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CRÔNICA: Quem vota no feio…

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* Elias Mattar Assad

Maravilhosa a campanha da Justiça Eleitoral que objetiva alertar o eleitor na escolha dos candidatos e as duras penas para o descuido. Pelo que conheço da alma do nosso povo, duvido um pouco da sua eficácia.

Aquele que vota, salvo raras exceções, é movido por razões e fenômenos não regidos pela lógica racional. Os influxos afetivos, místicos e coletivos acabam se impondo no momento da escolha. No primeiro caso ninguém deixaria de votar em alguém da família ou próximo, compadre, mesmo no cantor que entoa algumas canções de sua predileção (ou por pedidos destes).

No segundo, igualmente, o padre, pastor, o amigo de crença ou a benzedeira. No terceiro, o eleitor deixará de votar no candidato apoiado por seu clube recreativo, associação (dos polacos, negros, amarelos,etc), sindicatos, escolas ou da torcida organizada de determinado time?

A Associação dos Magistrados quando se lançou na luta pelo impedimento dos "fichas-sujas", tentou inverter essa prática consuetudiária, de origem imemorial, da escolha pelo agrado e não pelo perfil do candidato. Nesta ótica, podem mil juízes em coro dizerem que determinado candidato não é bom que ele, com discursos que integrarão o anedotário nacional, facilmente será eleito!

Nosso modelo democrático, como qualquer outro, reflete a vontade popular! A campanha supõe corretamente que fraude, dolo, simulação, coação e erro figuram como elementos que viciam atos jurídicos em geral. Votar, um ato humano como qualquer outro, estará sujeito aos mesmos problemas… Porém, ao sistema determinar a mistura e o nivelamento de "joio e trigo" nos minguados horários eleitorais, onde o candidato, por bom ou ruim que seja, por bem ou mal intencionado que esteja, pode, em 15 segundos, validamente se apresentar e passar alguma mensagem aproveitável para o perfeito julgamento do eleitor?

As autoridades responsáveis pelos processos eleitorais, continuam minimizando fatores capazes de viciar impunemente quaisquer pleitos, que são os eleitores corruptos, corrompidos e seus mercenários intermediários. Misteriosamente intacto o relevantíssimo tema das condutas daqueles que vendem seus votos em troca de valores, favores ou dos que aceitam tais propostas, em meio a nossos folclóricos mercadores denominados "cabos eleitorais", que leiloam seus apoios e garantem aos candidatos que angariam um número x de votos. Curiosamente, tais imoralidades sempre restam impunes quando mais perniciosas que as condutas dos políticos "compradores".

Como deduzido pelo sistema reinante, o eleitor brasileiro parece realmente com aquela mulher "louca das pernas" retratada na campanha. Precisamos, desesperadamente, enfrentar e resolver quinhentos e tantos anos de problemas acumulados. Gostemos ou não, "quem vota no feio, bonito lhe parece…"

Não é de perder o sono?


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

Elias Mattar Assad: é presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.
www.abrac.adv.br

Valores e princípios constitucionais: a dignidade humana

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*Atahualpa Fernandez e Manuella Maria Fernandez

O ordenamento jurídico abarca uma multiplicidade de subsistemas legais que recebem da Constituição os critérios de validade jurídica, já não mais determinada exclusivamente pela legitimação do órgão produtor da norma e em função da correção no procedimento, senão que integrada necessariamente pela adequação material, a legitimidade substancial e a correção moral das normas que compõem esses subsistemas com o texto constitucional.

A consideração da Constituição como norma jurídica dotada de força normativa – norma invocável em juízo pelos cidadãos e não somente organizadora dos poderes superiores do Estado – fez com que, de pronto, o quadro dos direitos fundamentais, dos princípios e valores formulados pela norma constitucional deixassem de ser meros enunciados finalistas (que somente e quando os assumisse o legislador passariam a ter alguma eficácia e na medida em que o próprio legislador livremente assim o quisesse) e passassem a ser diretamente operativos, sem necessidade da intermediação legal e ainda por encima da própria intermediação, quando existente. Por outro lado, a superioridade normativa da Constituição, com todo o seu sistema de princípios e de valores, marca os limites e as condições de possibilidade da interpretação de todas as demais normas e estabelece para todos os níveis da ordem jurídica a obrigação de interpretar “de acordo” com as regras, princípios e valores que estabelece – os quais, diga-se de passo, costumam ser invocados com uma alta carga emotiva e cuja interpretação apresenta sempre uma maior complexidade , dá lugar a maiores disputas, que a das demais normas (entendida a expressão em seu sentido mais amplo) do resto do ordenamento jurídico.

A distinção entre as espécies de norma jurídica (gênero) já está deveras consolidada. E embora não se trate de oferecer aqui uma teoria acerca das regras, valores e princípios jurídicos, bastará por notar que, segundo Alexy (1997), os princípios são mandatos de otimização, que pertencem ao âmbito deontológico, enquanto que os valores estão incluídos em uma dimensão axiológica: o que no modelo dos valores é o melhor, no modelo dos princípios, é o devido. Para o que aqui nos interessa, os princípios, à diferança das regras, apenas nos proporcionam critérios para tomar posição ante situações concretas que a priori aparecem indeterminadas. Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio ou de discenso e repulsa a tudo o que pode estar implicado em sua salvaguarda em cada caso concreto.

E uma vez que carecem de “suposto de fato”, aos princípios, em maior grau do que sucede com as regras, somente se lhes pode atribuir algum significado operativo fazendo-lhes “reacionar” ante algum caso concreto; ou seja, de forma muito mais acentuada que as regras, seu significado não pode determinar-se em abstrato, senão somente nos casos concretos, e somente nos casos concretos se pode entender seu alcance (Zagrebelsky, 1995). Em resumo, aos “princípios” falta a determinabilidade dos casos de aplicação e apresentam uma dimensão que as “regras” não têm: uma dimensão de peso ou importância, que se revela a propósito do seu modo específico de colisão. Ademais disso, os “princípios” não são hierarquizáveis em abstrato, conseguindo cada um a prevalência face ao outro à luz das razões determinantes do caso concreto ou de determinado círculo (hermenêutico) problemático.

Pois bem, é precisamente com normas dessa natureza ( com princípios) que se inaugura a Constituição da República. Mais que uma mera justaposição de normas, trata-se de um conjunto normativo dotado, ainda que tendencialmente, de unidade e coerência entre seus preceitos ao responder a determinados valores e princípios comuns ordenadores ( basicamente os discriminados nos artigos 1º. ao 5º do texto constitucional) que, por sua vez, constituem as normas basilares de sua parte dogmática ou substantiva e expressam a ordem valorativa que há de presidir todo o ordenamento jurídico na organização, manutenção e controle dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social.

Há, assim, uma evidente conexão sistemática entre princípios e normas constitucionais e infra-constitucionais, pois não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade, justiça, igualdade e pluralismo jurídico, e estes valores, por sua vez, seriam indignos se não redundassem em favor da dignidade humana. Isto quer dizer que os princípios fundantes da ordem constitucional proclamam um valor humano na medida em que concreta os valores que devem presidir a interpretação e aplicação de todas as demais normas contidas no ordenamento jurídico, inclusive as próprias normas constitucionais.

Estes critérios inspiradores do sistema jurídico constituem a base inteira e o fundamento do próprio ordenamento, o qual há de prestar a estes princípios seu sentido próprio em todo e qualquer processo de sua realização prático-concreta. Já não se trata de proclamações enfáticas e retóricas reduzidas a princípios programáticos sem nenhum valor normativo, senão de autênticas normas jurídicas, que representam os ideais de uma comunidade e que não esgotam sua virtualidade em seu estrito conteúdo normativo: constituem parâmetros condicionantes e vinculantes para a interpretação e aplicação do direito e, ao mesmo tempo, um limite para o próprio ordenamento jurídico.

E como princípio, também o conceito de dignidade humana não se esgota em uma mera funcionalidade constitucional, porque a idéia da livre constituição e pleno desenvolvimento do indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna) caracteriza-se por ser um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível que, junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei e aos direitos dos demais, configuram o fundamento último da ordem política e da paz social. A dignidade da pessoa humana não é, portanto, mais uma idéia valorativa ( o melhor) dentro do esquema constitucional, senão que expressa um dos fundamentos da ordem estabelecida. A sua colocação na Constituição como princípio normativo fundante (o devido) dota-o de um significado especialmente relevante: como princípio constitucional fundamental, inviolável e indisponível e, como tal, como critério axiológico, normativo , vinculante e irrenunciável da práxis jurídico-interpretativa.

Mas, em que consiste este princípio fundamental ? Qual o fundamento que subjaz à idéia da dignidade humana? Qual a relação entre dignidade, liberdade e autonomia? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Ou, já que estamos, continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana, que pretenda ser digno de crédito na atualidade, desvinculado ou que não esteja sustentado em um modelo darwiniano sensato acerca da naturaleza humana?

Não parece que seja assim.A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma – portanto, digna -, é coisa muito mais complexa, processual e de grau que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade enquanto valor constitucional fundante. E como a caracterização da dignidade humana ao largo do tempo é uma empresa filosófica particularmente árdua , que já derramou rios de tinta durante os últimos anos – e seguramente nos levaria a derrocar outro tanto- , limitaremo-nos a dizer aqui que temos bons motivos para supor no essencial correta a afirmação de que não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da dignidade está estritamente vinculada com a noção de natureza humana, a qual, por sua vez, é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio.

Trata-se de uma postura que tende a conceber a dignidade como um epifenômeno da própria natureza humana, a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva ( relacional, co-existencial ) da dignidade, fundada na natureza humana, é de suma transcendência para calibrar o sentido e o alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro. De fato, nunca é demasiado insistir que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade.

E este é, precisamente, o ponto central a partir do qual se deve estabelecer o debate entre a tendência naturalista da melhor ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito que, não obstante, insistem em sustentar que é possível entender a dignidade humana sem qualquer consideração mais séria à parte que corresponde à natureza humana e, dessa forma, em não admitir a continuidade entre o reino animal e o mundo humano, entre o universo da natureza e o da cultura, isto é, essa parte de animalidade que há em nós e que toda uma tradição religiosa e filosófica pretendeu (e continua pretendendo) ocultar. Em resumo, deixando de falar do que realmente importa e que tanto gosta de ocultar-se sob o manto perverso de eufemismos e abstrações. O real é sempre mais importante que os devaneios, as idiossincrasias e as ficções filosóficas: somos o resultado de uma mescla entre o biológico (a soma de mutações, recombinações e seleção natural pelo que o Homo sapiens se distingue das espécies de que descende) e o cultural (pelo que se acrescenta outros traços diferentes aos puramente biológicos: regras, moral, linguagem, cultura, civilização…). E nenhuma referência à dignidade humana pode silenciar estas raízes.

O problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito (ainda predominantes) é o de que trabalham muitas vezes como se os humanos só tivessem cultura, uma variedade significativa e nenhuma história evolutiva. No âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se desconsidera – a devida atenção à evolução da natureza humana e à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte dos instintos e predisposições que permitem criar e explorar os vínculos sociais relacionais que parecem estar arraigados na complexa estrutura da mente humana (Fiske, 1993) e que, desde uma perspectiva intersubjetiva da dignidade, a caracterizam e condicionam a sua constituição. Não há que estranhar-se, pois, que o processo de caracterização da dignidade humana seja um dos mais problemáticos e contestados publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. E uma vez que tanto o direito como a ética carecem das bases de conhecimento verificável da natureza humana necessários para obter uma definição mais precisa de dignidade e juízos justos baseados nelas, necessitamos, para compor seu conteúdo, tratar de descobrir como podemos ou devemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana.

