o valor correspondente aos honorários sejam superiores ao fixado na tabela.

Os honorários quando não convencionados previamente, serão fixados por arbitramento judicial, através de ação própria a ser movida pelo advogado, endereçado ao juiz da causa, que não poderá fixar valor inferior ao estabelecido na tabela. Nos casos de substabelecimento durante o curso do processo, o advogado substabelecido deverá ajustar previamente os seus honorários com o advogado que o substabeleceu.

Já os de sucumbência são aqueles em que a parte vencida deve pagar a parte vencedora, podendo ser acumulado com os honorários contratados.

Dispõe o artigo 20 do Código de Processo Civil que o vencido pagará ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Estabelece-se que a parte vencida será condenada a reembolsar a vencedora das custas e despesas processuais, antecipadas pelo vencedor, se o caso, e os honorários. A sentença, seja declaratória, constitutiva ou condenatória, condenará o vencido, ainda que não haja pedido formulado nesse sentido.

Nas sentenças condenatórias procedentes, os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20%, sobre o valor da condenação; nas condenatórias julgadas improcedentes, os honorários terão por base, dentro dos limites, o valor da causa. Já nas sentenças constitutivas e declaratórias, sejam procedentes ou improcedentes, os honorários serão fixados mediante avaliação equitativa do juiz.

De um modo geral, a fixação dos honorários se assemelham às despesas, de acordo com o princípio da sucumbência: se os litigantes forem vencedores e vencidos em parte, serão entre eles recíproca e proporcionalmente distribuídos os honorários; havendo litisconsórcio, seja ele, ativo ou passivo, os vencidos responderão proporcionalmente; em caso de processo julgado extinto sem julgamento de mérito (art. 267, inciso III), fica o autor responsável pelos honorários; àquele que desistir ou reconhecer do pedido, arcará com os honorários; e, ainda, o réu que de alguma forma dilatar o julgamento da lide, não alegando fato impeditivo, modificativo ou extintivo do pedido do autor, ainda que for vencedor na causa, arcará com os honorários.   

Assim, o advogado, além de receber os honorários convencionados com o cliente, receberá os de sucumbência da parte vencida.

O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil- Lei nº 8.906/94, dispõe em seu art. 24 “ A decisão judicial que fixar ou arbitrar honorários e o contrato escrito que os estipular são títulos executivos e constituem crédito privilegiado na falência, concordata, concurso de credores, insolvência civil e liquidação extrajudicial.”

A execução de honorários poderá ser nos próprios autos; o advogado substabelecido com reserva de poderes, no entanto, não poderá cobrar honorários sem a intervenção daquele que o substabeleceu.  

Multas não se confundem com despesas processuais nem com reparação de danos processuais. São penalidades, sanções, impostas àqueles que, no processo, agem de má-fé, exercem atividades ilícitas em prejuízo da parte contrária ou da finalidade do processo.    


Referência  Biográfica

Irene Sayuri Ito –  Advogada e Especialista em Direito Civil e Processo Civil.  – 2004

irene.ito@ig.com.br

CLT: colisão de interesses

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* Luiz Salvador 

A essência do desenvolvimento econômico é o social

            A prioridade social tem de ser a essência do desenvolvimento econômico, e não um mero apêndice ou um suposto resultado natural do crescimento, como arremata Maria Conceição Tavares, (Folha de São Paulo, 04.11.2001).

            O economista Dércio Garcia Munhós, emérito Professor da Universidade de Brasília, denuncia a política de abertura indiscriminada de nossas fronteiras, sem quaisquer salvaguardas, a partir do Governo Collor, afirmando que de globalização não se tratou, porque na verdade o que existiu foi mera ampliação de comércio, abertura de mercados para as grandes empresas internacionais interessadas apenas na integração vertical:"O que existe, tanto aqui como na Argentina, são planos políticos de poder e não econômicos. Brasil e Argentina fizeram, no Mercosul, uma abertura de mercado para produtos estrangeiros a preços baixos para manter a estabilidade artificial. ´Como os dois países se endividaram muito, precisaram de capitais especulativos de curto prazo, daí surgindo o grande fluxo de dólares para financiar o desequilíbrio. Forçados pelos Estados Unidos e outras potências, países em desenvolvimento abriram suas economias aos grandes grupos financeiros internacionais e enfraqueceram os Estados. Foi assim que nós desmanchamos os bancos estaduais, entregamos o Banespa ao capital estrangeiro e, no entanto, continuamos endividados, na dependência dos EUA e do FMI´´ (Jornal o Povo, Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).

            Nas observações do cientista político Michel Zaidan, coordenador do mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, a globalização só poderia ser resposta à crise atual dos mercados, caso represente mais investimentos, créditos, empréstimos em condições ideais, transferência de tecnologia, sendo que da forma como está posta, ao contrário do que se propaga, representa na verdade, mais endividamento, rigidez fiscal, controle externo e queda de soberania, significando mais arrocho, exclusão, fome: "a solução seria o Brasil percorrer o caminho da China, quando aceitou a globalização impondo condições. O governo mantém controle sobre a política monetária, fiscal. ´´O Mcdonalds até se instala no país, mas depois de se ajustar aos interesses nacionais, ao plano estratégico para entrada de capitais´´, afirma Zaidan. O Brasil, ao contrário, ´´escancarou-se´´. Ela enfatiza que ´´a globalização somente representa progresso quando respeita a forma autônoma de inserção no mercado internacional. O caso da Argentina exemplifica o contrário. O nosso vizinho está indo para o fundo do poço e com um abraço de afogado no Brasil que pode caminhar junto rumo à depressão´´ (Jornal o POVO – Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).

            Como principal defensor da globalização como meio de promoção do desenvolvimento mundial, o sociólogo inglês, Anthony Giddens, o idealizador da Terceira Via e guru do primeiro-ministro da Inglaterra, recomenda como remédio para a crise atual, mais globalização, apontando como um dos argumentos, o fato de que países pobres, como os africanos, estão nessa condição exatamente porque não se beneficiaram da globalização. Contrariando esse posicionamento, o cientista político e professor universitário Francisco José Loyola Rodrigues, diverge, opinando que a história é bem outra, pois que a África está miserável porque os países ricos, principalmente os europeus, deram as costas a ela, depois de séculos de espoliação, sendo que a exploração persiste até hoje, com a cobrança de uma dívida impagável: "O movimento antiglobalização afirma que o abismo entre ricos e pobres no mundo está aumentando e que a responsabilidade disso cabe à globalização. A primeira idéia é questionável e a segunda é falsa. Não existem tendências simples em matéria de desigualdade mundial. Alguns dos maiores países do leste asiático, incluindo a China, têm hoje um PIB muito maior, comparado ao dos países ocidentais, do que tinham 30 anos atrás´´, escreveu, em artigo publicado no último dia 29, em jornal de circulação nacional, Anthony Giddens. O êxito, segundo ele, se deve à participação na economia mundial. Em contrapartida, afirma o sociólogo, ´´as sociedades que procuraram se isolar das influências globalizadoras, como a Coréia do Norte, Mianmar ou Irã, sem falar no próprio Afeganistão, estão entre as mais miseráveis e mais autoritárias do mundo. ´´O que houve na África foi muito diferente: o continente foi vítima do colonialismo europeu durante séculos e quando os colonizadores abandonaram a África, sugada em suas riquezas, estraçalhada, desertificada, ela não teve asa para decolar. O desinteresse se deve, também, à geografia. Os países da América Latina conquistaram sua independência há um ou dois séculos. A África, no caso, não poderia participar da globalização a não ser como vítima a ser ajudada´´ (Jornal o POVO – Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).

            De percepção comum já do povo, até do mais simples, que a economia internacional "globalizada", apesar de sua fantástica capacidade produtiva exemplar, está criando uma realidade nova globalizadora muito preocupante – a de um mundo novo de desempregados, de desiludidos, de desesperançados e de excluídos – decorrente da política de redução do papel do Estado, na busca prevalente do mero interesse particular do lucro, sem qualquer preocupação com a vida, que é a razão principal do Estado.

            Esta realidade cruel, já foi reconhecida até mesmo pelo FHC em sua recente entrevista ao Jornal espanhol "El País", ao redefinir o papel do Estado como um "ser ecológico", ou seja: "O Estado deve ocupar-se da vida. A vida, as pessoas, a saúde, a educação, a segurança, o meio ambiente. O mercado não se ocupa disso. Nunca se ocupou nem vai ocupar-se. O Estado deve ser o gestor da vida e o mercado, o gestor dos bens. E a vida tem que prevalecer sobre os bens" (Folha de São Paulo, 30.10.2001).

            A crise vivenciada não apenas pelo Brasil e Argentina, mas de todos os países em desenvolvimento está centrada na percepção de um descompasso entre fluxos comerciais e financeiros. O compromisso financeiro assumido é incompatível com o perfil de integração comercial argentino e brasileiro. O relatório do Banco Mundial (Bird) é esclarecedor sobre esta questão: Argentina e Brasil devem sofrer mais por causa das turbulências nos mercados de capitais do que devido a efeitos comerciais relacionados ao enfraquecimento da atividade global" (Folha de São Paulo, 04.11.2001). E como sintetiza o articulista da Folha, Gilson Schwartz: "Isso reflete o nível elevado de dívidas públicas e privadas e grandes déficits em conta corrente, cerca de 3% do PIB para a Argentina e em torno de 5% para o Brasil. Com esse perfil de dívida, nem a queda dos juros no resto do mundo ajuda". Chega de ilusão, os Países ricos na verdade usam do discurso da liberação do comercio global, mas dentro de suas fronteiras defendem intransigentemente os seus interesses internos (agricultura e políticas de antidumping e anti-subsídio).

A orientação nº 319 do Banco Mundial e a política de desmonte dos direitos trabalhistas

            Não foi por outro motivo que o constituinte brasileiro, ao reconhecer essa realidade incontestável de objetivos diversos e buscando assegurar ao Estado condições da promoção do bem comum e tendo o homem como beneficiário e destinatário de todas as riquezas geradas pela produção econômica, assegurou a prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro (CF, art. 5º, inciso XXIII e 170, incisos, I, III, V, VI, VII, VIII).

            Não obstante a necessidade do respeito ao direito pleno de soberania de cada país, é de todos sabido que o Banco Mundial por seu documento técnico nº 319, como condicionante à liberação dos empréstimos internacionais, impõe aos países tomadores desses recursos, e em especial os ditos emergentes, como Argentina e Brasil, novas concepções de Justiça, do Direito do Trabalho, de emprego, flexibilizando-se sua legislação de sustento, pela política neoliberal de prevalência do negociado sobre o legislado. As normas rígidas existentes nos códigos, constituições já não servem ao mercado. O que se pretende atualmente não é valorizar o trabalhador, mas adaptar o trabalho ao mercado: "a economia de mercado demanda um sistema jurídico eficaz para governos e setor privado visando solver os conflitos e organizar as relações sociais. Ao passo que os mercados se tornam mais abertos e abrangentes e as transações mais complexas, as instituições jurídicas formais e imparciais são de fundamental importância. Sem estas instituições, o desenvolvimento no setor privado e a modernização do setor público não será completo". Diz, ainda, a referida "recomendação" que os programas de Reforma do Judiciário devem ser feitos em etapas: "a construção de um projeto de reforma global do Judiciário como objetivo principal, o que demanda um tempo razoável, discussões, estratégias políticas, e ao mesmo tempo se implementar alterações legislativas fracionadas que irão mudando o contexto global" (CLAIR DA FLORA MARTINS, IV ELAT, realizado na Argentina, de 24 a 27.10.2001, exposição feita no painel: Reforma Laboral: Disponibilidad colectiva y contrato individual. Derechos adquiridos).

            De se ressaltar, portanto, que o exemplo de se seguir a política suicida de desmonte da legislação social e trabalhista, privilegiando os interesses particulares de mercado, já foi rigorosamente seguido pela Argentina e de nada adiantou, não se vislumbrando saídas econômicas promissoras, sendo que o seu nível de arrecadação baixou 11%, além de contar com dois problemas de difícil solução, a dívida dolorizada e a dificuldade política de redução do repasse de verbas públicas às províncias e, tudo isso, apesar do reconhecimento inconteste de ser a Argentina um dos países mais competitivos do mundo no setor agrícola e de possuir o nível educacional e cultural dos mais altos da América Latina.

            Segundo o economista Paulo Leme, do Goldman Sachs, um dos estrategistas de mercados emergentes mais respeitados de Nova York a sua situação econômica é das mais complicadas e conclui: "Renegociar a dívida não resolve a crise da Argentina.’Com a piora do quadro mundial, a economia projeta retração de dois dígitos, o que agrava ainda mais o quadro da Argentina. A estratégia do déficit zero não funciona com a economia mundial em queda".(jornal da Lílian, Sexta-feira, 02 de novembro de 2001, Os rumos da Argentina depois do oitavo pacote).

            Apesar disso, tudo, a opção do Presidente Fernando De la Rua é por mais globalização e por mais flexibilização dos direitos trabalhistas, como denunciou o jurista Dr. Héctor RECALDE (da Argentina) em sua intervenção no IV ELAT (Encontro Latino-Americano de Advogados Laboralistas), realizado em Buenos Aires de 24 a 27 de outubro de 2001, painel: Incidência de la globalización Y el neoliberalismo em el derecho laboral argentino y latinoamericano: "atendendo à orientação contida na Orientação nº 319 do Banco Mundial, o governo do Presidente Fernando De la Rua acaba de enviar expediente à referida agência mundial, comunicando que o governo da Argentina prossegue sua política legislativa de flexibilização dos direitos trabalhistas, agora legalizando inclusive a terceirização de mão de obra no País, até mesmo através das Cooperativas de Trabalho".

            No Brasil, a situação não é muito diferente, sendo que o que nos diferencia são as garantias sociais e trabalhistas estarem asseguradas pela Constituição Federal, o que dificulta um pouco mais a política de desmonte dos direitos trabalhistas então já consolidados no patrimônio jurídico dos trabalhadores, como créditos de ordem pública, alimentares e indisponíveis, só podendo ser renunciáveis na presença do Juiz do Trabalho, como forma de evitar-se fraudes, como ressalva PINTO MARTINS: "(…) pois, nesse caso não se pode dizer que o empregado esteja sendo forçado a fazê-lo" (MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 8ª edição, SP Edit. Atlas, 1999).

            Como na Argentina, o governo neoliberal de FHC tem procurado seguir à risca a cartilha neoliberal de flexibilização e desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas em prol da regulação própria de mercado, como se extrai do exame da legislação já modificada: "banco de horas" (sistema de compensação de horas-extras), "contratação por tempo determinado, com redução de encargos", etc, sendo que no Congresso Nacional tramitam diversos projetos de lei que tem preocupado os trabalhadores e as entidades nacionais existentes compromissadas com a defesa, o direito e o respeito à manutenção das garantias legais protetivas do trabalho humano (entidades sindicais obreiras, OAB, Abrat, ANAMATRA e Associação dos Procuradores do Trabalho, dentre outras).

            Dentre esses Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, especial destaque deve ser atribuído:

            a)- ao Projeto de Lei 4.302-B, que pretende alterar a Lei 6019/74, para permitir-se a legalização da locação de mão de obra, por prazo de nove meses e ou mais, por negociação coletiva, quer para os casos de atividade "meio"e ou mesmo para os casos de "atividades fins", autorizando, assim, a que a terceirização seja praticada livremente sem quaisquer ressalvas e ou reservas;

            b)- ao Projeto de Lei 5483/2001, encaminhado em regime de urgência, que alterando o art. 618 da CLT, pretende a prevalência do negociado sobre o legislado, sem antes assegurar-se as salvaguardas necessárias a que efetivamente haja uma livre e necessária negociação coletiva, sem submissão do trabalho aos interesses do mero interesse particular do lucro do capital, sem preocupação com a vida e ou com o social, que é papel exclusivo do Estado. A nova redação de alteração do art. 618 da CLT proposta pelo Projeto governamental tem a seguinte redação: "As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde de que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e de saúde no trabalho".

            Em nosso entender, além de equivocado o projeto, principalmente neste momento de crise e de desemprego mundial crescente, o projeto colide com o texto constitucional que não autoriza flexibilizações outras da legislação protetiva do trabalho humano, já que expressamente a própria Carta Política vigente já limitou a flexibilizou onde entendeu possível, ou seja: "redução do salário (art. 7º, VI); redução da jornada de oito horas diárias (art.7º, XIII) ou da jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento (art.7º, XIV).

            E como ressalta o conhecidíssimo Professor José Affonso Dallegrave, autor de diversas obras jurídicas publicadas pela Editora LTR, o direito do trabalho após sucessivas medidas flexibilizadoras ocorridas nos últimos 40 meses (desde a edição da Lei 9601/98) tornou-se um dos mais flexíveis do mundo. A mão-de-obra com todos seus encargos básicos (férias, 13º e FGTS) é uma das mais baratas do mundo, sobretudo se considerarmos o valor do Salário Mínimo (vergonha nacional).

            Cite-se como exemplo algumas inovações legislativas que aniquilaram direitos

            trabalhistas historicamente conquistados:

            – banco de horas – art. 59 da CLT;

            – trabalho a tempo parcial. art. 58-A da CLT;

            – suspensão temporária. art. 476-A da CLT;

            – fim da estabilidade do servidor público – art. 41 da CF/88;

            – denúncia da Convenção 158 da OIT;

            – redução do prazo prescricional do rurícola – Emenda Constitucional;

            – Súmula 330 do TST;

            – eficácia liberatória ampla das Comissões Prévias – art. 625-E;

            – fim do salário "in natura" em face da alteração do art. 458 da CLT;

            – redução de salário mediante ACT ou CCT, art. 7º, da CF;

O direito trabalhista brasileiro é tutelar, inadmitindo restrição de direitos irrenunciáveis.

            O nosso ordenamento jurídico assegura a garantia da indisponibilidade e da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas: "No direito do trabalho, unânime a aceitação de que a regra é a inderrogabilidade relativa das regras jurídicas, máxime diante dos arts. 9º, 444 e 468, da Consolidação das Leis do Trabalho; as partes interessadas podem dispor, sim, desde que não contrariem os patamares mínimo e máximo estabelecido pelo ordenamento jurídico, quer em lei, quer em instrumento normativo da categoria, sob pena de nulidade (…). Os direitos dos trabalhadores, quer os previstos em lei, quer os negociados em acordos, convenções coletivas ou previstos em sentença normativa, assim como os abrangidos por normas emanadas de autoridades administrativas no exercício de sua competência legal, se inserem nos contratos individuais de trabalho, tornando irrenunciáveis as respectivas cláusulas". (ALDACY RACHID COUTINHO in "A INDISPONIBILIDADE DE DIREITOS TRABALHISTAS", monografia publicada na Revista da Faculdade de Direito da UFPR Vol. 33 – 2000, pág. 09).

            Os direitos sociais e trabalhistas foram elevadas à categoria de direitos fundamentais, artigos, 6º, 7º e parte final do § 2º do art. 114 da CF, garantia constitucional esta que veio a ser reafirmada recentemente pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que, no exercício de sua competência plena e exclusiva de guardiã da Lex Legum (CF, art. 102, caput e inciso III "a"), decidiu que o direito ao negociado não pode violar os direitos legais irrenunciáveis dos trabalhadores: "Acordo Coletivo e Estabilidade de Gestante (…). Os acordos e convenções coletivas de trabalho não podem restringir direitos irrenunciáveis dos trabalhadores (…)STF, Primeira Turma, RE 234.186-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, in DJ de 31.08.01).

A aprovação do projeto na Câmara dos Deputados e suas conseqüências

            Após o período de obstrução praticado pela própria base parlamentar de sustentação ao governo, o projeto de lei 5483.2001, que dá prevalência ao negociado sobre o legislado, acabou por ser aprovado pela Câmara no início da noite da terça-feira (04.12.2001), em tumultuada sessão onde votaram 479 deputados, sendo que 264 foram favoráveis ao projeto, 213 se posicionaram contrariamente e dois se abstiveram. Agora o PL segue para apreciação no Senado.

            Para a obtenção desse resultado, o governo neoliberal do FHC, colocou na rua toda a sua tropa de choque, ministros, governadores, empresários, como forma de "pressionar" os parlamentares de sua base aliada a votar num projeto antipopular, submetendo sua base aliada a um confronto direto com a representação dos trabalhadores, contrários à aprovação do Projeto (OAB, ABRAT, ANAMATRA, ANPT, sindicatos, centrais sindicais, dentre outras entidades diversas que se mobilizaram para manifestação do seu repúdio à referida alteração).

            Aprovado o Projeto, já no dia seguinte (05.12.2001), o Correio Braziliense NOTICIA NA PRIMEIRA PÁGINA que o CUSTO da aprovação do projeto, para o Governo, foi de quase R$ 800 mil destinados a Força Sindical e R$ 5,1 MILHÕES concedidos aos deputados em emendas então apresentadas ao orçamento da União, denúncia esta que se confirmada, certamente servirá de mais um dos fundamentos ao ajuizamento da ADIN perante o STF, tornando ILEGÍTIMA A VOTAÇÃO, por vício de vontade.

