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A pandemia que se arrasta há 40 anos e a luta pelos direitos dos portadores de HIV

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Em 1º de dezembro é celebrado o Dia Mundial de Combate à Aids, que durante os anos 1980 e 1990 se tornou uma das doenças mais assustadoras em todo o planeta – ameaça da qual o mundo ainda não se livrou. O Tribunal da Cidadania – cuja fachada estará iluminada no próximo mês em apoio à campanha Dezembro Vermelho, de incentivo à prevenção da Aids – teve papel essencial para garantir os direitos das vítimas dessa enfermidade.

Em 1981 – enquanto Pelé era eleito o “Atleta do Século”, o atentado do Riocentro abalava a abertura política e as rádios não paravam de tocar Emoções, o novo sucesso de Roberto Carlos –, casos de uma estranha doença começaram a ser diagnosticados, principalmente entre a população homossexual de grandes cidades norte-americanas.

Dois anos depois, o cientista Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris, isolou pela primeira vez o vírus HIV, o causador da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Sida – ou, em inglês, Aids). A doença – que, logo se viu, afetava também os heterossexuais – espalhou-se rapidamente pelo planeta, recebendo o título de Mal do Século.
Aids ainda é uma realidade grave em todo o mundo

O infectologista e pesquisador Bruno Mariano, do Rio de Janeiro, afirma que hoje há cerca de 40 milhões de pessoas infectadas no mundo. Segundo o médico, o HIV afeta o sistema imunológico e permite o avanço de doenças oportunistas, como tuberculose, meningite criptocócica e sarcoma de Kaposi. Como a Covid-19, a Aids é uma zoonose, ou seja, uma doença originada em animais, provavelmente em macacos da África nas décadas anteriores a 1980.

O vírus está presente em secreções corporais (sangue ou sêmen, por exemplo) e pode ser transmitido por seringas, sexo sem uso de preservativo e de várias outras formas – até mesmo da gestante para o filho, durante a gravidez. Se a pessoa tiver qualquer suspeita de contágio, deve fazer o exame imediatamente. “As novas medicações podem deter a progressão da doença, e hoje a taxa de sobrevivência é muito alta”, completa o médico.

Ana Clara Herval, advogada da ONG Amigos da Vida, voltada para a promoção dos direitos de portadores de HIV, destaca que o Poder Judiciário – em especial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – tem tido importante papel para garanti-los. “Ainda é muito comum, infelizmente, que o portador de HIV/Aids encontre amparo apenas em sede recursal e em instâncias superiores”, afirma.

FGTS, BCP e outros benefícios

Um exemplo foi a decisão tomada pela Primeira Turma da corte no Recurso Especial (REsp) 249.026, de relatoria do ministro José Delgado (hoje aposentado), que permitiu a uma mãe sacar o dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para custear o tratamento de seu filho com Aids. A Caixa Econômica Federal alegou que a Lei 8.036/1990 autorizava o saque em casos de câncer, mas não mencionava a Aids. O relator afirmou que a lei deveria ser interpretada considerando a intenção do legislador de amparar o trabalhador em caso de enfermidade grave – “principalmente quando se cuida de tratamento de doença mortal, até mais do que o câncer”.

O julgamento ocorreu em 2000. Hoje, segundo o infectologista Bruno Mariano, a Aids “ainda é uma doença incurável, mas já controlável, garantindo qualidade de vida para os pacientes”.

No REsp 560.723, julgado em 2003, a Segunda Turma igualmente garantiu que uma mãe sacasse o FGTS para pagar o tratamento da filha, portadora do HIV. A relatora, ministra Eliana Calmon (hoje aposentada), mencionou precedentes que autorizavam o saque tanto do FGTS quanto do PIS nessas situações. E acrescentou que, àquela altura, a própria legislação já amparava o pedido da mãe, pois a Lei 8.036/1990 havia sido alterada em 2001 para permitir o saque do FTGS “quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for portador do vírus HIV” (inciso XIII).

Em 2002, no REsp 360.202, a Quinta Turma assegurou o pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para uma pessoa com Aids. O relator do recurso, ministro aposentado Gilson Dipp, observou que o laudo médico considerava a pessoa incapacitada para o trabalho, embora a declarasse apta para uma vida independente. Segundo ele, o simples fato de o doente não necessitar da ajuda de outros para se alimentar ou se vestir não podia ser impedimento para o benefício.

“Esse julgamento foi um marco, por ser um dos primeiros a apontar o HIV como fator essencial para o pagamento de benefícios sociais”, avalia Ana Clara Herval.

A tramitação prioritária de processos para pacientes com HIV foi garantida pelo Tribunal da Cidadania no REsp 1.026.899, relatado em 2008 pela ministra Nancy Andrighi. O paciente, que ajuizou ação contra a Caixa de Previdência do Banco do Brasil, pediu que o processo tivesse o mesmo tratamento prioritário que a lei assegurava aos idosos. O tribunal de origem entendeu que não seria possível estender o benefício a partir de interpretação analógica.

A relatora no STJ, porém, sem a necessidade de recorrer à analogia, considerou que negar o direito de tramitação prioritária ao processo em que figura como parte uma pessoa com HIV significaria suprimir o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição. Um ano depois, a lei mudou para estender o benefício às pessoas com doença grave.

Uma doença incapacitante

A Aids é considerada uma doença que incapacita. Nos Embargos de Divergência no REsp 670.744, o relator, ministro Arnaldo Esteves Lima (aposentado), decidiu uma controvérsia que envolvia julgados da Sexta e da Quinta Turmas – na época, competentes para analisar questões sobre previdência e servidores públicos – em relação à reforma de militar portador do vírus HIV.

A Sexta Turma entendeu que, independentemente de ter ou não desenvolvido a Aids, o militar com o vírus teria direito à reforma com proventos no grau hierárquico superior. Para a Quinta Turma, a reforma dependeria do estágio da doença; se o militar não fosse considerado inválido para qualquer tipo de trabalho, os proventos deveriam corresponder ao grau hierárquico ocupado na ativa.

Esteves Lima apontou que a Lei 7.670/1988 classificou a Aids como doença de incapacitação permanente, motivo para a aposentadoria dos servidores, conforme o artigo 186 da Lei 8.112/1990. Segundo o magistrado, a legislação não permitia distinção em relação ao estágio de desenvolvimento da Aids; além disso, havia o risco de que pessoas com esse mal desenvolvessem doenças oportunistas e fossem vítimas de preconceito. Com esse entendimento, prevaleceu a interpretação da Sexta Turma.