Aliás, neste particular, um dos problemas mais comuns é o de insistir e tentar assegurar uma concepção de dignidade humana que reside, em última instância, em “algo” determinado (ou vinculado de forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável “natureza” considerada sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade oferecida por um corpo de normas constitucionais. E não somente isso. Os operadores do direito, quando abordam o estudo da dignidade humana, têm o costume de falar de diversos tipos de explicações: sociológicas, antropológicas, normativas, axiológicas e outras, apropriadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento, quer dizer, sem sequer considerarem a (real) possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão da dignidade na sua projeção normativa, fática e axiológica.

Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade unindo os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais credível da emergência da dignidade humana devidamente sustentada em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana – que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.

E não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição de uma das duas formas de abordar o problema da dignidade humana supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido do discurso prático ético-jurídico-político1.

Me explico: os teóricos do direito parecem estar, na atualidade, submetidos a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista, anti-científica e anti-racionalista, e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo, um sociologismo, um jusnaturalismo substancial ontológico e/ou pelo modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais: enquanto os pós-modernos fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas ("tudo é texto" e truanices parecidas), os outros, os "científicos", os “filósofos dos direitos humanos” fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com freqüência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência respeito da realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria com traços de seriedade e coerência acerca da dignidade humana. Enfim, por uma completa falta de precisão relativa a adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.

É nessa paisagem cognitivamente hostil à realidade que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu sistema de crenças, um tipo de resistência construída durante anos de adoutrinamento universitário. Não há dúvida de que a sabedoria herdada é assombrosa, fascinante e inteligente. Mas está baseada principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. Ao longo da história humana, vários foram os autores que elaboraram teorias morais e jurídicas, interpretações e histórias sobre o que significa ser humano, sobre o que significa existir e sobre como devemos viver. Tudo isso forma parte de nosso rico passado.

Não obstante, a crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas – perfeitas para conseguir livros de “grandes sucessos” – são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. O que realmente resulta insólito é que se siga questionando a existência da natureza humana, quando os novos dados proporcionam bases científicas e históricas para fundamentar novos modos de entender a natureza e nosso passado evolutivo. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e manifestações inatas e inevitáveis em muitas e diversas situações. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. E hoje sabemos que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Somos animais éticos. O resto das histórias acerca de nossas origens, de nossa natureza e de nossa dignidade não são mais que isso: histórias que consolam, enganam e até motivam, mas histórias ao fim e ao cabo.

Essa a razão pela qual defendemos a idéia de que já é chegada a hora de voltar a definir o que é um ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a dignidade humana ou simplesmente de aceitar que os humanos são muito mais do que um mero produto de fatores sócio-culturais. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta – e dada a resistência a aceitar que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação -, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações acerca da dignidade humana que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, continuamos atrapados. Afinal, as idéias que soem prosperar são as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

O problema é que vivemos sempre graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura. Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos. A natureza do homem e, conseqüentemente, todas as suas ações, sejam ou não conscientes, é o resultado combinado de uma mescla complicadíssima de genes e neurônios e de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa igualmente complicada vida sócio-cultural. Uma complexa interação de dois processos diferentes: um processo biológico de hominização e um processo histórico de humanização2.

A existência secular e o intercâmbio recíproco com nossos congêneres produzem indivíduos. É com o outro e por meio do outro que o indivíduo se constitui: o reconhecimento do outro implica o reconhecimento do “eu”. A capacidade para autointerpretar-nos está direta e indissociavelmente vinculada à aquisição da capacidade para interpretar os outros, para “ler” suas mentes, para entendê-los, e para entender-nos a nós mesmos, como seres intencionais: é inata a nossa necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição, já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Marcados por uma incompletude constitutiva da espécie, devemos ao outro nossa própria existência, individualidade e dignidade. Em verdade, é somente no trato de uns com outros quando temos que pensar, sentir, recordar, calcular e sopesar as coisas, ou seja, em que a percepção de ser digno de algo flui com maior naturalidade.

A própria idéia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana3 – não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Daí a razão pela qual E. Levinas – para quem a ética é a philosophia prima – adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro4. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autonomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial.

Por certo que se não nos criamos completamente a nós mesmos, tem que haver algo em nós do qual não somos causa. Mas o problema central com respeito a nosso interesse pela liberdade e dignidade humana não é se os acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e dignidade, não é a independência causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. (Frankfurt, 2004). O sujeito autônomo, entanto que sujeito livre, não se encontra subposto nem superposto ao – nem por debaixo nem por encima do – sujeito de carne e osso ( genes, mente e cérebro) que somos cada um e nem requer, para salvar a liberdade e a dignidade, estritamente um “agente moral autônomo” como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos/evolutivos. Ser fiel à natureza não é, portanto, recusar em seu nome a liberdade ( elemento constitutivo da dignidade e que é um efeito da natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue contra a natureza que a produz e a contém.

Em resumo, a natureza humana se plasma em um cérebro plástico e complexo, que coordena e controla a conduta do indivíduo em função da informação que recebe do entorno, orientando-se tanto por seus próprios sentimentos e preferências congênitas como pelas normas culturais adquiridas. Todos estes fatores restringem, mas não pré-fixam em todos os seus detalhes, o que vamos fazer ou a forma como vamos comportar-nos; tão pouco determinam nossa capacidade para resitir à interferência arbitrária dos demais em nossos planos de vida. Nisso consiste nossa liberdade e que a evolução por seleção natural também pode explicar5. Longe de ser um princípio separado ou oposto à nossa natureza, é precisamente nossa natureza a que determina a construção de um cérebro plástico geneticamente programado para a liberdade (Mosterín, 2006). Somos livres, nesse sentido, não apesar da natureza, mas graças a ela.

Desde esta perspectiva, o interesse humano pela verdadeira dignidade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da liberdade humana, em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do reconhecimento do “outro” como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária, em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pela dignidade do “outro” o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre livre e igual. Com efeito, a responsabilidade para com o próximo, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, da liberdade e da dignidade humana.

Mas há algo mais: a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada.

De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provoca secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele ( Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade). O fundamento do direito, já vimos, não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.

Dito de outro modo, a idéia de dignidade humana adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Somente por esta via será possível compreender o princípio da dignidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como um elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da dignidade humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual modelo constitucional.

Ademais, uma idéia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito alicerçado e sustentado, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar a constituição, coesão e manutenção dos vínculos sociais relacionais para os quais estamos desenhados a estabelecer6 e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas e/ou metafísicas senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral de respeito recíproco e universal.

Não há, pois, direito que não seja outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo – que implica ter em conta as necessidades, desejos e direitos dos demais – destina-se a prover as bases mínimas de uma vida boa e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, precisamente, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar sob a assunção implícita de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

Por conseguinte, parece ser que o melhor caminho para explicar, entender e aplicar o princípio da dignidade é o da compreensão da natureza humana, ou seja, da idéia do homem em sua tríplice configuração: a) o homem em sua existência individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito) ; b) como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e c) como sujeito de vínculos sociais relacionais elementares através dos quais constrói, a partir das reações do outro, os estilos aprovados de uma vida sócio-comunitária digna de ser vivida em sua plenitude (ou seja, como titular de direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como cidadão).

Mas não apenas isso. O homem surge também como in-divíduo, como entidade autônoma e separada, como titular de direitos que habilitam publicamente sua existência – seguramente o aspecto mais significativo do momento atual de seu processo evolutivo –, e cujo sentido só é possível alcançar por meio da consideração de duas questões fundamentais: a) a primeira, que não se pode esperar explorar os caminhos da explicação social ou da avaliação jurídico-política do princípio da dignidade humana sem ter uma visão de conjunto das pessoas e da sociedade, isto é, sem ter um desenho indicativo da natureza dos indivíduos e das diferenças ( não indefinidas e ilimitadas, registre-se) que os estímulos provenientes da vida social provoca neles ; e b) a segunda, é que tampouco se pode ter uma visão global das pessoas e da sociedade se não adotamos um desenho da constituição cognitiva humana, um desenho do que é estar psicologicamente equipado como seres humanos.

Trata-se, simplesmente, de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de estimular a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver com o outro de forma livre e digna: o modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo da dignidade humana, do homem como causa, princípio e fim do direito e, consequentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.

Estabelecer conceitos e preceitos normativos que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É muito provável, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação acerca do princípio da dignidade humana que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana. Nesse sentido, o certo é que, a menos que aceitemos que os seres humanos estão somente um pouco por debaixo dos anjos, um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana deve subjacer a qualquer teoria jurídica que, na atualidade, pretenda dispor de uma visão mais realista do lugar que ocupamos na natureza, empiricamente contrastada. Depois de tudo, a dignidade humana encontra-se entre os princípios mais poderosos estipulados pelo texto constitucional, e precisamos entendê-la melhor se quisermos tomar decisões jurídico-políticas bem informadas, coerentes e razoáveis.

E embora haja riscos e desconfortos envolvidos, nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional de investigar cientificamente determinados fenômenos éticos e jurídicos7, de modo a compreender como e por que este princípio inspira tal devoção, e descobrir como deveríamos aperfeiçoá-lo a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana. O objetivo, recorda Chomsky (2006), deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça; isto significa criar uma teoria social humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e firme da essência humana, ou da natureza humana, quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, a dignidade, a criatividade e outras características humanas fundamentais, e uma noção de estrutura social donde estas propriedades possam realizar-se e a vida humana adquira um sentido pleno8.

Por outro lado, a promoção de uma cultura fundada na exaltação da dignidade humana e do respeito pelo próximo somente será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma postura que permita – ademais de estar sustentada por uma concepção empiricamente contrastável de natureza humana e de situar no humano um valor incondicional- entender , justificar e lutar por uma cultura de liberdade, de igualdade e de fraterna solidariedade. Isto é, da necessidade não somente de lutar por nossos direitos , mas também de assumir responsavelmente nossos deveres , de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo como um fim em si mesmo, de um ardente desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por uma efetiva e legítima realização da justiça ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda e qualquer forma de injustiça.

Assim entendida, a primazia hermenêutica que joga o princípio da “dignidade humana” como critério fundante dos demais valores e princípios contidos na Constituição da República se converte desta maneira em garantia levantada pelo constituinte frente a um perigoso positivismo – com base no qual, diga-se de passo, o Poder Judiciário, maculado por um conservadorismo que ainda o impregna, por vezes é levado a elaborar decisões que implicam ( em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social ) no sacrificio de direitos de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres. Para evitá-lo, este sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana, impõe que as normas, tanto constitucionais como de outra ordem, sejam interpretadas de forma que não colisionem com os valores e princípios superiores, mas, pelo contrário, promovam sua efetiva realização.

E isto implica, em última instância, que se tome em consideração a iniludível circunstância de que a própria atividade jurídica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao operador jurídico representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos vivem das representações e significados que são processados em suas estruturas cerebrais, desenhados para estabelecer determinados vínculos sociais relacionais dos quais emerge a idéia de dignidade humana.

Depois, não se trata somente de que a Constituição reconheça explicitamente a dignidade humana como princípio fundamental. Mais importante ainda é a circunstância de que, além desse simples reconhecimento, seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito como um poderoso instrumento de construção social e para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões, ante a dinâmica fluída e contingente do entorno sócio-cultural em que se plasma a constituição psico-ético-histórica da dignidade humana. Desta maneira, cumpre também uma função evolutiva e dinâmica, permitindo assim a adaptação de seus preceitos à realidades sociais cambiantes.

Mas isso somente será possível se assumimos o compromisso de ligar de forma prioritária a concepção de dignidade humana às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade9. As três virtudes que configuram a noção de justiça somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.

Estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da norma constitucional depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esta perspectiva da dignidade humana em leis, estratégias (sociais, econômicas e políticas) e decisões jurídicas dirigidas a formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum. O mesmo é dizer que não se pode falar em dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições de vida, com liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, no contexto de um conjunto normativo prenhado de valores e princípios, instituído ao redor do imperativo ético que assegura, de forma prioritária, combater o sofrimento e a miséria humana e deixar a vida, na medida do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente10.

Mas se nada disso for suficiente, talvez não seja nenhum exagero recordar que há poucas coisas mais perigosas que a certeza jurídica endogâmica.

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Notas de rodapé e referência

1 Segundo Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por exemplo, se tomo minha filha como uma pessoa “corrupta” e “caída”, incapaz de ter bons desejos e de se comportar de acordo com estes, seguramente serei um pai aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante e desnaturadamente repressor ( e com este caráter desenharei as micronormas que regerão este tipo de relação familiar); ao contrário, se parto da premissa de que minha filha é capaz de eleger seus desejos, de aspirar por si mesma ao bem, de se automodelar e de se comportar segundo essa aspiração, seguramente serei um pai muito mais confiante, tolerante e infinitamente menos vigilante (e as micronormas que regerão essa relação terão um caráter de todo distinto das anteriores). Quando passamos de fatos específicos de indivíduos a generalizações acerca de grupos de indivíduos, a assunção de uma das premissas acima referidas passa a fazer uma abissal diferença quando do desenho do conjunto normativo que regulará as relações jurídicas (nas quais subjazem os vínculos sociais relacionais) entabuladas pelo homem no percurso de sua existência. (Atahualpa Fernandez, 2007).

2 Esses dois processos existem evidentemente. Não obstante, compartimos da idéia de que a hominização é primeira: a humanização, sem ser um simples resultado (os indivíduos também têm seu papel, com o que isso supõe de contingência e criatividade), depende dela. De início, e embora o aparecimento da humanidade à vista e o conhecimento da história tenha devolvido às trevas a animalidade que lhe precedeu, é afinal a natureza humana unificada e fundamentada na herança o que faz a diferença. Dito de outro modo, cada indivíduo humano tem sua própria natureza individual, que é uma variedade particular da natureza humana. A natureza individual, determinada pelo próprio genoma, inclui tanto as características standard da espécie humana como os traços individuais próprios, induzidos pelos alelos que hão caído em sorte ao indivíduo. Essa natureza está constituída pelos traços permanentes do indivíduo e não muda ao longo de sua vida. De todos modos, não há que confundir a natureza individual com o indivíduo mesmo. O organismo individual é o fenótipo concreto, resultante tanto de sua natureza individual, inscrita em seu genoma, como de seu desenvolvimento embrionário, de sua educação, de sua cultura, de suas interações sociais, das enfermidades e experiências que teve e, em definitivo, da história completa de sua vida. O que somos em um momento dado não somente depende de nossa natureza, senão também de nossa biografia até esse momento. Ademais, o cérebro conserva sempre certa plasticidade, e suas experiências influem em sua conformação: por exemplo, cada vez que aprendemos algo, nosso cérebro muda. Estas diferenças são a base da personalidade. Sem embargo, ainda que tenhamos certa margem de manobra para inventar e construir nossa vida em sentido biográfico, nossa natureza nos vem imposta, dada, herdada de nossos ancestrais. Daí que resulta impossível falar de dignidade, liberdade ou autonomia com um mínimo de rigor sem aludir à natureza humana (Mosterín,2006).

3 Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, digna, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do “indivíduo” para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou “instrumento animado” , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo – aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e “moderno”, mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( “vocais” ou “animados”). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual uma das partes se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão direitos constitutivos do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres e autônomos. Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos molestam as interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos aqui mencionados. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa – para seguirmos no exemplo dado- , não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como “não interferência arbitrária”, ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Esta restrição legal ( como não interferência arbitrária e própria da liberdade republicana) característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.

4 E não é apenas o fato de que “todos nós precisarmos” do outro; trabalhos recentes mostram que precisamos interagir com os outros; precisamos dar e receber; precisamos pertencer ( Baumeister e Leary, 1995; Brown et. al., 2003; Habermas, 2006 e 1996). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. John Donne também tinha razão: precisamos dos outros para nos completar. Somos uma espécie ultra-social, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros, ainda que o apego e os relacionamentos possam provocar-nos dor. Como disse um personagem de Sartre: “O inferno são os outros”. Mas o paraíso também. (Haidt, 2006; Atahualpa Fernandez, 2007). Enfim, nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros : a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a – e se vê afetada por – os demais seres humanos .

5 “Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante esta perspectiva acabou por distorcionar a investigação científica e filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os perigos dos novos descobrimentos sobre nós mesmos apresentaram uma imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações de nosso novo conhecimento sobre nossas origens servirá de fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que os mitos aos que está chamada a substituir” (Dennett,2003). Afinal, de que liberdade dispõe uma criança violada e golpeada que por sua vez será verdugo no dia de amanhã? De que liberdade desfruta um indivíduo que ganha um salário mínimo mensal para sobreviver?Todo o paradoxo da liberdade do homem está aí.

6 Para uma maior exploração do significado empírico de que a arquiterura cognitiva de nossas mentes seja constitutivamente social, isto é, de que nossos vínculos sociais relacionais parecem estar arraigados na complexa estrutura da mente humana, cfr. Fiske, 1993 e Atahualpa Fernandez, 2007. Já para uma nálise acerca dos respectivos aspectos positivos e negativos dos quatro modelos de vínculos sociais relacionais propostos por Fiske, sua iniludível vinculação com o problema da relação jurídica e, consequentemente, com a função do direito nesse contexto, cfr. Atahualpa Fernandez, 2006 e 2007.

7 Aos que crêem que não existem princípios objetivos do direito costumam acusar de “cientificismo” a quem os buscam. Mas seguindo a aguda observação de Dennett (1995), cabe sustentar que não é “cientificismo” pretender conceder objetividade e precisão ao conhecimento, do mesmo modo que não é adoração da história conceber que Napoleão durante um tempo dominou a França e que o Holocausto sucedeu realmente; aqueles que temem os fatos tratarão sempre de desacreditar aos que os encontram. Do diálogo, pois, entre ciência e humanidades, deverá provir um entendimento mais profundo acerca de quem somos, de nossas intuições e emoções morais, de nossas condutas e dos artefatos sócio-culturais que criamos. (Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, 2008).

8 De fato, continua Chomsky, a concepção do entendimento humano como uma tabula rasa é um poderoso instrumento em mãos do totalitarismo: se as pessoas são em realidade seres maleáveis, infinitamente adaptáveis e acomodados , sem nenhuma essencial natureza psicológica, então, por que não hão de ser controlados e coagidos por aqueles que se arrogam autoridade, conhecimentos especiais e uma clarividência única sobre o que mais convém aos que são menos esclarecidos? Felizmente, ficou provado que existe, nas palavras de Lionel Trilling, “um resíduo de qualidade humana que escapa do controle cultural”.

9 Desde suas primeiras formulações a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular sentido, tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner, 1995). Mas, como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições (Dworkin,1989).

10 Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer (1999): “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzí-la (…) isso, creio eu, consiste a esquerda (…) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”. Note-se que o abandono desta atitude (deveras republicana), novamente, aparece vinculado – segundo Sandel (1982) – ao afã liberal de defesa da neutralidade e da liberdade negativa: o Estado neutral-liberal não aceita por sob escrutínio o valor dos distintos interesses em jogo. Todos eles, em princípio, contam como interesses aceitáveis sujeitos ao comércio político. Autores como Cass Sunstein, contudo, mostram a possibilidade certa de estender, de fato, firmes pontes entre o liberalismo igualitário e o republicanismo. Sunstein, por exemplo, defende uma versão liberal do republicanismo, que caracteriza com quatro notas centrais: a importância dada à deliberação política, a igualdade dos atores políticos (que incorpora “um desejo de eliminar as agudas disparidades que existem para a participação política ou a influência entre indivíduos e grupos sociais”), a noção de acordo coletivo com ideal regulativo e um compromisso com a noção de cidadania, expressado na ampla garantia de direitos de participação política (Atahualpa Fernandez, 2007). Para uma brillante análise acerca do sofrimento humano, ver Ehrman, 2008.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Atahualpa Fernandez: Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

Manuella Maria Fernandez:  Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

O consumidor e as cirurgias plásticas.

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Arthur Rollo

Notícias recentes deram conta da infecção de pacientes por superbactéria, após serem submetidos a cirurgias plásticas. Segundo o apurado até o momento, a infecção decorreu de problemas na esterilização dos instrumentos cirúrgicos, que podem ter decorrido dos próprios equipamentos ou do procedimento incorreto adotado quando da sua higienização.

O resultado dessa infecção é grave e custoso, obrigando os infectados a adquirir medicamentos caríssimos por um longo período de tempo. Quem paga essa conta?

A relação cirurgião plástico/ paciente é de consumo mas os cirurgiões só responderão pelo resultado não atingido nos casos de cirurgias estéticas. Nas cirurgias denominadas reparadoras, que visam a reconstrução nos casos de acidentes ou doenças, por exemplo, a responsabilidade dos cirurgiões só acontecerá quando verificada a culpa na sua atuação.

Vale dizer, é plenamente possível invocar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para responsabilizar cirurgiões plásticos, notadamente naqueles casos em que eles se comprometem com o resultado.

Hoje, muitas clínicas utilizam-se de programas de computador para simular como o paciente ficará mais magro, como a paciente ficará com o implante de silicone, após a plástica no nariz, etc.. Essa simulação configura oferta nos termos do art. 30 do Código de Defesa do Consumidor, o que significa que, no caso de descumprimento, o consumidor poderá exigir a reexecução do serviço sem custo adicional, o abatimento proporcional do preço ou mesmo, em casos mais extremos, a restituição imediata da quantia paga acrescida das perdas e danos.

Nos casos noticiados da microbactéria estamos diante de acidente de consumo na prestação do serviço. Pouco importa que a causa seja nova ou inédita, na medida em que cabe ao cirurgião e à sua equipe esterilizar adequadamente os equipamentos.

A esterilização é etapa essencial de qualquer procedimento cirúrgico, sendo que falhas na sua execução configuram culpa na atuação profissional e ensejam a responsabilização, tanto nas cirurgias estéticas como nas reparadoras.

Provar que houve falha nesse procedimento é tarefa árdua ao consumidor leigo. Por isso, se o juiz assim determinar, essa prova deverá ser feita pelo cirurgião que, pelo conhecimento que possui, tem maior facilidade.

Se o problema aconteceu com os equipamentos, persistirá a responsabilidade do cirurgião, na medida em que a ele cabe escolher adequadamente o instrumental que utiliza, devendo igualmente conhecer a vida útil de cada instrumento cirúrgico. Se o fornecedor dos materiais não prestou informações adequadas ao cirurgião, caberá a este, após indenizar seus pacientes, buscar ressarcimento das despesas perante o fabricante ou importador dos instrumentos cirúrgicos.

O consumidor terá direito à indenização pelos danos materiais, neles compreendidas as despesas com medicamentos, médicos, hospitais, etc., necessários ao tratamento da infecção, bem como aquilo que presumivelmente deixou de ganhar, ou seja, pelo que deixou de receber por ter ficado incapacitado temporariamente para o trabalho. Será devida, ainda, indenização pelos danos morais já que, segundo as reportagens deram conta, o tratamento da enfermidade compreende dolorosas injeções diárias que, por óbvio, causam transtornos na vida dos pacientes, que não podem ser entendidos como meros aborrecimentos.