            O Dr. Celso Soares, do Rio de Janeiro, ex-Presidente da Abrat, examinando os efeitos perversos do Projeto aprovado pela Câmara conclui que: O projeto 5483 "não" altera o art. 618/CLT. Na verdade, pode "nem estar aí" para ele. O que ele faz ? Rompe, quebra, implode, destrói, detona os PRINCÍPIOS do Direito do Trabalho, sendo que a indisponibilidade e a irrenunciabilidade, vão estar em livros que nós iremos ler para as próximas gerações, dizendo como era o direito do trabalho no século "passado". Mas, os princípios da indisponibilidade e da irrenunciabilidade são garantias intrínsecas do tipo de sociedade que desejamos, capitaneada por um Estado protetor que intervém no mercado para garantir um necessário equilíbrio entre a desigualdade existente entre a força do trabalho e o capital, assegurando a prevalência de uma legislação mínima de sustento ao trabalhador, deixando para os acordos e CCT a discussão das novas conquistas complementares de melhores condições de vida e de salário. Tais direitos estão no mesmo patamar da defesa ao negro, à criança, ao deficiente físico, ao consumidor etc "etc.".

A necessidade do restabelecimento da prevalência do social assegurado pela Carta Política vigente

            Há que se reagir contra essa idílica visão economicista traçadas pelas políticas neoliberais da última década, que após a queda do muro de Berlim, mudou de rumo. Ao invés de se persistir nos caminhos da busca do pleno emprego, inverteu-se as prioridades, ao abandonar esse objetivo, "à medida que as teorias neoliberais passaram a acentuar uma espécie de relação perversa entre pleno emprego e inflação, disseminando conceitos deletérios como o de uma taxa natural de desemprego ou a existência de milhões de inempregáveis. Temos que reagir e voltar ao ideal da busca do pleno emprego" (Rubens Ricúpero, Folha de São Paulo, 04.11.2001).

            Resta-nos, portanto, agora, que o Senado da República, faça prevalecer os primados constitucionais vigentes, não permitindo que o Governo Federal, representado na figura de Presidente, continue a violentar a Constituição cidadã que jurou respeitar, passando a exercer plenamente a soberania nacional, como o inalienável direito dos povos livres (CF, art. 1º, inciso I), cumprindo o primado da prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro, fazendo valer o reconhecido papel do Estado como um "ser ecológico", que se ocupa com as pessoas, com a saúde, com a educação, com a segurança, com o meio ambiente – um Estado gestor da vida – já que o mercado não se ocupa disso. Que se faça prevalecer a vida sobre os bens!!!


Referência  Biográfica

Luiz Salvador  –   Advogado Trabalhista no Paraná, Diretor para Assuntos Legislativos da ABRAT, Integrante do Corpo Técnico do DIAP  (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).

defesatrab@uol.com.br

http://www.direitodotrabalhador.com.br

Responsabilidade Civil das Sociedades pelos Danos Ambientais

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* Juliana Piccinin Frizzo

Sumário: 1- Introdução. 2- Conceito de Responsabilidade. 3- A Responsabilidade Civil. 4- Histórico da Responsabilidade Civil. 5- A Responsabilidade Civil no Direito Atual. 6- Elementos da Responsabilidade Civil. 7- Responsabilidade Objetiva e Subjetiva. 8- Responsabilidade Contratual e Extracontratual. 9- A Responsabilidade Civil das Pessoas de Direito Privado (sociedades). 10- Dano Ambiental. 11- Responsabilidade Civil pelo Dano Ambiental. 12- Conclusões. 13 – Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

            O meio-ambiente começou a ser tutelado, no Brasil, na década de 80, por ocasião da publicação das Leis nºs 6.938/87 e 7.347/85. A primeira, mais importante para o presente estudo, apresenta as bases para a proteção ambiental, conceituando as expressões: meio-ambiente, poluidor poluição e recursos naturais.

            O dano ambiental é a temática mais forte desta exposição, e ocupa o lugar de notícia assídua em todos os pontos do mundo. Enquanto a humanidade está preocupada com o desenvolvimento econômico individual de seu país, a degradação ambiental alcança efeitos incontroláveis pelo homem.

            O objetivo desta exposição é chamar a atenção dos profissionais do direito em relação ao direito coletivo do meio-ambiente. Um direito que pertence a todos, e ao mesmo tempo a cada um, pois todos têm o direito de viver num meio circundante ecologicamente equilibrado, um habitat, que ainda seja natural, e que forneça ao homem a melhor qualidade de vida possível. Mas é impossível tal ambiente, se não reinar na consciência mundial a preservação e a reparação do meio-ambiente natural e artificial.

            O direito de um meio-ambiente sadio, no Brasil, está consagrado na Constituição Cidadã de 1988, que no seu artigo 225 garante a responsabilização dos infratores em reparar os danos causados (§3º, art. 225, CF/88).

            Para tanto, é necessário entender os conceitos relacionados ao instituto da responsabilidade, principalmente a responsabilidade civil, já que é ela quem assegura o reestabelecimento do estado anterior ao dano ou então, a reparação pecuniária satisfatória ao dano causado.

            O presente trabalho está dividido em itens que versam, no primeiro momento, sobre a responsabilidade civil, seu conceito, seu histórico mundial e brasileiro, seus pressupostos e modalidades. Na seqüência, sintetiza-se a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado, quanto ao dano causado por elas ou por seus sócios.

            O dano ambiental é abordado quanto ao aspecto da responsabilidade civil que este pode gerar aos seus causadores. As espécies de reparação e o dano moral ambiental também são explorados.

            Ao finalizar o estudo, expõe-se uma síntese com as principais conclusões retiradas de cada item.

2. CONCEITO DE RESPONSABILIDADE

            Toda manifestação da atividade humana traz em si o problema de responsabilidade. E talvez seja essa a maior dificuldade enfrentada pelos doutrinadores que tentam conceituá-la.

            A responsabilidade pode adquirir um significado sociológico, no qual ganha aspecto de realidade social, pois decorre de fatos sociais, é fato social. Segundo Pontes de MIRANDA apud DIAS (1997, p. 7-10) os julgamentos de responsabilidade são reflexos individuais, psicológicos, do fato exterior social, objetivo, que é a relação de responsabilidade. Já sob o ponto de vista jurídico, a idéia de responsabilidade adota um sentido obrigacional: é a obrigação que tem o autor de um ato ilícito de indenizar a vítima pelos prejuízos a ela causados.

            Para alguns juristas, como Serpa LOPES (1962, p. 187), o vocábulo responsabilidade provém de "respondere", que quer dizer aproximadamente, o ter alguém se constituído garantidor de algo. Então, responsabilidade significa garantia ou segurança de restituição ou compensação.

            Interessante se mostra a definição de SOURDAT apud LOPES (1962, p. 187) para a responsabilidade: "é a obrigação de reparar o dano resultante de um ato de que se é autor direto ou indireto".

            Ainda mais profundamente conceitua PIERSON e DE VILLÉ apud LOPES (1962, p. 187): "é a obrigação imposta pela lei às pessoas no sentido de responder pelos seus atos, isto é, suportar, em certas condições, as conseqüências prejudiciais destes".

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL

            A responsabilidade civil consiste na obrigação do agente causador do dano em reparar o prejuízo causado a outrem, por ato próprio ou de alguém que dele dependa. Assim, a responsabilidade civil pode ser conceituada pela obrigação de fazer ou não–fazer ou ainda pelo pagamento de condenação em dinheiro.

            De acordo com o exposto, a noção de responsabilidade, no campo jurídico, amolda-se ao conceito genérico de obrigação, o direito de que é titular o credor em face do dever, tendo por objeto determinada prestação. No caso assume a vítima de um ato ilícito a posição de credora, podendo, então, exigir do autor determinada prestação, cujo conteúdo consiste na reparação dos danos causados.

            Quando se aplica essa idéia à responsabilização civil, quem deve é o devedor e quem responde pelo débito, ou pela reparação do dano é o seu patrimônio. Dessa forma, o autor de um ato (civil) ilícito tem o dever de reparação patrimonial, mas nunca responderá com sua prisão pelo débito, até porque tal hipótese não está prevista nas hipóteses constitucionais de prisão civil do artigo 5º, inciso LVIII: obrigação alimentícia e depositário infiel.

            Só a pessoa capaz, ou seja, dotada de capacidade plena tem responsabilidade própria. Quando o ente não possuir capacidade plena para o exercício de seus direitos, que responde por seus atos civis é o seu responsável. No caso das pessoas jurídicas, essas são plenamente responsáveis pelos atos de emissão volitiva da coletividade representada. Quanto às sociedades, pessoas jurídicas de direito privado, podem ser sociedades de fato ou irregulares caso em que não possuem registro de seu contrato social na Junta Comercial competente. Essas sociedades não possuem personalidade jurídica, portanto não há autonomia patrimonial em relação aos sócios, e a responsabilidade da sociedade é solidária a desses.

            É possível caracterizar a responsabilidade como a repercussão obrigacional da atividade humana, sendo que todo ente capaz de adquirir direitos e exercê-los por si mesmo diretamente, responderá pelos danos causados por meio de sua atuação no mundo jurídico. Assim, a responsabilidade pode ser civil ou penal.

            Segundo MAZEAUD et MAZEAUD apud DIAS (1997, p. 7) a real distinção entre a responsabilidade penal e a responsabilidade civil está na diferença do direito penal e do direito civil. Na responsabilidade civil não se busca a perturbação à paz social causada pelo dano ao particular. Também não importa se a pessoa obrigada à reparação de um prejuízo seja, ou não, moralmente responsável. "Aquele a quem sua consciência nada reprova pode ser declarado civilmente responsável".

            Porém, não é esta a posição mais adotada na doutrina brasileira. Diz DIAS (1997, p. 8-9):

            Reafirmamos, pois, que é quase o mesmo, o fundamento da responsabilidade civil e da responsabilidade penal. (…) Tratando-se de pena, atende-se ao princípio nulla poena sine lege1, diante do qual só exsurge a responsabilidade penal em sendo violado a norma compendiada na lei; enquanto que a responsabilidade civil emerge do simples fato do prejuízo, que viola também o equilíbrio social, mas que não exige as mesmas medidas no sentido de restabelecê-lo, mesmo porque outra é a forma de conseguí-lo.

            A responsabilidade, tanto a civil como a penal, advém do ato ilícito, portanto, ambas possuem o mesmo fato gerador, ou seja, o comportamento humano. Enquanto o Direito Penal dá atenção ao agente criminoso e sua repercussão no contexto social, o Direito Civil prioriza a vítima, a fim de restaurar-lhe o prejuízo causado pela violação de seu direito. Sob o ponto de vista sociológico, a responsabilidade penal visa exclusivamente à paz social, e a responsabilidade civil busca impor a determinada pessoa à obrigação de indenizar o dano causado a outrem, tendo como finalidade precípua o restabelecimento da situação anterior.

            É comum o desencadeamento das duas responsabilidades pela mesma conduta do agente, simultaneamente o Estado aplica sanção penal e autoriza à vítima a postular a reparação dos danos sofridos. Os crimes ambientais são um exemplo de ato ilícito que gera a responsabilização penal e também a civil, conforme se pode aferir do artigo 3º da Lei nº 9.605/982.

            Outra diferença marcante entre as responsabilidades penal e civil é demonstrada pela citação de LOPES (1962, p. 191):

            No ilícito penal, a pena é cominada em proporção à gravidade do crime, tomando-se em linha de conta a personalidade do delinqüente, seus antecedentes, etc., ao passo que, no ilícito civil, nenhuma influência o grau da culpa exerce no montante da indenização a ser paga, cuja realização se efetua na proporção do dano causado.

            Diante da possibilidade de coincidência da responsabilidade civil e penal pelo mesmo ilícito, pode haver também a interferência de uma jurisdição sobre a outra, normalmente, a penal sobre a civil. Mas este é um ponto que não será abordado pelo presente estudo.

4. HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

            Antes mesmo do Direito Romano, as mais antigas codificações mesopotâmicas já previam a noção de reparação de dano. O Código de Hamurabi punia o causador do dano com sofrimento igual. A civilização helênica instituiu o conceito de reparação do dano causado, com sentido objetivo, e independente da violação das normas predeterminadas.

            A idéia de dano nasce quando ainda vigorava no mundo a lei da vingança privada, que na concepção de DIAS (1997, p. 17) transcrevendo MAZEAUD et MAZEAUD é a "forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal". Valia a famosa lei de Talião, ou seja: "olho por olho, dente por dente"

            Na Lei da Doze Tábuas encontrava-se o seguinte critério: "si membrum rupsit ni eo pacit tálio est". Significava que o poder público intervinha no direito da vítima de retaliação, dizendo o legislador quando e em que condição ele poderia ser usado.

            Logo após este período veio a composição, na qual a vítima não podia mais fazer justiça com as próprias mãos, compelindo-se a aceitar o acordo fixado pela autoridade. No decorrer do tempo, com o uso da composição foram sendo fixadas as penas indenizatórias, de acordo com o dano causado. Surgiu a necessidade de separar os delitos em públicos e privados; os primeiros eram ofensas mais graves, de caráter perturbador da ordem, e eram reprimidos pela autoridade; nos últimos, a autoridade apenas intervinha para fixar a composição, evitando conflitos.

            A partir daí surgiu a distinção da responsabilidade penal da civil. Já na Lei de Aquília surgiu um princípio geral de reparação de dano. Originou aí a expressão "culpa aquiliana", designando a responsabilidade extracontratual em oposição à contratual. Sua maior inovação foi substituir as penas fixas para indenizações proporcionais aos danos causados, assim, "dano que não causava prejuízo, não dava lugar à indenização".

            No Direito Romano, a responsabilidade tinha um caráter genuinamente objetivo. A indenização não consistia no elemento representativo da soma paga, e sim na "poena" (pena). Somente se considerava a causalidade pura e simples.

            Com os Códigos justinianeus a noção de culpa passou a subjetivar a responsabilidade. Originou-se a necessidade de diferenciar-se os termos: inuria e culpa. O primeiro representava os casos de um dano produzido sem direito, ou seja, quem quer que produzisse um dano sem nenhum direito permanecia obrigado, ainda que, para evitar o fato, houvesse se procedido com a mais escrupulosa diligência e cuidado.

            Com a introdução da noção de culpa, a jurisprudência clássica isentou o agente de toda e qualquer responsabilidade quando houvesse procedido sine culpa. Dessa forma, a culpa foi considerada elemento básico da responsabilidade.

            No período final da República, a expressão inuria, ou ato contrário ao direito, tornou-se sinônima de culpa, o dano é resultado de ato positivo do agente, praticado com dolo ou culpa.

            Em breve síntese: o Direito Romano evoluiu da vingança privada ao princípio básico de que não é lícito fazer justiça com as próprias mãos, com a imposição da autoridade do Estado; evoluiu da pena como reparação, para a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, por instituição do elemento subjetivo de culpa, pela adoção da máxima nulla poena sine lege. Há que se ressaltar, que nos últimos estágios de desenvolvimento do Direito Romano, não se cogitava apenas os danos materiais, mas também os danos morais.

5. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO ATUAL

            O Direito Moderno segue, preponderantemente, o conceito de responsabilidade civil calcada na noção de culpa. Nestes termos dispõe o Código Civil Italiano, que no seu artigo 2.043 diz que todo o fato delituoso ou culposo, que ocasione a outrem um prejuízo injusto, obriga ao que o perpetrou a ressarcir o dano. As únicas exceções são a legítima defesa e o estado de necessidade, que mesmo assim concede ao Juiz o poder de fixar indenização equânime para o prejuízo sofrido.

            O Código Civil Grego também se fixa na culpa como fundamento da responsabilidade civil, mas, em casos especiais, admite a responsabilidade objetiva, como no caso do mandatário sem poderes e até cria a hipótese de culpa presumida, responsabilidade pelo fato causado pelo animal doméstico.

            No Direito Germânico, o princípio fundamental é o da culpa, elemento integrante da responsabilidade civil, como se pode notar no §826 do B.G.B. Há alguns casos que se exige dolo, não sendo a culpa suficiente.

            Igualmente, o Direito Francês adota o princípio da culpa. Desde os artigos 1382 e 1383 do Código Napoleônico (1804), a responsabilidade abrange todo ato do homem que representa uma culpa. Apesar disso, foi no Direito Francês que surgiram as primeiras idéias da teoria objetiva da responsabilidade.

            No Brasil, as Ordenações do Reino não regulavam claramente a responsabilidade ligada à indenização, confundindo a reparação, a pena e a multa. E ainda, dispunham a aplicação do Direito Romano subsidiariamente ao direito pátrio.

            Em 1830, o Código Criminal do Império determinava em seus artigos 21 e 22 a obrigação do delinqüente em satisfazer o dano causado com o delito, e prescrevia que essa satisfação seria sempre a mais completa possível.

            De acordo com as observações de DIAS (1997, p. 23):

            Aí estavam estabelecidas: a reparação natural, quando possível, a garantia da indenização (o legislador não hesitou em ir a extremos, na preocupação de assegurá-la), a solução da dúvida em favor do ofendido, a integridade da reparação (até onde é possível), a contagem dos juros reparatórios, a solidariedade, a hipoteca legal, a transmissibilidade do dever de reparar e do crédito de indenização aos herdeiros, a preferência do direito de reparação sobre o pagamento das multas etc.

            A terceira fase, no tocante à responsabilidade civil, inicia-se com Teixeira de Freitas que desejava separar a responsabilidade civil ligada à responsabilidade criminal, imposta pelo Código Criminal. Então, a satisfação do dano causado pelo delito passou a ter lugar próprio, a legislação civil.

            Esta regra foi posta em nosso ordenamento no artigo 159 do Código Civil de 1916, consagrando a teoria da culpa. Já o novo Código Civil distanciando um pouco, consagra a teoria do risco e admite, juntamente com a responsabilidade subjetiva, a responsabilidade objetiva, conforme se pode perceber com a leitura dos artigos 1863 e 9274 da Lei nº 10.406/2002.

6. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

            Fixada o conhecimento elementar de que a responsabilidade civil baseia-se no fundamento de que aquele quem causa dano a outrem, impõe-se o dever de o reparar. No Código Civil de 1916, como foi mencionado anteriormente, o artigo 159 consagrava tal princípio, ipsis literis:

            Art. 159 – Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

            A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, art. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553.

            Na redação legal é possível identificar os elementos essenciais da responsabilidade civil, ou seja, seus pressupostos:

            – Ação ou omissão – comportamento humano

            – Culpa ou dolo do agente;

            – Relação de causalidade entre a ação e o dano;

            – Dano causado à vítima.

            a)Ação ou Omissão do Agente:

            O prejuízo causado deve ser produzido pela conduta humana. Dessa forma, a responsabilidade do agente pode resultar de ato próprio, de ato de terceiro que esteja sob a responsabilidade do agente, ou danos causados por coisas (animais) que estejam sob a guarda deste.

            O comportamento humano pode ser positivo ou negativo (omissão). A violação pode ser sob o ponto de vista contratual: descumprimento da obrigação prevista contratualmente; legal: conduta contrária ao mandamento legal; ou social: o comportamento não chega a infringir a lei, mas foge á finalidade social a qual se destina, como nos atos praticados com abuso de direito.

            Para exemplificar o comportamento humano omissivo, que pode oferecer alguma dificuldade de visualização, faz-se necessário que se tenha presente o dever de praticar determinado fato e que do descumprimento deste dever advenha o dano (nexo de causalidade). Esse dever de agir pode decorrer da lei: dever de prestar socorro às vítimas de acidente; de convenção: pessoa que assume a guarda, vigilância ou custódia de outra; ou da própria criação de alguma situação de perigo: pois criado o perigo, surge a obrigação de quem o gerou de afastá-lo.

            A responsabilidade civil, como foi dito, pode ser ato próprio ou por ato de outrem, o qual o agente é responsável permanente ou temporário.

            O maior interesse está na responsabilidade por ato de terceiro, porque permite estender a obrigação de reparar o dano à pessoa diversa daquela que praticou a conduta danosa. Tal extensão, só se verifica com a presença de uma relação jurídica entre os dois agentes (o causador do dano e o responsável) geradores do dever de fiscalização, que quando violado permite que o subordinado pratique um comportamento culposo e ocasione, direta ou indiretamente, dano à vítima. A responsabilidade civil com esse caráter consiste no descuido do dever de vigilância (culpa in vigilando) ou do dever de escolha (culpa in eligendo). Segundo o legislador de 1916, tal culpa é presumida, ao cabendo à vítima prová-la.

            No novo Código, a presunção de culpa desaparece, pois a teoria da culpa cede espaço à teoria do risco, na qual não se perquire a culpa do agente, recai a responsabilidade somente pela decorrência do dano a terceiros. O legislador tratou como de responsabilidade objetiva, os casos de danos cometidos por atos de terceiros, conforme os artigos 932, 936, 937 e 938.

            A responsabilidade civil por ato de terceiro provia da disposição legal, e a jurisprudência a aperfeiçoou, atendendo a segurança da vítima e visando protegê-la. Neste sentido, cita-se o artigo 933 do novo Código: "As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos." O artigo antecedente mencionado refere-se aos pais responsáveis pelos atos de seus filhos, aos patrões responsáveis pelos atos de seus empregados, os donos de hotéis e hospedarias, pelos atos de seus hóspedes.

            B) Culpa ou dolo do Agente:

            A culpa é um elemento necessário à responsabilidade civil subjetiva. Não basta para a caracterização da responsabilidade o cometimento de um ato contrário ao direito, sendo necessário o elemento culpa.