Medo e privacidade

Desde o começo da síndrome, o preconceito e o medo afetaram pessoas contaminadas. Devido ao fato de ter sido identificada inicialmente na comunidade homossexual – lembra o médico Bruno Mariano –, a Aids chegou a ser chamada de “câncer gay”. “Mas logo se descobriu que hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e outros também estavam no grupo de risco. Hoje, considera-se que qualquer pessoa pode ser afetada”, acrescenta.

A privacidade dos exames para a detecção do HIV tem sido um tema muito debatido na Justiça, como apontado pela advogada Ana Clara Herval.

Segundo ela, um bom exemplo dessa discussão é o REsp 1.195.995. Um cidadão entrou com pedido de indenização contra um hospital porque este, ao realizar vários exames, acabou fazendo também, por engano, o teste de HIV, que não havia sido solicitado. O resultado, positivo, foi comunicado reservadamente ao médico.

No voto que prevaleceu no julgamento, o ministro Massami Uyeda (aposentado) considerou que a causa do abalo psicológico era o vírus, não a conduta do hospital. Para o magistrado, o alegado direito de a pessoa não saber que é portadora do HIV contraria o interesse coletivo, por favorecer a disseminação da doença.
Na opinião de Ana Clara Herval, a informação é essencial para frear a expansão da Aids. “É direito do portador expor sua sorologia apenas para quem ele se sinta confortável. Mas, quanto ao conhecimento da sua sorologia, estamos diante de um interesse público, superior ao interesse pessoal”, opina a advogada.

No caso relatado por Massami Uyeda, o resultado do exame, embora não solicitado, estava correto. Por outro lado, o STJ tem diversas decisões concedendo reparação a pessoas diagnosticadas incorretamente. No REsp 1.291.576, um hospital foi condenado a indenizar a paciente após emitir três resultados soropositivos errados em seguida. “Nenhuma pessoa fica indiferente ou simplesmente aborrecida ao receber três vezes um resultado de exame que constata a contaminação pelo vírus HIV”, comentou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

O REsp 1.071.969, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, tratou do caso de um doador de sangue erroneamente diagnosticado como portador de HIV e hepatite B. Para o magistrado, houve falha do hemocentro por não esclarecer o doador sobre a possibilidade de um falso positivo. Para ele, não foi cumprido o artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que exige comunicação clara e adequada sobre serviços.

Em outro processo relatado também pelo ministro Salomão, o REsp 1.426.349, foi determinada a indenização para uma mãe que não amamentou o filho recém-nascido por oito dias devido a um falso positivo. A coleta de sangue para o exame confirmatório só ocorreu três dias depois do resultado do primeiro, e o resultado negativo do novo exame saiu apenas sete dias depois. “Não se revela razoável que, em uma situação de indiscutível urgência, tenha o hospital aguardado quatro dias (contado o do parto) para providenciar a coleta de nova amostra de sangue da lactante”, afirmou o relator.

Responsabilidade pública

A responsabilidade do poder público é outro ponto importante na discussão sobre o HIV. “O acesso a tratamentos e medicamentos pelas pessoas que vivem com HIV/Aids é uma questão de política pública, agravada pela ineficiência do Legislativo e do Executivo”, salienta Ana Clara Herval. Para Bruno Mariano, um dos fatores para a rápida expansão da Aids foi a inação das autoridades. “Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, a doença foi tratada inicialmente como um problema apenas da comunidade gay, e o público não foi informado adequadamente”, lembra ele.

A falta de controle do sangue – uma obrigação das autoridades – levou à contaminação de grande número de pessoas que necessitavam de transfusões, especialmente os hemofílicos. No REsp 1.299.900, foi decidido que um paciente contaminado por HIV e hepatite C durante a transfusão deveria ser indenizado pela União e pelo Estado do Rio de Janeiro.

“Reconhece-se a conduta danosa da administração pública ao não tomar as medidas cabíveis para o controle da pandemia. No início da década de 1980, já era notícia no mundo científico que a Aids poderia ser transmitida pelas transfusões de sangue. O desconhecimento acerca do vírus transmissor (HIV) não exonera o poder público de adotar medidas para mitigar os efeitos de uma pandemia ou epidemia”, declarou o relator, ministro Humberto Martins. REsp 249026REsp 560273REsp 360202REsp 1026899EREsp 670744REsp 1195995REsp 1291576REsp 1071969REsp 1426349REsp 1299900

FONTE: STJ, 28 de novembro de 2021.

Para Terceira Turma, doação de imóvel superior a 30 salários mínimos exige escritura pública

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A doação de imóvel de valor superior a 30 vezes o maior salário mínimo do país deve ser feita por escritura pública. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) segundo o qual a doação, nessas condições, poderia ser formalizada também por contrato particular.

Os ministros deram parcial provimento ao recurso em que uma empresa buscava afastar a exigência de construção de uma arena cultural em imóvel que lhe foi doado – encargo que constava inicialmente do contrato particular de doação.

Na escritura pública lavrada para aperfeiçoar o negócio, a doação foi descrita como pura e simples – ou seja, livre de condições ou encargos. Na sequência, as partes estabeleceram um aditivo contratual particular, por meio do qual foi retificado o instrumento original para que a doação constasse como pura e simples, afastando-se o encargo. No entanto, a empresa doadora pediu em juízo a revogação da doação, alegando que a donatária não cumpriu a obrigação de construir a arena cultural.

Dúvidas sobre a declaração de vontade da doadora

Em primeiro grau, o pedido foi julgado improcedente, sob o fundamento de que o instrumento particular não poderia prevalecer sobre a escritura pública.

O TJMS reformou a sentença e revogou a doação, entendendo que a transferência do imóvel poderia ter sido formalizada por contrato particular, conforme o artigo 541 do Código Civil – que permite às partes escolherem a forma a ser utilizada no ato. Para a corte local, esse dispositivo, por ser norma especial, prevaleceria sobre a regra geral do artigo 108 do CC, o qual exige escritura pública para negócios que tenham como objeto imóveis de valor acima de 30 salários mínimos.

Além disso, o TJMS considerou haver dúvida sobre a declaração de vontade da doadora, de maneira que a interpretação deveria ser favorável a ela, a fim de prestigiar a boa-fé e a função social do contrato, principalmente em vista do alto valor atribuído ao imóvel (R$ 2 milhões).

Ausência de conflito de normas

Segundo o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso, a possibilidade de o doador e o donatário escolherem como formalizar a doação deve ser interpretada de acordo com as diretrizes da parte geral do Código Civil, as quais preveem que a declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei o exigir (artigo 107), e que o negócio poderá ser celebrado mediante instrumento público por interesse das partes, no silêncio da lei (artigo 109).