Existe hoje uma busca indiscriminada por cirurgias plásticas. Tanto é assim que proliferam-se os planos de parcelamento de cirurgias oferecidos por clínicas de credibilidade e eficiência duvidosas. A melhor medida de proteção dos consumidores sempre é a prevenção, ou seja, a busca por uma clínica idônea tendo em conta sempre que qualquer cirurgia, por menor que seja, implica em risco à saúde. Justamente por isso a relação custo/ benefício deve ser criteriosamente analisada, a fim de evitar cirurgias desnecessárias.

Diante de problemas verificados nas cirurgias, em princípio, poderão ser responsabilizados os cirurgiões e as clínicas nos termos do Código de Defesa do Consumidor, notadamente nos casos de imprudência e negligência.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Arthur Rollo é advogado, mestre e doutorando em direito pela PUC/SP. 

EQUIPARAÇÃO DE FUNÇÕESEmpregados de financeira são enquadrados como bancários

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DECISÃO:  * TRT-MG  –  Decisão da 8ª Turma do TRT-MG manteve enquadramento dos empregados da Losango Promoções de Vendas Ltda. como bancários, por entender que esta é, de fato, instituição financeira que substitui o Banco HSBC, seu sócio majoritário, nas operações de crédito e financiamento, usando recursos financeiros desse banco. 

A decisão se assenta no artigo 17 da Lei 4.595/64, que equipara às instituições financeiras as pessoas jurídicas que exerçam atividades ligadas a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, conjugado com a cláusula 25 do Contrato Social da reclamada, a qual define, como seu objeto social, a recepção e encaminhamento de pedidos de empréstimos e de financiamentos, o controle das operações pactuadas, além da administração de cartões e recebimento de pagamentos e faturas em geral. 

Como esclarece a desembargadora Cleube de Freitas Pereira, relatora do recurso interposto pela Losango, os empregados da ré exercem atividades tipicamente bancárias, ligadas às do Banco HSBC, já que efetuam o cadastro dos clientes que desejam obter financiamento, aprovando-o ou não. “Ora, a concessão de empréstimos pessoais é uma atividade típica de instituição financeira, não se olvidando que a ré também disponibiliza cartão de crédito com bandeira própria” – pontua.

A relatora acrescenta que o fato de não haver autorização do Banco Central para o funcionamento da reclamada como instituição financeira não impede o seu enquadramento como tal, já que foi usado o artifício de contratação de empresa para o desenvolvimento de atividades tipicamente bancárias, justamente, com o intuito de fraudar a legislação. “Aliás, o caso nem é de contratação de empresa interposta, já que o Banco HSBC é acionista majoritário da recorrente” – completa.

Assim, a conclusão da Turma foi de que o enquadramento dos empregados da Losango no sindicato das empresas de assessoramento, perícias, informações e pesquisas é inadequado, mantendo o enquadramento da reclamada na categoria de instituição financeira e o recolhimento da contribuição sindical em prol do sindicato autor, ligado à categoria dos bancários.  (RO nº 00074-2008-059-03-00-9)


FONTE:  TRT-MG,  29 de agosto de 2008.

 

 

INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ É AUTORIZADAAutorizada interrupção de gravidez por anencefalia

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DECISÃO:  * TJ_RS  –  A 3ª Câmara Criminal autorizou a interrupção de gravidez por solicitação da gestante, concordância do pai e indicação médica. Atestado de médico e laudo a partir de ecografia constataram anencefalia – “diagnóstico incompatível com a vida fora do útero”. 

O pedido foi feito quando o feto apresentava 28 semanas de desenvolvimento. A mãe tem 39 anos de idade e é porto-alegrense, residente na Vila Ipiranga.

Em 1º Grau, foi negada a solicitação de interrupção da gravidez por “impossibilidade jurídica”.  Em recurso ao Tribunal, a autora argumentou não haver vida juridicamente tutelada.

Para o relator do recurso, Desembargador José Antonio Hirt Preiss, há uma enorme lacuna no texto do art. 128 do Código Penal. Concluindo tratar-se de causa de exclusão da culpabilidade e não de tipo penal criminalizador – “o que seria inadmissível em Direito Penal” -, entende que a lacuna pode ser suprida pela analogia ou justificada “pela inexigibilidade de conduta diversa no pleito da gestante”.

Ao votar, o magistrado cita bibliografia médica que esclarece que os anencéfalos não sobrevivem fora do útero, excepcionalmente atingem de dois a três dias. Também refere artigo de André Petry na última edição da Revista Veja sobre o assunto. Na esfera penal, o magistrado reproduz fundamentos de Guilherme de Souza Nucci (Aborto por indicação eugênica, Código Penal Comentado, 5ª edição), que sintetiza:

“O fato de o feto ser monstruoso, possuir graves anomalias físicas ou mentais, não é, por si só, motivo para autorizar o aborto, desde que haja viabilidade para a vida extra-uterina, embora possa sê-lo quando a vida for praticamente artificial, sem qualquer possibilidade de se manter a partir do momento em que deixar o ventre da mãe.”

O Desembargador Newton Brasil de Leão, que presidiu a sessão de julgamento, e a Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos acompanharam as conclusões do voto do relator. O julgamento ocorreu nessa quinta-feira, 28/8.


FONTE:  TJ-RS,  29 de agosto de 2008.

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIAInadimplência gera entrega do automóvel

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DECISÃO:  * TJ-RN  –  Com base no decreto Lei º 911/69 que dispõe não haver direito a restituição de valores pagos em contrato de alienação fiduciária, a 3ª Câmara Cível negou pedido de restituição de valores pagos, em um financiamento de automóvel. 

O autor ingressou com ação pedindo a devolução dos valores pagos pelo financiamento, usando como fundamento o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece ser nulas as cláusulas que determinem a perda total das prestações pagas em caso de inadimplemento.

Entretanto, o contrato de alienação fiduciária possui características próprias, na qual estabelece a entrega do bem, sem qualquer ônus, no caso de descumprimento das cláusulas. O que aconteceu nesse caso, havendo inadimplência a partir da 8ª parcela.

Portanto, as parcelas pagas pelo devedor, correspondem a contraprestação pelo período em que desfrutou do bem. Não podendo caracterizar o dever de restituir os valores pagos, sob pena de enriquecimento ilícito em benefício do devedor e prejuízo financeiro a instituição, diante da desvalorização do automóvel. Nesse mesmo sentido vem julgando o Superior Tribunal de Justiça, por tratar-se de norma específica, o decreto Lei 911/69):

Alienação fiduciária. Decreto-lei nº 911/69. Código de Defesa do Consumidor

O comando do art. 53, por outro lado, que faz alcançar as alienações fiduciárias, refere-se a cláusulas contratuais sobre a perda das prestações, que são nulas de pleno direito. Mas, aqui não se cuida de cláusula contratual, e, sim, de regra jurídica impondo que, nos casos abrangidos pela lei, lei, portanto, especial, a purgação só será admitida se quitado o percentual indicado. Isso não viola direito algum do consumidor, não sendo razoável concluir pela revogação de uma lei por violar a "mens legis" de lei posterior, o que, claramente, não existe no direito positivo brasileiro, por conta da Lei de Introdução ao Código Civil. REsp 129732 / RJ RECURSO ESPECIAL 1997/0029487-0/ Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO /DJ 03.05.1999 p. 143 RDTJRJ vol. 41 p. 85.

 


FONTE:  TJ-RN,  29 de agosto de 2008.

ERRO DE LABORATÓRIO GERA INDENIZAÇÃO

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DECISÃO:  *  TJ-MG  –  Um laboratório localizado no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, irá indenizar uma secretária em R$ 5 mil por ter errado o resultado do exame de gravidez dela. A decisão é da 11ª Câmara Cível do TJMG, que manteve sentença de 1ª Instância.

Após sentir-se mal, em fevereiro de 2001, a secretária S.G.R., moradora da Capital, foi a um médico, o qual pediu um exame de endoscopia digestiva. Por cautela, o médico pediu também um exame de sangue para verificar a possibilidade de gravidez, pois, se a paciente estivesse grávida, a endoscopia poderia prejudicar o bebê. O exame, feito em um laboratório de Belo Horizonte, constatou que ela não estava grávida.

No entanto, no mês seguinte, quando ia realizar o exame de endoscopia, S.G.R. foi advertida pela médica de que não poderia prosseguir, pois estava grávida e a endoscopia poderia provocar um aborto. Ela fez então um ultra-som, por meio do qual descobriu que já estava com quatro meses de gestação.

Na ação ajuizada contra o laboratório, a secretária alegou que teve problemas no relacionamento com o namorado por causa da negativa seguida por confirmação da gravidez, pois ele pensou que ela tivesse omitido o resultado do primeiro exame por medo de que ele terminasse o namoro. Afirmou também que sua família duvidou de sua credibilidade, pensando que ela havia tentado esconder a gravidez, e que ficou falada na vizinhança. A secretária alegou ainda que, se não fosse a médica, poderia ter perdido o bebê ao fazer o exame de endoscopia.

O juiz da 1ª Vara Cível da comarca de Belo Horizonte, Jeferson Maria, condenou o laboratório a pagar à secretária R$ 5 mil de indenização por danos morais. O laboratório recorreu, alegando que o ato ilícito e o dano alegados não foram comprovados. S.G.R. também recorreu, pedindo majoração do valor da indenização por danos morais.

A relatora dos recursos, desembargadora Selma Marques, entendeu existir o dano moral, tendo em vista que na folha do resultado do exame de gravidez não constava a informação essencial sobre a margem de erro, nem a possibilidade de ocorrência de “falso positivo” ou “falso negativo”.

“Há situações em que, realmente, não é possível passar à paciente um resultado totalmente seguro, como ocorre, normalmente, nas primeiras semanas de gravidez”, escreveu, em seu voto, a relatora. “No entanto, diante de situações de incerteza, é dever do laboratório alertar a mulher, para que, se for o caso, repita o exame e se mantenha em condição de alerta”, concluiu. A desembargadora manteve também o valor da indenização em R$ 5 mil, mantendo inalterada a sentença de 1ª Instância. Votaram de acordo com a relatora os desembargadores Fernando Caldeira Brant e Afrânio Vilela.  Processo: 1.0024.04.449506-7/001


FONTE:  TJ-MG, 29 de agosto de 2008.

OMISSÃO DE SOCORROMédico plantonista é condenado por omissão que resultou morte de feto

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DECISÃO:  * TJ-RS  –  Em decisão unânime, a 3ª Câmara Criminal do TJRS confirmou a condenação de João Antônio de Souza Leal, médico plantonista, por omissão no pronto e adequado atendimento à gestante em trabalho de parto, causando-lhe o aborto. Conforme o Colegiado, por duas vezes, o réu foi chamado a comparecer no Hospital de Caridade de Taquara para atender a paciente que apresentava fortes dores e rompimento da bolsa contendo o líquido amniótico.

O Colegiado arbitrou em dois anos a pena do réu, que deverá prestar serviços à comunidade. Também pagará seis salários mínimos em favor da vítima. João Antônio de Souza Leal foi denunciado e condenado por lesão corporal da qual resultou o aborto.

A relatora do apelo do réu, Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, salientou que houve omissão do médico no atendimento da paciente, a quem inclusive acompanhou no pré-natal e sabia que já havia abortado uma vez. Informou que somente na troca de plantão, já decorridas seis horas da baixa hospitalar, examinou a vítima sem relatar a ocorrência de hemorragia e ausência de batimentos cardíacos do feto.

O aborto foi constatado  por outro médico que assumiu o plantão posteriormente, atestando como causa da morte parada cardíaca e sofrimento fetal agudo.

Conforme a magistrada, o plantonista tinha o dever de prestar atendimento à gestante prestes a dar a luz e tinha plena consciência de seu dever. Lembrou que a auxiliar de enfermagem o chamou por telefone e mesmo assim não prestou o atendimento imediato para evitar a morte do feto.