            O conceito de culpa da definição de responsabilidade civil dada pelo Código Civil de 1916 é a chamada culpa latu senso. Porém, ela pode adotar a forma stricto sensu ou dolo. O agente procede com dolo quando causa o dano deliberadamente, isto é, quis o resultado. A culpa stricto sensu amolda-se ao critério do homem médio, quando esse não se ateve ao cuidado que lhe era exigido, seja pela falta de vigilância ou pela escolha errada. Ainda, a culpa (stricto sensu) abarca os conceitos de imperícia, imprudência e negligência5.

            A obrigação de indenizar proveniente da culpa em sentido estrito impele o homem a conviver em sociedade de modo a respeitar aos outros seres e seus patrimônios, não bastando agir com conduta lícita, sendo preciso o comportamento cauteloso de não causar dano a outrem.

            A responsabilidade sendo vista sob o ponto de vista objetivo, a culpa deixa de ser fundamental para a sua caracterização, pois admite a responsabilização do agente infrator pelo simples prejuízo que trouxe à vítima, sem perquirir seu elemento volitivo de culpa lato sensu.

            Atendendo estes parâmetros, a teoria do risco elimina a idéia de culpa do conceito de responsabilidade civil. E seguindo a tendência determinada por algumas leis esparsas especializadas o novo Código Civil no artigo 927, parágrafo único impõe:

            Parágrafo Único – Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

            Assim, a regra é que a responsabilidade seja subjetiva, dependendo do elemento culpa, proveniente da vontade do agente causador do dano. Quando a lei determinar ou quando a atividade praticada pelo autor do dano apresentar riscos, a responsabilidade torna-se objetiva. Portanto, as determinações legais especiais, citadas anteriormente, ganham o respaldo do novo Código Civil.

            A questão da diferença entre a responsabilidade objetiva e subjetiva será melhor tratada em item apropriado.

            C) Nexo de Causalidade

            A obrigação de reparação civil só surge quando há uma relação de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano sofrido pela vítima. Torna–se obrigatório que o dano seja decorrência clara e explícita da atitude danificadora do réu.

            A questão traz dificuldades quando não é possível identificar o elo de causalidade entre o ato de uma pessoa e o dano causado, principalmente quando há presença de vários comportamentos, que de alguma forma, contribuíram para a produção do resultado danoso.

            Também é importante mencionar as excludentes de responsabilidade, como por exemplo, a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito ou força maior e cláusula de não indenizar (correspondente à responsabilidade civil contratual). São situações em que não há obrigação de indenizar por parte do autor do ilícito, pois sua conduta, apesar de danosa não foi a causa direta do prejuízo sofrido pela vítima.

             D) Dano

            O dano é um elemento fundamental para a imposição da obrigação de indenizar, sem o prejuízo, um comportamento ilícito pode passar desapercebido pelo mundo jurídico. O principal argumento para tal afirmativa está na finalidade exclusiva da indenização imposta ao autor da conduta ilícita: repara o dano sofrido.

            O elemento dano da responsabilidade civil serve igualmente para o conceito de responsabilidade objetiva como para a subjetiva, já que significa lesão a qualquer direito, podendo ser material ou moral.

            Quanto à responsabilidade penal, o dano não é estritamente necessário para gerá-la, pois o Direito Penal possui o conceito de tentativa, na qual o direito pode ser violado sem trazer prejuízo para a vítima.

            Há que se salientar a visão de LOPES (1962, p.256), que entende o dano composto de dois elementos diferenciados:

            1º) elemento de fato – o prejuízo; 2º) elemento de direito – as violação ao direito, ou seja, a lesão jurídica. É preciso que haja um prejuízo decorrente de uma lesão de um direito (grifos no original).

            Assim, deve-se observar não apenas a lesão material ou moral causada à vítima, mas também, senão mais importante, a lesão jurídica deflagrada pela violação ao direito.

7. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA

            O Direito é unânime em tratar a responsabilidade civil como fonte obrigacional, o causador do dano responde a reparação à pessoa ou aos bens da vítima.

            A grande discussão está em determinar o fundamento da responsabilidade civil: alguns defendem a doutrina subjetiva ou teoria da culpa, e outros, a doutrina objetiva, que abstrai a culpa, concebe a responsabilidade sem culpa e se concentra na teoria do risco.

            A teoria da responsabilidade subjetiva origina-se no Código Napoleônico, e foi inserto no Direito Civil brasileiro pelo artigo 159 do Código de 1916.

            Para descobrir a pessoa do responsável, a teoria manda buscar aquele cuja culpa causou o dano. Para tanto, é preciso deixar claro que a responsabilidade subjetiva exige a figura do ato ilícito, o qual pode ser conceituado como procedimentos ou atividade em desconformidade com o ordenamento jurídico, violando uma proibição ou mandamento legal. A idéia de dolo não importa muito para a caracterização da doutrina da culpa, sendo o principal fundamento a conduta do agente.

            Na visão de PEREIRA (1998, p. 29):

            A essência da responsabilidade subjetiva vai se assentar, fundamentalmente, na pesquisa ou indagação de como o comportamento contribui para o prejuízo sofrido pela vítima.

            A principal exigência da teoria subjetivista é a conduta culposa do agente, ou apenas a sua culpa (culpa propriamente dita ou dolo), ficando a reparação do dano ou a obrigação de indenizar, em segundo plano.

            Se a responsabilidade civil restasse acomodada sobre esta afirmativa, não haveria responsabilidade sem culpa, e a responsabilidade seria uma exceção e a irresponsabilidade, a regra. No entanto, não é o que ocorre, pois, a culpabilidade do agente está objetivada, como se verá adiante.

            Com o objetivo de acabar com as injustiças provocadas pelas regras rígidas da teoria da culpa, surgiu a teoria do risco. É a teoria da responsabilidade objetiva, na qual o agente que, por intermédio de sua conduta, criou o risco de produzir dano, tem o dever de repará-lo, mesmo que não haja a presença de culpa.

            A característica dominante da doutrina objetiva é que o dano pode ser resultado de uma conduta eximida do elemento culpa. Portanto, o dever de indenizar não se vincula a idéia de comportamento culposo.

            A responsabilidade civil calcada no risco tem sua origem no Direito Francês, nas interpretações de SALEILLES e JOSSERAND apud PEREIRA (1998, p. 16). Ambos argumentam no sentido da necessidade da responsabilidade civil adequar-se às grandes mudanças ocorridas no mundo social, no qual a teoria da culpa já não encontrava mais o respaldo de justa e de garantidora da segurança jurídica.

            Embasando este pensamento, parte-se da idéia inicial da responsabilidade civil, ou seja, a reparação do dano à vítima. Assim, se alguém pratica um ato ilícito e esse vem a causar um dano, estabelece-se que cada um deve suportar o ônus de sua atividade. Assim, cada um deve responder pelos riscos que sua atividade poder vir a produzir. Adequadamente a este princípio que o novo Código civil adotou o artigo 927, parágrafo único.

            No Direito Brasileiro, José de Aguiar DIAS (1997, p. 9) é o maior defensor da doutrina subjetiva, e cita em sua obra uma frase de JOSSERAND que resume por completo o verdadeiro princípio dessa visão sobre a responsabilidade civil:

            …abandonando essa noção de culpa, tão desacreditada, para admitir que somos responsáveis, não somente pelos atos culposos, mas pelos nossos atos, pura e simplesmente, desde que tenham causado um dano injusto, anormal.

            De acordo afirmações anteriores, o nosso Código Civil adota o princípio fundamental da culpa, embora possua várias disposições influenciadas pela doutrina objetiva.

            Para atingir essa mistura das duas doutrinas, o Direito Civil Brasileiro adotava, com o antigo Código Civil, posições intermediárias, tais como a regra da culpa presumida em algumas das suas disposições. Dessa forma, o elemento culpa, embora presente, era presumido pela lei, invertendo o ônus da prova. Os exemplos mais comuns são dos artigos 1.521 e 1.527 a 1.529, que falavam da responsabilidade por ato de terceiros e pela guarda da coisa ou do animal.

            Embora esta visão predominantemente subjetiva do Código anterior, havia doutrinadores, como SAMPAIO (2000, p. 28) que entendiam ser os artigos 1.519 e 1.520 claros exemplos da inserção da doutrina objetiva no Código Civil.

            Como já foi dito antes, o Direito evolui no sentido de adotar em suas legislações atuais, a teoria objetiva da responsabilidade, tais como o Código de Defesa do Consumidor, que mesmo disfarçadamente abraça a responsabilidade independente de prova de culpa do causador do dano. Ainda, a Lei sobre Política do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/81, no seu artigo 14, §1º, prevê a obrigação do poluidor de reparar os danos causados ao meio ambiente, por sua atividade, independente da existência de culpa. Até mesmo o texto constitucional de 1988, no artigo 37, §6º, determina que as pessoas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público são responsáveis objetivamente pelos danos causados pelos seus agentes, sem que se perquira a culpa.

            Portanto, o novo Código somente vem confirmar uma tendência presente há tempos no Direito brasileiro.

8. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL

            A diferença elementar entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, é a de que o agente danoso pode ser responsável por uma conduta descumpridora de uma disposição contratual, quando é infringida uma norma do contrato entre as partes (agente – vítima) ou, então, de uma disposição legal, quando se infringe um dever legal. A primeira caracteriza a responsabilidade contratual, a segunda, a extracontratual.

            A responsabilidade extracontratual é também chamada de aquiliana, pois se originou na Lei de Aquília, e baseia-se no dever de indenizar os danos causados decorrente da prática de um ato ilícito propriamente dito, consubstanciado em uma conduta humana positiva ou negativa de uma norma violadora do dever de cuidado (culpa no sentido lato).

            Já a responsabilidade contratual decorre de dois fatores: a formação de um contrato e sua obrigatoriedade. Portanto, quem contrata, utilizando-se de sua autonomia de vontade, obriga-se aos termos do contrato, vinculando sua conduta às regras ali determinadas.

            As responsabilidades são idênticas no que se refere aos seus pressupostos, exigindo a contrariedade ao direito, o dano e o nexo de causalidade entre ambos. A diferença entre elas está no ônus da prova, na origem da responsabilidade e no agente causador do dano.

            Quanto à matéria de prova, a responsabilidade extracontratual exige a prova da existência de todos os elementos necessários para a responsabilização, é preciso a prova da existência da violação de uma norma de comportamento, enquanto que, na contratual, o contrato é a norma preestabelecida, e a conduta de qualquer das partes gera a responsabilidade civil de reparar o dano. Como se pode notar, na responsabilidade contratual, a posição do credor é mais vantajosa.

            No que diz respeito à fonte geradora da responsabilidade, a distinção é óbvia, e já mencionada: a responsabilidade contratual origina-se no contrato de vontades no qual surgiram as obrigações contraídas que serão descumpridas por um dos contratantes, a responsabilidade aquiliana, tem sua fonte na lei, como exemplo tem-se o artigo 186 do novo Código Civil estudado anteriormente.

            Há em alguns sistemas jurídicos, tais como o francês admitindo a cumulação das duas responsabilidades na mesma demanda. No Brasil, essa possibilidade é totalmente descartada por PEREIRA (1998, p. 250-251), mesmo que a análise trata-se do antigo Código Civil:

            Em nosso direito, se o autor planta a pretensão no artigo 159 do Código Civil, está se posicionando no terreno da responsabilidade aquiliana, e desta sorte, não se funda em culpa contratual. (…) O que evidentemente não é possível é que o demandante receba dupla indenização: uma a título de responsabilidade contratual e outra fundada na delitual.

            Modernamente, as tendências dividem-se: uma quer aproximar as duas responsabilidades, dizendo que uma pode ser à outra, outra tendência pretende afastar a responsabilidade civil da dicotomia contratual e extracontratual, criando um tertium genus, a responsabilidade profissional, assumindo condições especiais de responsabilidade legal (PEREIRA, 1998, P. 250).

9. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS DE DIREITO PRIVADO

            A responsabilidade civil, como se pode perceber, está intimamente ligada ao elemento moral, ou melhor, ao elemento volitivo, ou pelo menos, à consciência de seus atos.

            As pessoas jurídicas não possuem um órgão próprio para a manifestação de sua vontade, pois se tratam de ficções jurídicas, uma personificação de um ente capaz de manifestar-se em nome de toda uma coletividade ou de uma associação de pessoas com objetivos comuns.

            Para que seja possível o entendimento da responsabilidade civil das pessoas jurídicas é indispensável, primeiramente, a busca da natureza das mesmas. As diversas teorias que tentam explicar a natureza jurídica de uma pessoa jurídica podem ser resumidas em duas: teoria da ficção e a teoria realista.

            De um lado, a teoria da ficção6 não aceita a pessoa jurídica com personalidade distinta de seus componentes, assim a pessoa jurídica não passa de mera criação legal. Nessa visão, a pessoa jurídica não passa de uma manifestação abstrata e necessária que facilita a expressão de uma vontade conjunta de várias pessoas naturais. Para expressar essa vontade, é necessário que haja um representante, pois uma pessoa jurídica não é sujeito de direitos, só o é o homem. Portanto, as pessoas jurídicas adquirem capacidade apenas em termos patrimoniais, quanto às demais responsabilidades, a capacidade é limitada.

            De outro lado, a teoria da realidade é a que mais se adapta ao princípio da responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado, na opinião de PEREIRA (1998, p. 119). A pessoa jurídica é dotada de personalidade e vontade própria, podendo ser responsabilizada pelos atos emanados de seus órgãos. A personalidade jurídica passa a ser um atributo, uma investidura que o Estado defere aos entes merecedores dessa situação. A teoria da realidade é defendida pro GIERKE.

            O Direito Civil Brasileiro estabelece pelo artigo 43 do novo Código Civil que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público é objetiva e segue as determinações da Constituição Federal de 1988, quanto às pessoas jurídicas de direito privado, lhes é reservado o artigo 931 do mesmo Estatuto, que aplica a regra do artigo antecedente, determinando que os empresários individuais e empresas respondem independente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação. No último caso, a responsabilidade objetiva é ampliada, atingindo até mesmo os empresários individuais, pessoas físicas.

            Estabelece PEREIRA (1998, p. 123):

            … as pessoas jurídicas de direito privado, qualquer que seja a sua natureza e os seus fins, respondem pelos atos de seus dirigentes ou administradores, bem como de seus empregados ou prepostos que, nessa qualidade, causem dano a outrem.

            Não há interesse em determinar a culpa, se in eligendo ou in vigilando, mas importar em determinar a existência do dano e sua autoria, apurando que o agente procede nessa qualidade ou por ocasião dele.

            Assim, quando a pessoa jurídica age por meio de seus representantes, é a pessoa física destes quem, eventualmente, pratica o ato ilícito causador de danos à vítima. Porém, quando os representantes ao praticarem um ato contrário ao direito o fizerem como delegados da pessoa jurídica, a responsabilidade seria desta para a reparação do dano causado. A constatação é óbvia, pois, enquanto os representantes agem como delegados da pessoa jurídica, esta é responsável pela reparação do dano. Senão, quando os representantes não têm poderes para praticar o ato ilícito, serão responsáveis diretos pela reparação do dano, e a pessoa jurídica apenas responderá solidariamente. Na última hipótese, a pessoa jurídica de direito privado é responsável indireta do dano causado, e responde por ato praticado por terceiro.

            Por conseguinte, a conclusão natural é de que as pessoas jurídicas de direito privado possuem dois tipos de responsabilidade: por ato próprio ou por ato de terceiro. E mais, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado é objetiva, sem preocupação com a culpa, apenas se interessa com o dano sofrido pela vítima.

            Sabe-se que as pessoas jurídicas de direito privado podem assumir alguns tipos, como preceitua o artigo 44 do novo Código Civil, tais como: associações, sociedades e fundações.

            Na prática, as pessoas jurídicas de direito privado de maior relevância são as sociedades sejam elas civis ou comerciais. As sociedades agem como uma pessoa natural, adquirem direitos, contraem obrigações, emitem declarações de vontade, e, portanto, estão vinculadas ao cumprimento dessas emissões volitivas, respondendo com seu patrimônio próprio pela inobservância de seus compromissos.

            Encontra-se aí fundamentada a principal característica de uma sociedade como pessoa jurídica com capacidade legal: a autonomia patrimonial, ou seja, o conjunto econômico da sociedade não se confunde com o patrimônio dos seus sócios (componentes), quando a pessoa jurídica assume uma obrigação, é o seu patrimônio quem responde, no caso de descumprimento. Assim, a responsabilidade de qualquer dos sócios não interfere na responsabilidade social que ele assume indiretamente em relação à pessoa jurídica.

Ainda, há que se distinguir a responsabilidade contratual e a extracontratual que uma sociedade pode assumir no exercício de suas atividades. A responsabilidade extracontratual é ilimitada, e tem o dever de ressarcimento sempre que, por ato ilícito, o seu preposto ou representante legal (administrador) causar dano a outrem. A responsabilidade contratual está adstrita aos termos do contrato, podendo ser ele o contrato social, fundador da sociedade, ou então, pode ser o contrato entre as partes: sociedade e vítima.

            Para atingir o escopo de separar a responsabilidade pessoal do sócio-gerente ou administrador da responsabilidade da sociedade, é necessário buscar a atitude da pessoa natural do administrador da sociedade no momento do dano, dependendo se está agindo na qualidade preposto7 para aquele ato.

            O Novo Código Civil regulamenta de forma mais completa as pessoas jurídicas de direito privado e responsabiliza de forma veemente a pessoa dos administradores da sociedade quando exercerem seus poderes nos limites constituídos pelo contrato social. A disposição está no artigo 47, in verbis: "obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo".

            Quanto ao dano ambiental, objetivo de nosso estudo, a pessoa jurídica que lhe deu causa é responsável por sua reparação, de acordo com o artigo 14 da Lei nº 6.938/81, que será estudado posteriormente. Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 225, §3º, disciplina:

            "Art. 225 – (…)

            §3º – As condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados."

            Resta claro que o legislador constituinte teve a intenção de proteger o meio-ambiente, no sentido de punir todo e qualquer dano causado ao meio-ambiente, seja ele ocasionado por uma pessoa natural ou por uma sociedade cível ou comercial. E mais, a Lei nº 9.605/98 completou a legislação ambiental punitiva, dispondo no artigo 3º a responsabilidade civil, penal e administrativa das pessoas jurídicas cometedoras dos crimes ambientais previsto na mesma Lei.

            Porém, a questão de grande relevância é o artigo 4º 8 da referida Lei. Esse determina a desconsideração da personalidade jurídica, sempre que esta impossibilite o ressarcimento dos prejuízos causados ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, por uma sociedade, como por exemplo. A regra determina como principal fundamento a reparação do dano ambiental, sendo que para tanto, não importe se a culpa pelo dano seja da pessoa jurídica por seu ato próprio ou por ato de terceiros que a administram. Assim, mesmo que o dano seja ocasionado pela sociedade como tal, e ela não possuir patrimônio suficiente para a indenização, seus sócios podem ser responsabilizados e obrigados a repará-lo.

            Dessa forma, a conclusão é de que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas não se modifica com o passar do tempo, a evolução foi apenas no campo da responsabilidade objetiva, na qual deixou-se de perquirir a culpa do agente causador do dano, e esta questão só é discutida na ação regressiva da pessoa jurídica contra seu empregado ou funcionário responsável.

10. O DANO AMBIENTAL

            O dano, acima fundamentado, é o prejuízo causado a outrem, por um ato ilícito, ou seja, contrário ao direito. É possível perceber que inexiste relação indissociável entre a responsabilidade civil e o ato ilícito, assim, há dano, mesmo que não haja um ato ilícito. Então, o dano passa a ser a lesão ao um bem jurídico, conceito mais adequado para a situação enfrentada.

            Citando COSTA, o professor LEITE (2000, p. 97) ensina: "Dano é toda a ofensa a bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica".

            O dano pode ser patrimonial, quando afetar o patrimônio econômico da vítima e pode ser extrapatrimonial, o chamado dano moral, no qual o prejuízo atinge apenas a consciência psicológica da vítima, resultante da violação dos direitos da personalidade.

            O dano é pressuposto necessário ao conceito de responsabilidade civil. Sem o dano, não há a obrigação de reparar, pois se perde a razão de restabelecimento do status quo.

            O dano ambiental, por sua vez, vai depender da idéia a se formar a respeito do bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico e atingido pelo dano. Para a conceituação do dano ambiental deve-se adentrar na concepção jurídica de meio-ambiente.

            O meio-ambiente é um bem comum, um direito difuso, que representa o direito de relacionar-se com tudo o que nos circunda9.

            O legislador infraconstitucional define meio-ambiente no artigo 3º, I, da Lei 6.938/81, conhecida como Lei de Política Nacional do Meio-Ambiente:

            "Art. 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

            I – meio-ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas".

            A Constituição Federal de 1988 recepcionou o conceito de meio ambiente dado pela mencionada lei, pois, conforme seu artigo 225 tutelou não só o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural o do trabalho, como se pode verificar:

            "Art. 225 – Todos tem direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

            A partir de então, é possível definir o conceito de dano ambiental, como sendo o prejuízo causado a todos os elementos de vida necessários para a garantia de um meio ecologicamente equilibrado, como exemplo de tais bens é a água, o ar atmosférico, a fauna, as florestas e a energia.