Dessa maneira, para o magistrado, em uma interpretação sistemática dos artigos 107, 108, 109 e 541 do Código Civil, doações como a discutida no recurso (de imóveis de mais de 30 salários mínimos) devem ser efetivadas mediante escritura pública.

Segundo o relator, diferentemente do que entendeu o TJMS, não há como aplicar o princípio da especialidade, pois este pressupõe um aparente conflito de normas – o qual não existe no caso, pois ambas as regras coexistem harmonicamente, impondo-se apenas uma adequada interpretação sobre elas.

Efetiva vontade das partes e princípio da boa-fé objetiva

O magistrado observou que, no caso dos autos, a real intenção das partes era a celebração de uma doação sem ônus à donatária, pois “assim constou da escritura pública e foi confirmado, posteriormente, pelo aditivo ao instrumento particular”.

Em interpretação restritiva das cláusulas contratuais (artigo 114 do CC), Bellizze concluiu que a doação foi pura e simples, o que justifica o restabelecimento da sentença que julgou improcedente o pedido de revogação por inexecução de encargo – “sobretudo diante do teor do instrumento público (forma indispensável para a concretização do contrato), que não apenas é silente a respeito da imposição de encargo como prevê explicitamente o caráter puro e simples da doação”. REsp 1.938.997.

FONTE: STJ, 26 de novembro de 2021.

Multa não impede extinção da punibilidade para condenado que não pode pagar

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“Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.”

Essa foi a tese fixada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a sistemática dos recursos repetitivos, ao revisar o entendimento firmado anteriormente pelo colegiado no Tema 931. Os ministros estabeleceram um tratamento diferente para o caso de não pagamento da multa pelos condenados hipossuficientes ou insolventes.

Para o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a extinção da punibilidade tem especial importância na situação do ex-presidiário, pois lhe permite exercer direitos e evita sua “invisibilidade civil”.

O magistrado ressaltou que esse novo entendimento significa para o condenado sem condições financeiras “a reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado”, permitindo-lhe reconstruir sua vida “sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo”. A interdição de direitos decorrente da não extinção da punibilidade, segundo Schietti, leva esses condenados a um “estágio de desmedida invisibilidade”, comparável “à própria inexistência de registro civil”.

Posição do STF levou à reforma da tese no STJ

Em um dos recursos submetidos a julgamento, a Defensoria Pública de São Paulo argumentou que a não extinção da punibilidade por causa da multa impede o acesso a programas assistenciais, essenciais para a reinclusão social e o exercício da cidadania.

Ao dar provimento ao recurso, o ministro Schietti explicou que, em 2015, na votação do Tema 931 dos repetitivos, a Terceira Seção definiu que, no caso de condenação a pena privativa de liberdade e a multa, havendo o cumprimento da primeira, o não pagamento da segunda não impediria o reconhecimento da extinção da punibilidade (REsp 1.519.777).
Em 2019, porém, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.150, firmou o entendimento de que a alteração do artigo 51 do Código Penal não retirou o caráter criminal da pena de multa, de modo que o seu inadimplemento impediria a extinção da punibilidade – compreensão posteriormente sintetizada pela Lei 13.964/2019.

Em decorrência da posição do STF e da alteração do Código Penal, em setembro de 2021, o STJ reformou a tese do Tema 931 para considerar que o não pagamento da multa deveria obstar a extinção da punibilidade.
Entendimento voltado para os crimes de colarinho-branco

No entanto, Schietti observou que o STF, naquele julgamento, ressaltou o papel de prevenção e retribuição da pena de multa nos crimes de natureza econômica; e, ainda em 2015, ao julgar um recurso em execução penal, a Suprema Corte havia estabelecido que, nos crimes contra a administração pública e nos “crimes de colarinho-branco” em geral, a pena de multa deveria ser executada com mais rigor, impedindo, se não cumprida, a progressão de regime – a menos que fosse comprovada “a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo”, mesmo em parcelas.
De acordo com o relator, as decisões do STF que consideram o pagamento da multa indispensável para a progressão penal ou para a extinção da punibilidade se dirigem aos condenados que têm condições econômicas para tanto, “de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade”.

O ministro mencionou ainda que a Recomendação 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça aponta a necessidade de se considerar a extinção da punibilidade da pessoa egressa em situação de rua que, por hipossuficiência econômica, cumpriu somente a pena privativa de liberdade.

Sobrepunição da pobreza e indigência dos apenados hipossuficientes

Schietti destacou dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) segundo os quais, em dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena por crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, e 15,13%, por crimes contra a pessoa – todos crimes que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.

Para ele, o quadro atual tem produzido a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena, alijado dos direitos do artigo 25 da Lei de Execução Penal, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero. A retomada dos direitos e a reinserção social desses indivíduos invisibilizados – acrescentou – não devem ser condicionadas ao prévio pagamento da multa, se comprovada a situação de hipossuficiência.

“O condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal de proteção da família”, observou.

O magistrado destacou que manter os condenados pobres com o mesmo tratamento dado aos ricos, quanto à exigência de cumprimento das penas traduzidas em valores, somente serviria para exacerbar “a assimetria socioeconômica tão intrínseca à própria desigualitária formação da sociedade brasileira, potencializada pelo sistema de Justiça criminal”. REsp 1.785.861.

FONTE: STJ, 25 de novembro de 2021.

Mãe não pode impedir filho de passar as férias com o pai sob argumento de crise pela pandemia, decide TJSE

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A Justiça de Sergipe proibiu que a mãe de uma criança impeça o filho de passar as férias com o pai em outro estado, conforme estipulado antes. O entendimento do colegiado foi de que ela vinha usando o momento de crise causada pela pandemia da Covid-19 como justificativa para impedir o contato entre o genitor e o filho do ex-casal.

Na ação de divórcio, os genitores concordaram que a criança, durante o período de férias, ficaria com o pai em Curitiba. Contudo, a mãe, residente de Sergipe, começou a dar indícios de que não cumpriria o combinado por conta da pandemia. Assim, o pai, que não vê o filho presencialmente desde o início da pandemia, ajuizou o cumprimento de sentença.

Em primeiro grau, foi determinado que a mãe cumpra integralmente o acordo. Ela recorreu da decisão, alegando que a criança teria que enfrentar aeroportos lotados durante época de alta estação. A decisão, porém, foi mantida em segundo grau, com agravo de instrumento sob relatoria do desembargador José dos Anjos, do Tribunal de Justiça de Sergipe – TJSE.