Conduta omissiva

A Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos ressaltou que a responsabilidade criminal do médico, como regra, é dos meios usados e não do resultado. “Ou seja, é responsável pelo resultado nefasto, se não dispensou todos os cuidados possíveis ao paciente ou não usou os conhecimento e usos da ciência disponíveis ou não executou os procedimentos adequados para o melhor resultado.”

O médico age com culpa quando erra diagnóstico, realiza atendimento deficiente ou utiliza técnica e procedimentos inadequados. “Mas, excepcionalmente pode praticar conduta omissiva agravada pelo resultado que se insere entre os dolosos”, frisou a relatora. “O agente que tinha o dever de agir não deu causa ao resultado com sua ação, mas com a inação, daí nasce sua responsabilidade criminal não prescindindo do elemento subjetivo: dolo ou culpa.”

Plantões

À época do fato, em 2002, os plantões não eram feito no Hospital de Caridade de Taquara, mas por monitoramento telefônico. Os atendentes e enfermeiros comunicavam a entrada do paciente, registravam seus sinais vitais e informavam ao médico que compareceria se entendesse necessário.

No caso do processo, na primeira chamada, a atendente relatou ao médico plantonista que a gestante estava com um dedo de dilatação, sentia fortes dores e estava muito ansiosa. Ele orientou fosse ministrado Buscopan e soro glicosado à paciente. Entretanto, a medicação não foi ministrada porque os auxiliares de enfermagem necessitam da prescrição escrita.

No segundo contato telefônico com o acusado, a enfermeira reiterou preocupação com a paciente que sentia muita dor. Mesmo assim, o réu somente se dirigiu ao hospital no horário de encerramento do seu plantão, quando examinou a gestante, ocultando a gravidade da situação. Outro colega prestou socorro, realizando cesárea de emergência para retirada do feto morto.

Votaram de acordo com a relatora, os Desembargadores Newton Brasil de Leão e José Antônio Hirt Preiss.  Proc. 70025470378


FONTE:

  TJ-RS,  29 de agosto de 2008.

TELEFONE CLONADOIndenização por cobrança de faturas de aparelho clonado

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DECISÃO:  *TJ-SC  –  A 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça confirmou sentença da Comarca de Itajaí que condenou a empresa Vivo S/A ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil à Elizete Miranda.

Segundo os autos, Elizete foi vítima de clonagem de seu celular, o que lhe causou inúmeros transtornos. Ao constatar o fato, avisou a operadora e argumentou que os valores cobrados não haviam sido utilizados por ela.

A Vivo investigou o problema, mas, não anulou as contas realizadas pelo celular clonado. Condenada em 1º Grau, a operadora telefônica apelou ao TJ. Sustentou que, após detectar o problema, solucionou-o administrativamente – restituiu os valores indevidamente faturados e trocou o aparelho celular da vítima. Por último, afirmou que eventos como esse são imprevisíveis e inevitáveis.

“A clonagem por si só não gera dano, pois, além de não ser possível evitá-la, a empresa não dispõe de meios tecnológicos para tanto. Porém, na hipótese de reclamação de clonagem, deve a demandada suspender a cobrança dos valores apontados como indevidos, o que de fato não ocorreu”, afirmou o relator do processo, desembargador substituto Ronaldo Moritz Martins da Silva. A decisão da Câmara foi unânime. (Apelação Cível n.º 2008.025740-7) 

FONTE:  TJ-SC,  28 de agosto de 2008.


Tutelas de urgência, cognição sumária e a (im)possibilidade de formação da coisa julgada

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* Vinícius José Corrêa Gonçalves

RESUMO: As tutelas de urgência desempenham um relevante papel na máxima efetivação dos direitos materiais (instrumentalidade do processo). Tais espécies de tutela jurisdicional são baseadas em cognição sumária que, ao menos em princípio, não permitem a formação da auctoritas rei iudicatae. Contudo, há controvérsia doutrinária e acadêmica sobre a (im)possibilidade de surgimento da coisa julgada material nas tutelas de urgência. O presente texto busca explicitar as principais contendas sobre o assunto e, mediante a utilização de algumas linhas hermenêuticas (principalmente a teleológica e a sistêmica), dentro de seus limites, fundamentar teoricamente a (im)possibilidade de formação da res judicata nas tutelas de urgência.

PALAVRAS-CHAVES: Processo Civil; Tutelas de Urgência; Cognição Judicial; Coisa Julgada.

ABSTRACT: The urgent guardianships perform a relevant role in full effective of substancial rights (process implement). Such species of jurisdictional guardianship are based on summary cognition that, at first least, don´t permit the auctoritas rei iudicatae formation. There is a doctrinery and academic controversy about res judicata appearing (im)possibility in the urgent guardianships, though. This text tries to clear the main quarrels about the subject and, through the use of some hermeneutic lines (teleologic and the systemic mainly), inside its limits, justify theoretically the res judicata formation (im)possibility in the urgent guardianships.

KEYWORDS: Civil Procedure; Urgent Guardianships; Judicial Cognition; Res Judicata.

 

INTRODUÇÃO

O sistema processual civil brasileiro resguarda, dentre os diversos valores que o permeiam, a segurança jurídica, cujo paradigma máximo é representado pela coisa julgada material. Dessa forma, determinados fatores produzem a demora da efetivação, no plano empírico, da entrega do bem jurídico em conflito (objeto da demanda), tais como a obediência irrestrita ao princípio do exaurimento do contraditório para possibilitar-se a amplitude da defesa, a busca da verdade ou certeza por meio da prova para que, efetivamente, o processo seja o instrumento da pacificação social, dentre outros.

Todavia, determinadas situações fáticas não comportam a utilização da cognição plena e exauriente, típica do procedimento comum, porquanto requerem uma tutela sumária urgente, no menor lapso temporal possível. A morosidade da tutela tradicional e o desenvolvimento das relações em sociedade geraram novas necessidades que, por conseguinte, propiciaram criação de instrumentos processuais aptos a fornecer uma resposta rápida e diligente por parte do Estado-juiz, em razão da situação de fato posta em juízo.

Nesse contexto, a cognição sumária constitui uma importantíssima técnica processual para a concepção de um processo que tenha plena aderência à realidade sócio-jurídica a que se destina, cumprindo sua primordial função de servir de instrumento à efetiva realização dos direitos materiais.

As tutelas baseadas em cognição sumária, portanto, surgiram exatamente para servirem de instrumentos para a realização dos direitos materiais que não podem esperar o tempo necessário para a cognição exauriente, pois nesta exige-se uma dilação probatória capaz de levar o magistrado a um conhecimento mais aprofundado sobre o processo. Assim, cognição judicial e o tempo do processo, fatores que guardam íntima relação com as peculiaridades da relação substancial, devem ser balanceados da melhor forma possível nessas espécies de tutela.

Dentre as tutelas baseadas em cognição sumária, merecem destaque as tutelas de urgência, quais sejam: as tutelas antecipatórias (ao menos a tutela antecipada concedida quando há risco de prejuízo irreparável, pois há aquelas que têm por causa o abuso de direito de defesa e a incontrovérsia, que não podem ser propriamente qualificadas como tutelas de urgência) e as tutelas cautelares.

Nas decisões fundadas em cognição sumária, dentre estas as proferidas nas ações que demandam tutelas de urgência, a regra é a não formação de coisa julgada substancial, pois a cognição sumária permite apenas a formação de juízos de probabilidade, ou seja, apenas possibilita ao magistrado proferir decisão com base na percepção da prevalência dos motivos convergentes do direito alegado pelo autor sobre os divergentes (dignos de serem levados em consideração).

As decisões baseadas em cognição sumária (menos aprofundada no plano vertical) têm por alicerce apenas a aparência, a probabilidade, e não a suposta existência do direito material pleiteado. Dessa forma, por não definirem com precisão a existência ou inexistência do direito, não têm, via de regra, aptidão para gerar coisa julgada material.

É praticamente pacífica, em âmbito doutrinário, a idéia de que as decisões fundadas em cognição sumária não são capazes, via de regra, de permitir a formação da coisa julgada material. Nessas espécies de decisão, sacrifica-se a certeza em favor da eficácia da tutela, mesmo que isso signifique o abandono de uma qualidade do provimento jurisdicional (conteúdo da sentença): sua indiscutibilidade em processos futuros (res judicata).

Contudo, há quem negue tais afirmações, apresentando pontualmente a possibilidade de formação de coisa julgada nessas modalidades de tutela. Eis o objeto principal do presente texto, que buscará explicitar as principais contendas acadêmicas e fundamentar teoricamente a (im)possibilidade de surgimento da auctoritas rei iudicatae nas tutelas de urgência.

1. TUTELAS DE URGÊNCIA: TUTELA CAUTELAR X TUTELA ANTECIPATÓRIA

A tutela antecipatória e a tutela cautelar, espécies do gênero tutela de urgência [01], apesar de apresentarem algumas características similares, não devem ser confundidas, pois são institutos com finalidades nitidamente diversas.

São características em comum às duas espécies de tutela em questão: a) ambas são espécies do gênero tutela de urgência (com a ressalva já feita no item retro, 2.3); b) tanto a tutela antecipatória quanto a tutela cautelar são baseadas na cognição sumária (cognição menos aprofundada no plano vertical de cognição), ou seja, só permitem ao magistrado a formação de juízos de probabilidade [02]; c) a revogabilidade, atributo que decorre da cognição sumária, também é uma característica comum nas tutelas de urgência e, segundo ela, uma vez verificado que o direito material afirmado pelo demandante, que parecia existir, não existe, a medida concedida em sede de ação cautelar ou de antecipação dos efeitos da tutela torna-se passível de revogação [03]; d) a modificabilidade é mais uma qualidade comum entre essas duas espécies de tutela jurisdicional, e consiste na possibilidade de modificação das medidas concedidas a qualquer tempo [04]; e) por serem baseadas em cognição sumária, em ambas deve ser demonstrado o fumus boni juris (fumaça do bom direito, ou seja, a demonstração da probabilidade de existência do direito); f) por fim, tanto na tutela cautelar quanto na tutela antecipatória do artigo 273, I, do Código de Processo Civil, deve ser demonstrado o periculum in mora (perigo na demora ou, em outras palavras, a iminência de dano irreparável ou de difícil reparação que gera perigo para a efetividade do processo).

Apesar de todas essas características em comum, a antecipação dos efeitos da tutela e a tutela cautelar são diferentes e, antes da análise sobre a possibilidade de formação da coisa julgada substancial em cada uma, é necessário pontuar a diferenças individualizadoras entre elas.

Antes da reforma do Código de Processo Civil de 1994, a tutela antecipatória e a tutela cautelar eram confundidas, haja vista que a antecipação dos efeitos da tutela era prestada por meio de ação cautelar (cautelar satisfativa). Utilizava-se o processo cautelar para a aquisição da tutela antecipatória, que satisfazia o direito material afirmado pelo autor. Tal prática foi rejeitada por grande parte da doutrina e da jurisprudência, uma vez que desvirtuava a verdadeira finalidade do processo cautelar. Em razão da técnica processual e da necessidade social, que clamava por um instrumento capaz de fornecer diligentemente o direito material alegado pelo autor em determinadas ocasiões (quando fosse provável a existência do direito e houvesse o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação), surge [05] a possibilidade de se antecipar os efeitos da tutela jurisdicional, parcial ou totalmente, em todo e qualquer processo de conhecimento, desde que atendidos os requisitos do artigo 273 do Código de Processo Civil.

