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ERRO MÉDICOPaciente que ficou com mancha ao redor dos olhos após peeling será indenizada

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DECISÃO:  *TJ-RS  –  Por unanimidade, a 9ª Câmara Cível do TJRS confirmou determinação para que médico indenize paciente a título de danos morais, no valor de R$ 20 mil.

A autora da ação narrou ter realizado tratamento estético facial, denominado peeling, e que depois de três meses de realização do procedimento, após desinchar e desaparecer a vermelhidão, restou uma mancha branca (despigmentação) ao redor dos olhos, tendo, por diversas vezes, tentado solucionar o impasse com o réu sem, contudo, obter êxito.

O médico apelou ao TJ. Sustentou que a aplicação do peeling ocorreu no dia 07/8/98, seguindo-se as consultas de revisão. Alegou que as manchas verificadas no rosto da autora devem ter decorrido de outro tratamento realizado pela autora e que, se decorressem do peeling por ele aplicado, deveriam estar em todo o rosto, uma vez que teria aplicado em sua totalidade, de maneira uniforme e aventou a possibilidade de a cliente ter abandonado o tratamento antes de seu término. Contestou a demora para ajuizamento da ação, cerca de quatro anos após o ocorrido.

O relator da ação, Des. Odone Sanguiné, analisou que o resultado do procedimento de aplicação do peeling requer certo período para a resposta fisiológica do corpo humano e que se justifica a demora entre a aplicação do produto e o ingresso da ação. Afirmou que o réu deveria ter fotografado o rosto da cliente, antes e depois do tratamento, fato comum nas clínicas de estética. Salientou que foi exigido da autora que autorizasse a divulgação de suas fotografias para fins científicos. E finalizou constatando que, como o réu não comprovou o resultado satisfatório da autora, evidencia que as manchas no rosto da autora ao redor dos olhos decorreram do procedimento de peeling realizado pelo réu.

“A obrigação dos médicos por cirurgia plástica é por resultado”, assinalou. “Na hipótese de procedimento estético em que se almeja o resultado, tanto pelo paciente, quanto pelo médico, os riscos toleráveis ao Direito são aqueles decorrentes da limitação da técnica científica, bem como ao quadro clínico anterior do próprio paciente que, de alguma forma, influencie o resultado da cirurgia.”

Entretanto, atendeu parcialmente ao apelo do réu para reduzir o valor a ser pago de 50 salários mínimos para R$ 20 mil. Essa quantia, segundo o magistrado, atende a reparação do prejuízo causado.

Votaram de acordo com o relator os Des. Tasso Caubi Soares Delabary e Iris Helena Medeiros Nogueira.  Proc. 70023388671


FONTE:  TJ-RS, 26 de junho de 2008.

 

SAÚDE É UM DIREITO CONSTITUCIONALPlano de saúde nega cirurgia

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DECISÃO:  *TJ-MG  –  O juiz da 14ª Vara Cível de Belo Horizonte, Estevão Lucchesi de carvalho, julgou procedente o pedido de uma mãe, para que o plano de saúde conceda suporte com todos os gastos e despesas da cirurgia, também concedida liminarmente em 15 de abril de 2008. A decisão foi publicada no dia 19 de junho de 2008.

Segundo a mãe seu filho apresenta “hérnia inguinal direita” é uma doença que forma-se diretamente num ponto da parede abdominal enfraquecida, que se rompe, permitindo a penetração de um segmento do intestino na bolsa escrotal. Ela informou que seu filho tem que se submeter a uma cirurgia de emergência, procedimento este que o plano de saúde se negou a pagar, sob a alegação de não cumprimento do período de carência.

Além disso, há existência de relatório onde um médico solicita a necessidade de intervenção cirúrgica para que o autor seja operado de hérnia. Por todos os fatos, o juiz determinou que a cirurgia fosse realizada, “sendo certo que o direito à saúde, assegurado ao autor, está em perigo e interesses econômicos do plano de saúde não podem fazer oposição”, justificou.

O magistrado ressaltou que, no contrato, a seguradora limitou a cobertura de tal procedimento com carência de 180 dias. “Mas sabe-se que a saúde, como bem relevante à vida e à dignidade da pessoa humana, foi elevada pela atual Constituição Federal à condição de direito fundamental do homem, não podendo ser, portanto, caracterizada como simples mercadoria e nem pode ser confundida com outras atividades econômicas”.

O juiz advertiu que nos casos de relação de consumo, com aplicação do Código de Defesa do Consumidor, devem as cláusulas ser interpretadas de forma mais favorável ao consumidor, considerando-se abusivas aquelas que negam cobertura ao procedimento, sob o argumento de carência do plano de saúde.

Dessa forma, o juiz aceitou a ação ordinária cominatória com obrigação de fazer com antecipação de tutela e considerou que o plano de saúde deve arcar com todas as despesas e gastos com a cirurgia concedida em liminar.

Além disso, o magistrado ressalta um princípio ético “não se negocia com a vida humana. Tem ela, a integridade física e a qualidade de vida valor inestimável”.

Desta decisão, por ser de 1ª Instância, cabe recurso.  Nº. Processo: 0024.08037306-1

FONTE:  TJ-MG, 27 de junho de 2008.


CONSTRANGIMENTO GERA INDENIZAÇÃO MORALEmpregado obrigado a segurar tartaruga no trabalho ganha indenização

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DECISÃO:  *TST  –    A prática de expor seus empregados a situações ridículas levou a Justiça do Trabalho a condenar uma distribuidora de bebidas ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 20 mil. Em ação trabalhista movida contra a empresa, um dos empregados ridicularizados relatou algumas das “brincadeiras” a que era submetido e que o motivaram a requerer reparo por dano moral: carregar uma âncora de 20 kg, cantar músicas desmoralizantes, pendurar fantasmas na mesa da equipe de vendas de pior resultado, segurar uma tartaruga e desfilar com um objeto de plástico na cabeça, semelhante a um monte de fezes.  

A distribuidora Bebidas Real São Gonçalo foi condenada, em sentença de primeiro grau, ao pagamento de R$ 20 mil reais, correspondente a 10 vezes o salário que pagava ao empregado. A empresa recorreu, mas o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) não só manteve a sentença, como aplicou multa por litigância de má-fé e determinou que ela pagasse, também, os honorários advocatícios.  

Inconformada, a empresa recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho, contestando o pagamento dos honorários, sob o argumento de que o autor da ação não se encontrava assistido por sindicado profissional, como determina a Súmula 219 do TST. O relator da matéria, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, rejeitou o recurso, destacando que a decisão do TRT nesse aspecto se deu em caráter punitivo, como parte de sanção aplicável com base no Código de Processo Civil, em função da litigância de má-fé por parte da empresa. Assim, concluiu o ministro, torna-se inviável contestá-la sob o argumento de contrariedade à Súmula 219. (RR 646/2003-263-01-00.1)


FONTE:  TST, 26  de junho de 2008.

A guarda compartilhada, o novo instrumento legal para enriquecer e estreitar a relação entre pais e filhos

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* Clovis Brasil Pereira

Sumário:   1. Introdução    2. As diversas modalidades de guarda    3.  Os pilares  da guarda compartilhada no Brasil     4.  A guarda compartilhada agora é lei   5. O verdadeiro sentido da guarda compartilhada      6. Conclusão 


1.  Introdução

Um tema que merece reflexão especial, no âmbito do direito de família, é a guarda dos filhos, quando da  separação (legal ou de fato), ou divórcio dos pais, uma vez que o afastamento destes, independente das circunstâncias que o motivaram, em nada exime a responsabilidade e da presença de ambos, na criação, educação e convívio com os filhos menores.

2.  As diversas modalidades de guarda

Tradicionalmente, convivemos com a chamada guarda unilateral, onde a responsabilidade direta pelos filhos, fica com  um dos genitores,  cabendo ao outro, a guarda indireta, tendo na maioria das vezes, o encargo do pagamento de pensão, e  direito de visitação e convivência esporádica, em dias, horários e condições pré-estabelecidos, não participando plenamente do desenvolvimento do filho.

Outras modalidades de guarda dos filhos  são ocasionalmente adotadas,  por  propostas dos pais, e  acabam recebendo a aprovação judicial, tais como:

Guarda alternada: caracteriza-se pela possibilidade de cada um dos pais deter a guarda do filho alternadamente, segundo um ritmo de tempo que pode ser um ano, um mês, uma semana ou qualquer outro período acordado. Durante esse período, o responsável pela guarda detém de forma exclusiva os “poderes” e deveres com relação à criança, sendo que no término do período, os papéis se invertem.

Aninhamento: É um tipo de guarda que raramente ocorre e consiste  na moradia dos filhos num endereço fixo, cabendo aos pais  se revezam no convívio dos filhos,  em períodos alternados de tempo.

A guarda compartilhada,  regulamentada pela Lei 11.698, de 13 de junho de 2008,  consiste basicamente na possibilidade dos  pais e mães dividirem  a responsabilidade legal sobre os filhos, e  ao mesmo tempo compartilharem com as obrigações pelas decisões importantes relativas à criança.

Referida modalidade de guarda, já vinha sendo adotada em casos esporádicos em nosso país, embora não houvesse   legislação específica disciplinando a matéria.

3. Os pilares  da guarda compartilhada no Brasil

Ao nosso ver,  da leitura atenta da Constituição Federal,  do Estatuto da Criança e do Adolescente, e do  Código Civil,  a sua adoção era perfeitamente admissível, pois no bojo dessa legislação, a nível constitucional e infraconstitucional, já encontrávamos no Brasil suporte para sua plena adoção.

Numa breve revisão no contexto legislativo, temos a Constituição  Federal, que em seu  artigo 226:

      • § 3º,  que reconhece a “união  estável entre homem e mulher como entidade familiar”;
      • § 4, que reconhece como “entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
      • § 5º, do mesmo artigo, trouxe grande contribuição, ao regulamentar que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

O artigo 229, da Carta Magna, impõem  aos pais “o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”.  

O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8069/90 –  de forma objetiva, atribui em seu artigo 4º,  que:

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária”.  

Tal  previsão  contida no ECA,   deu efetividade ao artigo 227, da Constituição Federal, que consolida como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos fundamentais, dentre os quais, o direito à convivência familiar.  

O ECA, no artigo 5º, estabelece que:

“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de  qualquer forma de negligência,  discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”

Nos artigos subseqüentes, o ECA trata das disposições que devem ser observadas e garantidos às crianças e adolescentes,  para a garantia dos direitos fundamentais assegurados no artigo 4º, já referido.  

A partir da vigência no atual Código Civil, Lei nº 10.406/2002,  em janeiro de 2003, foi estabelecido  o Poder Familiar, em substituição ao  Pátrio Poder,ao estabelecer no artigo 1.630:

“Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”.

O parágrafo único, do artigo 1631, estatui para o caso de ocorrer divergência entre os pais, quando ao poder familiar:

“Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo”.

A previsão e a disciplina do exercício do poder familiar,  se encontra inserta no  artigo 1634 do Estatuto  Civil, que estabelece:

“Art. 1634. Compete aos pais, quanto á pessoa dos filhos menores:

I – dirigir-lhes a criação e educação.

II – tê-los em sua companhia e  guarda.

III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para  casarem.

IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar.

V – representa-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento.

VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha.

VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

Temos convicção que  a legislação infraconstitucional  estabelecida em consonância com os princípios constitucionais da Carta de 1988, ao dar nova disciplina ao  exercício do poder familiar pelo pai e pela mãe,  tendo como primado básico, o interesse do menor, já possibilitava a  adoção da  guarda compartilhada, embora não existisse um texto legal específico que regulamentasse o instituto.  Muitos juizes, inclusive, já  a adotavam, levando em conta a pretensão dos pais e o interesse dos filhos.

4.  A guarda compartilhada agora é lei 

Com a aprovação pelo Poder Legislativo e a sanção do Presidente da República da Lei n 11.698, de 13 de junho de 2008, que terá vigência a partir de 12 de agosto de 2008, a guarda unilateral  e a guarda compartilhada ganharam contornos bem definidos.

Assim, com a  nova lei, foram alterados os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil, que passam a ter nova redação.

O artigo 1.583 prevê que a guarda será unilateral ou compartilhada, assim prescrevendo: 

      • Compreende-se por guarda unilateral, “a atribuída a um só dos genitores ou a  alguém que o substitua (artigo 1.584, § 5º”; 
      • Por guarda compartilhada,  “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. 

O artigo 1.584, disciplina as duas guardas legais – unilateral e compartilhada –  definindo a forma de suas concessões: 

“Art. 1.584.  A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:

I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;

II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.

§ 1o  Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.

§ 2o  Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.

§ 3o  Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar.

§ 4o  A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho.

§ 5o  Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.”

O legislador deu assim, um importante passo para a melhoria da convivência entre pais e filhos, atribuindo ao Poder Judiciário, papel relevante  na aplicação no novo instituto legal.

Caberá preliminarmente aos advogados, na assistência de seus clientes,  um papel de relevância, no esclarecimento das vantagens da guarda compartilhada, e as implicações dela decorrentes, orientando-os, quando possível, para que a guarda compartilhada seja requerida de forma consensual.

Numa segunda etapa, caberá aos juizes, por ocasião da audiência de conciliação entre os pais, informar ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas, conforme a previsão expressa no § 1º, do artigo 1.584, do CC.

Para este mister, o juiz  poderá se valer, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, de orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, para estabelecer os períodos de convivência da guarda compartilhada, que melhor atenda os interesses dos filhos menores.

Por certo, a nova legislação aprovada, que representa um grande avanço para a melhoria da qualidade de convivência entre pais e filhos, e divisão de responsabilidades, entre ambos,  dependerá para sua solidificação como instrumento positivo de estreitamento dos laços familiares, de muito bom senso, equilíbrio, desprendimento,  entre os interessados.

5.  O verdadeiro sentido da guarda compartilhada

Compartilhar, ao contrário do que muitos pais imaginam, não é simplesmente dividir  a responsabilidade,  e o tempo de convivência, mas sim, pensar junto, fazer junto, proporcionar junto, o que é melhor para o desenvolvimento emocional, material e moral dos filhos.

Possibilitará o fortalecimento dos laços de afetividade e confiança entre eles, dentre as quais destacamos:  o maior envolvimento do pai no cuidado dos filhos;  maior contato dos filhos com os pais, estreitando o relacionamento íntimo entre ambos – pais e filhos –  aumentando, consequentemente,  o grau de confiança e cumplicidade entre eles; as mães ficam liberadas em parte da responsabilidade da guarda unilateral, que vigora como um primado cultural em nossa sociedade, liberando-a para buscar e perseguir  outros objetivos no campo profissional e pessoal, que não seja apenas o de cuidar dos filhos.  