Para o magistrado, a atual situação pandêmica já permite uma mitigação dos efeitos relacionados à restrição do convívio social, e, em especial, do direito à convivência. Ele observou a taxa de vacinados e a queda no número de mortes e de casos graves por complicações da contaminação pelo Coronavírus.

Cabe, segundo José dos Anjos, ao Poder Judiciário adotar a medida que melhor se adeque à saúde e interesse do menor, que deve ser poupado de disputas nada edificantes. “Mais do que um direito do pai, a visitação é um direito da criança que deve receber atenções e o carinho de ambos os genitores”, destacou.

Os advogados Guilherme Alberge Reis e Mayara Santin Ribeiro atuam na causa pelo pai.

Grande preocupação

A juíza Angela Gimenez, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, observa que a pandemia gerou uma grande preocupação para os integrantes das famílias e, também, para o Poder Público, em especial para o Poder Judiciário, relativamente à proteção e segurança da saúde da população infanto-juvenil.
Um dos principais desafios diz respeito às crianças e aos adolescentes que necessitam se deslocar entre suas residências com o pai e mãe e demais parentes, para o exercício de seu direito de convivência. “Inicialmente, o Poder Judiciário acolheu a tese de que seria melhor manter as crianças onde estavam, ou seja, na sua grande maioria no lar materno, para se evitar o distanciamento social necessário.”

“No entanto, esse posicionamento revelou-se ao longo do tempo como inadequado, quer seja porque o grande período sem convívio fragilizou os laços afetivos entre as crianças e seu genitor distante, quer seja porque sobrecarregou as mulheres que passaram a se dedicar com exclusividade aos filhos em um momento de grande vulnerabilidade pessoal e profissional”, nota a magistrada.

Compartilhamento equilibrado

Em maio de 2020, Angela Gimenez assinou artigo sobre os cuidados que os magistrados deveriam ter quando, em face da guarda compartilhada, um dos genitores passassem a impedir o convívio dos filhos com o outro genitor. “O compartilhamento equilibrado do tempo do filho com seus dois genitores é o modelo legal a ser garantido”, ressalta, no texto, lembrando também de aspectos relacionados à saúde e bem-estar em meio à pandemia da Covid-19.

“Tornou-se premente a garantia do convívio dos filhos, com divisão equilibrada do tempo, para que as crianças fiquem protegidas, também, em seu aspecto emocional, claro que com a responsabilidade dos genitores de cumprirem as normas sanitárias vigentes para se impedir qualquer dano à saúde das crianças e dos adolescentes”, frisa a especialista.

Assim, ela avalia que a decisão supracitada mostrou-se contemporânea e atenta à proteção integral dos filhos. “É o Poder Judiciário exercendo a sua função social de equalização dos direitos e interesses familiares, sempre com vista ao pleno desenvolvimento dos vulneráveis, para que estes, possam desenvolver suas aptidões, dentro de um espaço seguro que propicie a sua propulsão para o futuro, em busca de seu projeto de felicidade”, conclui Angela. Processo: 0014784-77.2021.8.25.0000

FONTE: IBDFAM, 25 de novembro de 2021.

Herdeiros, sucessores e a legitimidade para discutir ações relacionadas ao falecido

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A morte de um familiar quase sempre deixa questões a serem resolvidas pelos herdeiros e sucessores, cuja habilitação é regulada por um grupo de instrumentos legais – como a Constituição Federal e o Código Civil –, com base nos quais devem ser realizados procedimentos como o inventário e a partilha.
Entretanto, a posição de herdeiro ou sucessor não significa, de modo direto e absoluto, a garantia de que a pessoa possa ingressar com ação ou responder a processo relacionado ao falecido. Nesses casos, a definição sobre a legitimidade processual é comumente estabelecida pelo Judiciário; muitas vezes, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Seguro DPVAT integra o patrimônio da vítima do acidente

No julgamento do REsp 1.185.907, a Quarta Turma reconheceu a natureza patrimonial do seguro DPVAT e a legitimidade ativa de um herdeiro para requerê-lo após a morte da sua mãe, que ficou com invalidez permanente em decorrência de acidente de trânsito. Ela faleceu alguns anos depois do acidente, por causas distintas, mas sem receber a indenização devida.

O colegiado negou o recurso da seguradora, que argumentou no sentido de que, por se tratar de direito personalíssimo, os sucessores da vítima não teriam legitimidade para ajuizar a cobrança da indenização do seguro DPVAT por invalidez permanente.

Segundo a relatora, ministra Isabel Gallotti, em caso de morte, no regime da lei vigente na época dos fatos (artigo 4°, caput, da Lei 6.194/1974), os beneficiários da indenização seriam o cônjuge sobrevivente ou, na sua falta, os herdeiros legais. Pela legislação atual, explicou, 50% do montante deve ser destinado ao cônjuge não separado judicialmente, sendo a outra metade dividida entre os herdeiros do segurado (artigo 792 do Código Civil).

No caso em julgamento, a magistrada verificou que o direito à indenização cabia à própria vítima, que não a recebeu em vida. “Assim, a partir do momento em que configurada a invalidez permanente, o direito à indenização securitária passou a integrar o conjunto do patrimônio da vítima do acidente, que, com a sua morte, constitui-se herança a ser transmitida aos sucessores, os quais, portanto, têm legitimidade para propor ação de cobrança dessa quantia”, concluiu.

Danos morais podem ser cobrados por sucessores

Em dezembro de 2020, a Corte Especial consolidou a orientação de que o direito à indenização por danos morais se transmite com o falecimento do titular, possuindo os herdeiros da vítima legitimidade ativa para ajuizar ou prosseguir com a ação indenizatória (Súmula 642).

Um dos precedentes que deram origem ao enunciado – o REsp 1.040.529, de relatoria da ministra Nancy Andrighi – garantiu aos sucessores de uma idosa o direito de receber R$ 150 mil em danos morais devidos a ela por uma associação cultural.

A idosa, com quase 100 anos, morreu no curso da ação de indenização por danos morais e materiais na qual alegou que a perfuração de poços artesianos e a posterior realização de ensaios de bombeamento de água – obras realizadas pela associação – causaram rachaduras, trincas, fissuras e o rebaixamento do teto do imóvel no qual residia, chegando ao ponto de ser necessária a utilização de escoras para evitar o desabamento da casa.