Assim, o principal traço distintivo entre a tutela antecipatória e a tutela cautelar é, sem dúvida, o caráter satisfatório daquela e o não satisfatório desta. Com efeito, o provimento jurisdicional que concede uma medida cautelar não é capaz de realizar o direito substancial afirmado pelo demandante, mas somente se destina a assegurar que, no futuro, quando se chegar o momento da obtenção da satisfação de tal direito, estejam preservadas as condições necessárias para tanto. Isso porque a tutela jurisdicional concedida por meio de um processo cautelar tem a função de assegurar a efetividade de um outro provimento a ser produzido em outro processo, denominado principal. Ao contrário, a tutela antecipatória visa justamente antecipar os efeitos da tutela jurisdicional final de um processo de conhecimento, a fim de satisfazer antecipadamente o direito material do autor, que se encontra em uma das situações do artigo 273 do Código de Processo Civil. Assim, a tutela antecipatória é satisfativa de direitos e a tutela cautelar é não-satisfativa, esta combate as situações em que há risco para a efetividade de um processo, aquela pugna.

No dizer de José Roberto dos Santos BEDAQUE:

A cognição sumária, pois, pode ser utilizada tanto nos processos cautelares quanto naqueles em que se admite a tutela antecipatória, estes destinados a realizar a pretensão e não a conferir eficácia ao processo principal. Nas tutelas sumárias antecipatórias existe a satisfação do direito, enquanto nas cautelares apenas se assegura a viabilidade de sua realização, ou seja, a utilidade do processo principal. Naquelas, realiza-se o direito mediante cognição sumária, conferindo-se tutela; estas apenas asseguram a pretensão, garantindo a utilidade do provimento jurisdicional. [06]

As medidas cautelares, portanto, não visam à satisfação do direito material violado ou ameaçado (pois asseguram uma futura satisfação), daí por que não podem ser confundidas com as medidas antecipatórias, já que estas têm um caráter satisfativo no plano dos fatos (asseguram a satisfação do direito substancial). Assim sendo, a tutela cautelar visa garantir a efetividade de um provimento jurisdicional a ser produzido no processo principal (tutela jurisdicional mediata), ao passo que a tutela antecipatória objetiva resguardar o próprio direito material alegado (tutela jurisdicional imediata). Como dizem os doutrinadores: o que é cautelar não satisfaz, pois, caso contrário, estar-se-ia diante de uma contradictio in terminis.

Outra característica da medida cautelar que a distingue da tutela antecipatória é a instrumentalidade hipotética [07]. O processo, de uma forma geral, é instrumento de realização do direito material. O processo cautelar, que visa assegurar a efetividade de um outro processo (principal), é, portanto, instrumento do instrumento (instrumentalidade elevada ao quadrado). Cabe, pois, ao magistrado conceder a medida de cunho cautelar para a hipótese de, no processo principal, ser concedida a medida satisfativa do direito material [08]. Essa é a instrumentalidade hipotética.

Dessa característica da tutela cautelar decorre outra, que é a referibilidade. Isso significa que aquele que pede a tutela jurisdicional cautelar faz referência, obrigatoriamente, a um direito material ameaçado, ou seja, a um direito que deve ser acautelado. Assim, "se inexiste a possibilidade de referência a um outro direito, não há tutela cautelar; há satisfatividade" [09]. Segundo Alexandre Freitas CÂMARA:

(…) toda medida cautelar se refere a uma situação substancial, que se quer proteger. Esta referibilidade é dado indicativo da cautelaridade. Onde não há referibilidade, não há medida cautelar. Pense-se, por exemplo, nos alimentos provisórios, fixados no procedimento da ‘ação de alimentos’. O provimento que fixa os alimentos provisórios atende diretamente à pretensão substancial do demandante. Já as medidas cautelares não permitem esta realização imediata, limitando-se a assegurar o gozo futuro da situação substancial a que se referem. Esta referibilidade, pois, é marca que distingue a medida cautelar dos demais provimentos jurisdicionais. [10]

Por fim, pode-se apontar uma última diferença. Alguns doutrinadores apontam a temporariedade como característica comum entre as tutelas antecipatórias e cautelares [11]. Outros apontam a provisoriedade como fator comum entre elas [12]. Contudo, a melhor doutrina distingue esses dois conceitos e afirma que: a) provisório "é aquilo que se destina a existir até que venha a ser substituído por outra coisa, que será tida por definitiva" [13]; b) temporário, por sua vez, "é aquilo que tem duração limitada no tempo, ainda que não venha a ser, posteriormente, substituído por outra coisa" [14]. Fácil notar, desse modo, mais uma diferença entre a tutela cautelar e a tutela antecipatória. Aquela é temporária, pois tem duração limitada no tempo, produzindo efeitos até o desaparecimento da situação de perigo, ou até que seja prestada a tutela jurisdicional no processo principal; esta é provisória, já que se destina a produzir efeitos até a prestação da tutela jurisdicional definitiva, que a substitui.

Essas são as principais diferenças e similitudes existentes entre as tutelas antecipatórias e cautelares. Entretanto, há casos em que não é fácil distinguir, na prática forense, se a tutela a ser postulada é uma ou outra.

Tal distinção, na verdade, perdeu boa parte de sua importância, diante da adoção da fungibilidade entre as tutelas de urgência (artigo 273, § 7º, do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº 10.444/02: "Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado"). Atento às dificuldades que podem surgir na distinção em determinadas situações, entre tutela cautelar e antecipada, o legislador criou a fungibilidade entre elas, o que permite a concessão de uma por outra, sem que haja risco de a decisão ser considerada extra petita. Dessa forma, ao instituir a fungibilidade, a lei atribuiu ao magistrado a possibilidade de decidir, entre as duas espécies de tutela, aquela cuja concessão será mais apropriada.

Apesar da redução de importância dessa diferenciação, não se deve confundir essas duas espécies do gênero "tutela de urgência". Atribuir natureza cautelar à tutela do artigo 273, inserido no livro do processo de conhecimento, ou vice-versa, é tentar rejeitar algo que coloca o direito processual civil brasileiro em posição de destaque no cenário mundial.

2. INEXISTÊNCIA DE COISA JULGADA MATERIAL NAS TUTELAS ANTECIPATÓRIAS

No final de 1994, como observado, as pressões sociais por uma tutela jurisdicional adequada e a conseqüente utilização da ação cautelar inominada como técnica de sumarização do processo cognitivo levaram o legislador à introdução da técnica antecipatória no Código de Processo Civil (artigo 273, introduzido pela Lei n. 8.952/94). Antes da nova redação do artigo 273, já havia a possibilidade, em determinadas hipóteses previstas em lei, de concessão de tutela antecipatória (na ação de alimentos, por exemplo). Nelas, o magistrado concedia antes do momento oportuno, por meio de liminares, aquilo que era postulado pelo demandante. Concedia, pois, uma tutela de urgência satisfativa, e não cautelar. O que a nova redação do artigo 273 trouxe de novidade foi a possibilidade genérica de concessão de tutelas antecipatórias em todos os processos de conhecimento de cunho condenatório.

No procedimento comum de conhecimento há um grande conflito entre o direito à cognição adequada e definitiva (direito de defesa) e o direito à tempestividade da tutela jurisdicional. Para que o autor da ação não seja prejudicado pela demora do processo, deve existir, no interior desse procedimento comum de conhecimento, uma técnica processual que permita a antecipação dos efeitos do provável provimento final: a tutela antecipatória.

Essa espécie de tutela de urgência é própria do processo cognitivo e não pode ser concedida de ofício [15]. Não é admitida no processo de execução porque neste o titular do direito já tem meios suficientes para concretizá-lo (título executivo). Também não cabe a antecipação dos efeitos da tutela em processos cautelares, pois neles o que se busca é a proteção de um futuro provimento judicial. Ademais, o caráter satisfatório das antecipações de tutela é incompatível com a natureza das cautelares. Além disso, como assevera Ovídio BAPTISTA, tais provimentos serão invariavelmente de cunho condenatório, verbis:

(…) todos os provimentos antecipatórios terão invariavelmente natureza condenatória, pois reconhecendo a doutrina apenas as três classes (sic) ações e sentenças – declaratórias, constitutivas e condenatórias – e não constituindo a declaração, nem a constituição efeitos da sentença (ou da tutela) pretendida pelo autor, uma vez que estas eficácias formam o conteúdo do ato sentencial (cf. J. C. Barbosa Moreira, Direito Processual Civil – Ensaios e Pareceres, 1971, pp. 136 e segs.), restará como seu efeito, a cumprir a função que lhe reserva o art. 273, apenas a condenação. (…). [16]

A técnica da antecipação dos efeitos da tutela é, portanto, uma poderosa arma na luta pela efetividade do processo, que não é outra coisa senão a adequação do processo à sua função instrumental de realização do direito material. O magistrado, ao conceder ou não o pedido de antecipação formulado pelo autor, deve verificar se os requisitos previstos no artigo 273 e em seus incisos, ou num só deles, estão presentes na situação.

Pela análise do artigo retro citado, pode-se inferir que é possível a antecipação dos efeitos da tutela nas seguintes hipóteses [17]: a) quando houver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (artigos 273, I; 461, §3º, 461-A, todos do CPC, e artigo 84, §3º, do CDC – é a tutela de urgência sumária satisfativa); b) quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu (artigo 273, II, CPC); c) quando houver uma parcela incontroversa na demanda (artigo 273, §6º, CPC).

A tutela antecipatória, como já afirmado, tem por base a cognição sumária (juízos de probabilidade). O artigo 273 do Código de Processo Civil autoriza o magistrado, desde que presente uma razoável probabilidade do direito do autor, a conceder-lhe desde logo a tutela provisória (não temporária). Assim, elimina-se a espera pela instrução do processo [18] (cognição exauriente), oferecendo-se desde logo ao demandante a fruição do bem ou situação jurídica que veio pleitear em juízo.

Contudo, merece crítica o caput do artigo 273 do CPC, que diz: "O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação" (grifo nosso). Como é notório, há certa contradição no uso das expressões "prova inequívoca" e "verossimilhança". Por meio de uma interpretação sistemática-teleológica, chega-se a conclusão de que a lei exige do magistrado somente um exame acerca da probabilidade da existência do direito alegado, e não da certeza do mesmo. A "prova inequívoca" não é do direito, pois, se essa prova já existisse, seria o caso de julgamento antecipado da lide. Por "prova inequívoca" deve-se entender, então, o fumus boni juris [19] exigido nessa espécie de tutela jurisdicional, capaz de levar o magistrado a formação de um juízo de probabilidade. Aliás, apenas a título de reforço, somente o fumus boni juris é requisito necessário para todas as formas de antecipação dos efeitos da tutela (o periculum in mora só é necessário na hipótese do artigo 273, I, CPC, que Luiz Rodrigues WAMBIER denomina de "tutela antecipatória mista" [20], em contraposição à "tutela antecipatória pura" [21] [artigo 273, II, do CPC]).