Para tanto, o compartilhamento da guarda, exige uma comunicação efetiva, ágil e respeitosa entre os pais, além de uma disponibilidade maior para atender as necessidades dos filhos, não para simplesmente vigiá-los, mas sim, para que sintam segurança, amparo e  retaguarda no dia  a dia de suas vidas.

6.  Conclusão

Compartilhar tem um sentido especial, profundo. É tomar parte, participar, compartir, partilhar com alguém. Se os pais entenderem isso, por certo fortalecerão o instituto da guarda compartilhada, que no nosso entendimento, representa a melhor opção para  um desenvolvimento e crescimento harmonioso, notadamente  no plano emocional e  psicológico dos seus filhos. 

Cabe agora aos pais,  entenderem o verdadeiro significado da nova modalidade de guarda introduzida  na legislação pátria.

Os filhos, com certeza, ficarão eternamente gratos se, na prática,   isso ocorrer de forma efetiva e verdadeira. 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLOVIS BRASIL PEREIRA:  Advogado, com escritório na cidade de Guarulhos (SP); Especialista em Processo Civil; Licenciado em Estudos Sociais, História e Geografia. É Mestre em Direito (área de concentração: direitos difusos e coletivos),  Professor Universitário, lecionando atualmente as disciplinas Direito Processual Civil e Prática Jurídica Civil nas Faculdades Integradas de Itapetininga (SP) e UNICASTELO, São Paulo (SP);  ministra cursos na ESA- Escola Superior da Advocacia, no Estado de São Paulo,  Cursos Práticos de Atualização Profissional e  Palestras sobre temas atuais; é membro da Comissão do Advogado-Professor da OAB-SP; membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-Guarulhos; é colaborador com artigos publicados nos vários sites e revistas jurídicas. É coordenador e editor do site jurídico www.prolegis.com.br

Contato:   prof.clovis@54.70.182.189

 

Modalidades de arbitragem

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* Tatiana Scholai  

Grandes partes dos procedimentos arbitrais ocorrem em uma instituição privada, existe também a arbitragem “ad hoc”, neste caso o(s) árbitro(s) é nomeado para julgar um determinado litígio em um caso específico.

Na Arbitragem Institucional as partes determinam uma Câmara de Arbitragem e se submetem ao regimento interno e as regras de funcionamento da mesma, se utilizando da sua infra-estrutura de serviços, tais como local para reunião,  secretaria, tesouraria e quadro de mediadores, conciliadores e árbitros sugeridos por ela. 

Este tipo de arbitragem é normalmente realizado por intermédio de uma entidade especializada, aonde as regras que serão adotadas são as regras da instituição escolhida.

A arbitragem Institucional estabelece também que as partes poderão optar pela forma a ser adotada e condução do julgamento: eqüidade ou de direito. Na arbitragem de direito o árbitro utiliza a lei para julgar, enquanto que na eqüidade o árbitro julga utilizando o bom senso.

Quando as partem convencionam, ou por meio da cláusula compromissória ou pelo compromisso arbitral que a arbitragem será delegada a uma instituição ambos estão se resguardando para que a entidade nomeada gerencie todo procedimento arbitral e dê todo suporte necessário na estipulação do prazo, do idioma, do local que serão realizadas as audiências, da forma que serão pagas as custas do procedimento arbitral, quais os árbitros ou mediadores da instituição que serão nomeados, sendo sempre em número ímpar, bem como as demais questões que envolvem o procedimento arbitral.

O uso da arbitragem institucional traz uma séria de vantagens, pois proporciona às partes maior segurança jurídica e agilidade. Ademais, as partes não precisam se preocupar com a administração do procedimento, isso permite que ambos  fiquem mais seguros quanto à forma do procedimento, sem elevar o contrato a níveis exorbitantes de complexidade, e dispensando o desgaste de estabelecer minuciosamente todas as regras aplicáveis ao procedimento. Pois a instituição segue os parâmetros estabelecidos pela lei 9307/96, tem normas internas de funcionamento para trazer segurança para as partes e possui especialistas em diversas áreas, que além de ter o conhecimento técnico passam por um treinamento para conhecer as técnicas  de mediação, conciliação e arbitragem, isso certamente  evitará novos conflitos e até a nulidade de uma sentença arbitral que não seguiu os ditames que a lei exige.

Já na Arbitragem "Ad Hoc", também chamada de Avulsa, as partes de comum acordo nomeiam os árbitros e administram elas próprias o procedimento arbitral. Este tipo de arbitragem disponibiliza às partes a escolha dos profissionais que participarão do juízo arbitral, assim como as regras, legislações, tratados  e mecanismos a serem adotados durante a arbitragem. Optam também pela utilização ou não das normas já existentes.

Na arbitragem "Ad Hoc", as partes têm que se preocupar com todas as exigências da lei de arbitragem e das legislações pertinentes a matéria e também estabelecer questões que muitas vezes pode gerar um desgaste entre as partes antes de instaurar o procedimento arbitral. Cito, por exemplo, o local do procedimento arbitral, o demandante pode exigir um local próximo a sua sede e o demandado pode não concordar. Outra questão importante é quanto a nomeação do árbitro ou mediador, pois nem sempre as partes chegam a um consenso, e diversas vezes o demandante pode confiar em um profissional para ser o árbitro naquele procedimento, mas o demandado pode não aceitar a nomeação, declarando muitas vezes a suspeição deste profissional já que ele pode ter um vínculo com o demandado ou pode ter prestado serviço para o demandado anteriormente.

Portanto, existem regras e questões éticas que envolvem o procedimento arbitral, tais como o sigilo que é resguardado por uma instituição ao firmar o termo de confidencialidade, que na Arbitragem "Ad Hoc" fica extremamente complicado  assegurar que haverá sigilo, já que o procedimento não ficará sob a guarda de uma instituição que  tem a responsabilidade, já que consta em seu Regimento Interno, de gerir de forma segura todas as fases que envolvem o procedimento e futuramente o arquivamento do procedimento.  

Portanto, para diferenciar melhor os dois tipos de arbitragem, esclareço que na arbitragem institucional, ou administrada, o procedimento de arbitral segue as regras estipuladas por uma Câmara de Mediação e Arbitragem, instituição esta que será totalmente responsável em administrar o procedimento, e a Arbitragem será “ad hoc” quando os procedimentos seguirem as disposições fixadas pelas partes, ou quando determinado pelo árbitro, nascendo muitas vezes da escolha efetuada livremente pelas partes através de um compromisso arbitral que será firmado na existência de um litígio.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

TATIANA SCHOLAIBacharel em Direito pela Universidade São Francisco, Diretora e Sócia da Câmara de Arbitragem, Mediação e Conciliação Brasileira, Vice-Presidente da ARBITRAGIO – Câmara de Mediação e Arbitragem em Relações Negociais, Membro do Instituto Nacional de Mediação e Arbitragem (INAMA), Participante da Comissão de Arbitragem da OAB-SP em 2006. Atua como Docente e Palestrante desde 2003. Ministrou treinamento sobre relações contratuais na Intelig Telecomunicações. Especialista em Direito Imobiliário pela FMU. Especialista em Mediação e Arbitragem pela FGV/RJ.

 

 

 

O princípio do contraditório na prova pericial: os exames e as periciais oficiais podem ser contrariados pelas partes.

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* Edson Pereira Belo da Silva 

01. Considerações iniciais. 

O princípio da verdade real no processo penal, para ser atingido, deve ser perseguido incansavelmente dentro dos estritos limites da lei posta. É claro que nem sempre isso é possível, seja por ausência de elementos probatórios, seja pela manifesta deficiência material do aparelho estatal repressor e punitivo, seja pela ineficiência de alguns dos respectivos operadores dos direito.

A busca dessa verdade real materializa-se através da produção de provas que ocorre dentro da persecução penal – do inquérito policial e/ou da ação penal –, de maneira que, para alcançar esse fim, todos devem lançar mão das seguintes modalidades de prova: exames e perícias (arts. 158 e seguintes, CPP); interrogatório (art. 185, CPP); (1) documentos (art. 231, CPP); e testemunhas (art. 202, CPP).

O direito à prova no processo penal é reservado as partes (acusação e defesa) e decorre dos princípios constitucionais da “plenitude de defesa” (restrita à segunda fase do procedimento Júri), “da ampla defesa” (aplicável aos demais procedimentos processuais), e da “presunção de inocência”, todos esculpidos no art. 5.º, incisos XXXVIII, “a”, LV, LVII, da Constituição Federal, respectivamente.

É preciso ter sempre em mente, no entanto, essa base constitucional do direito à prova, não podendo de forma alguma ser esse direito suprimido ou restringido por norma infraconstitucional, pois, segundo leciona Antônio Magalhães Gomes Filho, (2) não se pode ir ao ponto de negar à acusação ou a defesa o exercício legítimo do poder de influenciar, através das provas, o convencimento do magistrado.  

Quanto à produção dessas provas, incumbem não só às partes, mas também ao juiz, de ofício, o qual as apreciará livremente para formar sua convicção sobre ao caso em concreto (arts. 156 e 157, CPP).

02. O princípio do contraditório na prova pericial.

A prova pericial, objeto deste artigo, notadamente, leva ao juiz elementos instrutórios sobre normas técnicas e sobre fatos que dependam de conhecimento especial. Ademais, a perícia, no processo penal, apresenta a peculiaridade de ser uma função estatal destinada a fornecer dados instrutórios de ordem técnica e a proceder à verificação e formação do corpo de delito. (3)

Inocêncio Borges da Rosa, assevera em seu magistério (4) que a prova pericial é uma restauração dos fatos, uma interpretação dos mesmos, uma conclusão ou séries de conclusões a respeito deles, através dos conhecimentos que o perito puder colher, quer pela inspeção dos respectivos vestígios, quer pelos elementos que constarem dos autos a tal respeito.

As perícias ou exames de corpo de delitos são feitas por dois peritos oficiais. (5) Na ausência destes, serão nomeadas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior e de preferência as que tiverem habilidade técnica relacionada à natureza da perícia ou do exame, após prestarem o compromisso de bem e fielmente desempenharem o encargo (art. 159, caput, e §§ 1.º e 2.º, CPP, respectivamente).

O laudo pericial será elaborado no prazo máximo de dez dias, podendo este prazo ser prorrogado, em casos excepcionais, a requerimento dos peritos (art. 160, parágrafo único, CPP); enquanto que o exame de corpo de delito poderá ser feito em qualquer dia e hora (art. 161, CPP); ao passo que o exame necroscópico será feito pelos menos seis horas depois do óbito, salvo se os peritos, pela evidência dos sinais de morte, julgarem que possa ser feito antes daquele prazo, o que declararão no laudo (art. 162, CPP).   

No exercício do seu mister o perito goza de imparcialidade, contudo ele não está imune a falibilidade dos seus exames periciais, de sorte que  os seus laudos e exames podem conter contradições, omissões e obscuridades, ou inobservância de formalidades, cabendo à autoridade judiciária determinar que seja suprida a formalidade, bem como complementado ou esclarecido o laudo. Pode ainda o juiz, se entender necessário, ordenar que, outros peritos, procedam a novo exame (art. 181, caput, e parágrafo único, CPP).

Marco Antonio de Barros, (6) em obra de fôlego, assevera que o perito, assim como todo ser humano, está sujeito a cometer equívocos, quer nos seus exames, quer nas conclusões dos laudos periciais, o que levará o juiz a rejeitar esses trabalhos sempre em decisão fundamentada. Concluiu o aluído doutrinador que o magistrado não só pode como deve proceder a avaliação dos referidos trabalhos ofertados pelos peritos oficiais ou não oficiais.

Aliás, o juiz não adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo no todo em parte (art. 182, CPP), até porque os laudos e exames são peças de instrução. Em outras palavras, é regra geral que todas as informações fornecidas por peritos são simples elementos de esclarecimentos, ficando sujeitos à apreciação e a sua crítica.

Por seu turno, as partes podem desejar maiores esclarecimentos, e formular novos quesitos, ou pedir maiores minúcias sobre os que já houverem sido respondidos.    

Nesse passo, José Frederico Marques ensina que, em primeiro lugar, o perito é um órgão auxiliar para exercer função técnica com absoluta imparcialidade; e, em segundo lugar, a acusação e defesa podem criticar o trabalho dos peritos, requererem novos exames, pedir esclarecimentos, apresentar quesitos e solicitar do juiz exames complementares ou repetição da perícia com a nomeação de novos técnicos. (7)

Essa faculdade outorgada às partes no processo penal decorre das garantias constitucionais da defesa ampla e, sobretudo, do contraditório (art. 5.º, inciso LV, CF). Vale dizer com isso que acusação e defesa podem não só produzir provas como também contrariar àquelas produzidas na fase investigativa e judicial.

Referido entendimento, também encontra respaldo na doutrina de Guilherme de Souza Nucci, (8) o qual acentua que os exames do cadáver, dos instrumentos do crime, do local, de dosagem alcoólica, toxicológicos, entre outros, são realizados sem qualquer participação das partes; destarte, isso não impede que possam ser por elas questionados em juízo, em virtude dos aludidos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Com efeito, um pensamento genial sobre essa questão foi proferido por Joaquim Canuto Mendes de Almeida, em trabalho inigualável, (9) onde leciona ser “essencial ao processo que as partes sejam postas em condições de se contrariarem”. Conclui ele fazendo uma distinção entre “contraditório” e “contrariedade”: àquela, em resumo, é a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”; enquanto que esta “é ação das partes”.

Rogério Lauria Tucci, no entanto, defende ainda que essa “contrariedade” representa autêntica conquista do Direito Processual Penal Constitucional, consistindo num direito fundamental do imputado, sobremaneira na investigação criminal, onde ela é indispensável. (10) Ademais, nessa fase não há somente “investigação”, mas também colheita de elementos que poderão repercutir no próprio direito de liberdade do indiciado ou acusado.

03. Conclusão.

Posta assim a questão, conclui-se que os exames periciais são passíveis de contradições, obscuridades, omissões e de inobservância de formalidades, tanto que o legislador processual penal previu essas possibilidades, as quais decorrem da própria falibilidade do ser humano.

Nesse contexto, ainda que os laudos sejam elaborados na fase de investigação criminal – onde o exercício do contraditório ou a contrariedade emanada da reação defensiva é remota e discutida –, entendemos que as partes podem sim contrariar a prova pericial, em especial no processo penal, indicando os pontos, de forma técnica e fundamentada, cujos quais tornam a referida prova digna de ser suprida, esclarecida ou complementada, ou, ainda, até mesmo a confecção de um novo laudo ou exame.