Os sucessores assumiram o polo ativo da ação, tendo o Tribunal de Justiça do Paraná condenado a instituição ao pagamento de indenização por danos materiais. Com relação aos danos morais, porém, o tribunal estadual entendeu tratar-se de direito personalíssimo, que não seria transmitido aos sucessores.

Ação foi iniciada pela própria vítima do abalo psicológico

A ministra Nancy Andrighi lembrou que o STJ entende que o espólio, em ação própria, pode pleitear a reparação dos danos psicológicos suportados pelo falecido. Com mais razão ainda, acrescentou, deve-se admitir aos sucessores o direito de receber a indenização requerida pelo falecido em ação que ele mesmo iniciou.

A partir dos fatos reconhecidos pelo tribunal estadual, a magistrada verificou que os danos estruturais causados pela associação exigiram a desocupação do imóvel onde a idosa havia morado por vários anos.

Segundo a relatora, o tribunal frisou que a mudança gerou danos emocionais, os quais agravaram a sua condição física. “Vê-se, portanto, que a falecida, então com quase 100 anos de idade, foi obrigada a deixar seu lar de longa data, situação que certamente lhe causou sentimentos de angústia, perda, frustração, aflição, incerteza, entre outros, impingindo-lhe um estado emocional que refletiu, inclusive, em sua saúde, já debilitada pela velhice”, observou a ministra.

Não há legitimidade do herdeiro para reclamar valores não inventariados
Enquanto estiverem pendentes a abertura do inventário e a realização da partilha, o herdeiro não tem legitimidade para pleitear judicialmente o recebimento de valores relativos à cota social a que supostamente teria direito em razão do falecimento do titular do bem.

O entendimento foi aplicado no julgamento do REsp 1.645.672, no qual a Terceira Turma reconheceu a ilegitimidade de um coerdeiro para propor ação de apuração de haveres para recebimento de valores relativos a cota societária que pertencia ao falecido. Segundo o herdeiro, alguns de seus irmãos já haviam recebido valores referentes às suas participações societárias.

O colegiado acompanhou o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, para quem a legitimidade para a propositura de eventual ação de dissolução empresarial recai sobre o espólio, em virtude do princípio da preservação da entidade empresária e tendo em vista que a substituição do sócio falecido – e, portanto, de sua cota social – não ocorre por mera sucessão hereditária, mas em razão de adesão ao contrato social após a partilha.

De acordo com o magistrado, o herdeiro buscava apenas o recebimento direto dos valores supostamente herdados, independentemente da realização de inventário e partilha. Todavia, o relator ressaltou que a liquidação só pode ser realizada antes da partilha quando houver decisão do espólio – “ou seja, do conjunto de herdeiros, e não de um único herdeiro”.

Espólio pode pleitear a invalidade de doação

O espólio também tem legitimidade para propor ação que busca a declaração de invalidade de negócio jurídico de doação e que pretende, em última análise, a reversão dos bens ao acervo hereditário. Nessa situação, não é necessário que o pedido de anulação seja feito pelo cônjuge ou herdeiro.

No julgamento do REsp 1.710.406, a Terceira Turma manteve decisão de segunda instância que anulou a doação das cotas societárias do falecido para a concubina. Com o desprovimento do recurso especial da concubina, os bens retornaram à herança.

No recurso, a concubina alegou que a falta de outorga do cônjuge (motivo alegado para anular a doação) caracterizaria hipótese de nulidade relativa, de modo que somente os interessados diretos (cônjuges ou herdeiros) teriam legitimidade para requerer a invalidade do ato.

Segundo o ministro relator do caso, Villas Bôas Cueva, o pedido estava voltado para a reversão dos bens ao acervo hereditário; portanto, foi correta a interpretação do tribunal de origem ao reconhecer a legitimidade do espólio.

“Considerando a amplitude da causa de pedir no caso dos autos, é cristalina a legitimidade do espólio para pleitear a invalidade no negócio jurídico de doação. Acrescenta-se, ainda, que, como cediço, enquanto não perfectibilizada a partilha, o espólio representa os interesses dos herdeiros, de modo que também por esse motivo não há espaço para falar em sua ilegitimidade ativa”, afirmou.

Embargos de terceiro contra penhora em inventário

No mesmo sentido, o colegiado decidiu que o herdeiro não pode opor embargos de terceiro para contestar penhora em inventário. No julgamento do REsp 1.622.544, os ministros mantiveram decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco que confirmou a extinção, sem resolução de mérito, dos embargos de terceiro opostos por herdeiros contra uma penhora em execução nos autos do inventário de sua genitora.

“Enquanto estiver em tramitação o inventário, e os bens permanecerem na forma indivisa, o herdeiro não detém legitimidade para defender, de forma individual, os bens que compõem o acervo hereditário, sendo essa legitimidade exclusiva do espólio devidamente representado”, destacou a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi.

Segundo a magistrada, os herdeiros são partes ilegítimas para a oposição dos embargos de terceiros. A ministra esclareceu que, com a morte do devedor, a legitimidade passiva do processo de execução precisa ser regularizada, e, nos termos do artigo 43 do Código de Processo Civil de 1973, o espólio deverá integrar o polo passivo para que a execução prossiga.

“Regularizada a representatividade das partes, será o espólio o legitimado para impugnar todos os atos processuais praticados na execução, a partir do momento em que ingressa nos autos”, disse ela.

Prosseguimento de investigação de paternidade após a morte

O ministro Marco Aurélio Bellizze foi o relator em um julgamento no qual a Terceira Turma manteve decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina favorável ao prosseguimento de ação de investigação de paternidade após a morte do autor, que foi sucedido pelo herdeiro testamentário.

O autor da ação pleiteava o reconhecimento de seu pai biológico e, por consequência, a anulação da partilha de bens feita entre os irmãos. No decorrer da ação, o autor faleceu, deixando apenas um herdeiro testamentário, que buscou a substituição do polo ativo para prosseguir com o processo.

Ao STJ, os herdeiros que entraram na partilha tentaram reverter a decisão do tribunal estadual, que considerou a substituição processual legítima. Para os recorrentes, a substituição não seria possível, tendo em vista o caráter personalíssimo da ação de investigação de paternidade.

O relator ponderou que, tendo ocorrido o falecimento do autor após o ajuizamento da ação, “não há nenhum óbice a que o herdeiro testamentário ingresse no feito, dando-lhe seguimento, autorizado não apenas pela disposição de última vontade do de cujus quanto à transmissão de seu patrimônio, mas também pelo artigo 1.606 do Código Civil, que permite o prosseguimento da ação de investigação de paternidade pelos herdeiros” (O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial).REsp 1185907REsp 1040529REsp 1645672REsp 1710406REsp 1622544

FONTE: STJ, 21 DE NOEMBRO DE 2021.