            Segundo LEITE (2000, p. 98), o dano ambiental é:

            "(…), em primeira acepção, uma alteração indesejável ao conjunto de elementos chamados de meio-ambiente, como, por exemplo, a poluição atmosférica; seria assim a lesão ao direito fundamental que todos têm de gozar e aproveitar do meio-ambiente apropriado. Contudo, e m segunda conceituação, dano ambiental engloba os efeitos que esta modificação gera na saúde das pessoas e em seus interesses".

            De acordo com a colocação anterior, o dano pode ser patrimonial ou moral, assim também o é o dano ambiental. O dano ambiental patrimonial exige a reparação ou indenização do bem ambiental lesado, que pertence a toda a coletividade. Já o dano moral ambiental está relacionado a todo prejuízo não-econômico causado ao indivíduo ou sociedade, em virtude de lesão ao meio-ambiente.

            Não se pode olvidar da questão social desencadeada pelo dano ambiental. O dano ao meio-ambiente representa lesão a um direito difuso, um bem imaterial, incorpóreo, autônomo, de interesse da coletividade, garantido constitucionalmente para o uso comum do povo e para contribuir com a qualidade de vida das pessoas. Assim, a reparação não pode ser feita apenas às pessoas que postularam em juízo tal ressarcimento, pois se trata de um direito de todos. Para efetivar tal indenização, deverão surgir mudanças.

            Para finalizar, transcreve-se a conclusão de LEITE (2000, p. 108):

            Da análise empreendida da lei brasileira, pode-se concluir que o dano ambiental deve ser compreendido como toda a lesão intolerável causada por qualquer ação humana (culposa ou não) ao meio-ambiente, diretamente, como macrobem do interesse da coletividade, em uma concepção totalizante, e indiretamente, a terceiros, tendo em vista interesses próprios e individualizáveis e que refletem no macrobem. (grifo do autor).

11.  A RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL

            Não se pode falar sobre a responsabilidade civil ambiental, que se sabe é objetiva, sem antes refletir a respeito do princípio de Direito Ambiental do Poluidor-Pagador.

            Conforme a expressão, este princípio não significa que quem paga pode poluir, mas traz em si outro significado, quem polui deve arcar com as despesas que seu ato produzir.

            FIORILLO (2000, p. 26) distingue no princípio duas esferas básicas:

            a)busca evitar a ocorrência de dano ambiental – caráter preventivo;

            b)ocorrido o dano, visa a sua reparação – caráter repressivo,

            Nesse sentido, o poluidor não tem apenas o dever de reparar o dano ambiental causado, mas também de arcar com as despesas de prevenção dos possíveis danos.

            No pensamento de DERANI (1997, p. 158) o princípio visa a internalização dos custos relativos externos de deterioração ambiental. Tal expressão se traduz na imposição do sujeito causador do problema ambiental em sustentar financeiramente a diminuição ou afastamento do dano.

            Normalmente, o sujeito causador dos danos é o sujeito econômico, ou seja, o produtor, o industrial, o transportador, o consumidor. Por vezes, o poluidor é pessoa física, por outras é pessoa jurídica, uma sociedade, por exemplo. Esses últimos poluidores, ao arcar com as despesas de diminuição, eliminação ou neutralização dos danos causados, podem repassar ao seu produto, o encargo que pagou, transferindo estes custos ao consumidor final do produto, prejudicando a concorrência no mercado e o sistema econômico.

            Dentro desse princípio, mais precisamente em seu caráter repressivo é que se insere a idéia de responsabilidade civil pelo dano causado ao meio-ambiente.

            A responsabilidade civil adotada pelo nosso Código Civil é, sem dúvida, de cunho subjetivista, pois se assegura na culpa do agente, como já foi observado. Porém, ao tratar da responsabilidade pelo dano ambiental, a doutrina da culpa mostra-se insuficiente, pois inconcebível a idéia de irressarcibilidade do dano ambiental praticado por alguém sem dolo ou culpa.

            O princípio do Poluidor-Pagador impõe a responsabilidade civil aos danos ambientais os seguintes aspectos:

            a)a responsabilidade civil objetiva, disposta no artigo 14, §1º da Lei nº 6.938/81;

            b)prioridade da reparação específica do dano ambiental;

            c)solidariedade para suportar os danos causados aos meio-ambiente (FIORILLO, 2000, p. 27)

            Com efeito, a responsabilidade civil objetiva é assegurada na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente – Lei nº 6.938/81, artigo 14, §1º, in verbis:

            Art. 14 – (…)

            §1º – Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio-ambiente ou a terceiros, afetados por sua atividade. (…)

            Além dessa legislação, de acordo com a menção anterior, a Constituição Federal, artigo 225, também defere responsabilidade civil às pessoas físicas ou jurídicas que causarem danos à qualidade do meio-ambiente.

            A responsabilidade civil objetiva aos danos ambientais pode assumir duas acepções diferentes. Por um lado, a responsabilidade objetiva tenta adequar certos danos ligados aos interesses coletivos ou difusos ao anseio da sociedade, tendo em vista que o modelo clássico de responsabilidade não conseguia a proteção ambiental efetiva, pois não inibia o degradador ambiental com a ameaça da ação ressarcitória. Por outro lado, a responsabilidade objetiva visa a socialização do lucro e do dano, considerando que aquele que, mesmo desenvolvendo uma atividade lícita, pode gerar perigo, deve responder pelo risco, sem a necessidade da vítima provar a culpa do agente. Desse modo, a responsabilidade estimula a proteção a meio-ambiente, já que faz o possível poluidor investir na prevenção do risco ambiental de sua atividade. De acordo com esse aspecto, manifesta-se LEITE (2000, p. 131):

            …a responsabilidade objetiva, devidamente implementada, estimula que o potencial agente degradador venha a estruturar-se e adquirir equipamentos que visam a evitar ou reduzir as emissões nocivas, considerando que o custo destes é menor que o custo da indenização.

            Não se pode olvidar a abordagem da reparação do dano. Cabe questionar; no que consiste a reparação civil pelo dano ambiental? É composta de dois elementos: a reparação in natura do estado anterior do bem ambiental afetado e a reparação pecuniária, ou seja, a restituição em dinheiro.

            Sempre que possível haverá o retorno ao status quo, por uma restituição específica, quando tal possibilidade fracassar, recairá sobre o poluidor a condenação de um quantum pecuniário, responsável pela recomposição efetiva e direta do ambiente lesado.

            E quando se fala em quantum, há parâmetros para fixá-lo? Na legislação brasileira, não há critérios objetivos para a determinação da indenização pecuniária imposta ao agente degradador do meio-ambiente, porém, a doutrina dá alguns rumos que devem ser seguidos, como, por exemplo, a reparação integral do dano.

            Essa característica da reparabilidade do dano ambiental vem da necessidade da compensação ampla da lesão causada ao ambiente. Não pode a reparação ser menor que o dano causado, pois isso resultaria na impunidade, e a reparação a maior, facultaria o enriquecimento ilícito da vítima.

            Por vezes, a reparação integral do dano pode implicar em indenização superior à capacidade financeira do agente degradador, mas a aniquilação financeira deste não contradiz com o risco que sua atividade produzia e todos os riscos decorrentes dela. E também, não se pode esquecer a possibilidade de a indenização atingir o patrimônio dos sócios, quando a pessoa jurídica responsável dificultar a reparação, em razão do disposto na Lei nº 9.605/98.

            Há ainda que se examinar a questão do dano extrapatrimonial ambiental e sua reparação. O dano moral ao meio-ambiente é a lesão que desvaloriza imaterialmente o meio-ambiente ecologicamente equilibrado e também os valores ligados à saúde e à qualidade de vida das pessoas. Um exemplo de dano moral ambiental praticado por uma empresa poluidora do meio-ambiente, obrigada a reparar o dano, não o fez, trazendo inúmeros danos imateriais a toda coletividade.

CONCLUSÕES

            A responsabilidade civil é determinada pela reparabilidade do dano causado por ação ou omissão contrária ao direito.

            A doutrina sobre a responsabilidade civil divide-se em subjetiva e objetiva. A primeira, adotada pelo Código Civil brasileiro, tem como seu principal elemento, a culpa, ou seja, o agente causador do dano é obrigado a repará-lo, apenas quando for o culpado pela conduta lesiva. Já a segunda teoria, que vem sendo inserida nas legislações mais atuais, como o Código de Defesa do Consumidor e a Legislação de Proteção Ambiental, prima pelo risco, assim, aquele que com sua conduta assumiu o risco de produzir um dano, já é responsável.

            A responsabilidade civil subjetiva, descrita no artigo 186 do Código Civil, exige os seguintes pressupostos: ação ou omissão, culpa ou dolo, dano e a relação entre a conduta lesiva e a lesão. A responsabilidade objetiva não tem como elemento a culpa, e seu principal alicerce é a reparação do dano causado.

            A responsabilidade pelo dano ambiental é do tipo objetiva, independendo de quem seja o culpado, se perquire o responsável pela degradação e este deve arcar com todos os custos para a reparação, prevenção e repressão aos danos ambientais. A legislação brasileira preocupou-se em obter o ressarcimento pelos danos ocasionados, mesmo que para tanto desconsidere institutos consagrados como o da personalidade jurídica.

            Tal reparação pelo dano ambiental é composta de dois aspectos: o retorno ao estado anterior ao dano, e a reparação pecuniária, como repressão a mais atos lesivos. O quantum é determinado pelo princípio da reparação integral do dano, não podendo o agente degradador ressarcir parcialmente a lesão material, imaterial e jurídica causada.

            O dano moral ambiental completa a reflexão feita. Se o meio-ambiente é um direito imaterial, incorpóreo, de interesse da coletividade, pode ele ser objeto do dano moral, pois este é determinada pela dor física ou psicológica acarretada à vítima. É possível afirmar a partir daí, que a degradação ambiental geradora de mal-estar e ofensa à consciência psíquica das pessoas físicas ou jurídicas pode resultar em obrigação de indenizar aos seus geradores.

            O presente edstudo teve o escopo de refletir sobre a responsabilidade civil das pessoas jurídicas, em especial, as sociedades em geral, aos danos ambientais por elas causados. Objetivou-se desenvolver conceitos tais como: a responsabilidade civil das pessoas jurídicas e o dano ambiental, e o que esses influenciam para a efetiva prevenção e reparação à destruição do meio-ambiente, preocupação geral da humanidade.

__________________________________________ 

NOTAS DE FIM:

            1.Expressão latina que significa literalmente: "não há pena sem lei anterior que a defina".

            2 Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, artigo 3º: "As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade" (grifo nosso).

            3.Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, Artigo 186 – "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

            4.Lei nº 10.406/2002, Artigo 927 – "Aquele, que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repara-lo."

            5. Rogério Marrone de Castro SAMPAIO (2000, p. 70-71) define: "…caracteriza-se a imprudência por um comportamento descuidado e positivo (condutor que dirige com excesso de velocidade). A negligência, por sua vez, vem retratada por um comportamento omissivo (acidente causado por falta de conservação do veículo). Por último, a imperícia vem retratada pela falta de habilidade técnica, que, no caso específico, era de se exigir do autor (médico que comete um erro grosseiro ao diagnosticar uma doença)".

            6.Os maiores defensores da Teoria da ficção são SAVIGNI e DUGUIT.

            7. A expressão preposto quer dizer, na linguagem de SILVA, Plácido e : designa a pessoa ou empregado que, além de ser um emprestador de serviços, está investido no poder de representação de seu chefe ou patrão, praticando os atos concernentes à sua avença sob a direção e autoridade do preponente ou empregador.

            8."Art. 4º – Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados à qualidade do meio-ambiente."

            9.O Professor FIORILLO, Celso Antônio Pacheco, na obra Curso de Direito Ambiental ( Saraiva, Pg.18) explica que a palavra ambiente significa "âmbito que nos circunda", sendo até desnecessária a complementação da palavra meio.

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Referência  Biográfica

Juliana Piccinin Frizzo  –  Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria.  2004

julianafrizzo@pop.com.br

Supremacia dos Tratados Internacionais sobre a legislação tributária brasileira

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* Maria de Fátima Ribeiro

RESUMO

          Trata-se de estudo sobre os principais aspectos discutidos na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre a prevalência dos tratados e convenções internacionais sobre a legislação tributária interna. Necessário se faz apresentar considerações sobre o princípio federativo brasileiro, o princípio da soberania e o da competência constitucionalmente estabelecida para todos os entes políticos do Estado brasileiro. Merece maior destaque o art. 151, inciso III da Constituição Federal ao enaltecer que a União não poderá conceder isenções de tributos de competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como a análise do art. 98 do Código Tributário Nacional dispondo sobre as introduções legislativas provenientes de tratados e acordos internacionais sobre as normas tributárias do sistema positivo vigente. 

1. Introdução

          O processo de globalização, acelerado a partir dos anos 90, vem transformando, decisivamente, a economia mundial. Tal globalização tem sido comumente associada a um processo positivo de integração das economias mundiais, relacionado à flexibilização dos movimentos de mercadorias, capitais e pessoas entre países.

          A obtenção de um mercado comum, no Mercosul, livre das barreiras alfandegárias, onde a mobilidade dos fatores e a informação possuam agilidade e baixo custo de transação, tem por objetivo o aumento do bem-estar social e a melhor alocação dos recursos econômicos.

          A harmonização tributária torna-se, então, o processo mediante o qual os governos dos países afetados por essas distorções acordarão sobre a estrutura e o nível de coerção de seus sistemas tributários, minimizando os efeitos da tributação sobre as decisões de consumo e produção, independentemente de localização geográfica e nacionalidade.

          Vale a pena ressaltar que harmonização tributária não significa equalização total de alíquotas e bases tributárias em vários países e em todos os tributos. O que se pretende é obter um mercado globalizado que seja consistente com o menor grau possível de distorções. Nesse sentido, há necessidade de aproximar a legislação tributária pertinente, entre todos os países membros do Mercosul. Deve merecer maior destaque o estudo sobre os aspectos constitucionais, guardadas as peculiaridades da estrutura política e administrativa de cada Estado membro.

          O Brasil como um Estado Federal tem a competência constitucional tributária distribuida exaustivamente na Carta Política entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Essa decentralização de competência (no âmbito interno) o faz diferente dos demais Estados integrantes do Mercosul, face à autonomia dos mesmos.

          Desta forma, questiona-se, se o conteúdo de um tratado internacional prevalece sobre a competência tributária dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, resguardada a exclusividade da competência tributária para as Unidades da Federação. 

2. O Tratado de Assunção e seus objetivos

          A idéia de uma união dos países Latino-americanos não é criação recente. No entanto é a partir da segunda metade do Século XX que surgem os megablocos econômicos. Em 1980, com a criação da Associação Latino-Americano de Integração-ALADI, subscrita pelos governos da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela o que foi anteriormente estabelecido pela ALALC é substituído por um sistema mais complexo que inclui a promoção e regulamentação do comércio recíproco, a complementação econômica e o desenvolvimento de ações de cooperação econômica para a ampliação dos mercados, respeitando as diferentes características econômicas e sociais de seus membros. (1)

          Sob este clima Brasil e Argentina firmaram vários acordos de integração e cooperação em diversas áreas tais como energia, ciência e tecnologia, comunicações e transporte.

          Um dos aspectos importantes a ser analisado refere-se ao questionamento se um acordo internacional pode se sobrepor à soberania do Estado e delinear sobre sua própria ordem tributária.

          O Tratado de Assunção, celebrado pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, na cidade de Assunção, em 26 de março de 1.991, constitui um conjunto de normas para se chegar a constituir, num plano determinado, inicialmente previsto para 1º de janeiro de 1995, um Mercado Comum. O referido Tratado tem como objetivos:

           – a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os vários países;

           – o estabelecimento de tarifa alfandegária comum;

           – a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os países participantes, em termos de comércio exterior e políticas agropecuária, industrial, fiscal, monetária, cambial, de capitais, de serviços, aduaneira, de transporte e de comunicações; e

            – a adoção de uma política comercial unificada a terceiros países e/ou blocos comerciais.

          O Tratado de Assunção pretende criar um Mercado Comum, iniciando pela Zona de Livre Comércio e posteriormente passando pela União Aduaneira. O passo seguinte do Mercado Comum será a constituição das uniões econômica e monetária.

          A Zona de Livre Comércio é o estabelecimento, pela via de tratados internacionais, da livre circulação das mercadorias sem barreiras ou restrições quantitativas ou aduaneiras, conservando os Estados integrantes total liberdade nas relações com terceiros países, inclusive com matérias relacionadas com importação e exportação.

          A União Aduaneira é um passo além da zona de livre comércio cujo elemento característico da livre circulação de mercadorias incorpora, completando-o com a adoção de uma tarifa aduaneira comum, que teve início em 01.01.95.

          Estabelecida a alíquota comum, normalizados os procedimentos de importação e exportação em face dos países fora da zona aduaneira, os produtos circulam livremente no seu interior, onde recebem a proteção possível pela via da tarifa única e da dimensão do mercado abrangido. Tal integração para prosperar deverá ser acrescida de outras liberdades de circulação de pessoas, serviços e capitais.

          Após dois anos de União Aduaneira, seu crescente êxito poderá ser visto pelo interesse dos demais países da América Latina em querer fazer parte dessa integração. O Chile ingressou no bloco em 1.10.96, e em 1.1.97 foi a vez da Bolívia, se bem que não participam da união aduaneira, e sim de um acordo de associação de livre comércio com os outros quatro países que iniciaram a integração do Mercosul.

          A União Aduaneira, embora imperfeita e com suas dificuldades naturais de implantação tem conseguido deslanchar, de forma que o Mercosul é considerado a terceira união aduaneira do mundo.(2)

          O Mercado Comum é a terceira etapa do Tratado de Assunção que ultrapassa e contém a união aduaneira, acrescentando-lhe a livre circulação dos demais fatores de produção, capital e trabalho, permitindo assim o livre estabelecimento e a livre prestação de serviços pelos profissionais.

          O Mercado Comum engloba, entre outras medidas cinco liberdades para facilitar a integração política e respectivas legislações em vários aspectos:

          1.livre circulação das mercadorias que faz com que dentro das fronteiras de um Estado as mercadorias possam circular sem que tenham de atravessar barreiras alfandegárias;

          2.liberdade de estabelecimento, que faculta ao empreendedor instalar-se onde quer que deseje, no interior do Estado, quer para a produção, quer para a armazenagem, quer para a venda dos seus produtos;

          3.liberdade de circulação dos trabalhadores dentro dos limites do Estado;

          4.liberdade de circulação dos capitais como componente da atividade empresarial;

          5.liberdade de concorrência , que submete todos os produtores às mesmas regras de natureza econômica, administrativa, fiscal, política e social, sujeitando-se a uma disciplina jurídica e a encargos idênticos.

          Daí ressaltar que todos os países devem respeitar as normas estabelecidas, mesmo não sendo o Mercosul dotado de supranacionalidade. O Brasil é o país que com mais freqüência altera as regras pactuadas, trazendo conflitos desnecessários. Recentemente tem editado várias medidas provisórias que conflitam com as disposições dos Tratados e seus desdobramentos já pactuados.(3) 

3. Harmonização Tributária no Mercosul

          Inicialmente devem ser ressaltados os motivos pelos quais se faz necessária a harmonização tributária.

          É importante frisar que a harmonização não implica, necessariamente uniformização do conjunto de normas tributárias, inclusive as relativas a incentivos fiscais. Procura-se, de maneira em geral, compatibilizar os sistemas tributários efetuando modificações na legislação e nas práticas pertinentes à matéria, com a finalidade de eliminar distorções, respeitando-se as identidades nacionais, os valores éticos e a diversidade cultural e sócio-econômica dos povos, que determinam, em grande parte, diferenças nos sistemas tributários.(4)

          Daí destacar que o principal objetivo da harmonização é chegar a sistemas nacionais que permitam, ao mesmo tempo, conciliar os objetivos de integração econômica com o respeito às identidades nacionais.

          Sabe-se que o sistema tributário pode se tornar um fator limitativo à integração econômica. Segundo Hugo González Cano,(5) os processo de integração econômica requerem certo grau de harmonização tributária, cuja intensidade se vincula com o tipo de integração e a etapa do processo vigente em cada caso.

          Ainda de acordo com este autor, quanto maior o grau de integração econômica pretendido e quanto mais o processo se desenvolve, mais se deve avançar em termos de harmonização tributária.(6) Na Comunidade Européia, os esforços no sentido da harmonização tributária após 1985 propiciaram a superação de uma fase de estagnação do processo de integração econômica e o início de uma nova etapa, em que se constituiu em oito anos, o mercado único, sem fronteiras, com circulação livre de bens, serviços e fatores. Isso só foi possível porque os avanços em termos de harmonização dos sistemas tributários, evitaram que surgissem distorções capazes de tornar politicamente insustentável o processo de integração econômica em desenvolvimento.

          Merece destaque a Ata nº 4, que foi a reunião mais importante referente a harmonização tributária do subgrupo de trabalho n. 10, do Mercosul realizada em Buenos Aires de 14 a 16 de setembro de 1992, decidindo analisar e comparar: 1. Impostos nacionais seletivos sobre o consumo; 2. Impostos provinciais, estaduais e municipais sobre os consumos; 3. Impostos sobre transações com divisas e títulos; 4. Imposto de selo. 