Os trabalhos dos peritos oficiais, e o dos não oficiais (nomeado), desfrutam de credibilidade e imparcialidade, uma vez que, como integrantes de órgão técnico estatal (Policia Científica), têm como escopo auxiliar o Poder Judiciário na busca da desejada verdade real.

Entretanto, seus exames e laudos não resultam numa prova inquestionável ou intocável, mesmo que estes fossem feitos pela melhor equipe de peritos do país ou de outros países. Logo, um profissional da mesma área (engenheiro, contador, médico legista, psicólogo, etc.), denominado de assistente técnico, pode ser contratado e indicado pela defesa para identificar ou não àquelas situações legais expendias acima que comprometem os exames ou laudos.

Deve-se evitar, contudo, que fatores externos ou extraprocessuais venham dificultar ou impedir o efetivo exercício do direito a produção de provas (ampla defesa), inclusive a pericial, assim como a contrariedade daquelas já produzidas (princípio do contraditório), desfigurando, assim, por completo a face da garantia do devido processo legal.

Preenchidas uma ou mais das situações legais que autorizam a correção do exame ou laudo oficial, o julgador não deve insistir ou persistir na dúvida erguida pelas partes, posto estar ele compromissado com a boa e correta aplicabilidade da Justiça Penal.

Quanto à acusação, de igual forma, exercerá o contraditório, amplamente, na medida em que a defesa encarte nos autos exame ou laudo elaborado por perito particular no intuito de comprovar tese ou teses defensiva. Pode, ainda, a acusação, não satisfeita com a perícia oficial requer ao juiz a nomeação de outro perito para refazer ou produzir àquela prova.

Finalmente, sempre em homenagem aos princípios fundamentais aqui mencionados, as partes podem pleitear ao magistrado a nomeação de um perito para produzir um exame ou laudo do qual o Estado não disponha de pessoal técnico para tanto. De fato, trata-se de uma situação excepcional que cede a incessante busca pela verdade real.       

 

 


 

 

NOTAS

(1) A nosso sentir, o interrogatório não só é um meio de prova, como também um meio de defesa. Se o acusado, por exemplo, confessar espontaneamente a autoria delitiva, o juiz, reunindo outros elementos probatórios existentes nos autos, certamente usará tal confissão para condená-lo. Todavia, se ele negar à autoria ou invocar uma excludente de ilicitude estará exercendo sua autodefesa.   

(2) In Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 132.

(3) José Frederico Marques. Elementos de direito processual penal. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 352-354.

(4) Comentários ao código de processo penal. 3.º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 278.

(5) Sob pena de nulidade (Súmula 361 do STF), o exame ou perícia não pode ser feito somente por um perito (não oficial).

(6) A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 205. No mesmo sentido, são os ensinamentos de Vittorio Denti (Scientificità della prova valutazione del giudice,. Rivista de dirrito processuale, 1972): “O progresso da ciência não garante uma pesquisa imune a erros e seus métodos, aceitos pela generalidades dos estudiosos em um determinado momento, podem parecer errôneos no momento seguinte”.     

(7) Ob. cit., p. 355.    

(8) In Código de processo penal comentado. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 345-346.

(9) In Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 82.

(10) Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 357-358.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Edson Pereira Belo da Silva, advogado penalista, professor de processo penal e do Tribunal do Júri, autor de obras jurídicas, pós-graduado em Direito, pós-graduando em Direito Penal e Econômico Europeu, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante (edson@edsonbelo.adv.br).

Hermenêutica jurídica: mente, cérebro e “prejuízo”

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*Atahualpa Fernandez e *Marly Fernandez

Haga lo que haga un hombre, antes debe hacerlo con la mente, cuya maquinaria es el cerebro. La mente sólo puede hacer aquello para lo que el cerebro esté capacitado, así que todo hombre debe descubrir qué tipo de cerebro posee antes de poder comprender su propio comportamiento” (Gaer Luce y Julios Segal). 

1. Neurociência e “prejuízo” 

Durante os últimos anos a ciência há logrado avanços espetaculares em diferentes áreas do conhecimento. Patricularmente no que se refere ao nosso conhecimento sobre o cérebro humano, a ciência também há progressado significativamente e hoje entendemos melhor como se produzem a linguagem, o reconhecimento do mundo, o pensamento, a memória, os sonhos e a tristeza. Cada vez mais os progressos provenientes da neurociência nos têm ensinado que nossa atividade “mental” e o comportamento surgem de uma parte especializada do corpo: nosso cérebro.

O objetivo da neurociência é precisamente o estudo do cérebro e da atividade cerebral, isto é, das bases neuronais do pensamento, da percepção, do comportamento e da emoção, isto é, dos mecanismos da relação cérebro/mente ou, o que é o mesmo, dos mecanismos cerebrais que nos ajudam a entender a função dos genes na configuração do cérebro, o papel dos sistemas neuronais na percepção do entorno e a relevância da experiência como princípio de orientação nas ações futuras. O enfoque de seu estudo pode ser o nível molecular intra e interneuronal e/ou o nível integrativo ou global no que se analisam conexões, redes neuronais e comportamentos. Também é possível visualizar a atividade mental como os eventos que ocorrem em um tempo tão breve como milisegundos, que é o tempo que transcorre quando um neurônio se comunica com outro, ou tão largo como o que sucede através de toda uma vida.

Ademais, trata-se de uma área do conhecimento ( a neurociência ou neurociências) que está conformada por um número de disciplinas interrelacionadas que estudam o funcionamento do cérebro a distintos níveis e com distintos ramos de especialização. De forma muito geral é possível dividir a neurociência em dois ramos: neurociência básica e neurociência das condutas e/ou cognitivas. As neurociências básicas estudam os aspectos biológicos de forma direta – por exemplo, a neurobiologia, a neurofisiologia e a neuroquímica -, enquanto que o enfoque das neurociências da conduta e as neurociências cognitivas é mais integrativo e estudam a relação entre a organização e o funcionamento cerebral,  os processos cognitivos e a conduta humana.

Graças às investigações levadas a cabo pela neurociência, o desenho do cérebro que está aparecendo aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipóteses lançadas por Crick e Koch (1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral. Já sabemos, também, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et alii, 2001 e 2002; Moll et alii, 2002 e 2003; Goodenough & Prehn, 2005; Hauser, 2006). Sabemos que a percepção estética implica a ativação do córtex préfrontal esquerdo (Cela-Conde et al, 2004). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários do córtex ocipital (Zeki & Marini, 1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini & Ungerleider, 2004). Sabemos das “neuronas espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa capacidade de elaborar uma “teoria da mente” para prever o comportamento de nossos congêneres (Rizzolatti et alii, 2001 e 2006; Ramanchandran, 2008). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex préfrontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996 e 1997).

Por outro lado, a caracterização neurológica da moral começa a parecer compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intervenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro & Epstein, 1998). Particularmente com relação ao direito, os avanços neurocientíficos já começam a apontar em algumas direções igualmente dignas de menção: em primeiro lugar, em um sentido direto e explícito, algumas técnicas podem constituir-se em elementos de prova, enquanto outras técnicas ou neurofármacos podem vir a ser usadas como medidas associadas à pena ou para a reabilitação dos transgressores; em segundo lugar, e de um modo mais difuso, mas também mais profundo, os novos conhecimentos podem vir a influir nas intuições morais da sociedade assim como nas obrigações percebidas, estimulados pela utilização das técnicas modernas de imagem cerebral para investigar os correlatos neuronais de certos comportamentos, como, por exemplo, o livre-arbítrio, a responsabilidade pessoal, a tomada de decisões morais e jurídicas, etc. (Roskies, 2000; Moll et al., 2005; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, 2008; Goodenough e Prehn, 2005; Greene et. al. 2003, 2004, 2005).

E embora seja certo que ainda estamos longe de contar com um mapa preciso das ativações e correlatos neuronais relacionados com nossos comportamentos e/ou os processos cognitivos e emocionais que nos levam a atuar, não menos correta é a constatação de que vamos trilhando um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Mas desde logo sim que há algo de óbvio e de extremamente positivo que se pode inferir de todos esses progressos neurocientíficos: a constatação de que a mente é um estado funcional do cérebro, de que tudo o que passa na mente (atividade mental) se deve a (ou ao menos depende da) atividade do cérebro.

 Quando miramos dentro do cérebro vemos que nossas ações derivam de nossas percepções e nossas percepções (assim como nossa consciência) são um produto ou são construídas pela atividade do cérebro. Essa atividade, por sua vez, é ditada por uma estrutura neuronal formada pela interação de nossos genes com o entorno. Não há nenhum rastro de uma antena cartesiana que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há monstros nas profundidades, não há terras regidas por dragões, nem outros mundos, nem espíritos, nem estranhas forças ainda por desvelar, como a gravidade quântica (Penrose 1989 e 1994). O que os viajantes da mente estão descobrindo é um sistema biológico de assombrosa complexidade. Já não temos mais a necessidade de satisfazer nossa ânsia de assombro conjurando fantasmas: o mundo que há dentro de nossas cabeças é mais maravilhoso – e misterioso – que qualquer coisa que possamos inventar em sonhos (Carter, 2002). Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro – dos quais emerge a mente – e o mundo das criações culturais (aqui incluído, por certo, o direito) fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos.

E se nos situamos no âmbito propriamente do jurídico, nada disso deveria surpreender, uma vez que são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e interpretação das normas jurídicas: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o raciocínio ou juízo social – insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar (o que os cientistas chamam “teoria da mente”).

A combinação dessas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer conjecturas, abstrações e deduções causais e para inferir intenções não percebidas. Dessa forma, a aplicação do direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão ou predisposição – de nossos cérebros para “prejulgar” e subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades nos permitem gerar complexas idéias jurídicas que vão desde punir um condutor por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a elaboração de sofisticadas teorias acerca do direito justo, desde um jusnaturalismo de caráter teológico até um positivismo mais sossegado.

E porque estamos inseridos no mundo mental de outros, igual que o estamos no mundo físico e cultural, não somente a dinâmica e as estruturas neuronais que fazem possível a interpretação e aplicação das normas jurídicas estão condicionadas pelo entorno, senão também que nossa predisposição para fazer suposições e conjecturas sobre como são as pessoas e como funciona o mundo faz com que nossos prejuízos (conhecimentos prévios ou “pré-compreensão”, para usar a terminologia empregada por Esser) nos facilitem o acesso ao que há que compreender.

Por mais doloroso que nos resulte, o certo é que estamos prenhados de prejuízos. Estes (os prejuízos) são o fruto de uma conduta adaptativa desenhada ao longo de nossa história evolutiva: a seleção natural favoreceu o desenvolvimento de uma sofisticada maquinária cerebral para elaborar um juízo rápido, uma resposta mental automática que permite proteger-nos de possíveis perigos em nossas experiências de vida. Fazemos predições e formulamos prejuízos constantemente e respeito a tudo com que, direta ou indiretamente, nos encontramos implicados. E embora não nos demos conta disso, hoje sabemos que o cérebro funciona assim continuamente. 

Portanto, muito antes de que os neurocientistas dessem por assentada a crucial e iniludível presença do prejuízo para que nosso cérebro funcione, este já havia sido reabilitado por Gadamer em seu desenvolvimento da hermenêutica. Voltaremos a este tema mais adiante.  

2. Interpretação jurídica e subjetividade 

Dentro deste quadro que acabamos de desenhar, vejamos o que ocorre com a interpretação jurídica, isto é, quais as operações mentais efetivas levadas a cabo na tarefa de interpretar e aplicar o direito.

O Direito é, sob qualquer ponto de vista, um fenômeno essencialmente humano, cujo problema relativo à sua interpretação e aplicação levanta a iniludível questão da dimensão subjetivo-individual do jurista-intérprete. De fato, não resulta difícil inferir que a subjetividade do intérprete joga um papel de fundamental importância no processo de realização do direito, uma vez que se o fator último de individualização da resposta ou conclusão do raciocínio jurídico não procede exclusivamente do sistema jurídico (ainda que deva resultar compatível com ele), parece óbvio que deve proceder também das convicções pessoais do operador do direito.

E isso é assim pelo simples fato de que nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Para obter um modelo completo é imprescindível agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação, de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm que ser completados por um quarto: o de um processo de concreta realização do direito e a correspondente participação (pessoal, subjetiva, neuronal) do jurista-intérprete[1]. 

Daí que, neste particular, temos todas as razões para crer que o fenômeno da interpretação surge da atividade eletroquímica de redes-neuronais no cérebro. A experiência de escolher a solução satisfatória não é uma ficção, mas uma conseqüência causada pela atividade fisiológica de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira. Trata-se de um processo neural, com a óbvia função de selecionar a “melhor solução” ( emtermos comparativos e não superlativo) segundo suas conseqüências previsíveis, a par de devidamente fundamentada. Isto implica dizer que, para poder ler e interpretar uma informação, o cérebro tem que chegar a uma coalizão de grandes conjuntos de neuronas cuja ativação e interação representam a melhor interpretação de um determinado fenômeno, com fequência em competição com outras interpretações possíveis, mas menos prováveis.

Por certo que a solução elegida pode não ser a melhor de todas as concebíveis, mas seguramente será potencialmente a melhor de todas as possíveis e disponíveis – é nesse sentido que a interpretação e aplicação do direito é, em última instância, um processo panglossiano. Depois, não parece definitivamente razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extracraneal, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são. São produtos de nossa maquinária cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural. Dito de modo mais simples: se interpreta com o cérebro.

Assim que as interpretações jurídicas, tal como as conhecemos, são produtos de cérebros humanos, de seres humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo, opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas…, que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público  específico em uma época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um deles tem algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir a sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras. Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou tranforma os textos que interpreta.

Quem, por alguma razão, não entenda desse modo o processo de interpretação e aplicação do direito acaba por não permitir que cada intérprete diga o que quer dizer; quem faz isso não lê o que cada autor escreve com o propósito de entender sua mensagem. De fato, quem faz isso não somente se nega a admitir que cada um dos intérpretes é diferente senão que também se recusa  a entender que não é adequado pensar que todos pretendem dizer o mesmo. Pensar tal coisa é tão injusto como supor que o que  queremos dizer neste artigo sobre a interpretação jurídica há de ser o mesmo que diz qualquer outro autor que se ocupa deste tema, pois é muito provável que nossa intenção seja dizer coisas distintas.E isso pela simples razão de que ninguém pode viver sua realidade (nem, por certo, interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental: detrás de dois cérebros distintos podem esconder-se mundos e formas de conceber e de sentir a realidade completamente diferentes.  