É irrefutável que a tutela antecipatória tem por base a cognição sumária, devendo o magistrado certificar-se somente sobre a probabilidade da existência do direito afirmado pelo autor. No entanto, seria possível a formação de coisa julgada material sobre essa espécie de provimento judicial? A doutrina é praticamente unânime em afirmar que inexiste possibilidade de formação da res judicata sobre o provimento que antecipa os efeitos da tutela. Todavia, há quem afirme essa possibilidade nos casos de admissão parcial da pretensão do demandante por parte do réu (com fulcro nos artigos 273, II, e 273, §6º, ambos do CPC). Segundo Nelson NERY JÚNIOR:

Havendo a admissão parcial da pretensão pelo réu, quando, por exemplo, o autor pede 200 e o réu admite a dívida mas diz que o valor é de 100, na verdade há parte da pretensão sobre a qual não houve controvérsia. Nada obsta que o autor peça o adiantamento da parte incontrovertida, sob a forma de tutela antecipatória, como, aliás, vem previsto no art. 186bis do Código de Processo Civil italiano, introduzido pela reforma que ocorreu naquele país em 1990. Essa decisão, que só pode ser proferida a requerimento da parte, vale como título executivo e conserva sua eficácia, ainda que o processo seja extinto sem julgamento do mérito. Entendemos aplicável ao sistema processual brasileiro o mesmo procedimento, pois do contrário haveria abuso do direito de defesa do réu, que não contesta os 100 mas nada faz para pagá-los, postergando o processo para a discussão dos outros 100 que entende não serem devidos. Assim, pode o juiz, a requerimento do autor, antecipar os efeitos executivos da parte não contestada da pretensão do autor, com fundamento no CPC 273 II. (…)

Nada obstante a decisão que adianta os efeitos da parte não contestada da pretensão que tenha alguns dos atributos de decisão acobertada pela coisa julgada material parcial e, conseqüentemente, de título executivo judicial, reveste-se do caráter da provisoriedade. Não há óbice no seu enquadramento dentro da sistemática do processo civil brasileiro, ainda que no meio processual para alcancá-la seja o do instituto da tutela antecipada do CPC 273. Falamos em meio processual porque, na essência, ontologicamente, essa situação seria equiparável ao reconhecimento jurídico parcial do pedido, que entre nós enseja a extinção do processo com julgamento do mérito, em favor do autor (CPC 269 II), ou seja, o nosso direito já contém guarida para a pretensão do autor quando ocorre a admissão parcial do pedido condenatório. [22]

Não é considerado acertado esse posicionamento, pois, primeiramente, ao afirmar a possibilidade de formação da coisa julgada substancial sobre o provimento que concede a antecipação dos efeitos da tutela, estar-se-ia negando, conseqüentemente, duas importantes características da tutela antecipatória, quais sejam: sua revogabilidade e sua modificabilidade (artigo 273, §4º, do CPC). Tal argumento, por si só, já refutaria o posicionamento do doutrinador citado. Em segundo lugar, como já analisado (capítulo II, item 1.3), para que seja possível a formação da auctoritas rei iudicatae é necessário a anterior formação da coisa julgada formal, que é pressuposto lógico daquela. Como só transita em julgado formalmente a sentença (lato sensu) não mais sujeita a recursos, inexistindo sentença ou se esta ainda estiver sujeita a recursos, inexiste coisa julgada formal e, logicamente, não se forma coisa julgada material. Ademais, como afirmam MARINONI e ARENHART:

(…) para que possa ocorrer coisa julgada material, é necessário que a sentença seja capaz de declarar a existência ou não de um direito. Se o juiz não tem condições de ‘declarar’ a existência ou não de um direito (em razão de não ter sido concedida às partes ampla oportunidade de alegação e produção de prova), o seu juízo – que na verdade formará uma ‘declaração sumária’ – não terá força suficiente para gerar a imutabilidade típica da coisa julgada. Se o juiz não tem condições de conhecer os fatos adequadamente (com cognição exauriente) para fazer incidir sobre estes uma norma jurídica, não é possível a imunização da decisão judicial, derivada da coisa julgada material. [23]

Dessa maneira, pelas razões apontadas, não se deve admitir a possibilidade de formação de coisa julgada substancial sobre o provimento que antecipa os efeitos da tutela jurisdicional final.

A decisão interlocutória que antecipa os efeitos da tutela pleiteada é provisória (vide item 2.3.1), baseada em cognição sumária, e passível de ser posteriormente confirmada ou infirmada pelo juiz. Caso a sentença proferida na ação cognitiva em que foi concedida a tutela antecipatória confirme tal antecipação, e uma vez transitada em julgado a sentença, os efeitos antecipados se estabilizam, todavia tal estabilidade não decorrerá da decisão que concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, mas sim da sentença que concedeu, em definitivo, a tutela pleiteada [24].

Apesar de não possuir aptidão para a formação da coisa julgada material, a tutela antecipatória é instrumento indispensável à mecânica do direito processual civil, pois é mecanismo que atua em prol do direito fundamental à prestação jurisdicional eficaz, contribuindo, conseqüentemente, para a efetiva realização da Justiça.

3. AUSÊNCIA, EM REGRA, DE COISA JULGADA SUBSTANCIAL NO PROCESSO CAUTELAR

O processo cautelar é instrumento por meio do qual se presta uma espécie de tutela jurisdicional de urgência consistente em assegurar a efetividade de um provimento judicial a ser produzido em outro processo (principal). Trata-se, portanto, de ferramenta destinada a preservar a incolumidade dos direitos ou de algum interesse legítimo, ante uma situação emergencial que os coloque em posição de perigo iminente de periclitação. Esse é o posicionamento dominante na doutrina, fiel aos ensinamentos de Piero Calamandrei.

De uma forma mais ampla, a tutela cautelar visa suprir as deficiências do processo ordinário, que, via de regra, possui uma longa duração. No dizer do doutrinador alemão Fritz BAUR, as partes "procuram no procedimento da medida cautelar uma decisão rápida, já que, com razão, lhes cabe argüir que um processo ordinário demasiadamente moroso pode levar à periclitação e, até mesmo, ao aniquilamento de sua posição jurídica" [25]. Os processos cautelares são destinados, mais do que a defender os direitos subjetivos, a garantir a eficácia e a seriedade da função jurisdicional do Estado.

Extraem-se, assim, duas conseqüências: a) a primeira, de caráter objetivo, refere-se ao estado de urgência (periculum in mora, que é o fundado receio de dano de que uma parte, antes do julgamento da demanda principal, cause lesão grave ou de difícil reparação ao direito da outra, tornando insegura a efetividade do futuro provimento judicial), requisito que sempre há de estar presente nessa espécie de tutela jurisdicional; b) a segunda, de natureza subjetiva, é referente ao modo pelo qual o magistrado deve examinar e decidir o processo cautelar, em outras palavras, diz respeito à cognição sumária (mais ligada ao fumus boni juris, probabilidade de existência do direito alegado), que propicia uma solução pronta e eficaz às demandas cautelares, condizente com a situação de perigo nelas presentes. Dessa forma, são requisitos para a concessão da tutela cautelar: o periculum in mora e o fumus boni juris, que, segundo a melhor doutrina, são os elementos que constituem o meritum causae dos processos cautelares [26].

Interessa, mormente, para o desenvolvimento do presente estudo o critério de ordem subjetiva, ou seja, a análise da cognição sumária em sede de processo cautelar e, conseqüentemente, avaliar a possibilidade ou não de formação da coisa julgada substancial nessa seara.

Nas ações cautelares, frise-se, é utilizada a técnica da cognição sumária para o conhecimento do processo, pois nessas ações o juiz restringe-se a proferir decisão com base na aparência (fumus boni juris), sem que possa atingir um juízo mais profundo, que lhe traga certeza sobre os fatos. Não poderia ser de outra forma, já que a utilização da cognição judicial plena e exauriente da causa, no momento em que o magistrado é convocado a solucionar a ação cautelar, seria absolutamente inútil, incompatível com a urgência da tutela perseguida.

Por conseguinte, a cognição sumária nas ações cautelares recai principalmente, além dos demais objetos cognoscíveis (questões preliminares e questões prejudiciais [vide capítulo I, item 2]), sobre os requisitos de concessão da tutela cautelar: periculum in mora e fumus boni juris (mérito). Preleciona Piero CALAMANDREI:

Em sede cautelar o juiz em geral declara (nas diversas configurações concretas que esses limites podem assumir segundo o procedimento requerido) a existência do temor de um dano jurídico, isto é, a existência de um estado objetivo de perigo que faça parecer iminente a declaração do dano derivável da insatisfação de um direito. As condições do procedimento cautelar poderiam então parecer estas duas: 1º a existência de uma direito; 2º o perigo de insatisfação no qual esse direito se encontra.

Sobre esses dois pontos deveria versar a cognição do juiz em sede cautelar. Embora já tenhamos visto que os procedimentos cautelares têm a sua razão de ser na celeridade com a qual podem evitar o perigo em caráter de urgência, precedendo a medida definitiva: se para emanar a medida cautelar fosse necessária uma cognição aprofundada e completa sobre a existência do direito, isto é, sobre o mesmo objeto sobre o qual se refere o procedimento principal, melhor valeria esperar este e não complicar o processo com uma duplicação de investigações, que não teria nem a vantagem da prontidão. [27]

Assim sendo, para cumprir sua função, os processos cautelares devem se contentar com a probabilidade da existência do direito, que se obtém por meio de uma cognição muito mais rápida e superficial que a plena e exauriente. A cognição em ação cautelar conduz apenas a um juízo de probabilidade, haja vista que a função de declarar a existência do direito pertence ao processo principal.

Sustenta-se, de forma relativamente pacífica e salvo discordâncias pontuais, que os processos de cognição sumária em geral não podem determinar a solução definitiva da lide, ou seja, não são capazes de propiciar a formação da auctoritas rei iudicatae (vide capítulo II, item 2.3). De acordo com a lição do mestre italiano:

(…) os procedimentos cautelares podem ser considerados como emanados com a cláusula rebus sic stantibus, posto que eles não contêm a declaração de uma relação esgotada no passado e destinada, por isso, a permanecer através do trânsito em julgado, imutável para sempre; mas constituem para projetá-la no futuro uma relação jurídica nova (relação cautelar), que visa viver e então a transformar-se a dinâmica da vida o exige. [28]

Entretanto, é possível encontrar doutrinadores que infirmem essas assertativas. Fritz BAUR, processualista alemão, defende a possibilidade de formação de coisa julgada material em sede cautelar quando o autor de uma ação cautelar, já julgada uma vez, ingressa novamente em juízo pleiteando tutela cautelar idêntica (partes, causa de pedir e pedido). Em suas palavras:

A medida temporária, tornada coisa julgada formal, atua como coisa julgada material sempre e apenas na relação com outras medidas temporárias, que forem postuladas; desde que sejam dadas eadem res e eadem partes, valem os princípios desenvolvidos para o processo ordinário sobre os efeitos da coisa julgada material (…). [29]

Não é considerada acertada esta posição, pelo menos no que tange ao sistema processual civil. Primeiramente porque a medida cautelar é concedida com base em cognição sumária, que não permite declaratividade com carga suficiente para receber a autoridade de coisa julgada [30]. Em segundo lugar porque a tutela cautelar, como provimento emergencial de segurança, pode ser substituída (artigo 805, CPC), modificada ou revogada (artigo 807, CPC) a qualquer tempo por uma nova cognição sumária, desde que verificadas novas circunstâncias que desaconselhem a manutenção da medida cautelar previamente concedida. Ademais, o ordenamento brasileiro é muito claro ao delinear que: "o indeferimento da medida não obsta a que a parte intente a ação, nem influi no julgamento desta (…)" (artigo 810, CPC).

Contudo, preceitua o artigo 808, parágrafo único do Código de Processo Civil: "Se por qualquer motivo cessar a medida, é defeso à parte repetir o pedido, salvo por novo fundamento". Assim, tendo a medida cautelar perdido sua eficácia, não poderá o demandante ajuizar a mesma demanda novamente, salvo por fundamento novo (nova causa de pedir), no qual haveria, por certo, uma nova ação. Nota-se que a vedação de se ajuizar novamente a mesma ação cautelar existe, apesar de não se formar a coisa julgada substancial no processo cautelar [31].

A ausência de coisa julgada material no processo cautelar não faz com que fique sempre aberta ao demandante a possibilidade de renovar seu pleito. A impossibilidade de ingressar em juízo com nova ação cautelar, baseada nos mesmos fundamentos da que foi indeferida, decorre não da formação da coisa julgada formal, com afirmam alguns [32], que somente impede que a discussão sobre o conflito reabra-se no mesmo processo, mas sim da preclusão pro iudicato.