4. A Supremacia dos Tratados Internacionais sobre a Legislação Tributária Interna

          As transformações mundiais recentes, o processo de globalização de países em blocos, ao mesmo tempo que eleva a importância do direito internacional questiona o conceito do exercício da soberania.

          Em busca de um novo conceito de soberania, se tem que tal instituto jurídico envolve ainda a materialização do conteúdo abordado, ou seja, do cumprimento de cláusulas que fazem repercutir na ordem interna as decisões tomadas pelas partes.(7)

          A evolução do conceito de soberania e de autonomia do próprio Estado, bem como o relacionamento entre eles, e o interesse na colaboração internacional, desgastou os poderes tradicionais do Estado soberano. Com as comunidades supranacionais, surgindo o direito comunitário, bem como o Mercosul, surge a necessidade de repensar o conceito de soberania.

          Na definição de Kelsen, o Direito Internacional é um complexo de normas quer regulam a conduta recíproca dos Estados que são sujeitos específicos do Direito Internacional.(8) O Direito Tributário Internacional compreende o complexo das normas tributárias de conflitos, quer sejam reveladas por fontes internas, quer por fontes internacionais.

          Tem-se distinguido o Direito Internacional Tributário e o Direito Tributário Internacional, atendendo à origem e ao objeto dos seus preceitos: enquanto o primeiro seria constituído por normas de origem internacional e tendente a regular as relações entre Estados em matéria tributária, o segundo seria constituído por normas internas, tendo por objetivo disciplinar questões conexas por qualquer de seus elementos com mais de uma ordem tributária.

          É evidente que o preceito dualista(9) está na origem desta distinção. Com efeito, à luz desta visão, as normas de direito internacional nunca regulariam como tal as questões tributárias internacionais, independentemente, portanto, da sua transformação em direito interno, limitando a sua eficácia a disciplinar relações interestatais.(10)

          Para os dualistas não existe conflito entre a ordem internacional e a ordem interna. São esferas distintas. As normas de direito internacional disciplinam as relações entre os Estados. O direito interno rege as relações intra-estatais, sem conexão com elementos externos. Desta forma, um ato internacional somente terá força normativa em um Estado ser for referendado por ele.

          Para quem não aceitar a perspectiva dualista de encarar as relações entre direito internacional e direito interno (monista) também não poderá aceitar a distinção acima referida, pelo menos nos termos em que é formulada. Se as normas de fonte internacional podem não só reger as relações interestatais, mas também, as relações que intercedem entre Estados e indivíduos surgidas de situações estranhas, cumpre reconhecer que o referido critério de distinção perde a sua validade.

          Os monistas afirmam que o direito constitui uma unidade, um sistema, e tanto o direito internacional quanto o direito interno integram este sistema. (Ver a nota nº 09)

          A Constituição da Aústria, Alemanha e Itália, contém dispositivos sobre as relações entre o direito interno e o direito internacional. Em sentido contrário, encontram-se disposições nas Constituições da França e da Holanda.

          A Constituição brasileira destaca a soberania como fundamento da República Federativa, destacando também os princípios da independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político (art. lº e 4º).

          O Parágrafo Único do art. 4º dispõe que a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

          Diante do texto, Celso Ribeiro Bastos e Ivens Gandra da Silva Martins (11) concluem que tal dispositivo deixa certo que o País conta com a autorização constitucional para buscar sua integração em uma comunidade latino-americana de nações. Contudo, referidos autores não esclarecem de maneira expressa, se a forma desta integração deve guardar respeito aos princípios clássicos da soberania ou se envolve a possibilidade de integração em organismos supranacionais.

          A proposta revisional (PRE) nº 001079-1, de autoria do Deputado Adroaldo Streck, (na revisão constitucional de 1.994), apresentou a substituição do parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal pelo seguinte texto:

          1º – As normas de direito internacional são parte integrante do direito brasileiro.

          2º – A integração econômica, política, social e cultural visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações, constitui objetivo prioritário da República Federativa do Brasil.

          3º – Desde que expressamente estabelecido nos respectivos tratados, as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais, de que o Brasil seja parte, vigoram na ordem interna brasileira.

          Embora com as modificações apresentadas pelo relator-geral do processo de revisão constitucional, tal proposta fora rejeitada. Com a aprovação, tal proposta estaria mais próxima aos textos constitucionais vigentes na Argentina e no Paraguai.

          Pelo esquema traçado pela Constituição Federal, compete à União manter relações com os Estados (art. 21, I), representada pelo Presidente da República (art. 84, VII), a quem foi cometida a faculdade de celebrar tratados, convenções e atos internacionais (art. 84, VIII) ad referendum do Congresso Nacional (art. 49, I). Cabe ao Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião da Constituição, em última instância, julgar a constitucionalidade de tratados internacionais (art. 102, III, "b").

          A competência ad referendum do Congresso Nacional se limita à alternativa da aprovação ou rejeição, não sendo admissível qualquer inteferência no seu conteúdo.

          Ao ser promulgado o Decreto do Presidente da República, do tratado já ratificado é ato jurídico de natureza meramente interna, pelo qual o governo de um Estado afirma a existência de um tratado por ele celebrado e o preenchimento das formalidades exigidas para a sua conclusão, ordenando a sua execução dentro dos limites a que se estende a competência estatal. Tal promulgação deverá ser publicada no Diário Oficial. O Protocolo de Ouro Preto de 17.12.94 (art. 40) estabelece que um tratado entrará em vigor internacionalmente no instante em que os Estados signatários se comunicam reciprocamente a existência dos instrumentos de ratificação.

          Salienta Alberto Xavier(12), que em matéria tributária só o tratado é forma adequada de vinculação externa do Estado brasileiro. Os meros acordos de forma simplificada não são sujeitos à ratificação do Presidente da República. Só poderão atuar, em matéria subtraída ao princípio da legalidade, quer seja, em matéria estritamente regulamentar.

          Ao contrário do que sucede com a generalidade das organizações que são financiadas por contribuições dos Estados membros. Tais direitos registrados na União Européia, foram conferidos pelos tratados que as instituíram e posteriormente desenvolvidos e regulamentados por fontes de direito comunitário.

          Já tem sido firmado o entendimento na doutrina européia a identificação de supranacionalidade como atributo original da ordem jurídica comunitária, qualidade que faz dela um fenômeno absolutamente novo diante do direito internacional, inobstante serem as comunidades também organismos internacionais.

          O princípio da legalidade tributária está presente nos ordenamentos jurídicos constitucionais dos quatro países integrantes do Mercosul.(13) Interessa neste trabalho enaltecer especificamente o princípio da legalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Referido princípio constitucional enaltece, que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF). E o princípio da legalidade tributária significa que nenhum tributo pode ser criado, aumentado, reduzido ou extinto sem que o seja por lei (art. 150, I da CF). Da mesma forma, se tem que a União não poderá conceder isenção de tributos de competência dos Estados, Distrito Federal e os Municípios (art. 151, III da CF)(14). Seguindo esta trilha o art. 97 do Código Tributário Nacional ao condicionar a instituição e o aumento de tributo à edição da lei, quer se referir, à lei ordinária federal, estadual e muncipal.

          Formalmente, a palavra lei, na linguagem jurídica dos Estados de Direito, é o ato normativo do Parlamento sancionado pelo Executivo ou promulgado pelo próprio Legislativo, na falta de sanção oportuna ou no caso de rejeição do veto. (15)

          Daí Aliomar Baleeiro(16) destacar que o tributo é ato de soberania do Estado na medida em que sua cobrança é autorizada pelo povo, através de representação.

          O exame do direito positivo brasileiro mostra que a competência privativa do Congresso de instituir e aumentar tributos sofreu ultimamente uma série de restrições, que põem em perigo a própria validade do princípio da legalidade tributária, com as exceções e ressalvas em benefício do Poder Executivo, dispostas no Sistema Tributário Nacional.

          Daí questionar: O tratado internacional pode exonerar tributo de competência das unidades da Federação?

          Volta à tona a discussão sobre a prevalência dos tratados internacionais sobre a legislação interna do País tributante, face ao avanço na formação do Mercosul, bem como nos problemas para a concretização da União Européia, conforme já apontado na doutrina mais atualizada.

          Necessário se faz inicialmente destacar a estrutura federativa do Estado brasileiro, estabelecida pelo art. 60 da Constituição Federal. Cada ente político da federação tem sua competência constitucionalmente atribuída.

          Via de regra as Constituições brasileiras não estabeleceram regras de aplicação dos tratados internacionais. No entanto, a Constituição Federal de 1.988 inovou seu texto, incluindo que poderiam ser acrescidos outros direitos e garantias individuais elencadas no art. 5º, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte. Os princípios fundamentais relativos à comunidade internacional, constantes do artigo 4º da Constituição Federal têm a função positiva de informar materialmente os atos dos poderes públicos, que lhes devem observância obrigatória.

          No que diz respeito entre o tratado internacional e norma interna (infraconstitucional), a doutrina como já foi mencionado, é amplamente majoritária no sentido monístico jurídico, com prioridade para o direito internacional. Desta forma, o tratado prevalece sobre o direito interno, alterando a lei anterior, mas não pode ser alterado por lei superveniente, é o entendimento aposto no art. 98 do CTN.

          Luis Roberto Barroso(17) escreve que a orientação do Supremo Tribunal Federal é a do monismo moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nível hierárquico da lei ordinária, sujeitando-se ao princípio consolidado: em caso de conflito, não se colocando a questão em termos de regra geral e regra particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior. E adianta: existem apenas duas ordens de exceções a essa equiparação entre tratado e lei ordinária na jurisprudência do Supremo. A primeira dá-se em matéria fiscal, onde o Código Tributário Nacional (art. 98), como visto, é expresso quanto à prevalência da norma internacional. A segunda exceção colhe os casos de extradição, onde se considera que a lei interna (Lei 6.815 de 19.8.1980), que é regra geral, cede vez ao tratado, que é regra especial. (18)

          O Código Tributário nacional dispõe no art. 98 que os tratados e convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha. (19)

          Por tratados pode-se entender como convenção, declaração, protocolo, convênio, ajuste, compromisso entre outras denominações.(20) Accioly, (21) conceitua os tratados internacionais como atos jurídicos por meio dos quais se manifesta o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas internacionais. Os tratados e convenções internacionais, uma vez ratificados, passam a ter eficácia no país, (obedecido o disposto no art. 40 do Protocolo de Ouro Preto) de modo tal que revogam as disposições de leis ordinárias que disponham em contrário. São considerados, então, como fontes do Direito Tributário, quando tiverem conteúdo específico ligado à competência fiscal dos respectivos Estados signatários e adquira eficácia interna, na forma determinada pelo ordenamento jurídico.

          O CTN faz alusão à legislação tributária externa, constituída das normas atinentes à matéria e constantes dos tratados e convenções internacionais. Enquanto vigentes os tratados internacionais dispondo sobre tributos, não será lícito ao Poder Legislativo elaborar leis que entrem em conflito com a matéria desses acordos.(22)

          Há evidente impropriedade terminológica na disposição legal. Na verdade um tratado internacional não revoga nem modifica a legislação interna. A lei revogada não volta a ter vigência pela revogação da lei que a revogou, enaltece Hugo de Brito Machado(23). Denunciado um tratado, a lei interna com ele incompatível estará estabelecida, em pleno vigor. O que o CTN pretende dizer é que os tratados e convenções internacionais prevalecem sobre a legislação interna, seja anterior ou mesmo posterior.

          Paulo de Barros Carvalho por sua vez, escreve que há equívoco incontornável na dicção do art. 98 do CTN. Isto porque, não são os tratados e as suas convenções internacionais que têm idoneidade jurídica para revogar ou modificar a legislação interna, e sim os decretos legislativos que os ratificam, incorporando-se à ordem jurídica brasileira. (24)

          Os tratados internacionais, como as leis, são interpretados, aplicando-se-lhes as regras e princípios do Direito Internacional, além das regras comuns de hermenêutica.

          O referido artigo trata de uma limitação à soberania do direito positivo interno.

          E ainda vem à tona o destaque apresentado por Luciano Amaro, que ao escrever sobre isenção de tributos estaduais e municipais seguindo as trilhas de Natanael Martins, Sacha Calmon Navarro Coelho, Geraldo Ataliba, Agostinho Toffoli Tavolaro e Valir de Oliveira Rocha, afirma que não se deve confundir o tratado firmado pela União com as leis federais. Quem atua no plano internacional com soberania é o Estado Federal, e não os Estados federados ou os Municípios. Portanto, o tratado não é ato que se limite à esfera federal. E acrescenta: Compete ao Congresso Nacional, de modo expresso resolver definitivamente sobre os tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. (art. 49-CF)(25)

          Por tal razão ressalta Hugo de Brito Machado, de forma que não se pode deixar de considerar que os tratados internacionais, embora celebrados por órgãos da União, na verdade são atos da soberania externa, praticados pelo Estado brasileiro, que há de ser visto por um prisma diferente do que se vê a União como órgão de soberania interna. Nos atos internacionais, a União representa toda a Nação, na qual se incluem obviamente os Estados membros e Municípios.(26)

          Em se tratando de linha contrária à prevalência do direito internacional sobre o sistema constitucional brasileiro é interessante mencionar a posição de José Francisco Rezek(27):

          Não existe no sistema jurídico no mundo contemporâneo, dessarte, que consagre a prevalência dos tratados internacionais sobre a Constituição local.

          Esta, ao contrário – como sucede de modo bastante explícito no caso brasileiro -, é um parâmetro de aferição de qualidade tanto das leis quanto dos tratados internacionais, que se subordinam a ela duplamente: no seu conteúdo – que não pode colidir com regras substantivas da Carta – e sobretudo na sua gênese, na liturgia de produção: o tratado é inconstitucional quando celebrado pelo Governo à revelia de certos preceitos constitucionais…

          Para Rosembuj, um tratado internacional não pode ser alterado por uma lei interna: Los tratados internacionales no puedem derogarse, modificarse o suspenderse sino en la forma prevista en los proprios tratados, o de acuerdo com las normas generales del Derecho Internacional. Así, como afirma Santaolalla, una norma posterior, incluso una ley aprobada por las cortes no puede prevalecer sobre lo dispuesto en un tratado… los tratados y convenios internacionales tienem primacia sobre las leyes y demás fuentes del Derecho Interno.(28)

          E por que os tratados e convenções internacionais devem integrar a legislação tributária? Esse é o questionamento que Fábio Fanucchi faz ao comentar o art. 98 do CTN. Salienta, então, que comumente ocorre que determinada situação tributável se submeta a uma pluralidade de poderes impositivos, de Estados soberanos distintos. Desde que ocorrida esse circunstância e a fim de evitar que o sujeito passivo se subordine a várias imposições perante um só fator de avaliação de sua capacidade contributiva, surgem os tratados e convenções internacionais que, no seu contexto, declaram pretender evitar a bitributação internacional.(29)

          No Sistema Tributário Brasileiro, por tratar-se de um Estado Federal, as dificuldades a serem superadas neste processo de integração econômica do Mercosul, envolvem não somente as relações diretas com outros países, mas as relações internas, em conseqüência do poder tributante dos estados e municípios, previsto na Constituição Federal, conforme já enaltecido.

          Deve ser destacado que, rigorosamente, nos termos da Constituição Federal, incumbe à União manter relações internacionais, podendo Estados e Municípios efetuarem empréstimos externos com autorização do Senado Federal.

          A constitucionalidade do art. 98 do CTN foi repetidas vezes questionada.(30) Referido artigo, no dizer de Rezek, construiu, no domínio do direito tributário, uma regra de primado do direito internacional (desde que obviamente introduzido no ordenamento jurídico nacional através do referendum do Congresso Nacional) sobre o direito interno.(31)

          Gilberto de Ulhôa Canto, que, ao lado de Rubens Gomes de Sousa, foi um dos autores do CTN, discorrendo a propósito da questão, dando a dimensão exata inclusão do art. 98, atesta que ao elaborá-lo buscaram consagrar o princípio que àquela ocasião era tranquilamente aceito pela jurisprudência dos tribunais pátrios.(32)

          Natanael Martins(33) elenca vários argumentos de que há muito o artigo 98 do CTN, vem sendo inquinado como norma inconstitucional pelos seguintes argumentos: uma porque teria ferido o princípio federativo (interfere na autonomia dos Estados); duas porque não teria respaldo no texto constitucional; três porque em qualquer hipótese, no caso de conflito da norma de direito interno com norma de direito internacional, a questão deve ser solucionada pela aplicação do princípio da "lei posterior"; vale dizer, em caso de conflito deve prevalecer sempre a última palavra do Congresso.

          Nesse mesmo seguimento, Valmir Pontes Filho(34) conclui pela inconstitucionalidade do art. 98 do CTN, argumentando não ter caráter complementar, isto é, não encerra norma geral de Direito Tributário sobre conflitos de competência ou sobre limitações constitucionais ao poder de tributar; e ainda porque pretende fazer prevalecer os tratados internacionais sobre a legislação tributária estadual ou municipal, ferindo os princípios constitucionais federativo, da autonomia estadual, distrital e municipal e da competência tributária.(35)

          Desta forma é questionado: Poderia ser objeto do tratado internacional celebrado pela União, as isenções, reduções de alíquotas e base de cálculo e outras deduções de tributos de competência dos Estados Distrito Federal e Municípios?

          O art. 151 da Constituição Federal, através do inciso III, esclarece que é vedado à união instituir isenções de tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

          Com efeito, o Prof. Alcides Jorge Costa,(36) ao comentar este artigo ressalta, que a União não pode mais conceder isenções de impostos estaduais e, como não pode celebrar tratados que sejam contrários à Constituição, os tratados também perdem a eficácia neste particular. Segundo ele, vêm as preocupações a respeito do GATT e da ALALDI.

          Se assim prevalecer tal posicionamento, desde a promulgação da Carta de 1988, não mais poderiam ser aplicadas as regras que versam sobre isenções de tributos estaduais e municipais. Pela mesma razão o artigo 98 do CTN, não teria aplicabilidade em relação aos Estados, Municípios e Distrito Federal.

          O CTN enquanto norma geral de direito tributário e a prevalência do tratado em face da legislação posterior, seja emanada da União, Estado ou Município, ainda não é pacífico tal entendimento como ficou demonstrado. 

5. Conclusões

          Além das disposições constitucionais propugnadas na Carta Política de 1988, de que a União não poderá conceder isenções de tributos de competência distrital, estadual e municipal (art. 151-III), deve ser considerado que com o Tratado de Assunção, firmado em 1991, o Mercosul é uma realidade da qual, não se pode deixar para segundo plano no tocante ao aspecto da harmonização da legislação tributária. Isto porque, um dos objetivos do referido Tratado, vem destacado (art. 1º) que os Estados membros assumem o compromisso de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração. Tal posicionamento vem sacramentado no art. 2º, que ressalta que o Mercosul foi fundado na reciprocidade de direitos e operações entre os Estados partes.

          Para tanto, deve o Brasil adequar sua legislação interna para acompanhar o progresso da harmonização da legislação tributária do Mercosul. E, da conjugação dos dispositivos constitucionais já citados tem-se que, respeitada a independência nacional, deverá o Brasil praticar os atos necessários para celebrar tratados e acordos internacionais, atendendo desta forma o que propugna a Constituição Federal – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e integração da América Latina.

          Várias propostas de Reforma Tributária visando alterar a Constituição Federal foram apresentadas, após a assinatura do Tratado de Assunção, e, não há ainda expectativa em curto período de tempo, para proceder a alteração necessária e a adequação da legislação ordinária face às disposições firmadas no referido Tratado.

          O que deve permanecer claro é que o art. 7º do Tratado de Assunção, quando determina o tratamento isonômico dos Estados-membros em relação os impostos, taxas e outros tributos, tem a finalidade precípua, não a questão tributária em si, mas garantir a livre concorrência entre os mercados que estão integrando.

          Ademais não se pode esquecer que a questão aduaneira passa primeiro pelo estabelecimento de uma política fiscal e, caminhar para um consenso tributário entre países com problemas tão graves e de dimensões tão diversas, é inicialmente um grande desafio. Para tanto, necessário se faz a adequação da política fiscal interna de cada país. Na realidade, o principal é que se estabeleçam instrumentos internos em cada país de apoio à atividade produtiva. A reforma constitucional tributária, para melhor adequar o Sistema Tributário, diminuirá as distorções existentes entre o Brasil e os sistemas tributários dos outros países do Mercosul.

          A prevalência dos tratados internacionais em relação ao direito interno não quer dizer prevalência total sobre a ordem jurídica brasileira. Pelo contrário, a matéria vedada em tratados internacionais somente afeta o ordenamento pátrio na medida em que o Congresso Nacional aprova o ato do Presidente da República e desde que não seja contrário à Constituição Federal, devendo ser proporcionalmente consideradas as disposições do artigo 98 do CTN.

          De tal forma, e, consideravelmente deve ser levado em conta a implantação de um tribunal supranacional, integrado por magistrados dos países signatários aos tratados internacionais, bem como fazendo valer as arbitragens já propugnadas em acordos firmados com os países integrantes do Mercosul. Para a primeira alternativa, convém ressaltar a necessidade de emendar a Carta Política brasileira, bem como contar com a inclusão do mesmo mecanismo nos ordenamentos jurídicos da Argentina, Paraguai e Uruguai, nesse mesmo sentido.(37) Isto se tem claro, vez que o Mercosul não produz normas de direito comunitário, dotadas de efeito de aplicação direta entre os Estados-partes. Tais normas necessitam, para terem validade nos territórios dos quatro países signatários no Mercosul, de incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais, de acordo com os procedimentos por eles estabelecidos.