3. Processadores de juízos  

Como o fazem? Uma forma de proceder a análise da subjetividade a partir de tais considerações é partindo da premissa estabelecida segundo a qual os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais. Daí que o juízo ético-jurídico baseado não somente em raciocínios senão também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamente desse órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral e o juízo normativo que dita o sentido do direito e da justiça.

O conceito de representação procede da teoria kantiana do conhecimento segundo o qual a realidade existe para cada um em particular somente em sua imaginação. Portanto, é somente sua representação. O mundo que vemos é um mundo concebido através da construção feita a partir de estímulos físicos por uma maquinária que é nosso cérebro: a realidade objetiva é “realidade” entanto que realidade humana percebida pelo cérebro humano. Dito de outro modo, esse contexto estabelece que os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais.

Em neurociência se vem usando o termo representação de forma sistemática para aludir ao conjunto de correlatos neuronais que se dão em nosso cérebro do mundo exterior. Neste marco parece possível não somente aceitar a equivalência entre representação e padrão de atividade cerebral senão também, e muito particularmente, intentar avançar no significado do conceito de representação com base no paradigma admitido pela neurociência. Isto é importante porque nos conduz ao conceito de estabilidade na atividade cerebral como fator determinante da evolução dos padrões, por exemplo, no ato de compreensão, interpretação e aplicação do direito.

 Para seguir nesta direção é útil imaginar um simples experimento que poderíamos fazer com uns quantos operadores do direito, com semelhante preparo intelectual e formação profissional, interpretando uma lei. Suponhamos que lhes mostramos a todos um mesmo texto legal (que envolva um dilema moral ou ético-jurídico), lhes pedimos que tratem de interpretar e compreender seus matizes e que depois lhes pedimos que expressem com detalhes um determinado desenho acerca da posição pessoal de cada um sobre o referido enunciado normativo.

Se verdadeiramente estes operadores têm semelhante preparação intelectual e formação profissional nos poderão fazer desenhos praticamente iguais, a menos que o texto legal (ou dilema) contenha detalhes difíceis de interpretar. Portanto, estes operadores tiveram acesso a uma realidade tangível e objetiva do mundo exterior que se haverá armazenado como representação em seus cérebros em forma de padrões de atividade de distintas regiões cerebrais.  Não há, contudo, razões para pensar que as zonas cerebrais ativadas serão idênticas nos distintos intérpretes.

Com toda segurança haverá um alto grau de correspondência no trabalho realizado por regiões cerebrais. Por exemplo, com toda segurança se haverá ativado o córtex cerebral ocipital quando os sujeitos visualizavam o texto legal, assim como o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo uma conduta relacionada com o processo de tomada de decisões. Mas se descendemos ao nível dos neurotransmissores e os potenciais sinápticos, que constituem a linguagem de comunicação dos neurônios (de modo que maiores quantidades de neurotransmissores liberados produzem maiores potenciais sinápticos), não há nenhuma razão para esperar que haja dois neurônios idênticos respondendo identicamente no momento da tarefa interpretativa. A demonstração mais simples disto é a redução ao absurdo baseada no fato de que não é previsível que haja dois cérebros, simplesmente, com o mesmo número de neurônios e conexões sinápticas que geram e determinam os processos cerebrais associados com a percepção, os padrões de pensamento e o sentido de ação (no caso, com o processo de observar, avaliar e decidir).

Um de nossos operadores pode ser jovem e outro mais velho, circunstância em que o processo de desaparição de neurônios já tenha iniciado. Cada um terá sua representação resultante de seu próprio padrão de atividade cerebral e das interações sinápticas produzidas pela experiência e pela história particular de cada cérebro (esta característica de câmbios se conhece com o nome genérico de plasticidade neuronal e pode estar na base da individualidade associada à experiência, dissociada do determinismo genético)[2]. Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não há dois cérebros que sejam iguais (nem sequer os de gêmeos idênticos), porque cada cérebro contrói o mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, não há uma interpretação definitiva do que expressa a “norma”, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos que melhor estamos preparados para registrar. 

Depois, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambiguos, são dependentes do contexto e não vêm necessariamente acompanhados de juízos pré-estabelecidos sobre seu significado (Edelman, 1987). Daí a razão pela qual que ler um texto necessariamente implica interpretá-lo. Sem embargo, supomos que muitos ainda fomentem uma concepção muito pouco elaborada acerca do processo de realização do direito, a saber, que o objetivo de interpretar um texto é, simplesmente, deixar que  este “fale por si mesmo” para descobrir o significado inerente a suas palavras. A verdade, contudo, é que o significado não é inerente e que os textos não falam por si mesmos. As normas jurídicas não possuem representação de valor. As normas possuem somente palavras. Quais os valores e significados que devem ser  ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa dos intérpretes. E ele estabelecerá sempre aquilo em que ele mesmo crê ( Dieter Simon, 2006): nenhuma lei é fruto de uma verdade estabelecida, senão expressão da “vontade pública”, sempre sujeita à interpretação.

Os textos se interpretam e quem os interpretam (assim como quem os escrevem) são seres humanos de carne e osso, que somente podem compreendê-los à luz de seus prejuízos e outros conhecimentos, que é o que fazem ao intentar desentranhar seus significados colocando suas palavras “em outras palavras” – como recorda Rose (2006), nossas mentes  funcionam com (e reagem aos ) significados , e não somente com informações. O intérprete-leitor, injetando elementos de subjetividade, altera as palavras originais do texto, buscando, num continuum desse processo unitário, encontrar para o resultado de sua interpretaço uma  fundamentação/justificação racionalmente convincente.

Isto, diga-se de passo, não é algo opcional no processo de leitura/ interpretação; não é algo que possamos eleger não fazer quando examinamos séria e cuidadosamente um texto. O único modo de entender um texto é lendo-o, e o único modo de lê-lo é interpretando-o, a saber, pondo suas palavras em outras palavras, e o único modo em que é possível fazer tal coisa é tendo outras palavras que colocar em lugar da originais, e único modo de ter essas outras palavras é havendo vivido, quer dizer, tendo prejuízos, desejos, necessidades, aspirações, crenças, perspectivas, visões do mundo, opiniões, preferências, aversões e todos os demais traços que fazem humanos aos seres humanos. E temos, assim, que ler e interpretar um texto é, necessariamente, prejulgá-lo: sempre buscamos entender o que seus autores dizem ao mesmo tempo que nos esforçamos por conhecer o significado que esses textos tem para nós, como podem ajudar-nos a compreender nossa própria situação e dar sentido aos próprios ideais e valores que conformam nossas vidas.

O problema é que embora nossos prejuízos tenham um substrato material que são os correlatos cerebrais ou padrões de atividade neuronal que se estabelecem individualmente, ainda não há uma resposta clara acerca de como tem lugar este processo, uma vez que, para tanto, haveríamos de ser capazes de determinar, se é que é possível, o limite entre percepção, emoção, memória e cognição. Para tratar de aclarar a complexidade do problema podemos recorrer ao exemplo de nossos intérpretes.

Quando viram o texto legal se puseram em marcha seus circuitos visuais, o que significa que uma série de sinais navegaram desde seus olhos através das vias nervosas correspondentes até o córtex cerebral ativando, na mesma medida, o sistema límbico. Com toda segurança todos identificaram que se tratava de uma lei porque previamente haviam visto objetos parecidos. Portanto disponiam de interações sinápticas modificadas ao efeito. Quando trataram de compreender os detalhes dessa lei em concreto tiveram que produzir-se novas modificações sinápticas e, em qualquer dos casos, suas respectivas percepções da realidade e suas características desvelarão o traço ou pontos de vista de cada intérprete de igual forma que refletirão as coisas que representa. E parece ser este o momento em que a dimensão  humana do potencial de subjetividade impõe suas pautas.

Agora: Quando foi suficiente? Em que nível o processamento de informação se torna significado, conhecimento, consciência? Quanto tiveram que modificar as interações sinápticas para que se establecera a representação dessa lei? Como se decidiu que era suficiente? Será possível algum dia descrever esse processo ou processos (ou os componentes chave) em termos mais objetivos? Em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os atuais modelos e resultados da compreensão e da realização jurídica? Em que medida é possível saber onde termina a cognição e começa a emoção no processo de realização do direito?

 Simplesmente não o sabemos. Parece não existir no cérebro nenhuma área específica (e se houver a neurociência ainda não conseguiu descobrí-la) em que a neurofisiologia misteriosamente se torna psicologia. O que há é um padrão de ativação cerebral que pode implicar um número considerável de estruturas cerebrais e que em algum momento é suficiente como para que o sujeito-intérprete possa compreender o objeto interpretado a partir de um “conhecimento prévio”: um trabalho que envolve múltiplas e distintas regiões do cérebro (não necessariamente conectadas por simples trajetos sinápticos ou sinapticamente distantes) contribuindo harmoniosamente para o todo – ou envolvidas em aspectos complementares da mesma tarefa: de cada região, de acordo com suas possibilidades, para cada uma, de acordo com suas necessidades (Rose, 2006).

Seja como for, conhecer como se realizam as conexões dos neurônios ao estabelecer as redes que levam aos juízos, quer sejam morais ou, como no caso de alguns experimentos estéticos já levados a cabo (Cela-Conde et al., 2004), é necessário para se ter uma idéia, ainda que limitada, acerca do processamento mental durante a tarefa interpretativa. O certo é que a partir das evidências até agora obtidas cabe ir muito mais longe.  E o que se espera é que um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça venha a oferecer razões poderosas que possam vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da psicologia e da racionalidade humana e, a partir daí, determinar o alcance que essa perspectiva neurocientífica pode chegar a ter para o desenho de um renovado edifício teórico e metodológico da ciência jurídica e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar  “vida hermenêutica” ao direito positivo. 

4. Hermenêutica jurídica e “prejuízo” 

Uma observação preliminar: porque não há uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica  e o  comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais.  E é precisamente neste contexto que o processo de interpretação e aplicação do direito (convertido no ponto cardinal da evolução jurídica) aparece como o mecanismo apto e o único meio possível e com capacidade necessária e suficiente para por em evidência a natural combinação cérebro/norma.

Pois bem, não há dúvida de que o conjunto das teorias até então elaboradas sobre hermenêutica e interpretação jurídica é assombroso, fascinante e inteligente. O problema, contudo, é que se baseiam principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. De fato, a quase totalidade da construção hermenêutica e a própria unidade da realização do direito elaboradas pelas teorias contemporâneas estão baseadas, na atualidade, no modo de explicação dominante da teoria da eleição racional, construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência a respeito da realidade neuronal que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria da racionalidade reformada. A crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. Vejamos o que ocorre com a hermenêutica.

A hermenêutica, que começou como a exegese do texto sagrado e constituiu o esforço por salvar sem negar a distância entre a palavra proferida e a escuta  da  criatura,  hoje, depois da morte de Deus, se oferece como um  recurso  contra as censuras do que há, contra o silêncio (o “sem sentido”) das coisas, contra a incompreensão dos discursos e contra a  ameaça da violência do outro: ela  nos ensina como  salvar-nos da violência do outro, como respeitar seu distanciamento, seu olhar, sua espontaneidade, sem dissolvê-lo em nosso próprio discurso,  sem submeter sua diferença à invasão de nossa identidade, enfim, a estarmos sintonizados empática e emocionalmente com o outro.

Nomeadamente no que se refere à hermenêutica jurídica, esta se apresenta como um dos caminhos mais eficazes para preencher o abismo da palavra e da mente do outro (finito, intencional e frágil como eu) e assim evitar cair na tentação de seu aniquilamento ou de sua exclusão como indivíduo. Pode-se afirmar, inclusive, que ela já vê como possível apresentar, com acentuado grau de precisão, um esquema de realização do direito que funcione como modelo de superação dos já esclerosados esquemas clássicos propostos pelas teorias tradicionais. A “alternativa” assenta em dois pontos fundamentais: a unidade (dialética) da realização do direito e a natureza constituinte-conformadora da decisão.

Particularmente focada é a unidade entre interpretação e aplicação; o caso passa a ser parte de um “todo vivo”, onde o interpretar é conhecer e decidir: a aplicação (a concretização) de comandos normativos é, assim, indissociável da compreensão da norma diante da situação atual e particular do intérprete. E uma vez que a compreensão é experiência e compreender é sempre também aplicar, isto implica dizer que: a) a tarefa da interpretação, como a forma explícita do compreender, consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação a uma concreta realidade e na particular situação do intérprete; b) a aplicação não é um “ato” complementário ou uma etapa derradeira e eventual do fenômeno da compreensão, mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto; e c) afinal, a interpretação (jurídica) de um texto e sua aplicação a um caso concreto não são dois atos separados e estanques, senão um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade metodológica.

Na obra de Hans-Georg Gadamer[3] a experiência hermenêutica é assumida como um intento por remover o prejuízo iluminista segundo o qual a ciência pressupõe o “distanciamento” com o mundo, a anulação das premissas culturais, subjetivas, da compreensão: esta (compreensão) tem lugar desde determinadas premissas, desde prejuízos ou desde uma “pré-compreensão” que antecipam a realidade observada a partir de um ponto de vista particular, ou seja, de que não há compreensão que não esteja de algum modo orientada por uma compreensão prévia, por uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinada pela relação (circular) do intérprete com a coisa, no contexto de uma determinada situação.

A partir de uma aguda e provocativa fórmula, Gadamer afirma que não são tanto nossos juízos como nossos prejuízos os que constituem nosso ser. Os prejuízos não são necessariamente injustificados nem errados, antes ao contrário “são antecipações de nossa abertura ao mundo” e constituem a “orientação prévia” de toda nossa experiência; e não o são somente de nossa particular situação, senão também e sobretudo os da  tradição (ou comunidade)  a qual historicamente pertencemos – isto é, a qual historicamente  se  está[4].

Por conseguinte, a contaminação subjetiva do dado é um fato inevitável, ainda que positivo e oportuno: o saber, e (de maneira preliminar e vaga) o que quero saber, é a condição que me permite compreender a resposta; meus prejuízos são o a priori do qual me sirvo para ver a realidade e sem os quais a realidade mesma me pareceria privada de sentido. E o único modo de possuir uma compreensão o mais objetiva possível é ser consciente dos próprios prejuízos e refletir sobre os mesmos. A pretensão de neutralidade é o fator principal que “cega” a visão da realidade: o prejuízo mais cegante, diz Gadamer, é o prejuízo da ausência de prejuízos.