Homologação de decisão estrangeira não impede ação revisional do valor da pensão alimentícia

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No âmbito de Homologação de Decisão Estrangeira (HDE) sobre pensão alimentícia, não é possível discutir aspectos como a capacidade financeira do alimentante; porém, a homologação da sentença não impede que o executado possa ajuizar ação revisional do valor fixado, tendo em vista a disparidade entre as realidades econômicas do Brasil e do
país em que foi estabelecido o pensionamento.

Esse foi o entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao homologar a decisão da Justiça da Áustria que condenou um brasileiro a pagar pensão alimentícia para o filho.

Na peça de contestação, a Defensoria Pública (DP) alegou que o valor estipulado pela Justiça austríaca (290 euros por mês, fora os 35 mil euros de prestações atrasadas) é superior ao salário atual do alimentante, que é pedreiro e tem outros dois filhos no Brasil. Para a DP, a decisão viola princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro por ignorar a realidade socioeconômica do país e do requerido.

O relator do caso no STJ, ministro Raul Araújo, destacou que a decisão estrangeira cumpriu todos os requisitos previstos na legislação para ser homologada. Os argumentos do alimentante, apesar de relevantes, não podem ser examinados pelo tribunal no exercício de sua competência meramente homologatória da decisão proferida no exterior.
Homologação de sentença estrangeira é ato meramente formal

O magistrado destacou que a homologação é um ato “meramente formal”, no qual o STJ não adentra o mérito da disputa para verificar possível injustiça.

“Tal homologação, portanto, tem como única e exclusiva finalidade transportar para o ordenamento pátrio, se cumpridos todos os requisitos formais exigidos pela legislação brasileira, uma decisão prolatada no exterior, nos exatos termos em que proferida”, explicou.

Ele lembrou que essa homologação não significa o reconhecimento, pelo STJ, da capacidade do alimentante de arcar com o valor estipulado na sentença.

“Por isso mesmo, a homologação não subtrai do devedor a possibilidade de ajuizar ação revisional do valor da pensão de alimentos, tendo em vista a notória disparidade entre as realidades econômicas brasileira e do país em que fixado o pensionamento”, disse Araújo.

Pelo fato de ambas as partes terem sido representadas pela Defensoria Pública, o ministro entendeu que não é cabível a fixação de honorários advocatícios.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

FONTE: STJ, 18 de novembro de 2021.

Empresa é condenada por recusar retorno de auxiliar de limpeza após alta do INSS

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Considerada inapta pelo médico da empresa, ela ficou na situação conhecida como “limbo jurídico-previdenciário”

Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho condenou a Green Tech Serviços Ltda., de Vitória (ES), a indenizar uma auxiliar de limpeza impedida de retornar ao serviço após alta previdenciária. Embora o INSS tivesse confirmado sua aptidão para o trabalho, o serviço médico da empresa declarou que ela estava totalmente inapta. Por maioria, a conduta da empresa de impedir o retorno da trabalhadora, conhecida como “limbo jurídico-previdenciário”, foi considerada ilícita.

Sem benefício e sem salário

A empregada trabalhava como auxiliar de serviços gerais, fazendo limpeza em ônibus da Vix Logística, e sofreu, em outubro de 2006, fraturas na coluna e nas costas ao escorregar da escada de um ônibus. Com o acidente, passou a receber o benefício previdenciário por um ano, até receber alta pelo INSS. Contudo, ao se submeter a exame médico na Green Tech, o médico constatou incapacidade total para o trabalho.

Sem conseguir retornar ao trabalho e sem receber salários nem auxílio previdenciário, a auxiliar ajuizou reclamação trabalhista pedindo a condenação da empresa por danos morais. Segundo ela, a empresa deveria pagar seus salários ou remanejá-la para função compatível com seu estado de saúde.

Condições de trabalho

Em sua defesa, a empresa disse que não teve culpa pelo acidente. Sustentou que oferecia ótimas condições de trabalho, com observância de normas de saúde e segurança, e que o acidente ocorrera por culpa exclusiva da auxiliar, que fora negligente.

Responsabilidade

Ao julgar o caso em agosto de 2013, o Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região (ES) condenou a Green Tech ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 10 mil. Para o TRT, a conduta do empregador de não permitir o retorno da empregada ao trabalho após a alta previdenciária “demonstrou intolerável indiferença com as consequências daí advindas, impingindo sofrimento íntimo”.

O Tribunal Regional ressaltou que, se o contrato de trabalho da auxiliar não mais estava suspenso, diante da decisão do INSS que atestou a sua aptidão, “era responsabilidade da empresa oferecer trabalho, com os respectivos salários, pelo menos no período estabilitário”.

Dever de cautela

A decisão foi reformada pela Sexta Turma do TST, que entendeu que a empresa não poderia permitir o retorno de empregada que não tinha condições para isso, sob pena de violar normas de saúde e segurança. Para a Turma, a atitude demonstrou dever de cautela.

Sofrimento presumido

Para o relator dos embargos da auxiliar à SDI-1, ministro Breno Medeiros, a conduta da empresa, ao impedir seu retorno ao trabalho e, consequentemente, inviabilizar o pagamento de salário, mesmo após a alta previdenciária, se mostrou ilícita. “O sofrimento resultante da atitude abusiva da empregadora, ao sonegar direitos básicos do trabalhador, independe de comprovação fática do abalo moral. Ele é presumido em razão do próprio fato”, afirmou.

Por maioria, o colegiado acolheu os embargos e restabeleceu a condenação. Ficaram vencidos os ministros Alexandre Ramos, Maria Cristina Peduzzi, Dora Maria da Costa e Caputo Bastos. (RR/CF) – Processo: E-ED-RR-51800-33.2012.5.17.0007

FONTE: TST, 18 de novembro de 2021.

STJ permite anulação de registro de paternidade diante de vício de consentimento e ausência de vínculos biológico e socioafetivo

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Não se pode obrigar o pai registral a manter uma relação de afeto baseada no vício de consentimento, impondo-lhe os deveres da paternidade, sem que ele queira assumir essa posição de maneira voluntária e consciente. Esse foi o entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ ao dar provimento a um recurso para anular registro de paternidade, constatada a ausência de vínculo biológico e socioafetivo.