          A experiência européia poderá ser útil. A instituição do Tribunal de Justiça europeu verificou-se quando da condições sócio-econômicas revelaram tal necessidade. Novas implantações ou ajustes no sistema jurídico do Mercosul deverão ser feitas de forma amadurecida e adequadas às reais necessidades que atendam os interesses dos países signatários. 

NOTAS

          1 – O que é o Mercosul? Aspectos Fundamentais, Academia Brasileira de Direito Empresarial, Curitiba,1996, p. 3.

          2 – Almeida, Elizabeth Accioly Pinto de. O destino do Mercosul: Mercado comum ou Zona de Livre Comércio, in Revista Jurídica da UEPG, ano I, vol. I, Ponta Grossa, 1997, p. 33/4. Segundo a autora, tem-se com o registro as aduanas dos Estados Alemães e a União Européia que nasceu com o Tratado de Roma em 1957, criando a Comunidade Econômica Européia, consolidando a sua união aduaneira em 1968.

          3 – O governo brasileiro impôs o sistema de cotas para a importação de automóveis gerando um conflito comercial, não só com os países integrantes do Mercosul, como com a União Européia, o Japão e os Estados Unidos, que até hoje não foi selecionado. Editou a Medida Provisória de nº 1532, que cria uma espécie de regime automotivo paralelo e privilegiado para o Norte, Nordeste e o Centro-Oeste brasileiro, concedendo incentivos fiscais à montadoras estrangeiras de veículos, deixando indignados os demais parceiros do Mercosul. Tem-se registro ainda da publicação em 14.01.97, da Portaria nº 9, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, que altera as regaras de controle sanitário dos alimentos que entram no país. A mais recente alteração é a Medida Provisória nº 1.569 limitar as importações e estabilizar o déficit na balança comercial, obrigando aos importadores que antes pagavam as aquisições de acordo com o prazo conseguido com o vendedor no exterior, passem a pagá-las à vista.

          4 – Silva, Carlos Roberto Lavalle da. Harmonização Tributária no Mercosul, in Mercosul – Perspectivas da Integração, Rio de Janeiro, FGV, 1996, p. 144.

          5 – González Cano, Hugo. La armonización tributaria en procesos de integración económica. Impuestos. Buenos Aires, may, 1.991, p. 885.

          6 – Id., Ibidem, p. 885.

          7 – Ventura, Deisy de Freitas Lima. A Ordem Jurídica do Mercosul, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996, p. 94.

          8 – Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito. Trad., de João Baptista Machado, Armênio Amado Editor, 4ª ed., p. 427.

          9 – O tema do conflito entre as normas internacionais e a ordem interna desdobra-se em duas grandes correntes doutrinárias que disputam o melhor equacionamento da questão, ou seja, o dualismo destacado no âmbito internacional por Triepel e Anzilotti, seguido no Brasil por Amílcar de Castro; e o monismo defendido por Kelsen, e no Brasil por Valladão, Tenório, Celso Albuquerque de Mello e Morotta Rangel. Cf. Barroso, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 1996, São Paulo, Saraiva, p. 17.

 10 – Xavier, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. São Paulo, Resenha Tributária, 1977, p. 25.

          11 – Bastos, Celso Ribeiro e Ives Gandra da Silva Martins. Comentários à Constituição do Brasil, 1º vol, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 464.

          12 – Xavier, Alberto.Direito Internacional Tributário do Brasil, São Paulo, Resenha Tributária,1977, p. 39.

          13 – No Brasil há, na Constituição de 1.988 a previsão genérica do princípio da legalidade no art. 5º, II, e a especificamente tributária no art. 150, I. Na Constituição Argentina a previsão genérica está disposta no art. 19, segunda parte e de forma específica para os tributos, no art. 4º, bem como art. 17.O Uruguai expressa na Constituição esse mesmo princípio, de maneira genérica no art. 10, segunda parte, e com referência à questão tributária a legalidade está prevista no art. 85, nº 4.

          Vários dispositivos estão inseridos no texto Constitucional do Paraguai de forma abrangente, quer sejam, nos artigos 47, 49, 57 e 67. E de forma mais categórica no art. 57.

          14 – A proposta de Emenda Constitucional nº 175, de 1995, apresentada pelo Presidente da República com a Mensagem nº 888, de 23/08/95 dá a seguinte redação ao inciso III do art. 151, da Constituição Federal:

          III – instituir de tributo da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos

          Municípios, salvo quando prevista em tratado, convenção ou ato internacio –

          nal do qual o Brasil seja signatário.

          15 – Baleeiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 1990, p. 402.

          16 – __________ Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Rio de Janeiro, Forense, 1951, p. 15.

          17 – Barroso, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 19.

          18 – Id., Ibidem, p. 19.

          19 – Este dispositivo por várias vezes objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal que, não declarou sua inconstitucionalidade. A questão foi levantada por ocasião do julgamento, pela Suprema Corte, do RE 80.004-SE (RTJ) v. 83, p. 809-851. Neste julgamento, o Min. Cunha Peixoto chegou a referir o art. 98 do CTN como sendo de constitucionalidade duvidosa (p. 824). Contudo, não foi declarada a inconstitucionalidade do dispositivo. A jurisprudência posterior do Supremo Tribunal Federal, em casos nos quais foi examinado, especificamente, o art. 98 do CTN, declarou a prevalência do citado dispositivo, atestando assim, a sua constitucionalidade, como se pode verificar do acórdão proferido pelo Plenário, inserto na R.T.J nº 95/350 (RE 90.824-SP).

          20 – Ribeiro, Maria de Fátima. Comentários ao Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro, Forense, p. 204 e segs.

          21 – Accioly, Hildebrando.Manual de Direito Internacional Público. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 120.

          22 – Ressalta A.A. Contreiras de Carvalho, que o CTN quis tornar explícita uma recomendação, como a que consta do seu artigo 98, que ao seu ver desnecessária, pois a superveniência de lei não pode invalidar o que se acordou em tratado ainda em vigor. Doutrina e Aplicação do Direito Tributário, 2ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1973, p. 87.

          23 – Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 7ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1.993, p. 558/9.

          Veja também: Fábio Fanucchi, Curso de Direito Tributário Brasileiro, 3ª ed., São Paulo, Resenha Tributária-MEC, 1975, vol. I, p. 139.

          24 – Carvalho, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário nos Termos da Constituição Federal de 1.988, 4ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1.991, p. 62.

          Na mesma linha vem afirmar Alberto Xavier, ao escrever que é manifestadamente incorreta a redação do art. 98 do CTN. Não se trata de revogação, mas sim de prevalência no caso concreto de uma fonte situada em ordem superior. Sendo as convenções de ordem bilateral elas não revogam as leis fiscais que permanecem em vigor para a generalidade de seus efeitos. Cf. Direito Tributário Internacional do Brasil, São Paulo, Resenha Tributária, 1977, p. 37.

          25 – Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 176.

          26 – Machado, Hugo de Brito. Isenções Tributárias no Mercosul, IOB, junho/1997, nº 11/97, caderno 1, p. 269.

          27 – Rezek, José Francisco. Tratado e Legislação Interna em Matéria Tributária, in ABDF – Resenha nº 22.

          28 – Rosembuj, Tulio. Elementos de Derecho Tributário, Barcelona, Editorial Blume, 1982, p. 55, apud Hugo de Brito Machado, Isenções Tributárias no Mercosul, IOB, junho/97, nº 11/97, caderno 1, p. 268.

          29 – Fanucchi, Fábio. Curso de Direito Tributário…, cit., p. 138.

          30 – Confira o trabalho de Natanael Martins, publicado no vol. XX da Coletânea de Imposto de Renda/Estudos da Editora Resenha Tributária. Tratados Internacionais em Matéria Tributária. São Paulo, jun/1991.

          31 – Rezek, José Francisco. Tratado e Legislação Interna…, cit., p. 22.

          32 – Ulhôa Canto, Gilberto de. Legislação Tributária, sua vigência, sua eficácia, sua aplicação, interpretação e integração. In Revista Forense, Rio de Janeiro, Ed. Forense, nº 267, p. 35.

          33 – Martins, Natanael, Tratados Internacionais em Matéria Tributária, in Imposto de Renda – Estudos XX, São Paulo, Resenha Tributária, jun/1991, p. 133.

          Com efeito, José Alfredo Borges em sua obra Tratado Internacional em Matéria Tributária como Fonte de Direito, (In Revista de Direito Tributário, nº 27/28, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, p. 161), manifestando-se pela inconstitucionalidade do artigo 98 do CTN, aponta que no caso do Brasil, sendo a União, a pessoa política competente para celebrar tratados internacionais, poderá fazê-lo apenas em relação às matérias outorgadas, igualmente, à sua competência pela Constituição; que em relação à lei ordinária federal, ao tratado regularmente ratificado se aplica o princípio lex posterior derogat legi priori, isto com relação a outras leis ordinárias federais ou a outros tratados internacionais pelo Brasil; que, por fim, a isenção de tributos estaduais concedida por tratado ratificado ou não é absolutamente inválida, dada a imprestabilidade da via escolhida para se concedê-la.

          34 – Pontes Filho, Valmir. ICM – Mercadoria Importada do Exterior, In Revista de Direito Tributário, nº 42, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, p. 131, com respaldo na Dissertação de Mestrado do Prof. Waldir Luiz Braga, apresentada na PUC-SP (não publicada).

          35 – O Supremo Tribunal Federal, no RO 80004, julgado em 1.977, alterando a orientação justificadora do surgimento do art. 98 do CTN, ao decidir sobre matéria comercial (Convenção de Genebra), contra o voto do relator, Ministro Xavier de Albuquerque, passou a entender que o tratado não prepondera sobre a lei interna editada posteriormente e que com ele conflita.

          Em recentes decisões relativas ao ICMS onde se discutiu a prevalência das modificações introduzidas pelos Estados, em face da inovação introduzida pela Emenda Passos Porto (EC 23/93) o STF reafirmou, ainda que implicitamente, a plena aplicabilidade do art. 98 do CTN., afastando em definitivo a tese da sua inconstitucionalidade. Da mesma forma caminhou o Superior Tribunal de Justiça, como se pode verificar pelos Recursos Extraordinários nºs 119.814-1-SP, 116.335-6-SP e 113.759-2-SP.

          36 – Costa, Alcides Jorge , ICMS na Constituição, In Revista de Direito Tributário, nº 46, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 170.

          37 – Não são poucas as manifestações favoráveis à criação de um Tribunal no Mercosul, nos moldes da Corte de Luxemburgo, da União Européia ou do Tribunal de Justiça do Acordo de Cartagerna do Grupo Andino.

BIBLIOGRAFIA

          – Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo, Saraiva,1997.

          – Almeida, Elizabeth Accioly Pinto de. O Destino do Mercosul: Mercado Comum ou Zona de Livre Comércio, in Revista Jurídica da UEPG, ano I, Vol. I, Ponta Grossa, 1977.

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Referência  Biográfica

Maria de Fátima Ribeiro:  Professora de Graduação e Mestrado da Universidade Estadual de Londrina (PR), Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP.

mfat@ldnet.com.br

Ponto Final

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 * Maria Berenice Dias

Dúvida não há de que o instituto da concorrência introduzido no direito sucessório pelo novo Código Civil é ponto dos mais polêmicos. A dificuldade de leitura do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil é tamanha, que, na hipótese de o autor da herança ser casado pelo regime da comunhão parcial de bens, a doutrina o interpreta de maneiras diametralmente opostas. Uns afirmam que, se o falecido deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros e recebe parte da herança. Já outra corrente entende exatamente o contrário, ou seja, somente se o cônjuge falecido não deixar bens além da meação é que o viúvo concorre com os herdeiros que o antecedem na ordem de vocação hereditária. Mas as soluções preconizadas não se esgotam nessas duas possibilidades. Há quem diz que o cônjuge concorre exclusivamente com relação aos bens particulares, mas ainda há outros que sustentam que o direito à concorrência é só sobre os aqüestos.

Ainda que não se pretenda colocar um ponto final na discussão, imperiosa é uma nova leitura do texto legal, principalmente com os ricos subsídios que a discussão tem aportado ao debate.

O caput do artigo 1.829 do Código Civil estabelece a ordem de vocação hereditária, identificando em seus incisos os direitos dos herdeiros necessários (art. 1.845) e dos herdeiros legítimos (colaterais até o 4º grau, art. 1.839).

Em primeiro lugar, a lei (inciso I do art. 1.829) assegura o direito sucessório dos descendentes, concedendo, no entanto, ao cônjuge sobrevivente uma percentagem da herança. O dispositivo que assegura o direito à herança e à concorrência é claro: (a sucessão legítima defere-se)…aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

Esse verdadeiro estado condominial gerado entre filhos e viúvo sobre o acervo hereditário não é irrestrito. O artigo que elege os sucessores de primeiro grau e consagra o direito de concorrer já estabelece, em seu próprio bojo, exceções ao benefício vidual. As causas de afastamento do direito estão condicionadas ao regime de bens do casamento. Ou seja, o legislador, depois de consagrar o instituto da concorrência, abre exceções, identificando os regimes de bens que levam à exclusão do direito. Antes são apontados, de forma conjunta, os dois regimes de bens que afastam a concorrência.  Depois, a lei refere outro regime de bens e, por meio de uma condicionante, identifica a variante que autoriza a concorrência.

A regra é a concorrência; e a não-concorrência é a exceção. A primeira ressalva ao direito é feita por meio da expressão “salvo se”, que assim deve ser lido: (a sucessão legítima defere-se)…aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este (o cônjuge sobrevivente) com o autor da herança pelo regime da comunhão universal, ou na separação obrigatória de bens (art. 1.641 – e não 1.640 – parágrafo único).

A parte final do mesmo dispositivo trata do direito à concorrência quando o casamento se rege pelo regime da comunhão parcial de bens. É aqui que se situa a controvérsia maior. Identificar, afinal, qual a hipótese em que há concorrência: se quando o de cujus tem bens particulares ou quando ele não tem bens particulares. Desse impasse só se pode sair atentando-se para o fato de que o sinal gráfico de ponto-e-vírgula secciona as diversas hipóteses.

Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)…aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (…) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Não se pode olvidar que a regra é a concorrência. Esse direito se sujeita a exceções, limitações de caráter restritivo. O legislador identifica as hipóteses em que o direito é afastado: (1) no regime da comunhão universal de bens e (2) no regime da separação obrigatória. No regime da comunhão parcial, a lei aponta a hipótese em que o direito é assegurado (3): quando houver bens particulares. A ressalva última decorre da duplicidade de situações que este regime contém (existência ou não de bens exclusivos), o que impõe tratamento diferenciado a cada modalidade. Em respeito à natureza mesma do regime legal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares no acervo hereditário.

A interpretação desse intrincado e pouco claro dispositivo legal não pode ser outra, sob pena de se subverter o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optar pelo regime da comunhão parcial (isto é, ao não firmar pacto antenupcial), quiseram garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento, assim como dos recebidos por doações ou herança.

Quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados desta maneira: cada um fica com seus bens particulares e divide-se o patrimônio adquirido durante a vida em comum. O fato de o casamento ultimar por separação, divórcio ou morte não pode permitir que a partição seja feita de forma diversa da eleita pelas partes. Aliás, essa foi a preocupação do legislador em fazer a ressalva em sede sucessória, para que se respeitasse a característica do regime de separação de bens: comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento (art. 1.658), excluindo-se da comunhão os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar (inc. I do art. 1.659).

Ainda que se questione a continuidade lógica da enumeração, o fato é que a lei identificou duas hipóteses em que afasta o direito de concorrer e apontou a permanência do direito ao tratar de modalidade que dispõe de dúplice situação por sujeita a regramento próprio.

Admitir possibilidade diversa, ou seja, que existe uma dupla negação em tal dispositivo legal, pelo uso das expressões “salvo se” e “ou, se” e sustentar o direito à concorrência somente se existirem bens particulares, é subverter o regime da comunhão parcial de bens; é atentar contra a vontade dos cônjuges; é afrontar a lógica a que deve sempre se ater o intérprete. Necessário visualizar a lei dentro do sistema, o artigo dentro da lei, e não se apegar a exacerbado tecnicismo formal, na tentativa de entender a lógica gramatical do que está escrito.

Basta figurar um exemplo para flagrar a incongruência do que vem sendo sustentado: alguém, tendo filhos e bens, vem a casar e recebe a herança de seu genitor. Quando de sua morte, o viúvo (que não é o genitor dos filhos do de cujus) recebe fração igual a cada um dos herdeiros. Ou seja, o cônjuge sobrevivente torna-se proprietário de parte da meação do finado e de parte da herança do sogro. Vindo o cônjuge a morrer, seu patrimônio – integrado dos bens do ex-marido – passará aos seus sucessores (seus filhos, seus pais, seu novo cônjuge ou seus irmãos ou sobrinhos), pois não reverterá aos órfãos o patrimônio que o pai havia amealhado sozinho, nem a herança do avô, que cairão em mãos de estranhos.

E, como não há qualquer regime de bens que impeça tal resultado, talvez a solução seja não casar, viver só ou em união estável, onde inexiste esse risco que, certamente, ninguém há de querer correr.

Tomara o legislador empreste uma redação mais clara ao novo instituto, única forma para se colocar na controvérsia um ponto final.

     


Referência  Biográfica

Maria Berenice Dias:   .Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Pós-Graduada e Mestre em Processo Civil pela PUC-RS ; Professora da Escolas Superiores da Magistratura e da Advocacia.

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A autonomia da Ciência

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* João Batista Machado Barbosa

I. INTRODUÇÃO

          Embora o astrônomo e físico italiano Galileu Galilei tenha passado para a história por ter inventado o telescópio e por ter sido perseguido cruelmente pela Igreja Católica por suas idéias, razão pelo qual foi condenado à prisão domiciliar até a sua morte, em 1642, tais fatos não são rigorosamente verdadeiros e não fazem justiça à importância que seus estudos tiveram para a ciência.

          Primeiro, porque quem inventou o telescópio, na verdade, de acordo com a maioria dos historiadores, foi o holandês Hans Lippershey(1). Galileu apenas o aperfeiçoou, utilizando o novo instrumento para observar os corpos celestes e assim provar que a Terra se movia e que girava em torno do sol.

          Em segundo lugar, porque quem inicialmente formulou a teoria de que a Terra não era o centro do universo foi o polonês Nicolau Copérnico, divulgada a partir da publicação do livro Sobre a Revolução dos Mundos Celestes, em 1543.

          Por último, porque o conflito entre Galileu e a Igreja Católica sobre suas descobertas, na realidade, não se deveu simplesmente à polêmica sobre se a Terra se movia e se era ou não o centro do universo, mas sobre a autonomia da ciência e de sua capacidade de encontrar a natureza essencial de todas as coisas – a realidade por trás das aparências – antes reservado apenas à revelação divina.

          Não obstante Galileu tenha morrido há mais de trezentos e cinqüenta anos, a cada descoberta da ciência – como a recente decodificação do genoma humano – voltamo-nos para este velho conflito: qual seria verdadeiramente a autonomia da ciência? 

II. AS DESCOBERTAS DE GALILEU

          Aos 28 anos, Galileu tornou-se professor da Universidade de Pádua e lá passou a construir telescópios, muito mais potentes dos que havia até então.

          A partir do uso deste novo instrumento, Galileu pôde observar, por exemplo, que a lua, na verdade, era cheia de crateras, que a via Láctea não era apenas uma faixa nebulosa de luz, mas um conjunto de milhões de estrelas, que o sol tem manchas em sua face e que o planeta Júpiter tem quatro luas (hoje se sabe que são dezessete).

          De todas estas novas descobertas, o que mais impressionou Galileu foi o fato de que a órbita das luas de Júpiter, em torno do sol, era de forma semelhante a da nossa lua.

          Fascinado com isso, Galileu passou a observar também o movimento de outros corpos celestes e constatou que Vênus, um dos planetas interiores à órbita solar, tinha fases iguais às da lua, comprovando a teoria de Copérnico sobre o heliocentrismo.

          Diante dessas descobertas, Galileu publicou, em 1610, um pequeno livro denominado Siderius Nuncius (algo como "mensageiro estelar"), fato muito festejado no meio científico e mesmo junto à comunidade religiosa.

          De fato, alguns membros da Igreja eram da mesma sociedade científica a que Galileu pertencia(2) e se orgulharam muito dele por sua contribuição à ciência.

          Relata a história, inclusive, que, em 1611, Galileu foi homenageado no Colégio Jesuíta Romano e, em 1614, quando criticado por um monge dominicano, este foi obrigado a retratar-se publicamente, em nome de toda a ordem(3).

          Ocorre, porém, que as descobertas de Galileu desafiavam todo o conhecimento que era livremente ensinado nas Universidades da época, baseado principalmente nas idéias aristotélicas e na escritura sagrada. Era a visão ptolomaica de que a Terra era o centro do universo, conhecida como geocentrismo e que se adaptava muito bem à teologia cristã e aos ensinamentos de Aristóteles. Inclusive, lembram Paulo Roberto Morais e Adriano Botelho, que na visão deste mundo, o céu e a Terra eram regidos por leis completamente diferentes: enquanto os corpos celestes eram perfeitos, incorruptíveis e imutáveis, os seres terrenos possuíam movimento, eram imperfeitos e podiam ser corrompidos(4).