Ademais, que além do mundo em que nos situamos ser um mundo histórico, cambiante e “produtivo”, a compreensão tem uma estrutura circular. Com isso quer dizer que a compreensão é a interelação e a interpenetração entre a tradição e o intérprete. É o chamado “círculo” ou “espiral” hermenêutico: sem uma antecipação de sentido que a guie não há compreensão, antecipação que vem determinada desde a comunidade que os une à tradição; mas essa comunidade está por sua vez submetida a um processo de contínua formação e transformação que os sujeitos-intérpretes mesmos vão conformando. Também aquí, no círculo do compreender,  mostra-se a superação que a hermenêutica contemporânea faz da escisão entre sujeito e objeto do conhecimento: insurge-se contra o conceito objetivo de conhecimento, elimina e rompe o esquema  sujeito-objeto (o que conhece-reconhece o objeto em sua pura objetividade sem se mesclar elementos subjetivos, ou seja, conhecimento como  “reflexo” do objeto na consciência) para o fenômeno da compreensão – premissa que inclusive nas ciências naturais explicativas não rege hoje irrefutavelmente. Mais bem a compreensão é sempre ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: o sujeito que compreende entra no “horizonte da compreensão” e não reproduz de maneira puramente passiva em sua consciência o compreendido, senão que o conforma.

Pelo que especificamente respeita ao problema da “aplicação” – o qual Gadamer remete para a noção aristotélica de “phrónesis” a comprovação da tese hermenêutica fundamental de que toda a compreensão (co-)envolve aplicação -,  anotaremos aquí apenas o seguinte: Gadamer acentua expressa e enfaticamente que a compreensão (tanto em geral, como a especialmente postulada por qualquer decisão juridicamente significativa) é mais do que uma mera interpretação  destinada a viabilizar a “subsunção” de uma determinada situação a “disposições legais”, pois exige, por um lado, uma contínua “adaptação à realidade” – traduzida em uma permanente, cuidadosa e estrita relação com a situação concretamente controvertida – e, por outro, uma “concretização prática da idéia de direito”, operada em termos dialógicos[5].

A compreensão nunca identifica uma simples, descomprometida e pragmática “aplicação artificial de um saber fazer”, pressupondo antes uma complexa, empenhada e eticamente responsabilizante participação do sujeito que nela se intromete: que, ao “alargar” e “aprofundar”, pela mediação do exercício dessa  sua tarefa, o modo como se “auto-compreende”, não deixa de  recriar e projetar nela, constituindo na “resposta” que se afoita a dar à “pergunta”  que o convocara (com os seus inelimináveis “pré-juízos”), dimensões originariamente radicadas na sua inapagável e irredutível “experiência” pessoal e comunitária. Esta, enquanto expressão direta da “finitude” e da “historicidade” de quem a realiza, modela decerto o entorno problemático em que se desenrola o processo de realização do direito.Dessa forma, a interpretação passa a ser um dos instrumentos mais relevantes tanto nas obras teóricas sobre o direito como em sua prática de todo tipo, começando pela jurisprudencial.

Caberia, pois, pensar que a contemporânea filosofia hermenêutica, com Gadamer em seu centro, acabou se incorporando ao elenco de categorias e concepções com o que o operador do direito teórico e prático pensa e explica seu labor. Mas não é assim, verdadeiramente; ou não o é na medida em que seria razoável esperar. Muito esquematicamente, se poderia indicar duas razões: por um lado, ao que à hermenêutica importa, a teoria e filosofia do direito têm suas próprias tradições explicativas e a filosofia hermenêutica vai pouco mais além das explicações existentes, ao menos no sentir comum do operador do direito; por outro,  e já  agora no que mais importa ao direito, que é o desenho de regras ou métodos do correto e racional decidir, a filosofia hermenêutica não proporciona soluções.

Dito de modo mais explicativo – e referindo-nos à primeira das assertivas antecedentes -, desde começos do século XX, pelo menos, se foi abrindo passo na teoria jurídica a idéia de que o direito não se esgota no texto, no puro enunciado normativo, de que a tarefa interpretativa é uma mediação irrenunciável para a concreção do enunciado legal, a fim de poder aplicá-lo aos casos que com ele hão de resolver-se, e de que essa interpretação, que tem um componente sempre criativo, contextual e pessoal, é constitutiva ou co-constitutiva (segundo o radicalismo da respectiva teoria) da norma jurídica mesma, do próprio objeto direito. No que ao operador do direito lhe interessa, a obra de Gadamer injeta possivelmente profundidade – e elegância – a essa perspectiva, mas pouca novidade.

Relativamente à afirmação de que a filosofia hermenêutica não aporta soluções que o operador do direito busca, quer-se dizer que a hermenêutica filosófica se detém precisamente ali onde mais interessa em direito a teoria da interpretação: à hora de proporcionar pautas do correto interpretar, isto é, critérios de racionalidade ou objetividade interpretativa. Não olvidemos que na práxis de aplicação do direito se pede aos juízes que atuem com imparcialidade e objetividade, evitando na medida do possível que sua decisão esteja condicionada por puros dados subjetivos, prejuízos, simpatias, etc.

E posto que há plena consciência de que essa práxis de aplicação da normas jurídicas é, em uma parte importantíssima, prática interpretativa de textos legais (de princípios, de valores e de fatos), o que se busca é uma metodologia jurídica normativa que marque os critérios da correta – no sentido de racional, objetiva, intersubjetivamente aceitável,  respeitosa com a separação de poderes e o valor das respectivas  vontades no entramado contexto do Estado de Direito – determinação de significado aos enunciados normativos. Tal coisa, é bem sabido, nem a dá e nem intenta dar a hermenêutica existencial ao estilo de Gadamer, uma vez que não se apresenta  diretamente como teoria da decisão valorativa racional senão  como indagação da dimensão ontológica do compreender, na qual a pré-compreensão “está aí” e fixa em cada caso as circunstâncias essenciais sobre a base de expectativas de resultados razoáveis – isto é, constitui um elemento ontologicamente  insuprimível e, por isso, é um elemento da estrutura mesma da compreensão que assim pode ser aproveitado como “uma possibilidade positiva e produtiva do compreender” (Gadamer, 1995).

Seja como for – e embora a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer ostente “perturbadores” indícios de um indisfarçável neo-hegelianismo-, não se pode negar a enorme importância que representou para o direito as teorias por ele desenvolvidas. Pense-se, só para exemplificar, no modo como esclarece o conceito de “círculo hermenêutico” e de “prejuízo”, nas reflexões que dedica ao problema da “aplicação” e na articulação que estabelece entre o “compreender e a linguagem”.

Depois, a frenética busca de uma metodologia que marque os critérios de uma “correta” ou “óptima” determinação dos enunciados normativos parece constituir, em essência, uma pretensão incompatível com os conhecimentos que a neurociência já nos aporta: a de desenhar um modelo de extrema racionalidade de algo que se configura essencialmente como uma atividade com acentuados componentes irracionais, isto é, de construir uma imagem ou ilusão racional do que parece ser, em si mesmo, irracional.

E o inadequado dessa pretensão se põe de manifesto ao analisar como funciona o cérebro quando formulamos juízos morais acerca do justo ou injusto. A causa dos processos cerebrais associados é preciso aceitar a iniludível presença de elementos não-lógicos e, em geral, a intrusão do valorativo e emocional no raciocínio jurídico. A partir daí, já não resulta aceitável nem legítimo o seguir considerando a tarefa hermenêutica/interpretativa como uma operação ou conjunto de operações regidas exclusivamente pela silogística dedutiva ou cognoscitiva: a mente humana parece estar carregada de traços e defeitos de desenho que empanam o nosso legado biológico no que se refere à plena objetividade e racionalidade cognitiva[6] .

Por conseguinte, dar à hermenêutica o que é da hermenêutica significa reconhecer-lhe seu legítimo lugar entre as mais influentes explicações da constituição do indivíduo e do direito. Mas limitar-se, sem mais, em suas explicações, implicaria não somente em permanecer de costas aos espetaculares logros dos recentes estudos provenientes das neurociências e deixar sem resposta (ou sem sentido) perguntas determinantes que têm que ver, sempre, com a busca de padrões cognitivos e emocionais que funcionam como fatores determinantes da “racionalidade” humana.

Assim que todo intento de separar, nomeadamente nas ciências compreensivas, a racionalidade da personalidade que compreende está fatal e tragicamente condenada ao fracasso: a imagem do intérprete inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade. Todas as interpretações e decisões sobre o direito se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano único cuja recompilação de experiências passadas lhe serve como contexto, lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma, alterar o texto interpretado. Pese a muito que se possa desejar, não existe um ponto de vista “neutral”, e a mera possibilidade de que se possa “recuperar” (ou “institucionalizar”) a neutralidade é tão remota que resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma idiossincrasia com patas.

 Essa, em realidade, parece ser a razão pela qual Häberle (2003) afirma que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada e que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo e contextualizá-lo no espaço, enfim, de integrá-lo no mundo da vida vivida. De que concebido o direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo, é o operador jurídico que produz a realidade do direito e a edifica enunciando o que este mesmo é. Há direito onde sujeitos diferentes pré-compreendem, discutem, modificam e desenvolvem, submergindo-se na práxis, proposições e enunciados normativos pertencentes a essa prática interpretativa que, sobre a base de sua unidade de sentido, chamamos de fenômeno jurídico : o objetivo da boa interpretação não é conseguir que os intérpretes admirem e reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigí-la.

Depois, não somente a personalidade do intérprete está presente no decurso de toda interpretação como os intérpretes, no processo de realização do direito, não deixam de ser homens imbuídos de toda a preocupação ética, de prejuízos, de certos valores, preferências e intuições morais, o que faz com que não pareça legítimo nem razoável interpor, na aplicação do direito, uma barreira insuperável entre a desejada objetividade e a subjetividade do intérprete. O processo de realização do direito por parte do intérprete implica, em última intância, uma tarefa que pode considerar-se propriamente construtiva e emocional, pessoal e criativa  em certo sentido, embora não como absolutamente livre ou desprovida de vínculos para o operador do direito (portanto, tendencialmente racional).

E é essa constatação a que faz com que não somente a noção de racionalidade habitual em ciência jurídica esteja sendo objeto de revisões drásticas, senão também que a idéia mesma de que  a ciência jurídica está fundada na objetividade, neutralidade e racionalidade do operador do direito venha sendo assaltada e posta em dúvida nos últimos lustros desde as mais variadas direções. Desde logo, a partir de algumas tendências da filosofia e da filosofia do direito mesmo, mas também, e acaso mais incisiva e contundente, por parte dos cientistas cognitivos, dos filósofos da mente e dos avanços provenientes da  neurociência. E com o resultado de que, embora quando alguma noção de racionalidade no processo de realização do direito parece iniludível (tratar de prescindir da idéia de agentes intencionais é tarefa condenada de antemão ao fracasso), o processo de derivação de valores não é de natureza estritamente neutra, objetiva, racional e cujo significado é inerente às palavras do texto.

Se é certo que a interpretação jurídica não pode existir sem a razão (preferências individuais e razão instrumental), não menos certo é a “intuição” de que é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos, metas e objetivos buscados pelo intérprete. Formulamos juizos de valor sobre o justo e injusto não somente por sermos capazes de razão (como expressam a teoria dos jogos e a teoria da interpretação jurídica) mas, ademais,  por estarmos dotados de certas intuições morais  e  de determinados estímulos emocionais que caracterizam a sensibilidade humana e que  permitem que nos  conectemos potencialmente com todos os outros seres humanos.

Devemos compreender que o desejo de proporcionar uma justificação exaustivamente racional da maneira em que vamos conduzir nossas interpretações é descabelada. A fantasia hiper-racionalista de demonstrar que todas nossas ações (e interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e devemos abandoná-la (H. Frankfurt, 2004). Nossos desejos, nossos prejuízos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”, surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.

Nesses domínios  em que o acento recai na peculiaridade, na especificidade do caso concreto, deve o operador do direito convencer-se de quanto seria nefasta a eventual pretensão do legislador de regular ele próprio tudo, prendendo o intérprete de pés e mãos, fazendo dele uma pura máquina subsuntiva ou “descobridor de significados inerentes”, ao cabo de cujo funcionamento se estaria em face de uma interpretação ou solução que a todas as luzes mal quadraria ao caso considerado –  isso apenas para dizer o mínimo. A assunção responsável de que o intérprete goza de de certa margem de autonomia é, pois, no nosso caso (no caso da interpretação/aplicação jurídica), uma atitude necessária e uma solução por demais fecunda. Em verdade, é no autônomo processo de interpretação dos códigos morais e jurídicos da sociedade que a conduta do intérprete, sempre pessoal, produtiva e constitutiva, garantirá a condição de cidadania plena, ou seja, a sua devida prioridade frente a qualquer outro fenômeno sócio-cultural e existencial.

Assim que  a interpretação não pode prescindir da insubstituível atividade e iniciativa do sujeito. A interpretaçao é, em efeito, um espaço de jogo entre vínculo e liberdade, entre rigidez e flexibilidade, entre lógica do provável e do razoável por um lado, e lógica do necessário e do constritivo por outro, quer dizer, um espaço dentro do qual é certamente possível uma pluralidade de soluções alternativas, ainda que isso não signifique em absoluto que todas as interpretações sejam igualmente legítimas: e dado que não existe certezas demonstrativas nem verdades empíricas, somente a argumentação, entre as distintas hipóteses interpretativas possíveis, pode orientar no sentido de uma interpretação satisfatória e razoável, no sentido de eleições prudentes e responsáveis, guiadas por  “boas razões”, que sirvam às nossas intuições e emoções morais e à justiça e não as traicionem.

O esquema teorético-cognoscitivo sujeito-objeto passou a fazer parte do passado, pois falha desde o ponto de partida: um intérprete que crê que recebe seus critérios de interpretação somente do texto, do significado inerente às palavras da norma, sucumbe a um equívoco fatal, pois (inconscientemente) permanece dependente de sua própria irracionalidade. Dito de outro modo, um intérprete que crê que a relação direito/norma é tudo esquece que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de prejuízos, experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

Aqui está sempre presente (embora não exclusivamente, é certo) um certo momento pessoal e criativo relacionado com a sempre problemática “racionalidade” humana, isto é, de que o “conhecimento” do direito importa sempre um pouco de “construção” humana do jurídico. Mais claramente: o direito na sua forma concreta de existência (nomeadamente, tal como é “proferido” pelos tribunais) surge sempre e somente no processo de realização do direito, com a participação integral da personalidade do sujeito que compreende (do intérprete). Da mesma forma que a  “beleza” não existe realmente senão quando se plasma em uma concreta obra de arte,  não parece prudente dispor acabadamente de meras “possibilidades” ou “potencialidades”,  à margem da mesma tarefa interpretativa em que afloram as normas do caso concreto.

Como se vê, a tarefa de realização do direito, para a gente que vive em uma comunidade prenhada de normas, é algo mais complicada.