Como se sabe, o Livro I do Código de Processo Civil, que regula o processo de conhecimento, é aplicado subsidiariamente aos demais Livros do Código. Por esta razão, pode-se aplicar ao caso o disposto no artigo 471 do Código de Processo Civil que diz: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide (…)". Dessa forma, mesmo sem a formação da res judicata, ocorre o que a doutrina denomina "preclusão pro iudicato", que impede o magistrado de julgar novamente as questões já decididas por ele [33]. Logo, somente com base em fatos novos pode-se renovar o pedido de uma mesma providência cautelar entre as mesmas partes.

Resta incontroverso, assim, que a improcedência de uma ação cautelar não impede que a mesma parte, numa outra oportunidade, com novos elementos de convicção, venha a postular novamente a medida cautelar que antes lhe foi denegada. Em outras palavras, em regra, não há formação de coisa julgada material nas demandas cautelares.

Há apenas uma exceção a essa regra, que é trazida no artigo 810 do Código de Processo Civil: "O indeferimento da medida não obsta a que a parte intente a ação, nem influi no julgamento desta, salvo se o juiz, no processo cautelar, acolher a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor". Não transitam em julgado, portanto, as decisões proferidas em processo cautelar, salvo se versarem sobre prescrição ou a decadência do direito ligado ao processo principal. O que ocorre, aí, é o deslocamento da cognição judicial, do processo principal para o cautelar, em razão do princípio da economia processual, e o subseqüente julgamento antecipado e influente de fato do mérito [34]. Ao mostrar-se inviável a ação principal, não há motivos para cercá-la de segurança.

Questão interessante que se faz nesse ponto é a seguinte: seria possível a formação de coisa julgada material sobre a decisão que não acolhe a argüição de prescrição ou decadência na ação cautelar? Para Humberto THEODORO JÚNIOR a resposta a essa pergunta seria positiva:

Permite, com efeito, o art. 810, in fine, que se conheça desde logo da argüição de decadência ou de prescrição do direito do autor. E, se a medida preventiva, nesta hipótese, for indeferida por acolhimento da argüição, a sentença cautelar terá força de coisa julgada e será oponível à futura pretensão de mérito, portanto.

Nesse caso, o que realmente há é um julgamento antecipado do mérito (do direito a ser disputado na ação principal). [35]

WAMBIER e MEDINA, ao contrário, dão resposta negativa à indagação:

(…) pode acontecer, ainda, que, argüida a ocorrência de decadência ou prescrição, o juiz rejeite tal alegação. Diante disso, põe-se a dúvida de se saber se também esta decisão seria atingida pela coisa julgada, a impedir seja a questão novamente alegada pela parte, em defesa realizada no processo principal. Na doutrina, afirma-se, com razão, que a letra do preceito legal não autorizaria o entendimento de ocorreria coisa julgada, no caso. O art. 269, inc. IV, diz que se estará diante de sentença de mérito quando o juiz verificar a existência de prescrição ou decadência, e não a inexistência. Ademais, a situação prevista no art. 810 do CPC seria excepcional e, por tal razão, não admitiria interpretação extensiva. [36]

Parece mais adequada a segunda posição, em razão de seu rigor hermenêutico. Assim sendo, apenas o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência é capaz de propiciar a formação da coisa julgada substancial nos processos cautelares, o que não ocorre, como facilmente se nota, em virtude da cognição judicial utilizada nessa modalidade de tutela jurisdicional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A coisa julgada substancial é a imutabilidade do conteúdo da sentença e sua existência no sistema processual civil é fundamental (incluída como garantia constitucional no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal), pois é este instituto processual que, primordialmente, assegura o valor segurança jurídica em nosso ordenamento jurídico, tornando imutável o comando da decisão que pôs fim ao conflito de interesses levado à apreciação do Estado-Juiz.

Esse paradigma processual representa critério de Justiça para o processo civil. Eternizar-se a solução da lide, na busca infindável de uma verdade que, em essência, jamais será possível dizer estar atingida, constitui certamente algo inaceitável, principalmente em se considerando o perfil das relações econômicas e sociais da sociedade hodierna. É, por isso, realmente indispensável colocar, em determinado momento, um fim no conflito submetido à apreciação do Estado-Juiz. Entretanto, determinados provimentos jurisdicionais mostram-se inaptos a receber este selo de imutabilidade em virtude de suas cargas cognitivas. Dentre estes se encontram as tutelas emergenciais (tutela cautelar e tutela antecipatória).

Os fundamentos aduzidos nesse texto levam à conclusão de que não há possibilidade de formação de coisa julgada substancial nas tutelas de urgência, uma vez que não existe, nesse âmbito, declaração sobre a existência ou inexistência do direito do demandante, mas apenas sobre a existência ou inexistência do periculum in mora e do fumus boni juris, que não é capaz de solucionar o litígio definitivamente.

A única exceção a essa regra é o acolhimento da alegação de decadência ou prescrição no processo cautelar, como preceitua o artigo 810 do Código de Processo Civil, pois nesse caso há sentença de mérito que faz coisa julgada substancial (artigo 269, IV, do Código de Processo Civil).

De forma genérica, a declaração judicial é apta a receber o selo de imutabilidade da res judicata somente quando tiver intensidade declaratória suficiente para tornar-se definitiva. As declarações calcadas na provisoriedade e na temporariedade (respectivamente, tutela antecipatória e tutela cautelar) não são capazes de propiciar a formação da auctoritas rei iudicatae simplesmente porque não visam, essencialmente, produzir definitividade.

Por tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que a coisa julgada substancial não é uma característica fundamental da jurisdição, porquanto existem determinados provimentos que, embora não possuam carga declaratória capaz de fazer surgir coisa julgada material, são fundamentais para a efetividade da tutela dos direitos, verbi gratia, aquele que põe fim ao processo cautelar e aquele que antecipa os efeitos da tutela. Porém, atente-se: admitir que a res judicata não seja característica da jurisdição não é o mesmo do que dizer que a jurisdição não deva zelar pela coisa julgada material, pois esta é fundamental ao Estado Democrático de Direito.

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Notas

01 Segundo Humberto THEODORO JÚNIOR: "Nosso ordenamento jurídico insere nesse capítulo das tutelas diferenciadas as medidas cautelares e as medidas de antecipação de tutela de mérito. Todas essas medidas formam o gênero ‘tutela de urgência’" (In THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, vol. II, Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 532).

02 Também nesse sentido, Luiz Rodrigues WAMBIER: "Trata-se, todavia, de cognição sumária, incompleta, não exauriente. Este é o principal ponto em comum entre ambas as medidas, a cautelar e a antecipatória de tutela" (In WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil, vol. 1/ Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida, Eduardo Talamini; coordenação Luiz Rodrigues Wambier, 3ª edição, rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 354).

03 Cf., CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, volume III, 10ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 21/29.

04 Idem.

05 Deve-se salientar, nesse ponto, que antes de 1994 já era possível obter a antecipação dos efeitos da tutela, todavia apenas em determinados procedimentos. Após a reforma processual de 1994, a tutela antecipatória tornou-se possível em todo e qualquer processo de conhecimento.

06 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo, 2ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2001, p. 114.

07 Cf., CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares; tradução: Carla Roberta Andreasi Bassi, Campinas, Servanda, 2000, p. 100.

08 Cf., Alexandre Freitas Câmara, p. 22.

09 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. O acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. São Paulo: RT, 1993, p. 76.

10 Op. cit., Alexandre Freitas Câmara, p. 23.

11 BAUR, Fritz. Tutela jurídica mediante medidas cautelares, trad. Armindo Edgar Laux, Porto Alegre: Sérgio Eduardo Fabris Editor, 1985, p. 127.

12 Cf., Alexandre Freitas Câmara, p. 23.

14 Op. cit., Alexandre Freitas Câmara, p. 24.

15 Idem.

16 Artigo 273, caput: "O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação" (grifo nosso).

17 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres – 4.ed. rev. e ampliada. – Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 246/247.

18 Não se deve confundir, contudo, "tutela antecipatória" e "julgamento antecipado da lide". Aquela é conferida com base em cognição sumária (juízo de probabilidade), esta com base em cognição exauriente (artigo 330, I, CPC – são desnecessárias outras provas além daquelas já produzidas pelas partes [documentos]).

18 Sobre o tema Cândido Rangel DINAMARCO: "(…) em inúmeros pontos e mediante variadas formas a ordem jurídica deliberadamente se afasta ainda mais do requisito da certeza. São soluções inseridas na técnica processual, sempre com vistas à antecipação dos resultados da jurisdição. Através delas, simplifica-se a instrução e afrouxam-se a exigência de uma prévia cognição, antes de promover-se a execução forçada. Em todos os casos, revela-se a preocupação, ainda que pouco conscientizada, pelo escopo social de pacificação, mediante a busca da remoção tão pronta quanto possível" (In DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 243).

19 Nesse sentido vide: GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 294/295; MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. O acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. São Paulo: RT, 1993, p. 77.

20 Cf., Luiz Rodrigues Wambier, p. 353.

21 Idem.

22 NERY JÚNIOR, Nelson. Atualidades sobre o processo civil: a reforma do Código de Processo Civil brasileiro de 1994 e de 1995, 2ª ed., ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 70/72.

23 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 614.

24 Cf., WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada – hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 134.

25 Op. cit., Fritz Baur, p. 17/18.

26 Nesse sentido: WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, 2ª ed., Campinas: Bookseller: 2000, p. 138; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, volume III, 10ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 44. Com pensamento contrário: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar – 22. ed. rev. e atual. – São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005, p. 54 e 162.

27 Op. cit., Piero Calamandrei, p. 98/99.

28 Ibidem, p. 122.

29 Op. cit., Fritz Baur, p. 134.

30 Cf., Kazuo Watanabe, p. 138/139.

31 Cf., Alexandre Freitas Câmara, p. 32.

32 Cf., MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, 2ª ed., vol. III, Campinas: Millennium, 2000, p. 429/430.

33 Nesse sentido vide: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar – 22. ed. rev. e atual. – São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005, p. 163.

34 Cf., Humberto Theodoro Júnior, Processo cautelar, p. 164.

35 Op. cit., Humberto Theodoro Júnior, Processo cautelar, p. 163/164.

36 Op. cit., Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, p. 135.

REFERÊNCIAS

BAUR, Fritz. Tutela jurídica mediante medidas cautelares, trad. Armindo Edgar Laux,Porto Alegre: Sérgio Eduardo Fabris Editor, 1985.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo, 2ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2001.

CALAMANDREI, Piero. Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares; tradução: Carla Roberta Andreasi Bassi, Campinas, Servanda, 2000.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, volume III, 10ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2004.

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. O acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. São Paulo: RT, 1993.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

 

MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, 2ª ed., vol. III, Campinas: Millennium, 2000.

NERY JÚNIOR, Nelson. Atualidades sobre o processo civil: a reforma do Código de Processo Civil brasileiro de 1994 e de 1995, 2ª ed., ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres – 4.ed. rev. e ampliada. – Rio de Janeiro: Forense, 2006.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar – 22. ed. rev. e atual. – São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2005.

______ Curso de direito processual civil, vol. II, Rio de Janeiro, Forense, 2003.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil, vol. 1/ Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida, Eduardo Talamini; coordenação Luiz Rodrigues Wambier, 3ª edição, ver., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada – hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, 2ª ed., Campinas: Bookseller: 2000.

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Vinícius José Corrêa Gonçalves: Advogado. Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro). Pós-graduando (lato sensu) em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul /IBDP).

Elaborado em 10.2007.