          Neste cenário, era fácil compreender porque os currículos acadêmicos traziam a clássica divisão entre a astronomia e a mecânica, ramos da ciência tradicionalmente ligados à filosofia.

          Eram contra isso que as idéias de Copérnico e de Galileu desafiavam.

          Não apenas se a Terra se movia ou não, se era ou não o centro do universo, pois suas idéias, muito mais do que isso, representavam um perigo para o saber institucionalizado dos doutores e sábios encastelados nas universidades da época e passaram a ser duramente combatidas.

          Havia, contudo, um empecilho.

          Apesar de, naquela ocasião, entender a comunidade científica que as evidências apresentadas por Galileu ainda não eram suficientes para demonstrar a veracidade de sua teoria – já que elas também explicavam a teoria mais popular da época, a do dinamarquês Tycho Brahe, que propunha estarem os planetas orbitando em torno do sol e todo este conjunto girando ao redor da terra – não havia também como contestá-las.

          A saída então foi envolver a Igreja Católica na disputa. 

III. O CONFLITO COM A IGREJA CATÓLICA

          No início do século XVII, a Igreja Católica vivia a fase conhecida como contra-reforma, ainda sob os auspícios do Concílio de Trento (1543-1563), realizado anos antes, no qual se pregava a ortodoxia das escrituras sagradas contra os "hereges reformistas", como lembram Paulo Roberto Morais e Adriano Botelho(5).

          Neste contexto, adotar uma nova concepção da ciência que não fosse proveniente de uma revelação divina era extremamente perigoso. E era justamente isso que representava a teoria de Galileu.

          Enquanto as teorias reveladas no sistema copernicano eram vistas até então apenas como instrumentos, hipóteses matemáticas, Galileu propugnava que sua teoria era uma descrição verdadeira do mundo.

          Para se ter uma idéia das idéias de Copérnico, Popper lembra como Andreas Osiander, no prefácio do livro Sobre a Revolução dos Mundos Celestes acima citado, sobre as teorias científicas abordou o assunto. Segundo ele, "não existe necessidade alguma de serem verdadeiras, ou mesmo que se assemelhem à verdade", em razão de que, "apenas uma coisa é suficiente para elas – que elas permitam cálculos que concordam com as observações" (6).

          As idéias revolucionárias de Galileu nesta polêmica eram, portanto, o ponto mais importante da questão, pois, segundo o pensamento corrente àquela época, não se concebia a superioridade do intelecto humano, sem a ajuda da revelação divina, para descobrir os segredos de nosso mundo – a realidade atrás das aparências.

          A Igreja Católica, em razão de toda esta controvérsia, designou o Cardeal Roberto Bellarmino, chefe de uma espécie de "departamento de questões controversas", para estudar o caso.

          Após concluída sua análise, o Cardeal verificou não haver ofensa nenhuma às escrituras sagradas, porém, advertiu Galileu para ele não ensinar publicamente que a terra se move ao redor do sol, ao menos que pudesse provar isso.

          Como ele não tinha ainda nenhuma prova concreta sobre suas teorias, este decreto, na verdade, teve o condão de amordaçar Galileu, que se sujeitou, em 1616, pela primeira vez, à decisão da Igreja.

          Em 1623, porém, um grande amigo e admirador de Galileu, membro de uma mesma sociedade científica, o Cardeal Maffeo Barberini, tornou-se o Papa Urbano VIII e trouxe um novo alento ao cientista a respeito de suas teorias.

          Galileu logo tratou de ter uma audiência com o novo Papa e pediu sua benção para escrever um novo livro sobre os movimentos do sistema solar. O Papa concordou com ele, porém, impôs uma condição: a de que ele deveria relatar tanto a visão do sistema heliocêntrico como o geocêntrico, de forma imparcial.

          E assim Galileu o fez, publicando seu livro Diálogo dos grandes sistemas, em 1632.

          O livro relata um diálogo entre três pessoas: um observador interessado, um defensor do heliocentrismo e um defensor do geocentrismo – uma forma muito comum de escrever àquela época – e imediatamente passou a ser um grande sucesso de venda por toda a Europa.

          Galileu, entretanto, como já havia feito outras vezes, estava mais interessado em humilhar seus opositores do que expor de forma imparcial suas teses.

          Ao escrever o Diálogo, retratou o defensor do heliocentrismo como uma pessoa espirituosa, inteligente e perspicaz, ao passo que o defensor do geocentrismo, denominado de Simplicius, um homem ignorante e mal informado, freqüentemente pego em seus próprios erros.

          Este diálogo, em razão disto, jamais poderia se travar de modo imparcial e logo as palavras de Simplicius foram identificadas com as do Papa pela população.

          Galileu então foi processado e condenado e, em troca de uma retratação pública, foi permitido que cumprisse uma sentença de prisão domiciliar, até morrer, cego, em 1642. 

IV. GALILEU E AS TRÊS CONCEPÇÕES SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO

          A morte de Galileu, contudo, não sepultou a grande controvérsia instituída com a Igreja a respeito da autonomia da ciência.

          Além de saber do grande instrumento que sua teoria representava para a ciência, Galileu também estava empenhado em demonstrar que poderia utilizar dela para fazer uma descrição verdadeira do mundo – a realidade atrás da aparência. Isto porque as teorias verdadeiramente científicas para Galileu eram as que descreviam a essência das coisas ou a sua natureza essencial, a realidade que não podíamos ver.

          Naturalmente, tal fato contrariava a filosofia pregada pela Igreja Católica, mediante o qual as teorias científicas só poderiam ser instrumentos, hipóteses matemáticas, devendo ser usadas apenas para cálculos ou para previsões, nunca para descreverem alguma coisa real. A verdade, portanto, só poderia ser revelada através da palavra divina, incompreensível para o homem.

          Revela Popper(7), entretanto, que a concepção da ciência rediscutida a partir do episódio da igreja contra Galileu apenas mostra a velha tradição racionalista do homem, herdada dos gregos, de entender o mundo em que vivemos.

          Galileu somente renovou este espírito, enaltecendo a ciência pela sua influência liberalizadora, pela sua capacidade de nos libertar de velhos mitos, preconceitos e paradigmas, para oferecer, em seu lugar, novas conjeturas e hipóteses audaciosas.

          Dentro deste aspecto, as idéias de Copérnico e de Galileu eram extremamente fantásticas, pois o heliocentrismo, ou seja, a teoria de que a terra é que se move ao redor do sol, era uma total negação à evidência de nossos sentidos, acostumados a ver o movimento do astro celeste, nascendo e se pondo a cada dia.

          A despeito deste fato, entendemos atualmente que todas estas teorias inovadoras são apenas instrumentos de que nos valemos para compreender melhor a realidade que nos cerca.

          As teorias científicas, portanto, são simplesmente testemunhas da conquista intelectual de nosso mundo por nossas mentes e revelam apenas uma dada conjuntura.

          Como exemplo, podemos lembrar que há poucos anos atrás tínhamos o átomo como a menor partícula da matéria. Hoje, porém, já foram identificadas outras subpartículas, permitindo aos cientistas imaginarem a existência de um microcosmo de proporções infinitas e que elas serão gradativamente conhecidas a partir de novos instrumentos dispostos pelo homem para compreendê-las.

          O mesmo podemos dizer em relação ao macrocosmo.

          A conhecida teoria do big bang, ou seja, de que o universo teria se formado há 15 bilhões de anos em uma grande explosão e que ainda estaria se expandindo, formulada pelo astrônomo americano Edwin Hubble, no início do século, já vem sendo contestada. Graças ao telescópio espacial Hubble, batizado justamente em homenagem ao autor daquela teoria, já é possível calcular a idade do universo com razoável previsão, sendo que a teoria mais aceita hoje, segundo informa Cristina Ramalho, é a de que o Universo teria aproximadamente 13 bilhões de anos(8).

          A constatação mais surpreendente dos cientistas, contudo, é que se o Universo teve um começo é porque ele deve ter também um fim e de que ele não continua se expandindo, como antes se pensava.

          É a teoria denominada de big crunch, construída a partir da descoberta de que algumas galáxias estariam se desacelerando.

          Estes poucos exemplos refletem nitidamente que a ciência não deve procurar desvendar a natureza e a essência das coisas, posto não existir verdade última e conhecimento que não possa ser contestado.

          Toda teoria científica pode ser contestada, basta surgir novas evidências ou novas técnicas que permitam ao homem descobrir outras respostas para este ou aquele fenômeno.

          "De absoluto só a relatividade", dizia Einstein. Mesmo a relatividade, entretanto, nos parece "relativa" e neste final de século ela vem sendo rediscutida, diante de novas descobertas.

          O essencialismo de Galileu, portanto, embora de inegável contribuição para a ciência, haja vista ter inserido o conceito de que o cientista deve aspirar a encontrar uma teoria ou descrição verdadeira do mundo e que seja também explicação de fatos observáveis, não pode ser aceito em toda a sua latitude.

          Por sua vez, também o instrumentalismo, estigmatizado no conflito galileano com a Igreja, não representa fielmente o papel da ciência, em razão de as teorias não serem simples instrumentos ou hipóteses matemáticas para a predição ou explicação de determinados fenômenos.

          Com efeito, uma teoria pode, por exemplo, prever a existência futura de um terremoto ou de um eclipse, eventos de causas e efeitos conhecidos, mas não pode prever novos tipos de eventos, daí por que ela não é um simples instrumento para explicar ou expor a existência de um fato ou de um fenômeno.

          A criação de novas situações para novos tipos de testes é uma função da ciência que o instrumentalismo dificilmente pode explicar sem abandonar seus dogmas fundamentais, daí porque, concordando com Galileu, a função instrumental da ciência não esgota toda a sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento e progresso da vida buscados pelo homem.

          Em razão disto, talvez tenha razão Popper, ao criar uma terceira concepção(9), que a chamamos de realismo, expressa nos termos de que a ciência é um instrumento verdadeiramente capaz de descobrir coisas reais, mas que ela não deve esperar encontrar a essência ou natureza das coisas – a realidade por trás das aparências – nem que este conhecimento seja último e incontestável.

          A autonomia da ciência, portanto, não pode ser limitada a princípios e dogmas em razão de algumas ideologias, crenças ou teorias entenderem como inatingíveis e intransponíveis.

          Há sempre espaço para novas descobertas. 

V.   A  AUTONOMIA DA CIÊNCIA E AS NOVAS DESCOBERTAS

          Inobstante a importância da discussão sobre a autonomia da ciência acima articulada, as novas descobertas no campo da biogenética, principalmente a clonagem de seres vivos e o mapeamento do genoma humano, desperta o homem para uma nova reflexão neste fim de século e, ao que tudo indica, o velho conflito entre Galileu e a igreja vai terminar restrito mesmo à história e à epistemologia.

          Realmente, vencida a luta em favor da liberdade de investigação científica, constatamos, centenas de anos depois de Galileu, que o conceito de autonomia da ciência precisa ser reavaliado – não em razão de sua abrangência ou de seus métodos, mas do domínio de seus resultados.

          Sabemos que o conhecimento humano aumenta em proporções assustadoras a cada ano e que isto tem proporcionado melhores condições de vida para o homem e sua vida em sociedade. A partir do desenvolvimento da tecnologia nos campos das telecomunicações, informática e transportes, por exemplo, mais facilidades encontramos para realizar nossos sonhos de uma vida confortável e feliz.

          Com a decodificação do genoma humano e a descoberta dos segredos da vida, contudo, esta discussão precisa ser mais aprofundada.

          Se já somos capazes de decifrar o código com que Deus criou a vida, em breve seremos capazes também de clonar seres humanos, a partir da seleção de matrizes predeterminadas, de identificar antecipadamente a propensão de alguém em contrair uma doença ou de vir apresentar alguma deformidade no futuro, bem como de erradicar males antes incuráveis, como o câncer, hepatite, doença de chagas e a aids.

          E a quem pertence todo este tesouro? Às empresas privadas e aos países que estão desenvolvendo esta tecnologia? Ou, pela sua importância, tais descobertas pertenceriam ao patrimônio da humanidade?

          Quem teria acesso a essas informações?

          Quais os limites éticos para a aplicação desta tecnologia?

          Quais as repercussões jurídicas sobre novos conceitos de família, patrimônio, contratos, herança, dentre outros, surgidos a partir destas novas descobertas?

          Tais questões não podem ser facilmente respondidas, pois envolvem a participação não só de um país ou de uma empresa, mas de todas as nações preocupadas com o futuro e com nossa sobrevivência.

          Basta constatarmos que com o avanço da medicina, por exemplo, não só as doenças genéticas poderão ser curadas, através do que hoje chamamos de "terapia genética", mas quase todas as infecções provocadas por vírus, bactérias e parasitas, a partir da identificação de seus genes – o que poderá provocar um aumento na expectativa de vida e uma explosão populacional incontrolada.

          Para se ter uma idéia, a média da expectativa de vida, antes da revolução industrial, no século XVIII, era de 35 anos. Hoje, em alguns países, esta mesma expectativa orbita em torno de 75 anos.

          Além disso, a manipulação genética de embriões poderá criar uma busca pela "pureza de raça" e, no futuro, poderão surgir verdadeiras "fábricas de bebês" – o que certamente provocará uma mudança radical na concepção do homo sapiens. Prevêm os mais pessimistas até que, no futuro, em razão do domínio da tecnologia genética, somente haverá duas classes sociais: os ricos, eternos e saudavelmente imortais, e os pobres, doentes e frágeis mortais.

          O acesso às informações genéticas irá também criar problemas incomensuráveis entre os portadores de genes defeituosos e empresas empregadoras, seguradoras e planos de saúde. A partir do momento em que elas tiverem acesso ao código genético de uma pessoa, poderão também estabelecer, por exemplo, uma política de preços e de contratação de mão-de-obra em relação a eventuais doenças ou males que ela possa contrair.

          Estas observações são apenas algumas das implicações trazidas pelas novas descobertas na biogenética e nos obrigam a fazer uma profunda reflexão sobre a autonomia da ciência em descobrir e se apropriar deste conhecimento.

          Dizer apenas que determinados conhecimentos são restritos a Deus e que a ciência não pode descobrir e manipular determinadas técnicas é uma grande bobagem, pois, no passado, muitas descobertas foram também consideradas desta maneira e, apesar de muita gente ter sido condenada e até morta na fogueira por isso, o homem provou que a ciência pode lhe dar respostas satisfatórias sobre os mistérios da vida e que estes conhecimentos não são exclusivamente de propriedade divina.

          De nada adianta se lamentar também contra o desenvolvimento da ciência, dizendo que ela está exclusivamente a serviço do capital, como, por exemplo, aos grandes laboratórios farmacêuticos, pois certamente os investimentos feitos por eles devem ser, de alguma forma, compensados. A título de ilustração, entendemos aceitável a idéia de se reconhecer a patente em favor de órgãos privados ou públicos que desenvolveram determinada tecnologia considerada de relevante interesse por um pequeno período de tempo, passando depois ao patrimônio da humanidade.

          Por outro lado, é importante lembrar que a sociedade e o Estado jamais conseguirão impedir totalmente a pesquisa científica sobre este ou aquele tema, pois acreditamos, como Galileu, que o conhecimento humano não pode ser dominado por forças autoritárias, mas controlado e dirigido em torno de um resultado que traga benefícios para todos e não apenas para uma empresa ou um país.

          O mais importante é que a sociedade precisa se envolver neste processo, pois nosso futuro está em jogo e não podemos ficar impassíveis, assistindo a um dos capítulos mais importantes de nossa história da poltrona de nossa sala, como se nosso destino se esgotasse no roteiro da novela das oito.

          Fazer calar Galileu, por meio de uma medida autoritária e unilateral, em razão de sua luta pela autonomia da ciência, não foi muito difícil e, como constatamos anos depois, de nada valeu. Com certeza a humanidade não cometerá o mesmo erro.

          Mas, o risco de autonomia absoluta, conforme aponta Paulo Roberto Morais e Adriano Botelho(10), pode-nos levar a um autoritarismo da razão, principalmente em razão da existência de uma crescente especialização por parte de algumas empresas privadas ou patrocinadas pelos governos de determinados países, criando verdadeiras ilhas de conhecimento.

          Portanto, é preciso compreender que a ciência deve exclusivamente servir ao homem e, por isso, ele deve ser consultado sobre os benefícios e malefícios que ela vai lhe proporcionar.

          Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, escrito em 1946, sustentava que a Utopia estava mais perto do que se poderia imaginar, bastava a descentralização do conhecimento e o emprego da ciência aplicada, não como o fim a que os seres humanos deverão servir de meios, mas como meio para produzir uma raça de indivíduos livres.

          Não concordamos com o autor sobre a existência de um mundo utópico, pois este, em razão da própria natureza imperfeita do homem jamais poderá ser alcançado, nem no fato de que a liberdade possa ser "produzida" por ele, pois, na verdade, ela sempre existiu e sempre existirá, independente de qualquer tentativa de restringi-la ou eliminá-la. A história é testemunha disso.

          Nada obstante, o desenvolvimento e o emprego da tecnologia em proveito do homem, não apenas visto como um simples instrumento, mas como seu destinatário final, nos parece ser a exata medida dos caminhos que deverão ser tomados pela ciência.

          Tal posicionamento direciona obrigatoriamente a discussão para a sociedade e para o direito, que, de forma democrática, devem discutir os destinos da nova ciência, a partir de tudo o que aprenderam com Galileu e dos novos desafios lançados pelo projeto Genoma.

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NOTAS

(1) Enciclopédia Delta Universal, v. 14, p. 7583.

(2) Academia dos Linces

(3) in Galileu: fatos estranhos e uma história famosa, de autoria desconhecida, publicado no site http://tupi.fractual.com.br/mais/explorezon

(4) in Galileu, institucionalização e autonomia da nova ciência, p. 2 no site http://www.pucsp.br/geoweb.

(5)  op. cit., p. 3

(6) K.R. Popper. Três concepções acerca do conhecimento humano. p.386.

(7) op. cit., p. 390

(8) in Admirável novíssimo mundo, revista VEJA, ed. 8.7.98

(9) op. cit. , p. 403

(10) op. cit., p. 4

BIBLIOGRAFIA

ANÔNIMO. Galileu: fatos estranhos e uma história famosa. Publicado no site http://tupi.fractual.com.br/mais/explorezon.

BOTELHO, Adriano e MORAES, Paulo Roberto. Galileu, institucionalização e autonomia da nova ciência. Publicado no site http://www.pucsp.br/geoweb.

POPPER, Karl R. Três concepções acerca do conhecimento humano. Trad. Pablo Ruben Mariconda. in Os pensadores. São Paulo: Abril, 1975.

RAMALHO, Cristina. Admirável novíssimo mundo. Revista Veja. Edição de 8.7.1998. São Paulo: Abril, 1998.

  


Referência  Biográfica

João Batista Machado Barbosa:  Promotor de Justiça da Comarca de Natal (RN), Professor de Direito da Universidade Potiguar, da Faculdade para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte e da Fundação Escola do Ministério Público.

jbmb@uol.com.br

Recurso de apelação: o efeito suspensivo e suas implicações

1

* Clovis Brasil Pereira

Sumário: 1.  Generalidades  –  2.   Apelação recebida apenas no efeito devolutivo  –  3.  O efeito suspensivo e suas implicações  –  4.   Efeitos que se produzem, mesmo na pendência de apelação com efeito suspensivo  –    5. O efeito suspensivo na falta de previsão legal  –  6. Conclusão  –  7.  Referência Bibliografia

1.      Generalidades

          Dentre os recursos previstos no Código de Processo Civil, em seu artigo 496,  encontramos  no inciso I,  o recurso de apelação,   que cabe à parte sucumbente, no todo ou parcialmente,  quando da prolação de Sentença Judicial[1],  com julgamento do mérito (art. 269, incisos),   ou sem o  julgamento do mérito (art. 267, incisos).

           A apelação, por definição da doutrina  é “o recurso ordinário cabível contra  as sentenças em primeiro grau de jurisdição”[2]

           O cabimento do recurso,  a forma procedimental que deve ser observada  quando da  interposição da apelação, os efeitos que  lhe podem ser atribuídos,  vêm expressos de forma global, dos artigos 513 ao 521 do Estatuto Processual, observando-se no que couber,  os princípios fundamentais  que norteiam a teoria geral dos recursos.

           Quanto aos efeitos, que será objeto de análise neste trabalho, notadamente, o efeito suspensivo, e suas implicações, referido recurso, como regra, produz ambos  efeitos, ou seja, o devolutivo e o suspensivo.

           Esta regra está inserta no caput, do artigo 520, do  CPC, na primeira parte, que assim prescreve:

            " A apelação será recebida em seu efeito   devolutivo e suspensivo…”.