5. O “prejuízo” como condição humana  

          No vasto e importante debate que nas últimas décadas se abriu em torno ao problema da interpretação jurídica, nenhuma teoria específica da interpretação logrou reivindicar para si um papel exclusivo. Sem embargo, não há dúvida de que no fascinante ciclo cultural que viu a interpretação, em poucos anos – desde a publicação, se desejamos indicar uma data, de Verdade e Método de Gadamer –  converter-se certamente em um dos temas objeto de maior interesse e de mais ampla confrontação teórica, jogou um papel de primeira importância a não comum capacidade atrativa e, ao mesmo tempo, a flexibilidade com que a hermenêutica filosófica funcionou, ora como polo atraente, ora como elemento de contraposição com posições filosóficas diferentes ou inclusive contrárias ao programa teórico que a mesma sustenta.

          Com sua tese da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar, e da incidência da interpretação na realidade mesma que haverá de interpretar-se, ou seja, da construtividade do interpretar, a hermenêutica acabou por abrir caminho a uma ampla gama de ricas e originais reconsiderações teóricas dos temas do compreender, do interpretar, do aplicar, do significado e da linguagem, aproximando âmbitos distintos do saber.

          Muitos e importantíssimos são os problemas levantados e discutidos no âmbito desta abertura de novos itinerários intelectuais propiciados pela centralidade do tema interpretação, no qual, por sua vez, a interpretação jurídica – inclusive graças a um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, depois de que durante todo o século XIX e boa parte do XX o modelo do bom legislador havia prevalecido claramente sobre o modelo do bom intérprete – foi convertida no ponto central da filosofia e da ciência jurídica.

          De fato, não seria nenhum exagero afirmar que a teoria hermenêutica do direito deu passos de gigante no século XX, propiciando uma indubitável aproximação entre momento normativo e momento interpretativo-aplicativo. Mas se há um em particular, e que parece haver despertado maior interesse e cuidadosa atenção, certamente este está representado pela presença do prejuízo ou pré-compreensão na atividade interpretativa e nos processos de tomada de decisão.

O problema, portanto, está em saber como começamos a fazer suposições, a pré-compreender, a formular prejuízos ou ter conhecimento prévio. Fazer suposições ou conjecturas sobre como são as pessoas (ou fenômenos do mundo) antes de ter alguma informação sobre elas é prejulgá-las. E embora a palavra “prejuízo” por vezes pareça mal, o certo é que se trata de um elemento crucial para que nosso cérebro funcione. Os prejuízos nos permitem começar a conjecturar, sendo indiferente o atinada que possa ser a conjectura sempre e quando ajustemos a próxima em resposta ao erro. Por exemplo, quando percebemos objetos do mundo físico, o cérebro sempre espera que a luz venha desde cima. Trata-se de um prejuízo incorporado ao longo da evolução. Da mesma forma, quando o cérebro observa pessoas em movimento espera que estas alcancem seus objetivos com um mínimo de esforço (recordemos, por exemplo, os inúmeros estudos levados a cabo sobre a imitação). Isto também é um prejuízo inato (Frith, 2007). Estes prejuízos nos permitem iniciar o ciclo de hipóteses e predições em virtude do qual nosso modelo do mundo é cada vez mais preciso.

Estamos predispostos de maneira inata a prejulgar. Todas as nossas interações sociais e nossas relações com o mundo físico começam com prejuízos, cujo conteúdo nos permitem fazer conjecturas iniciais sobre as intenções de nossos congêneres assim como conjecturas, abstrações e deduções causais dos fenômenos que nos rodeiam. Isto também não é algo opcional, não é algo que possamos eleger não fazer quando atuamos no mundo físico e social em que plasmamos nossa vida. Necessitamos fazê-lo para poder atuar em consequência. Ademais, para ser completa, qualquer conhecimento prévio ou qualquer simulação interna deve conter não só modelos da mente de outras pessoas, senão também um modelo de si mesma, de seus próprios atributos estáveis, seus traços de personalidade e os limites de suas capacidades; o que pode fazer e o que não.

É da natureza do existir humano que quando observamos o comportamento de nossos congêneres, raras vezes, e é possível até que nunca, observamos um mero mosaico de atos incidentais. O que (pré-)vemos detrás  deles é uma estrutura causal mais profunda, a presença oculta de planos, intenções, emoções, recordações, etc., e partindo dessa base, podemos tratar de compreender o que fazem os demais. Estamos desenhados pela seleção natural para ter uma capacidade de prever ou de ter uma imagem prévia (um prejuízo), uma espécie de modelo conceitual da mente humana, sem o qual uma espécie essencialmente social como a nossa não haveria conseguido prosperar no entorno sócio-cultural em que  move sua existência. Não há um minuto em que não intentemos ler a mente, elaborar um conhecimento prévio ou imaginar as intenções dos demais.

De fato, um dos maiores incovenientes do ser humano é a dificuldade que supõe contemplar-nos uns aos outros sem prejuízos; somos, de fato, seres desenhados para (pré-)compreender  as pessoas e  os fenômenos que nos cercam. Daí que não nos resta outra opção – ademais de oportuna – que a de observar que a hermenêutica de Gadamer, particularmente no que se refere à compreensão prévia (ou prejuízos), captou adequadamente o núcleo de nossas intuições cognitivas – isto é, do que vem das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva e que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjeturas e hipóteses – sobre a inata capacidade para interpretar (pré-compreender) os outros, para ler suas mentes, para entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, ou seja, para ler o que há sob a superfície, antecipar acontecimentos e dar sentido ao que vemos.

Nossos cérebros são basicamente máquinas de fabricar modelos da mente de outras pessoas, manipular os significados e formular conjecturas ou prejuízos acerca dos fenômenos físicos e sociais que conformam e condicionam nossa existência. O cérebro humano é uma “máquina de antecipação”, e “criar futuro” não somente é o mais importante que faz senão que parece ser o traço definitório de nossa humanidade (Roberts, 2002; Dennett, 1997): o ser humano é o único animal capaz de imaginar objetos, comportamentos e acontecimentos que não existem no reino da realidade, e esta habilidade é a que nos permite antecipar, prever, imaginar ou pensar no futuro; nosso cérebro está desenhado para antecipar (pré-compreender), e isso é o que faz (Gilbert, 2006).

E é precisamente o lobo frontal – a última parte do cérebro em evoluir, a que amadurece com mais lentidão e a primeira a deteriorar-se durante o envelhecimento – a peça fundamental da maquinária cerebral que permite aos adultos humanos normais e modernos a projetar-se a si mesmos no futuro, a abandonar o presente e experimentar o amanhã antes de que ocorra; sem ele, estamos atrapados no momento, incapazes de imaginar o que “virá depois”, a pensar na existência a longo prazo, encerrados no espaço e tempo imediato, enfim, ligados aos estímulos do presente ou destinados a viver em um presente permanente.

Este é o cometido (regular e espontâneo) de nosso lobo frontal e que ocupa até o último rincão de nossa existência mental: nenhum outro ser vivo tem um lobo frontal como o nosso, que é a razão pela qual somos o único animal que imagina, antecipa, elabora conhecimento prévio ou pensa no futuro tal como o fazemos (Gilbert, 2006). Resumindo, são as diversas regiões do córtex pré-frontal que produzem, operando em conjunto, todas aquelas qualidades que consideramos mais essencialmente humanas: a capacidade de fazer planos e antecipar, de prejulgar, de antecipar conhecimento, de sentir emoção, de controlar nossos impulsos, de eleger e de dotar de significado nosso mundo.

Em termos propriamente jurídicos, a “pré-compreensão” (como inafastável condição de possibilidade da compreensão) implica que o intérprete-aplicador, quando confeccione e manuseie os modelos de decisão, tenha já uma pré-visão do problema, uma antecipação do futuro, fruto da sua experiência, dos seus conhecimentos, das suas convicções e da própria linguagem. A “pré-compreensão” constitui, assim, um momento essencial do fenômeno hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão: por meio da análise dos fatores pré-firmados da decisão, e assumindo-se, designadamente, a dimensão dialética e prático-normativa do direito, há de integrar, na medida do possível, o próprio pré-entendimento nos modelos de decisão, limando arestas e valorizando os fatores normativos, fáticos e sistemáticos que porventura venha a incluir.

E nomeadamente para o que aqui nos interessa, já agora podemos reafirmar, com Gadamer, que a pré-compreensão (posta pela tradição hermenêutica como ponto de partida do círculo ou “espiral” hermenêutico) é, de fato, algo inevitavelmente dado pela ontologia evolucionada do “ser no mundo”, e não uma plataforma de interpretação na qual deve situar-se o intérprete. Como dissemos antes, muito antes de que a neurociência começasse a dar a devida importância ao conhecimento prévio, o prejuízo já havia sido reabilitado por Gadamer em sua teoria hermenêutica: em vez de supor um obstáculo, nossos prejuízos nos facilitam o – constituem o primeiro meio ao – acesso ao que há que compreender.

Neste particular, e a título meramente exemplificativo, uma breve reflexão paralela acerca da questão da iniludibilidade da presença da pré-compreensão no processo de realização do direito pode ser ilustrada da seguinte maneira: como pode um juiz decidir, sem prejuízo, um caso completamente desconhecido para ele? Como pode fazê-lo? É possível que desconheça este caso concreto; mas se desconhece também tais casos, em que direção há de praticar provas e interpretar a lei, se ele não tem idéia alguma acerca do que este trata? Como haveria de emitir um juízo justo, se não pudesse comparar este caso com os outros muitos casos de que já tem notícia (princípio de igualdade)? Criar direito é um reconhecimento de algo em certa forma conhecido com antecipação; não significa, em absoluto, ingressar em terreno desconhecido (Kaufmann, 1999).

Em qualquer caso, sempre se produz um choque entre a norma interpretanda e as preferências pessoais do operador do direito, o que não é senão outro modo de dizer que todo juízo do sujeito-intérprete há de ir inevitavelmente precedido, o saiba e queira ou não, de um pré-juízo que contribui para colocá-lo em situação. O operador do direito que não é consciente de seu prejuízo é, em realidade, o mais dependente, acrático e imprudente. Tão somente o prejuízo, a pré-compreensão ou o conhecimento prévio mostra-lhe o que tem de interpretar na norma e o que há de qualificar normativamente no caso. Do contrário teria de proceder na incerteza, no desconhecido. Dois atos separados dessa maneira, um, a norma legal abstrata, o outro, o caso amorfo, não produzem direito algum, nem cada um por separado nem ambos ao mesmo tempo (Kaufmann, 1999).  

 Desde uma perspectiva prático-filosófica, a interposição de prejuízos identifica uma “condição necessária de todo o compreender” – que, por sua vez, condiciona todo o processo de realizar em termos metodologicamente adequado a sua relação com o fazer valer uma norma jurídica na prática – e, desde uma ótica especificamente prático-jurídica, a respectiva pré-compreensão (sempre provisória e, portanto, parcial),  se começa por demarcar um  conteúdo presumivelmente  ajustado  ao caso decidendo (impondo o  “ônus da contra-argumentação”  a quem dela pretenda se afastar), acaba por conformar, quando se revele pertinente, um autêntico  conteúdo de validade” vinculativo para o intérprete – ou seja, já não é de todo lícito e razoável pretender excluir o sentimento jurídico como a  arte de ter  pré-compreensões corretas.

E mais: dessa mesma capacidade humana de antecipar, de “criar futuro”, é que surge a preocupação de pensar em conseqüências que, como componente igualmente relevante da tarefa interpretativa, permite ao sujeito-intérprete o conhecimento, a ponderação e a responsabilidade pelos efeitos éticos e sociais de seus discursos ou decisões. Vale dizer, da consideração, pelo operador do direito, dos efeitos futuros da interpretação que adotará diante do caso concreto, da norma interpretada e dos princípios e valores correspondentes. É que as interpretações e decisões jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento jurídico, constituem inegável instrumento de estabilidade e alteração da realidade social, de modo que o intérprete tem indisfarçável responsabilidade social com a interpretação que adota e/ou à decisão jurídica que profere. Esta responsabilidade social nada mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo interpretativo, a fim de serem afastadas as interpretações e decisões estapafúrdias, desconectadas do sistema jurídico e do contexto histórico-social em que são proferidas.

 

E o juiz, mais do que qualquer outro intérprete do direito, tem elevada à máxima potência essa exigência de prudência com o teor das suas decisões. O direito, como instância da realidade, tem inegável função de promover a estabilidade social:a antecipação das consequências não somente influi diretamente sobre os efeitos que a decisão jurídica provocará no futuro senão que também manifesta a virtuosa prudência no ato de julgar. A pré-compreensão, que engloba tanto o dado passado (crenças, desejos, emoções, sentimentos, etc.) como a antecipação de consequências (dado futuro), não somente constitui uma condição necessária da tarefa interpretativa senão que delimita os significados normativos que o intérprete atribui e constrói para solução da controvérsia circunstancialmente em causa. A “boa interpretação”, a interpretação “satisfatória”[7], entendida como a interpretação cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social e a segurança jurídica, é aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no processo interpretativo: interpretar/aplicar o direito é acima de tudo uma virtuosa responsabilidade ética – ou seja, podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelos resultados de sua atividade (e neste particular, o realmente revolucionário é o fato da neuropsicologia haver descoberto que, sem memória, tampouco há futuro: quando  imaginamos o futuro, curiosamente se ativam as mesmas partes do cérebro que quando recordamos o passado; e ambas incluem o hipocampo – Schacter, 2007). .

Os prejuízos são, assim, o humano na aplicação do direito e não há nenhuma técnica, por mais sofisticada que se apresente, que seja capaz de eliminá-los[8]. A assunção deste elemento natural da psicologia humana na realização do direito o torna transparente, em lugar de ocultar-se detrás dos “impessoais” fundamentos da decisão. Todo aquele que deseje compreender um sentido traz necessariamente sua pré-compreensão (condição de possibilidade da compreensão dos fenômenos do mundo e que deve ser revisada sempre mediante novos atos do conhecimento) e, por meio dela, introduz sua evidência no processo de compreensão; uma compreensão semelhante não é empiricamente objetivável, mas tampouco descaradamente subjetiva: é mais bem subjetiva-objetiva ao mesmo tempo.