Para o Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR, embora tivesse mantido relacionamento casual com a mãe e fosse presumível que ambos pudessem ter outros parceiros sexuais, o autor da ação reconheceu a paternidade voluntariamente, na época do nascimento. Portanto, não teria sido induzido ao erro, tampouco poderia agora, cerca de dez anos depois, levantar dúvida sobre esse fato.

No STJ, com relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma considerou com unanimidade que o suposto pai foi induzido em erro na ocasião do registro, bem como não criou vínculo socioafetivo com a criança. Bellizze ressaltou que a paternidade socioafetiva deve prevalecer quando em conflito com a verdade biológica, e o pedido de anulação de registro só pode ser atendido com a demonstração de grave vício de consentimento.

A paternidade socioafetiva exige, por parte do pai, a vontade de ser reconhecido como tal – intenção que não pode decorrer de vício de consentimento, como se verificou no caso concreto. Assim, Bellizze reconheceu que o pai registral assumiu a paternidade por acreditar que a criança fosse fruto de seu relacionamento com a mãe, o que se revelou falso após o exame de DNA.

Para o ministro, que restabeleceu a sentença de primeiro grau, embora os relacionamentos contemporâneos sejam “cada vez mais superficiais e efêmeros”, isso não implica a presunção de que eventual gravidez deles advinda possa ser considerada duvidosa quanto à paternidade, “sob pena de se estabelecer, de forma execrável, uma prévia e descabida suspeita sobre o próprio caráter da genitora”.

“Comprovada a ausência do vínculo biológico e de não ter sido constituído o estado de filiação, os requisitos necessários à anulação do registro civil estão presentes, o que justifica a procedência do pedido inicial”, concluiu o relator.

Excepcionalidade do caso justifica decisão

A decisão do STJ cuida de um caso muito peculiar, segundo o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. “A situação fática reúne os elementos excepcionais considerados pela jurisprudência do próprio STJ para afastar um vínculo de filiação. Esses elementos foram demonstrados e comprovados nos autos de forma concomitantemente, o que permitiu que a conclusão fosse pela procedência da anulação da paternidade”, comenta.

De forma concomitante, foi comprovada a inexistência de vínculo biológico e socioafetivo de paternidade, bem como o vício do consentimento no momento de assunção da paternidade pelo requerente. “Com a conjunção desses três elementos, entende o STJ que, nestas situações muito peculiares, é possível o afastamento de uma dada filiação.

Essa é uma decisão que retrata uma situação excepcional, mas adequada à jurisprudência do Tribunal.”
Outro aspecto destacado pelo advogado é que a relação entre o suposto pai e a mãe da criança foi casual. “Não havia um casamento, união estável nem mesmo um longo relacionamento afetivo que desse respaldo à concepção da criança que envolvesse um projeto de vida ou uma convivência mais contínua com o autor da ação”, observa Calderón.

“Essa foi uma conclusão muito particular, pela presença desses elementos jurídicos excepcionais citados acima e também porque foi corroborada por uma situação fática e não usual, que não se repete em muitos outros do estilo. A peculiaridade fática influenciou a formação da conclusão final do julgamento, então é necessário que se tenha essa cautela para interpretar adequadamente essa decisão, em face de várias outras do tribunal, evitando transpor a conclusão muito específica desta situação para outros casos sem fazer essa devida mediação e verificação de uma similaridade tanto jurídica quanto fática.”

Melhor interesse da criança

Segundo Ricardo Calderón, o STJ avaliou que não ofenderia o melhor interesse da criança, princípio que deve balizar sempre todos os casos. “As circunstâncias fáticas e o arcabouço jurídico envolto permitiu uma conclusão de que a revisão do vínculo de paternidade não afetaria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, vértice que também deve ser considerado em casos do estilo.”

Por isso, a decisão do STJ se difere de outra proferida em outubro, que reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. Na ocasião, um homem que buscava retificar o registro civil de uma criança que, cinco anos depois do nascimento, descobriu não ser seu filho biológico teve o pedido negado pela Terceira Turma. O entendimento foi de que a inexistência de vínculo biológico não é suficiente e a mudança depende de prova robusta de que o suposto pai foi, de fato, induzido ao erro ou coagido.

“Naquele caso, o entendimento se lastreou basicamente em dois elementos que são distintos do acórdão que agora é noticiado. Naquele caso, houve a informação de que o pai não demonstrou ou não comprovou vício do consentimento na assunção da paternidade, ou seja, ele não conseguiu comprovar que teria sido induzido a erro”, difere Calderón.

No caso de São Paulo, também houve notícias da presença da socioafetividade entre o homem e o menino. Tal situação, na esteira da jurisprudência do STJ, impede que seja revista a filiação, em atenção ao melhor interesse da criança. “Havia também um matrimônio, um relacionamento de conjugalidade entre pai e mãe que estava subjacente a esse nascimento ou seja a esta prole”, acrescenta o advogado.

“No caso mais recente, do Paraná, havia um relacionamento fugaz e eventual entre o suposto pai e a mãe, sem relacionamento afetivo de longo período entre eles. Essas particularidades fática são fulcrais para a distinção de conclusão entre aquela deliberação do caso São Paulo e deliberação do caso do Paraná”, explica Calderón.

Ele conclui: “É possível concluir que a regra e a orientação prevalecentes na jurisprudência do STJ seguem sendo prestigiar a filiação socioafetiva e manter os laços sempre que presente a sua demonstração fática. Demonstrada a existência de um vínculo afetivo, a regra tem sido manter a paternidade”.
O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

FONTE: IBDFAM, 18 de novembro de 2021.

Fiador que não foi parte na ação renovatória pode ser incluído no cumprimento de sentença

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Com base na jurisprudência da corte, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as fiadoras de um contrato de locação comercial que não participaram da fase de conhecimento da ação renovatória podem ser incluídas no polo passivo do cumprimento de sentença, respondendo por todas as obrigações fixadas no julgamento da demanda – inclusive pelo aluguel determinado judicialmente, e não apenas pelo valor que havia sido proposto pelo locatário na petição inicial.

A demanda teve origem em ação renovatória de locação comercial, na qual a empresa locatária propôs a redução de 30% no valor do aluguel – de R$ 17 mil para cerca de R$ 12 mil –, alegando o aumento da concorrência, a queda da lucratividade e o elevado custo de manutenção do ponto.

A locadora não se opôs à renovação do contrato, mas requereu o aumento do aluguel. O valor foi fixado pelo juiz em R$ 31 mil por mês, com base no laudo pericial. Encerrado o processo, a locadora deu início ao cumprimento de sentença contra a locatária e suas fiadoras para receber as diferenças de aluguel e os honorários advocatícios.