           Temos assim, que “recebida a apelação em ambos os efeitos, o juiz não poderá inovar no processo”[3]. Segundo a doutrina, “a proibição de inovar no processo significa ser-lhe vedada a prática de qualquer ato, salvo a daqueles que digam respeito ao simples impulso processual do recurso. Cabe-lhe, tão somente, dirigir o processamento da apelação e encaminhar os autos ao juízo ad quem, ou declarar sua deserção por falta de preparo”[4].                                        

2.    Apelação recebida apenas no efeito devolutivo  

           Temos todavia, casos expressos no Código de Processo Civil, e em legislação especial, em que o recurso de apelação  deve ser recebido somente no efeito devolutivo, constituindo-se esses casos   em exceções à regra geral.

           Estes casos vêm alinhados:

           a) nos incisos I ao VII, do artigo 520 do Código de  Proc. Civil;

          b) no artigo 1.184 do mesmo codex, que trata da Sentença que decreta a interdição, e que produz efeito de imediato, embora sujeita à apelação;

           c) aos casos previstos em legislação especial, tais  como: Lei 8.245/91, que trata do despejo por falta de pagamento; Decreto-Lei n° 7.661/45, que trata das  Falências e Concordatas, das Sentenças que julga as habilitações de crédito;  na Lei 1.533/51, que trata do Mandado de Segurança, quando a ordem for concessiva, dentre outras.

3.   O efeito suspensivo e suas implicações

           Interposto o recurso de apelação, e sendo este recebido no Juízo “a quo”, em ambos os efeitos, incluindo-se no caso o  suspensivo, que interessa na presente análise, ficam contidos a produção imediata dos efeitos da Sentença.

           Assim, “o efeito suspensivo é aquele destinado a provocar a suspensão da imediata executividade da decisão impugnada, de modo a só lhe dar cumprimento após o julgamento do recurso”[5].

           Note-se,  que na doutrina de José Carlos Moreira Barbosa,  encontramos uma crítica ao sentido restrito da impossibilidade da promoção da imediata execução, “pois as decisões meramente declaratórias e as constitutivas que não comportam  execução (no sentido técnico do direito processual) também podem ser impugnadas mediante recursos de efeito suspensivo.”[6] 

           Segundo o referido autor, “a expressão  ‘efeito suspensivo’ é, de certo modo, equívoca, porque se presta a fazer supor que só com a interposição do recurso passem a ficar tolhidos os efeitos da decisão, como se até esse momento estivessem eles a manifestar-se normalmente. Na realidade, o contrário é que se verifica: mesmo antes de interpor o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe  sujeita, é ato ainda ineficaz, e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que cessaria se não se interpusesse o recurso”[7]

           Ilustra o seu posicionamento, com o aval de outros doutrinadores de peso no Processo Civil, tais como ELIÉZER ROSA, Cadernos de Processo Civil, vol. I, pág. 347; OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Curso de Processo Civil, vol. I, pág. 347; MARCO AURÉLIO MOREIRA BORTOWSKI, Apel. Cív., pág. 126; ADA PELLEGRINE GRINOVER, Um enfoque constitucional da Teoria geral dos Recursos, pág. 87.[8]

           Citando ainda PONTES DE MIRANDA, Coment. do C.P.C. (de 1973), t. VII, pág. 16, observando que o consagrado processualista foi incisivo a respeito, transcreve:

            “… o efeito suspensivo é mais efeito de recorribilidade do que de recurso”.

            A posição adotada pelo renomado autor, de fato, se mostra muito lógica. O efeito suspesivo já é preexistente, desde a prolação da Sentença e de sua publicação e intimação das partes. Dentro do prazo recursal, que no de recurso de apelação é de quinze dias, contados da intimação da decisão, a Sentença  tem os seus efeitos contidos e não pode ser executada, já que lhe falta um dos requisitos primordiais, próprio do títulos executivos judicial ou extrajudicial, que é a exigibilidade. 

            A interposição do recurso, dentro do prazo legal, não suspende em sí, a executividade do título, porque ele ainda não tinha essa característica, mas apenas lhe prolonga a inexigibilidade do título executivo judicial, e consequentemente, suspende-lhe a pronta eficácia para tornar  hábil a executividade,  o que poderá ocorrer somente após a consumação do  trânsito em julgado.

            Nesse passo, se pode afirmar que o efeito suspensivo, derivado do recurso de apelação, é produzido antes mesmo da interposição do recurso, ou seja, no prazo de interposição (dentro de 15 dias contados da intimação da Sentença), já que nesse período a decisão proferida, sendo apelável, é ainda ineficaz. 

            É importante de ser salientado, que o Juiz, na Primeira Instância, ao receber o recurso, está impossibilitado de inovar em relação aos efeitos da apelação,  Deve, por essa razão, limitar-se ao que estabelece a legislação própria.

            A autorização para se conceder o efeito suspensivo, em casos não expressos em lei, é dada ao Juiz relator do recurso de apelação, conforme a previsão expressa no artigo 558,  parágrafo único, do Código de Processo Civil, que assevera:

            "Art. 558. O relator poderá, a requerimento do agravante, nos casos de prisão civil, adjudicação, remição de bens, levantamento de dinheiro sem caução idônea e em outros casos dos quais possa resultar lesão grave e de difícil reparação, sendo relevante a fundamentação, suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara.

            Parágrafo único. Aplicar-se-á o disposto neste artigo às hipóteses do art. 520.”

            É patente assim,  que o efeito suspensivo ao recurso de apelação,  nos casos não contemplados em lei, depende do entendimento do juiz relator, a quem  foi conferido poder de decisão, ao examinar cada  caso concreto, e desde que seja relevante a fundamentação do recorrente, e reste demonstrado que  a imediata execução da sentença, mesmo em caráter provisório,  possa causar lesão grave e de difícil reparação.

            Entende-se, que nesse caso, ao receber o recurso na Primeira Instância, o Juiz “a quo” deve se cingir aos efeitos permitidos em lei, mesmo ocorrendo pedido expresso do recorrente, em sentido inverso.

            Ao declinar os efeitos em que está recebendo o recurso, de conformidade com o artigo 518, do Código de Processo Civil,  o Juízo recorrido estará, ao nosso ver,  possibilitando ao recorrente, a interposição de recurso de agravo de instrumento ao Juízo “ad quem”, com a fundamentação adequada, para buscar, na Segunda Instância, o efeito suspensivo não contemplado no ato da interposição, por falta de autorização legal.

            Esse procedimento se faz necessário, para se evitar a executividade provisória da Sentença recorrida. Caso contrário, é certo que o recurso de apelação recebido apenas no efeito devolutivo, demorará muito tempo até chegar à Instância Superior, ser distribuído, e encaminhado ao relator, o que poderá tornar tardia demais a apreciação do pedido de efeito suspensivo.

            Posicionamento idêntico, admitindo a hipótese do cabimento do recurso de agravo,  para se buscar o efeito suspensivo na apelação, “como única solução razoável”, é esposada por  Theotônio Negrão[9],

            A interpretação do artigo 558, estendendo ao recurso de apelação, a possibilidade de receber o recurso no efeito suspensivo, em casos especiais, “resulta da combinação do ’caput’, com o parágrafo, que, em todos os casos de agravo e de apelação no efeito apenas devolutivo (art. 520), o relator pode dar efeito suspensivo ao recurso, desde que seja relevante o fundamento invocado e da execução possa resultar lesão grave e de difícil reparação”[10].

            A doutrina  de uma forma geral, entende que a possibilidade de atribuir o efeito suspensivo, ao recurso de apelação, nos casos não previstos em lei, e com apoio no aludido parágrafo único, do artigo 558, é do juiz relator do recurso, com uma única voz discordante que consegui detectar ao longo da pesquisa[11]., que admite como competência do Juiz de primeiro grau tal possibilidade.

4.     Efeitos que se produzem mesmo na pendência de apelação com efeito suspensivo.

           Encontramos casos, em que mesmo pendente de julgamento, o recurso de apelação recebido no efeito suspensivo, o que a rigor, torna contida a decisão adotada na Primeira Instância, pode gerar de imediato outros efeitos. “São efeitos que, por assim dizer, escapam não só à força inibitória da recorribilidade in genere, mas também – o que é absolutamente excepcional – à força inibitória da recorribilidade por meio suspensivo” [12]. 

           Significa dizer, que mesmo o recurso de apelação, sendo recebido em ambos efeitos, inibindo o cumprimento da Sentença da Primeira Instância,  alguns atos podem ser praticados pela parte, para garantia da eficácia futura da decisão, conforme previsão expressa na legislação, onde podemos encontrar várias hipóteses, algumas identificadas a seguir, a título exemplificativo,  encontradas no Código de Processo Civil:

           1ª hipótese:  Vem prevista com nitidez, no parágrafo único do art. 814, que trata da ação cautelar nominativa de arresto de bens, que prevê:  a “sentença líquida ou ilíquida, pendente de recurso”, que condene o devedor “no pagamento de dinheiro ou de prestação que em dinheiro se possa converter”, equipara-se à prova literal da dívida líquida e certa como fundamento e pressuposto da concessão de arresto de bens.

           Têm-se assim, que no caso de recurso de apelação interposto contra a Sentença  proferida pelo Juízo “a quo”, sendo recebida nos efeitos devolutivo e suspensivo, a parte pode promover a prática de determinados atos, que possam assegurar a plena eficácia da decisão recorrida, autorizando-se o arresto de bens, para o fim colimado.

           2ª hipótese:  De forma semelhante, e para garantia da plena eficácia do julgado, pendente de recurso de apelação, recebido no duplo efeito, preconiza  o artigo 822, n° II, a possibilidade do Juiz decretar o seqüestro “dos frutos e rendimentos do imóvel reivindicando, se o réu depois de condenado por sentença ainda sujeita a recurso, os dissipar”.

            Assim, “inexistindo, aqui também, distinção entre recursos dotados e não dotados de efeito suspensivo, conclui-se que a sentença condenatória, na hipótese de que se cuida, embora apelável no duplo efeito, e inclusive na pendência da apelação,  tem eficácia para o fim de legitimar a decretação do seqüestro, desde que se conjugue com o fato da dissipação, pelo réu condenado, dos frutos e rendimentos”[13]

           3ª hipótese:  Como último exemplo, temos o caso da constituição de hipoteca judiciária, preconizada no artigo 466, caput: “A sentença que condenar o réu no pagamento de uma prestação, consistente em dinheiro ou em coisa, valerá como título constitutivo de hipoteca judiciária, cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma prescrita na Lei de Registro Públicos”, completado pelo inciso III, que acrescenta, “ainda que o credor possa promover a execução provisória”.

           É sabido que a hipoteca judiciária tem o objetivo de garantir ao vencedor a plena eficácia da Sentença condenatória, que lhe  foi favorável, no caso de uma futura execução, após o seu trânsito em julgado.

           Sendo recebido o recurso do vencido, no duplo efeito, pode o credor, constituir, nos termos do artigo 466, a hipoteca judiciária, levando-a à registro junto ao Cartório Imobiliário competente, para assegurar o êxito da execução futura, no caso de restar confirmada posteriormente a Sentença da Primeira Instância.

           É esse um efeito produzido em favor do credor, que pode ocorrer e ser pleiteado pelo vencedor recorrido, mesmo quando à apelação, for conferido o duplo efeito.

           Esse entendimento é encampado pela Doutrina, que autoriza e reconhece o direito ao vencedor, de registrar a hipoteca judiciária: “se o recurso foi recebido no efeito suspensivo, é fora de dúvida que também é lícito ao autor requerer o registro da hipoteca. Pois se a lei faculta a hipoteca mesmo quando o credor tem a possibilidade de promover a execução, por maioria de razão a deve facultar, quando ele está inibido de  a promover”[14].

5.  O efeito suspensivo, na falta de previsão legal

           Para o exame desta hipótese, devem ser analisadas duas situações diversas: o que ocorria antes da Lei 9.139/95, e o que passou a ser admitido após o advento dessa lei, que autorizou ao juízo, a possibilidade de se atribuir efeito suspensivo ao recurso de agravo de instrumento,  com fulcro no art. 558, combinado com o artigo 527, III, do Código de Processo Civil.

           Têm-se assim, e esse é o entendimento majoritário da Jurisprudência, que a partir da Lei 9.139/95, desde que justificada a necessidade, decorrente do risco de lesão grave e de difícil reparação, negado o efeito suspensivo à  apelação, pelo Juízo “a quo”, pode o interessado manejar o recurso de agravo de instrumento, para atribuir a suspensividade ao recurso de apelação, não sendo  mais cabível para  o caso, o Mandado de Segurança ou a Medida Cautelar inominada, instrumentos jurídicos anteriormente aceitos, inclusive pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.

           Em Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no Mandado de Segurança n° 596088203, julgado em 25.09.96, a ementa oficial, analisa a matéria da forma seguinte: “Já antes da vigência da Lei n° 9.139/95, que ditou novas regras para o agravo de instrumento, não admitia, a jurisprudência, mandamus contra ato judicial, sem o concomitante recurso, destinado a evitar preclusão. A partir da reforma do Código de Processo Civil de 1994 e 1995, a Lei n° 1.533/51 readquiriu sentido pleno, pois não se deve admitir o mandado de segurança para fins de obtenção de efeito suspensivo a agravo, eis que tal pode ser obtido, com vantagens, pelo disposto no art. 558 do CPC”.[15]

           No julgamento feito pelo 2° Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, MS n° 456.046-00-8, em 08.05.96, relatado pelo Juiz Laerte Sampaio[16], encontramos a seguinte ementa oficial:  “Está definitivamente afastada a admissibilidade do uso da ação cautelar ou o mandado de segurança para pleitear-se o efeito suspensivo à apelação, nos termos da Lei 9.139/95”.

           No referido Acórdão, é bem esclarecedor a respeito do tema, o voto do Juiz relator, que assim se expressou:

           “… Disciplinando a interposição direta do agravo junto aos tribunais, a Lei 9.139/95 outorgou ao relator a  faculdade de suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara (arts. 527, II, e 558, CPC). Tornou-se, portanto desnecessária qualquer ação cautelar ou mandado de segurança para dar-se efeito suspensivo ao recurso interposto contra as decisões interlocutórias.

           A lei conferiu a mesma faculdade para o relator da apelação (art. 558, parágrafo único), sem instrumentalizar a forma pela qual a parte obteria essa tutela de forma rápida e eficaz. Contrariamente à nova sistemática do agravo, o processamento da apelação é feito perante o Juízo a quo e não raras vezes a execução provisória define situações de irreversibilidade antes de ser aquela recebida em 2ª Instância.. É o que acontece nas ações de despejo. É inegável que, diante do novo regramento, a parte tem o direito subjetivo processual de ver apreciado, de forma atual e eficaz, o seu pedido de efeito suspensivo da apelação. Por conseqüência é imprescindível a existência de um instrumental adequado para a veiculação dessa pretensão. Inviável o uso de agravo de instrumento para conferir-se efeito suspensivo à apelação já que após a sentença somente é admissível aquele recurso na forma retida (§ 4°, do art. 523, CPC). Admitir-se como adequados a ação cautelar e o mandado de segurança é negar-se não só o objetivo da alteração, que é o de coartá-los, mas  também a natureza meramente incidental da providência, sem as exigências e limitações daqueles remédios.

           Ressalta, portanto, a necessidade dos regimentos internos dos tribunais disciplinarem esse pedido incidental de efeito suspensivo ao recurso de apelação, adaptando-se-lhe o instrumental já previsto para o agravo de instrumento. Enquanto isto não ocorrer, é inafastável  dever ser aplicada, de forma analógica, aquele instrumental. O certo, portanto, é que ficou definitivamente afastada a admissibilidade do uso da ação cautelar ou o mandado de segurança para pleitear-se o efeito suspensivo à apelação”.

           Embora o relator do Acórdão citado, faça objeção à utilização do agravo de instrumento, e clame por regramento próprio nos regimentos internos dos Tribunais, para disciplinarem seu processamento nos casos em foco, afasta enfaticamente a possibilidade  do cabimento do Mandado de Segurança e da Medida Cautelar, para atribuir efeito suspensivo ao recurso de apelação, não contemplado no artigo 520 do CPC, desde que presentes as situações fáticas do artigo 558, do mesmo codex.

           Da mesma forma, é o  entendimento do E. Superior Tribunal de Justiça, esposada pelo relator, Ministro  Humberto Gomes de Barros, da 1ª Turma, RMS 6.959-SP:[17] “Desde o advento da Lei 9.139/95, o mandado de segurança para imprimir efeito suspensivo à decisão judicial só é admissível após o impetrante formular e ver indeferido o pedido a que se refere o art. 558 do CPC”.   

           É patente, para o advogado da parte, que existindo situação de risco de lesão grave e de difícil reparação, e sendo o recurso de apelação recebido apenas no  efeito devolutivo, que deva se valer do recurso de agravo de instrumento, com requerimento expresso de pedido liminar de efeito suspensivo, quando o artigo 520, assim não autorizar.

6.     Conclusão

           Da análise do efeito suspensivo atribuído ao recurso de apelação, temos como principal implicação, a impossibilidade de se executar, mesmo provisoriamente, a Sentença proferida na Primeira Instância, já que seu resultado e sua produção ficam contidos, até o julgamento final do recurso, e o seu conseqüente trânsito em julgado.

           A impossibilidade de imediata executividade da Sentença recorrida, no entanto, não se constitui em caso raro, já que a regra geral, contida no caput, do artigo 520, do CPC, prevê expressamente, que o recurso é sempre recebido no duplo efeito, excetuando através dos incisos I ao VII, casos específicos em que o recurso pode ser recebido apenas no efeito devolutivo.

           Examinamos no decorrer do trabalho, casos específicos, em que mesmo sendo atribuído o efeito suspensivo à apelação, a lei prevê a prática de atos específicos, para garantir a eficácia da sentença proferida, desde que confirmada em grau de recurso. Tais situações são possíveis no procedimento cautelar de arresto e seqüestro de bens, e no de constituição de hipoteca judicial.

           Nas hipóteses em que a lei processual ou especial  prevê especificamente que o recurso de apelação deve ser recebido apenas no efeito devolutivo, é possível ao recorrente, buscar o efeito suspensivo, através da manifestação do Juiz relator do recurso, conforme expressa disposição do parágrafo único, do artigo 558, do CPC, pela via do recurso de agravo de instrumento, conforme entendimento firmado na doutrina e na jurisprudência.

           No caso de recurso de apelação contra Sentença que extinguir o feito, sem o julgamento do mérito, a atribuição do duplo efeito, será importante para o recorrente, apenas para  impedir a pronta execução, por parte do réu,  das verbas de sucumbência, se estas foram fixadas na decisão terminativa do processo.

           Por fim, temos que é da história de nosso direito processual, ser atribuído ao recurso de apelação, os efeitos devolutivo e suspensivo, excepcionando-se os poucos casos em que o efeito suspensivo não é atribuído ao recurso,

           Temos, no entanto, convicção que essa tendência histórica venha ser modificada, em futuro próximo, em face do clamor por maior celeridade processual, e meios mais rápidos e eficientes para a pronta prestação jurisdicional.

           Parece-nos razoável, que se inverta a regra geral até agora adotada, e ao invés de se atribuir duplo efeito à apelação, passe esta a receber como regra, apenas o efeito devolutivo, excepcionando-se os casos do duplo efeito, deixando-se uma porta aberta, para que o Magistrado, possa examinar situações excepcionais, como as previstas no artigo 558, do CPC.

           Logicamente, que essa maior celeridade processual e a eficiente e pronta prestação jurisdicional, não podem se contrapor e macular os princípios constitucionais fundamentais, da ampla defesa, do devido processo legal, dentre outros, sob pena de assistirmos a subversão da ordem legal, e nos distanciarmos, cada vez mais da perseguição da  Justiça, na pura acepção do termo.

7.   REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA MOREIRA, José Carlos – Comentário ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro. Forense.

GRECO Filho, Vicente – Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo. Editora Saraiva.

DINAMARCO, Cândido Rangel – A Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo. Malheiros

NERY, Nelson Junior – Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais

SANTOS, Moacyr Amaral – Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo. Editora Saraiva.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo – Reforma do Código de Processo Civil. Vários Autores sob a Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo. Saraiva.

THEODORO, Humberto – Curso de Direito Processual Civil. Rio. Forense.

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Notas

[1] Artigo 162, do CPC.

[2] Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, 2° Volume, pág. 285

[3]  Cód. Proc. Civil, art. 521, 1ª parte

[4]  Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Dir. Proc. Civil, pág. 114.

[5] Nelson Nery Júnior, Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, pág.  39.

[6] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 255.

[7] José Carlos Barbosa Moreira, obra citada, pág. 255

[8] José Carlos Moreira Barbosa, obra citada, nota 38.

[9]  Theotonio Negrão, Código de Processo Civil e legislação processual, nota 9, art. 558.

[10] JTJ 204/184

[11] Clito Fornaciari Jr., A reforma proc. Civ., pág. 130.

[12] José Carlos Moreira Barbosa, obra citada, pág. 474.

[13]  José Carlos Moreira Barbosa, obra citada, pág. 474.

[14] José Alberto dos Reis, Cód. De Proc. Civ. Anot., vol. V, pág. 205.

[15] RJTJRS  n° 180/208.

[16] RT 731/352

[17] Theotonio Negrão, obra citada, nota ‘”3” ao artigo 527.

  


 

Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  Advogado, especialista em Processo Civil,  Mestrando em Direito, na UNIMES, Professor Universitário, Coordenador e Editor  do site jurídico www.prolegis.com.br.   – 2004

prof.clovis@terra.com.br