Daí haver uma diferença significativa entre o que Haidt (2001) – a partir do “Social Intuitionist Model” que emarca suas investigações científicas acerca do julgamento moral – define como intuição moral e raciocínio ou justificação moral. O primeiro (o momento da intuição), trata-se da aparição repentina, rápida e intuitiva  de um juízo moral que inclui uma valoração afetiva (certo-errado, bom-mau ) sem nenhuma consciência de haver passado pelos estágios de busca, ponderação da evidência ou inferência de uma conclusão…um processo similar ao juízo estético (Cela Conde et. al., 2004): um indivíduo vê ou ouve acerca de um acontecimento social e instantâneamente sente aprovação ou desaprovação. O segundo, o da justificação, é uma construção ex post facto, uma construção ou composição de razões após o fato, com a qual pretendemos justificar ou dar razões para nossas intuições morais automáticas.

Transladada ao campo da argumentação jurídica (da justificação das decisões judiciais – Wassestrom, 1961; Golding, 1987; Wróblewski, 1974 e 1988; Nino, 1985; Atienza, 1993; Aarnio, 1991 e Alexy, 1997), esta distinção, que procede do âmbito da filosofia da ciência (nomeadamente da epistemologia neopositivista), tem sido utilizada para estabelecer que uma coisa é o procedimento por meio do qual se alcança determinada decisão e outra o procedimento mediante o qual se justifica dita decisão. Trata-se de uma distinção utilizada para opor-se a certos teóricos do direito que consideram que as decisões jurídicas – as decisões judiciais – não podem ser justificadas, uma vez que os juízes tomam essas decisões de forma irracional; a motivação das sentenças não seria mais que uma  “racionalização” de uma operação que não obedece em absoluto ao esquema da lógica, ao silogismo judicial. Quem sustenta este último aspecto, diz-se, estaria confundindo o contexto de descobrimento com o contexto de justificação[9].

Contudo, se tomamos em boa conta que o raciocínio moral e as emoções morais trabalham junto para produzir julgamentos ético-jurídicos, parece razoável supor que as apelações a uma multitude de motivos que interferem, condicionam e explicam a decisão judicial não configuram, em absoluto, nenhum argumento a favor de um presumível escepticismo jurídico-argumentativo. Neste particular sentido, não se nos afigura razoável desconsiderar de todo o denominado “irracionalismo” proposto por Alf Ross (1970), no sentido de que o aplicador do direito toma sua decisão em base a intuições emocionais e a considerações práticas; uma vez estabelecida a conclusão, o mesmo aplicador desenvolve uma argumentação jurídico-ideológica para justificar sua decisão: não se trata já de um ato puramente cognoscitivo que conduza a uma tomada de decisão ( a uma solução automática ou exclusivamente racional), senão que há uma decisão que posteriormente recorre a um procedimento argumentativo a efeitos de justificação.

Dito de outro modo, no conjunto deste cenário por meio do qual se revela a argumentação no jogo da cena jurídica (e, em particular, da jurisdicional), consideramos que se deve atribuir igual importância tanto a consideração do contexto de descobrimento, ou seja, do processo mental mediante o qual se chega a estabelecer determinada premissa ou conclusão, como a do contexto de  justificação, isto é, da necessidade de motivação da decisão, da questão de como os operadores do direito fundamentam suas decisões ou, o que é o mesmo, do procedimento consistente em justificar dita premissa ou conclusão. Afinal, a pré-compreensão não é um elemento acidental ou eventual da tarefa interpretativa,  mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto : decobrimento a justificação, na prática, não são dois atos separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade metodológica.

E por mais insólito que isso possa parecer, já não mais deveria constituir nenhuma surpresa ou ameaça aos positivistas, hermeneutas ou analíticos de plantão. Se o poder da ciência (e particularmente da neurociência) consiste precisamente em sua capacidade de verificar objetivamente a consistência de muitas subjetividades individuais, decifrar ou entender o problema da intricada passagem da iniludível e provisória antecipação do resultado (da pré-compreensão) a sua definitiva motivação pode subministrar as evidências necessárias sobre a natureza das zonas cerebrais ativadas e dos estímulos cerebrais implicados no processo de interpretar e decidir, sobre o grau de envolvimento pessoal dos julgadores e os condicionantes culturais em cada caso concreto, assim como sobre os limites da racionalidade, da criatividade e o grau de influência das emoções e dos sentimentos humanos na formulação e concepção acerca  da “melhor decisão”.

6. O que podemos esperar 

Os ideais racionalistas e liberais sobre a racionalidade formal do direito legal e a metodologia jurídica já entraram em crise há alguns anos: à disputa clássica sobre o papel dos valores na decisão jurídica, sucedeu – quiçá porque são poucos os que ainda insistem em desconsiderar o papel dos “prejuízos” (da “pré-compreensão”, das emoções e dos juízos de valor) na tarefa interpretativa – o problema da “materialização” do direito que promove o desenvolvimento da individualidade (livre, separada e autônoma) do ser humano e a eficaz garantia dos direitos que habilitam publicamente a sua condição de cidadania plena.

          Já se construíram grandes edifícios de teoria e metodologia jurídica que foram criticados e defendidos, submetidos à revisão e ampliados pelos melhores métodos de investigação racional, e dentro desses artefatos do pensamento humano figuram algumas das criações mais extraordinárias da cultura humana e jurídica. Uma operação semelhante realizada com o ponto de vista posto na possível objetividade de alguns princípios ou postulados do direito poderia fazer frente talvez com garantias às desviações cientificistas da ciência jurídica. Mas em realidade nos enfrentamos com o caso contrário.

          No campo jurídico, por exemplo, poucas vezes se prestou a devida atenção à evolução da natureza humana, à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte das predisposições e dos prejuízos que permitem levar a cabo toda e qualquer tarefa interpretativa. Com efeito, as teorias jurídicas ainda seguem sem suscitar uma incondicionada concordância de idéias e opiniões de todos aqueles que já lhes estudaram cuidadosamente.

          Não há que estranhar-se, pois, que o processo de realização do direito seja uma das mais problemáticas e contestadas publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. Não está informada por nada que seja reconhecível como autêntica teoria nas ciências naturais: o direito carece das bases de conhecimento verificável da mente, do cérebro e da natureza humana necessárias para obter e produzir predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.

A neurociência parece ser claramente a matéria que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, interpretar, justificar e decidir. É definitivamente necessário dar-se conta de que em todos os casos a interpretação e a aplicação do direito está causada por eventos cerebrais. E é precisamente por essa simples razão que estamos firmemente convencidos de haver chegado o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isso pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para dirigir-se a este, parece razoável admitir que devemos partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema da tomada de decisão humana em todas as suas dimensões. E a compreensão do comportamento humano oferecido até agora pela neurociência é perfeitamente compatível com esta perspectiva.

  Esta é apenas uma das muitas formas por meio das quais a neurociência, quanto às emoções imperfeitas e aos fatores de irracionalidade que condicionam  nossos prejuízos ou o que realmente sentimos e experimentamos na tarefa de interpretar,  pode trazer maior contribuição para o desenho e a elaboração de discursos jurídicos ou decisões mais justas do que a ilusão sobre a racionalidade ou emoções ideais que gostaríamos que motivassem o comportamento humano ou que os operadores jurídicos tivessem no processo de tomada de decisão: não há pior prejuízo que imaginar que poderíamos raciocinar sem prejuízos (Todorov, 2008).

 Por certo que no que diz respeito à neurociência, não nos encontramos no fim da nossa compreensão sobre o cérebro, senão que começamos agora a nossa viagem. Durante as últimas três décadas, aprendemos mais sobre o cérebro do que em toda a história registrada, mas ainda há muito mais para aprender. Troço a troço experimental a neurociência vai conformando nossa concepção do que somos; e aos poucos, o peso dessas evidências nos leva cada vez mais a aceitar que é o cérebro o que sente, pensa, valora, interpreta e decide.

Mas se os novos desenvolvimentos na área da neurociência são muito excitantes, o diálogo que começou entre neurocientistas, cientistas cognitivos, filósofos e juristas é ainda mais excitante. Pela primeira vez, ouvem-se diálogos consistentes entre aqueles que estão conduzindo a investigação e os filósofos e operadores do direito que estão procurando aplicar os resultados da investigação. A informação sobre o cérebro e sobre o modo como este funciona não é apenas meramente interessante, mas antes é e constitui um elemento essencial dos fundamentos sobre os quais deveríamos basear as nossas interpretações e decisões jurídicas,  morais e políticas. O cérebro tem importância porque a nossa existência tem importância.

Em resumo, nosso argumento é no sentido de que, diante do atual panorama metodológico acerca do reconhecimento, polêmico em relação com a metodologia tradicional, do fato de que os operadores do direito (especialmente os juízes), em muitos casos e até um certo grau, produzem direito, os novos avanços da neurociência permitirá  uma melhor compreensão da mente e do cérebro e trará consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da interpretação e aplicação jurídica: constituem uma oportunidade para refinar nossos juízos ético-jurídicos e estabelecer novos padrões e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.

Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de interpretar e decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal, é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade. Como lembra Ramachandran (2008), nenhuma empresa humana é mais vital que esta (a neurociência) para o bem estar e a sobrevivência da raça humana. Recordemos que a política, a moral, a justiça e o direito também têm suas raízes no cérebro humano. 

 


NOTAS

 

 

[1] O que é o mesmo que dizer que, seja com Gadamer, Esser, Zaccaria ou Dworkin, porque direito é interpretação (e diante da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar), não há direito que não seja, dentro de um parâmetro de controle da correção da interpretação, direito aplicado para este novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas. Trata-se da perspectiva que participa da orientação geral (tanto no âmbito do Common Law como no sistema do Civil Law), dirigida a ligar o conceito de positividade jurídica com o âmbito da realização concreta do direito no momento da decisão do juiz, quer dizer, de um ponto de partida hoje prevalecente na teoria contemporânea do direito: a tese de que o procedimento judicial forma o ponto central prospectivo desde o qual se deve analisar o sistema do direito (Habermas, 1996 e Dworkin,  1986).  

[2] Embora isso não signifique que a realidade não exista objetivamente e que somente exista em nossa imaginação, o problema filosófico segue vigente porque não se trata tanto de se existe uma realidade senão dos critérios de fundamentação dessa mesma realidade – uma vez que as percepções são o resultado de um processo psicológico que combina o que os olhos vêem com o que já pensamos, sentimos, sabemos, queremos e cremos, e ato contínuo utiliza essa combinação de informação sensorial e conhecimento já existente para construir nossa percepção da realidade.

[3] Observe-se que o contraste com Heidegger, ainda que pouco notado pelo próprio Gadamer (provavelmente o mais distinguido entre os discípulos de Heidegger), é suficientemente óbvio: para Heidegger a hermenêutica é o método da filosofia; para Gadamer é um fenômeno de importância filosófica. Ademais, há um contraste impressionante na maneira em que é posto o problema histórico: para Heidegger o objeto da hermenêutica é nossa própria compreensão e para clarificá-la há de seguir para atrás a pista de seus pressupostos históricos; para Gadamer, o objeto da hermenêutica é a  compreensão dos outros e para fazer com que esta empresa tenha sentido tem de estar conectada com nossa compreensão presente.

[4] Dito seja de passo que longe do estabelecimento moderno da subjetividade como princípio determinante de conhecimento e de valoração, a hermenêutica nos mostra que a subjetividade não é mais que uma chispa na corrente da vida histórica, que pertencemos à história e que é  no seio de uma tradição  ou comunidade como nos compreendemos. De fato, na categoria da pré-compreensão – e estamos no primeiro dos três elementos fundamentais do modelo hermenêutico obtidos da hermenêutica geral e adaptados à complexidade do procedimento interpretativo (Zaccaria, 1984 e 1998) – a hermenêutica jurídica individualiza a primeira condição hermenêutica do compreender jurídico. A pré-compreensão põe em movimento o processo interpretativo, proporcionando ao intérprete uma primeira orientação e abrindo sua consideração ao conteúdo linguístico dos textos e dos fatos. É uma potencialidade de conhecimento que desemboca em sujeitos bem determinados com uma hipótese de possível significado que, deixando-se continuamente corrigir por sucessivas hipóteses, que adequem, melhorem e substituam a originária, pode conduzir a modificar a expectativa de significado com que o intérprete se aproxima a um texto. Sem embargo, como lembram Viola e Zaccaria (1999), seria gravemente restringido conceber a pré-compreensão em um sentido exclusivamente empírico-psicológico, reduzindo-a as hipóteses de partida que em um caso concreto ou em uma série de casos concretos efetivamente pôs em movimento o procedimento da compreensão. Se bem ligada ao intérprete individual chamado a aplicar a disposição abstrata a um caso concreto, a pré-compreensão não configura – devido a seu caráter estrutural, irredutível a uma mera dimensão empírica – um ato da subjetividade, um ato individual; sendo pelo contrário determinada sobre a base da participação em um “sentido comum”, é também o resultado de uma socialização profissional e de uma formação jurídica, de uma cadeia de interpretações precedentes que entram a constituir uma tradição comum. O horizonte de quem aplica o direito não é nunca puramente pessoal, senão que se inserta e deve medir-se em um horizonte geral de expectativa, do qual não se pode sair. Assim entendida, a pré-compreensão hermenêutica é o nexo do intérprete com o transmitido, que longe de ser pessoal, se apresenta como comum à sociedade inteira (Viola e Zaccaria, 1999).

[5] Por certo que Gadamer reconhece que Aristóteles não se ocupa aí do problema hermenêutico, mas da avaliação do papel que a razão desempenha na ação moral. E em que pese ter esta coordenação na  Ética o ponto de vista de um “agir correto” – enquanto no discurso jurídico (pelo menos nos sistemas jurídicos modernos, dotados de forte grau de institucionalização)  o problema do “agir correto” transmuda-se, em elevado grau, em um “agir conforme” (aos dados do “sistema”) -, Gadamer, ao explorar a idéia de “phronesis”, coloca-se no terreno do neo-aristotelismo e compreende o juízo prático como um mero juízo de “contextualização”, de “assimilação” entre pauta geral e situação, quer dizer, como realizando uma applicatio – ou seja,  procedendo à clarificação e concretização de conteúdos normativos pré-dados.

[6] Dito de outro modo, a racionalidade humana é altamente dependente de emoções sofisticadas. Nosso raciocínio só funciona porque nosso cérebro emocional funciona tão bem. A imagem proposta por Platão do cocheiro que controla as bestas desenfreadas da paixão pode exagerar não apenas a sabedoria, mas também o poder do condutor. David Hume estava mais próximo da verdade e se encaixa melhor às descobertas neurocientíficas quando disse: “A razão é, e só deveria ser, escrava das paixões, não podendo jamais almejar outra coisa, exceto servi-las e obedecê-las”. Enfim, razão e emoção precisam trabalhar juntas  para criar o comportamento inteligente, mas a emoção é responsável pela maior parte do trabalho. De fato, os biólogos e os neurocientistas chegaram à conclusão de que não se pode tomar uma decisão sem emoção e de que todas as decisões supostamente lógicas e razoáveis estão contaminadas por uma emoção: ou existe emoção ou não existe decisão. (Haidt, 2006; Damasio, 1994; Gazzaniga, 2005; LeDoux, 1998; Perna, 2004).