Recorrentes alegaram que a fiança se limita ao valor proposto

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) considerou que a declaração das fiadoras concordando com a renovação do contrato, juntada à ação renovatória, foi suficiente para permitir sua posterior inclusão no polo passivo do cumprimento de sentença, ainda que não tenham participado da fase de conhecimento.

Ao STJ, as fiadoras alegaram que a declaração dada na renovatória gera uma obrigação de fiança limitada ao valor sugerido na petição inicial, de modo que não poderiam ser responsabilizadas pelo aluguel muito mais alto fixado judicialmente.

Lei exige declaração do fiador para o início da renovatória

A relatoria do recurso, ministra Nancy Andrighi, lembrou que o artigo 513, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) impossibilita a inclusão do fiador na fase de cumprimento de sentença quando ele não tiver participado da fase de conhecimento.

“Nos termos do disposto na legislação processual civil, não é possível a modificação do polo passivo com a inclusão, na fase de cumprimento de sentença, daquele que esteve ausente à ação de conhecimento, sem que ocorra a violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório”, complementou a magistrada ao também citar a Súmula 268 do STJ.

Porém, a relatora destacou que o caso analisado é peculiar por se tratar de ação renovatória de locação comercial. Nessa situação, apontou, a Lei do Inquilinato estabelece documentos específicos que devem instruir o processo, entre eles a indicação do fiador – ou de quem o substituir na renovação – de que aceita os encargos da fiança.

“Tal especificidade é determinante para a solução da controvérsia em questão, pois tal declaração atesta a anuência dos fiadores com a renovação do contrato, de forma que se deve admitir que sejam incluídos no cumprimento de sentença, ainda que não tenham participado do processo na fase de conhecimento”, afirmou a ministra.

Anuência do fiador diz respeito à obrigação que será fixada na sentença

Quanto ao fato de ter sido estabelecido valor locatício superior ao pleiteado na ação renovatória, Nancy Andrighi observou que a manifestação do fiador que acompanha a petição inicial busca garantir, na verdade, a obrigação que surgirá após o julgamento da demanda.

Ao negar provimento ao recurso, a relatora, citando precedente da Sexta Turma do STJ, salientou que “o encargo que o fiador assume não é o valor objeto da pretensão inicial, mas sim o novo aluguel que será arbitrado judicialmente”.  REsp 1911617


FONTE:  STJ, 12 de novembro de 2021

É possível a inclusão de cotas condominiais vincendas em execução de título extrajudicial

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​A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que é possível incluir as parcelas vincendas na execução de título extrajudicial relativo a contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio, desde que se trate de prestações homogêneas, contínuas e da mesma natureza.

O pedido do condomínio havia sido negado pelas instâncias ordinárias sob o fundamento de que essa inclusão inviabilizaria para o devedor a impugnação dos valores lançados unilateralmente pelo credor, sendo possível apenas no cumprimento de sentença de ação ordinária.

Parcelas vincendas podem entrar na execução de ação de cobrança

O relator do recurso no STJ, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que, em regra, o pedido da ação deve ser certo e determinado (Código de Processo Civil – CPC, artigo 322), isto é, deve ser expresso e especificar a qualidade ou quantidade do que se almeja. No entanto, lembrou, existem exceções com relação à certeza – como acontece com juros legais, correção monetária e verbas de sucumbência (parágrafo 1º do artigo 322) – e nas hipóteses que autorizam o pedido genérico, dispostas no parágrafo 1º do artigo 324.

Segundo o magistrado, em se tratando de obrigações de trato sucessivo, entende-se que a inclusão de prestações vincendas durante o trâmite processual deve ser tida como pedido implícito ou presumido. Salomão ressaltou que, no processo de conhecimento, o CPC estabelece expressamente que as prestações periódicas, de trato sucessivo, independentemente de pedido expresso, serão incluídas enquanto durar a obrigação (artigo 323) – o que também ocorre na ação de consignação em pagamento (artigo 541).

O relator destacou que, com relação à execução decorrente de ação de cobrança de taxas condominiais – título executivo judicial –, o STJ já sedimentou o entendimento de ser possível a inclusão de parcelas vincendas. No entanto, o ministro esclareceu que o tribunal também já se posicionou no sentido de que, no caso de título executivo judicial, não constando da sentença a condenação ao pagamento das prestações vincendas – embora passíveis de inclusão, ainda que não mencionadas no pedido inicial –, torna-se impertinente a sua cobrança na execução.

Prestações homogêneas, contínuas e da mesma natureza

Em relação ao processo de execução, afirmou o relator, ressalvado o crédito de alimentos, não existe dispositivo específico no mesmo sentido, tendo a possibilidade de inclusão das parcelas vincendas decorrido da extensão subsidiária das disposições do processo de conhecimento, tal como previsto no artigo 771, parágrafo único, do CPC.

De acordo com Salomão, o CPC de 2015 pôs fim à controvérsia que existia sobre ser a taxa de condomínio cobrável por ação executiva ou por procedimento sumário. Agora, afirmou, a lei distingue duas situações em que o devedor responde pelas obrigações condominiais: a do inquilino que as assume como acessório do aluguel (artigo 784, VIII); e a do condômino em sua relação com o condomínio (artigo 784, X). Em ambas, o devedor tem contra si título executivo extrajudicial.

“Estando comprovados os requisitos do título executivo extrajudicial, mostra-se possível a inclusão, na execução, das parcelas vincendas no débito exequendo, até o cumprimento integral da obrigação no curso do processo, diante da exegese do artigo 323 do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo de execução, conforme os artigos 318 e 771, parágrafo único“, disse.

O magistrado apontou que esse também é o entendimento previsto no Enunciado 86 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal. Para o ministro, tal posicionamento “imprime concretude aos princípios da efetividade e da economia processual, evitando o ajuizamento de novas execuções com base em uma mesma relação jurídica obrigacional”.

Luis Felipe Salomão ponderou que, com relação às prestações sucessivas (pedido presumido), deve ser feita a ressalva de que apenas as prestações homogêneas, contínuas e da mesma natureza comportam essa inclusão automática na execução. “Havendo modificação da natureza da prestação, de sua homogeneidade – por exemplo, com a inclusão de uma taxa extra pelo condomínio –, bem como eventual ampliação do ato constritivo dela decorrente, deverá ser oportunizado ao devedor o direito de se defender, por meio de embargos, em relação a esse acréscimo e limitado ao referido conteúdo”, concluiu. REsp 1835998


FONTE:  STJ, 12 de novembro de 2021.