[7] Introduzido em psicologia, “satisfazer” ou “ser suficiente” significa que se tomou a primeira eleição satisfatória encontrada de todas as que se percebem e são razoavelmente alcançáveis a curto prazo, em contraposição a imaginar por adiantado a eleição ótima e buscá-la até que se a encontre (Gigerenzer e Tood, 1999; Fernandez, 2006). Segundo o modelo satisfatório, é mais provável que um jovem que deseje casar-se proponha matrimônio à candidata mais atrativa entre as jovens casamenteiras conhecidas e que não busque durante muito tempo uma companheira ideal preconcebida. Em contraste com a otimização – obter o melhor resultado – trata-se de obter um resultado que seja bastante bom, quer dizer, que seja  satisfatório. Com efeito, as afirmações de “otimicidade” têm um modo de desvanecer-se: não é necessário nenhum descaro para admitir modestamente que, dadas nossas limitações e as características ubíquas da tomada de decisão em tempo real,  aquela que era considerada a melhor solução que  poderíamos encontrar é, por vezes, praticamente inalcançável. Da mesma forma, às vezes se comete o erro de supor que há, ou deve  haver, uma perspectiva única (melhor ou mais elevada) desde a qual avaliar a racionalidade ideal: a ser assim, sofreria interminantemente o “intérprete ideal” o problema demasiado humano de não ser capaz  de recordar e processar certas considerações cruciais quando estas seriam as mais reveladoras e efetivas para resolver um caso concreto de forma “ótima”. De certo modo, a assunção consciente dessa perspectiva evitaria, em muitos casos, a erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do sujeito-intérprete. Suponhamos que prefiro A a B sempre e em qualquer caso. Mas o  contexto no que me movo – meu conjunto exterior de oportunidades – é tal que A ( no caso, a “solução ótima”) é praticamente impossível, mas B, ao contrário, é de fácil acesso.A teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma auto-imagem positiva), como um dos mecanismos psicológicos adaptativos, prediz, então (sob determinados supostos), que, a partir desse momento, se desencadear-se-ão processos em minha mente que acabarão por me fazer preferir B a A, sem que intervenha nele decisão consciente alguma de minha parte. A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência, e esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabarei por me adaptar a meu contexto de um modo “espontâneo”, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente, isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas. Bem distinto é o caso em que o contexto no qual me desenvolvo frustra meus desejos (de primeira ordem) de A, mas tenho uma segunda ordem de preferências que me aconselha preferir (prioritariamente)  B a A quando A não é acessível, ou melhor ainda, que me aconselha conformar-me com o disponível em cada momento e suprimir ou extinguir os desejos impossíveis. As constrições exteriores não haveriam conseguido mudar – heteronomamente – meus gostos, mas eu me adaptaria igualmente bem a elas, e de um modo perfeitamente consciente do processo psíquico seguido. Ora, no caso da adaptação (ou busca de consistência) pela primeira via, se dariam provavelmente efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental (sentimentos mais ou menos difusos  de frustração, acaso pequenas – ou grandes, segundo a importância atribuída a A – atitudes neuróticas,etc.); é mais improvável que isso ocorrera no segundo caso e, se ocorresse, ao menos estaria consciente a respeito do acontecido. Tal é a diferença entre ter uma conduta aparentemente virtuosa e outra plena e conscientemente permeada pela virtude, ou seja, entre adaptar-se – buscando a coerência  de pensamento e comportamento – por dissonância cognitiva e remodelar o conjunto interior de oportunidade, entre abandonar à deriva nossas preferências e possuir umas metapreferências (que atendem a todas as razões) que governam serenamente nosso trato com o mundo exterior ( pondo sob controle as preferências de primeira ordem – que obedecem, certamente, a razões, mas não a  todas as razões ) . Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências.

[8] A este propósito, Arthur Kaufmann (1999) cita as seguintes palavras, demasiadas humanas, de Antoine de Saint-Exuperie (desafortunadamente sem referência de fonte): “Eu creio que virá o dia em que um homem enfermo se ponha em mãos do físico e do informático. Estes não lhe perguntarão nada, somente lhe tomarão sangue, deduzirão algumas constantes, multiplicarão umas com outras e depois de haver consultado sua calculadora, curarão o paciente com uma só  pílula. E sem embargo, quando eu enferme, me dirigirei ao meu médico rural. Ele me mirará com o canto do olho, comprovará  o pulso e estômago, me auscultará, se frotará a barba e me sorrirá, para mitigar a dor. Se compreende: me entusiasma a ciência, mas não me entusiasma menos a sabedoria”. Um computador não poderá jamais ser um juiz sábio, porquanto ele carece de sentimento do direito.

[9] A hermenêutica indaga o comprender jurídico no contexto de seu “descobrimento”, não no sentido da motivação: considera a jurisprudência, sobretudo no âmbito de sua atividade dedicada a encontrar as premissas para a decisão do caso concreto. Se fosse absolutizada, quer dizer, transformada em método total do pensamento jurídico, recairia na mesma automaticidade que justamente reprocha à metodologia silogística tradicional, acabando assim por cambiar a descrição em prescrição (Zaccaria, 1984; Viola e Zaccaria, 1999).


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ:  Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

MARLY FERNANDEZ:  Doutora em Filosofía Moral (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana)

ÆPara a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

 

 

DANOS MORAIS POR AGRESSÃO À EX-ESPOSAEx-marido agressor terá que indenizar

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DECISÃO:  *TJ-MG  –  Um professor de Belo Horizonte terá que indenizar sua ex-esposa em R$ 4 mil, por danos morais, por tê-la agredido fisicamente. A decisão foi da 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ele deverá ainda ressarcir os gastos que ela teve com o tratamento das lesões sofridas.

Segundo os autos, a mulher era casada com o professor desde julho de 1993 e teve um filho com ele. Ela alega que, com o passar do tempo, o marido passou a agredi-la verbalmente. Além disso, ele saía de casa durante a noite e telefonava para a mulher durante toda a madrugada, mencionando pontos diversos da cidade e impedindo-a de dormir.

A esposa alega ainda que o professor passou a simular suicídio. Ele deixava caixas vazias de comprimidos ao lado da cama e dormia, fazendo-a acreditar que tinha tomado doses excessivas de remédios. Também fechava portas e janelas, deixava mensagens de despedida pela casa e ligava a torneira do gás. Tudo isso passou a ser feito depois que a esposa descobriu que o marido a traía com outras mulheres.

O casal, então, se separou em janeiro de 2001 e o professor saiu do apartamento da família para morar na casa dos pais. No dia 4 de agosto daquele ano, ela foi agredida pelo ex-marido com um forte soco no olho esquerdo. O pretexto para a agressão foi a tentativa de fazer a mulher concordar com a venda do apartamento do casal, que ainda estava sob hipoteca.

Na ação ajuizada, a mulher alegou ter sofrido abalo emocional, que desencadeou uma série de enfermidades, como estado depressivo, um tumor vaginal e um distúrbio renal agudo, obrigando-a a se submeter a uma cirurgia. Alegou ainda que sofreu danos materiais com a compra de remédios e que teve de assumir sozinha várias despesas, como plano de saúde, alimentação e vestuário, e por isso deveria ser indenizada por danos morais e materiais.

Em sua defesa, o agressor alegou que o hematoma no rosto da mulher foi em decorrência de um tombo dentro de casa e que ela tinha crises, nas quais tentava se matar tomando remédios, arrancava os próprios cabelos e batia a cabeça na parede. Alegou ainda que o tumor vaginal da mulher já existia há muito tempo, desde o nascimento do filho do casal e que deixou depositado na conta bancária o valor de R$ 18 mil para a quitação do apartamento.

A sentença da juíza Sônia Marlene Rocha Duarte condenou o professor ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 4 mil, além de ressarcir à sua ex-esposa o valor gasto por ela com o tratamento a laser das lesões no olho. Inconformado, ele recorreu, mas os desembargadores José Affonso da Costa Cortes (relator) e Wagner Wilson mantiveram a decisão. O desembargador Bitencourt Marcondes entendeu que a indenização deveria ser de R$ 8 mil e foi vencido.

Eles entenderam que o professor, além de causar o sofrimento íntimo à ex-esposa, causou-lhe também sofrimento físico, com violação à sua integridade física. Em seu voto, o relator destacou ainda que a mulher somente comprovou os prejuízos materiais com o tratamento da lesão sofrida com a agressão. 

FONTE:  TJ-MG,  24 de junho de 2008


PENHORA ON LINETRT-SP: Não cabe penhora “on line” para quitar parcela previdenciária

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DECISÃO:  *TRT-SP  – O convênio Bacen-Jud permite o bloqueio judicial como fórmula de propiciar ao trabalhador que necessitou se socorrer do Poder Judiciário para fazer valer seus direitos. Porém é inadmissível a penhora "on line" para quitação de parcela previdenciária.

Com esse entendimento da Desembargadora Federal do Trabalho Sônia Aparecida Gindro, os Desembargadores da 10ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP) negaram provimento de recurso/agravo (o recurso cabível também foi apreciado no voto) de terceiro interessado.

As partes tinham celebrado um acordo em primeira instância. Ante o inadimplemento parcial do acordo, deu-se início à execução do saldo remanescente, com determinação de bloqueio "on line" de contas correntes das reclamadas, vindo as partes a celebrarem um segundo acordo. Homologado o segundo acordo, determinou-se à reclamada a comprovação dos recolhimentos previdenciários, sob pena de execução. Manifestou-se a Autarquia Previdenciária, apresentando os cálculos devidos a título de contribuições previdenciárias, requerendo a penhora "on line" dos ativos financeiros da empresa. O pedido foi de plano rejeitado, contra o que agravou de petição a Autarquia.

Segundo a Desembargadora Sônia Aparecida Gindro, a penhora "on line" em benefício daquele que já aguarda há tempos para receber seus créditos, até mesmo em detrimento dos empregados atuais das empresas e que mensalmente têm acumulados créditos de igual natureza, deve ser utilizado nos estritos termos em que foi instituído, destinando-se tão-somente aos devedores trabalhistas, no que diz respeito a execução dos créditos dos trabalhadores."

Em seu voto, a Desembargadora ressaltou que: "Cabe afirmar que o acordo judicial homologado é sentença irrecorrível, ato que em sua origem é trânsito em julgado, sobre ele descabendo qualquer tipo de recurso, restando tão-somente a via da ação rescisória para sua anulação, com base no art. 1030 do Código Civil Brasileiro (Enunciado 259 do C. TST) e 485 do Código de Processual Civil."

"Não há como se estender essa medida à execução de crédito de terceiro – no caso, o Instituto, que embora tenha sua intervenção admitida para resguardar o crédito previdenciário, não pode ser considerado parte no processo trabalhista e nem detém em seu benefício crédito da mesma natureza daquele destinado ao reclamante, de natureza alimentar."

Concluindo, a Relatora acrescentou que "o permissivo atinente ao bloqueio das contas da reclamada (…), além de desviar o efetivo escopo da instituição do Convênio Bacen Jud, estar-se-ia colocando em risco até mesmo o pagamento dos demais empregados, como se disse, ou seja, aqueles que atualmente prestam seus serviços à empresa reclamada, procedimento inadmissível, considerando-se a natureza superprivilegiada do crédito trabalhista, preferencial inclusive ao crédito tributário…"

Dessa forma, os Desembargadores Federais da 10ª Turma decidiram negar provimento ao recurso interposto.

O acórdão dos Desembargadores Federais do Trabalho da 10ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP) foi publicado em 16/05/2008, sob o nº Ac.20080355484.   Processo nº TRT-SP 01550.2002.037.02.00-1. 

 


 

FONTE:  TRT-SP,  24 de junho de 2008

 

DANOS MORAIS POR VIOLAÇÃO À INTIMIDADEViolação à intimidade por câmeras de vídeo gera indenização por danos morais

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DECISÃO: *TRT-MG  –    A 2ª Turma do TRT-MG, com base no voto do relator, juiz convocado Vicente de Paula Maciel Júnior, negou provimento a recurso ordinário de um laboratório condenado ao pagamento de indenização por danos morais a empregado, vítima de pressão psicológica e violação de sua intimidade, em razão da instalação de duas câmeras de vídeo no vestiário dos empregados da empresa. 

Em sua defesa, o laboratório alegou que as câmeras de vídeo foram instaladas direcionadas para os escaninhos, a pedido dos próprios empregados, com o objetivo de evitar arrombamentos, que vinham ocorrendo com freqüência. No mais, as fitas eram rebobinadas automaticamente, regravando sobre a filmagem anterior, e, apenas na eventualidade de alguma queixa de furto, é que o seu conteúdo seria verificado. Alegou, ainda, que, embora lhe tenha sido aplicada pena de confissão, não existe no processo nenhuma prova de culpa ou dolo seu, ou mesmo do dano sofrido, tampouco de que os empregados eram filmados enquanto trocavam de roupa.

Mas para o relator, a conduta do empregador configura abuso de direito, com afronta ao direito constitucionalmente assegurado à intimidade, pois ficou claro que ultrapassou os limites do razoável, causando constrangimentos ao reclamante. O fato de as imagens serem ou não vistas, e ainda que as câmeras não filmassem os empregados trocando de roupa, não retira a ilicitude do ato, nem diminui a intimidação sofrida pelo reclamante.

“É natural que a empresa se preocupe com a preservação do seu patrimônio e de seus funcionários. Todavia, não se pode admitir que o zelo ao patrimônio se sobreponha aos direitos e garantias fundamentais assegurados ao trabalhador. Assim, a instalação de câmeras de vídeo dentro do sanitário é suficiente à comprovação do dano, retratado neste caso em concreto, no constrangimento e na intimidação dos usuários do sanitário. Estando a conduta danosa sobejamente demonstrada deve ser reparada na medida necessáriai” – conclui.

Ressalta o juiz que a violação à intimidade do trabalhador, por si só, assegura-lhe o direito à indenização, a teor do inciso X do art. 5º da CF/88, sendo dispensável a comprovação do prejuízo.

Assim, estando a conduta danosa demonstrada no caso e levando em conta o caráter pedagógico da punição para a empresa e o justo ressarcimento para o empregado, a Turma manteve a indenização por danos morais em favor do reclamante, fixada pela sentença em R$5.000,00.  (RO nº 00962-2007-024-03-00-7 ) 


 

FONTE:  TRT,  23 de junho de 2008