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A Ação Popular Ambiental, um instrumento processual em defesa da cidadania

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* Clovis Brasil Pereira

Sumário:  1.  Ação Popular e sua origem histórica. 2  A ação popular no Brasil. 2.1 –  Natureza Jurídica.  2.2   Objeto da ação popular. 3.   A Ação Popular Ambiental na Constituição Federal de 1988. 3.1 – Instrumento processual, ao alcance do cidadão,  vinculado aos interesses difusos.  3.2 – Os destinatários da norma ambiental. 3.3 –  A Cidadania plena  pode admitir  restrição de direitos?  3.4 –  A legitimidade ativa na ação popular ambiental, em face do “novo conceito de cidadão”.  4. Conclusão

 


 

1.  Ação Popular e sua origem histórica

Para a perfeita compreensão da importância da ação popular ambiental, mostra-se importante mostrar  a origem histórica da ação popular e sua inserção no direito pátrio, para melhor avaliação desse  instrumento processual, e sua importância como meio  de acesso à justiça a todo  cidadão para proteção ambiental, considerando, precipuamente, as novas exigências sociais. Lembre-se de que a ação popular é um dos instrumentos jurisdicionais mais antigos e que se caracteriza como pioneiro na tutela dos direitos de caráter coletivo lato senso.

A ação popular teve sua origem no direito romano, mesmo levando em conta que, na época, não existia uma noção delineada de Estado. O  cidadão poderia encaminhar ao juiz uma demanda buscando a tutela de um bem, direito ou interesse que, diretamente não lhe pertencia, mas sim à coletividade. Apesar da falta de concepção de Estado, a tutela era compensada por "uma noção atávica e envolvente do que fosse o povo e a nação dos romanos", conforme menciona Mancuso. Assim, na época, havia uma estrita relação entre o cidadão e a res publica, fazendo surgir um sentimento institucionalizado que esta última,  pertencia de algum modo a cada um dos cidadãos romanos. Considerando esta forte relação existente, o cidadão romano estava legitimado a demandar e pedir a tutela de um direito da coletividade.

Ao longo da história, essa modalidade de ação, visava garantir o direito do povo.  Na lição do Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo[1]

“(…) a ação popular é um dos remédios jurisdicionais mais antigos  e, mesmo com marchas e contramarchas da história, podemos dizer que foi o pioneiro da defesa dos direitos coletivos lato sensu”.  

Observe-se, desta forma, que já na ação popular romana, os direitos e interesses difusos eram protegidos como ação de natureza privada. O cidadão, como indivíduo, exercia o direito de ação em nome próprio, no interesse geral do povo romano. De certa forma, muito embora desconhecido na ocasião o conceito e a caracterização de interesses ou direitos difusos, já se tinha na ação popular romana a tutela destes.

2  A ação popular no Brasil

No Brasil, esse instrumento processual surgiu pela primeira vez, na Constituição democrática de 1934, in verbis, que previa:

“Art. 113.  A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:

(…)

Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nullidade ou annullação dos actos  lesivos ao patrimônio da União, dos estados e dos Municípios”. (sic)

A ação popular foi suprimida na carta de 1937, sendo posteriormente, restabelecida na Constituição democrática  de 1946, com um alcance mais amplo, como se vê:

“Art. 141.  A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

§ 38º. Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou declaração de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista”.

A ação popular foi preservada  na Constituição Federal  de 1967 (art. 150, § 31) e na Emenda Constitucional nº 01/69 (art. 153, § 31), que fez a revisão do texto constitucional, no período mais duro do regime militar de exceção que se instaurou no país em 1964, tendo como finalidade específica a anulação de atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas, conforme se observa:

“Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros  residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

§ 31. Qualquer  cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”. 

Na Emenda Constitucional nº 01/1969, a ação popular foi reprisada com o mesmo texto.

Nesse período crítico da história da cidadania no Brasil, notadamente em  relação aos direitos civis e políticos, face ao regime ditatorial que fulminou as liberdades individuais, temos que a ação popular, foi preservada como um instrumento político de controle dos cidadãos, uma vez que este poderiam  controlar os atos tidos como lesivos, praticados pelos eleitos, em eleições de duvidosa orientação democrática. Consequentemente, o Poder Executivo, que controlava todos os movimentos de insatisfação dos grupos sociais e dos indivíduos, que atuavam na sociedade como um todo, através do aparelho repressivo que montara para combater o que denominavam “subversão política” ou “subversão à ordem social”, podiam observar e controlar as eventuais movimentações dos cidadãos na propositura de alguma ação popular.

Essa análise, resulta do fato que a ação popular é um instrumento processual característico dos regimes democráticos, e sua previsão constitucional foi mantida num dos períodos da história política do Brasil, em que mais foram solapadas as liberdades individuais e o exercício da cidadania. No mais, sua regulamentação infraconstitucional, pela Lei 4.717, ocorreu em 29 de junho de 1965, justamente após o primeiro ano da implantação do regime ditatorial que se instalou no país.

Paralelamente ao controle político, a que aduzimos,  em algumas situações a ação popular foi utilizada como forma de proteção dos direitos difusos, sendo registrados alguns exemplos pelas noticias da época, tais como:   na esfera ambiental, a tentativa de anular o projeto  de aprovação do aeroporto de Brasília, sob o argumento que a obra não se harmonizava com a concepção estética que presidiria a edificação da nova capital do pais;   a  impugnação na estância hidromineral de Águas de Lindóia, de instalação de quiosques, tapumes e toldos, ordenados à atividades comerciais sobre o gramado da principal praça pública da cidade; e anulação de resolução de Câmara Municipal de cidade de Minas Gerais, que autorizava a extração de madeira, de forma ilimitada, em floresta protetora de nascentes de águas que abasteciam a população da cidade.

Pelas características das demandas ajuizadas na época, os direitos pleiteados deixaram de ser apenas cívico-administrativos,  para ser um instrumento de controle de direito difuso e coletivo, embora na época não existisse nenhuma normatização para tutela específica dos direitos difusos e coletivos.

Na atualidade, tendo a ação popular, guindado  à esfera da proteção constitucional, tal modalidade de instrumento processual colocado à disposição dos cidadãos, acabou ganhando notoriedade, notadamente, quanto a amplitude da legitimidade ativa, tendo em vista os fundamentos e direitos fundamentais, que preservam de forma clara, a dignidade da pessoa humana, e cuja matéria será discutida mais adiante.

2.1 –  Natureza Jurídica

Para se delimitar a natureza jurídica da ação popular, é indispensável apreciar a finalidade com a mesma foi intentada, e consequentemente, a natureza da sentença proferida, podendo ser simplesmente declaratória; via de regra, constitutiva; e excepcionalmente,  mandamental, e ainda condenatória. 

Por muito tempo vigorou o entendimento que a sentença proferida na ação popular tinha somente caráter declaratório, sendo esse inclusive,   na época,   o entendimento STF[2]: “A ação popular tem caráter simplesmente declaratório”. 

Nagib Slaibi Filho[3], entende que a ação popular tem natureza mandamental:

“Remédio jurídico processual que instrumentaliza, em juízo, a pretensão ao serviço público concreto e divisível. […] a partir do momento em que  determinado ato legislativo, genérico e abstrato, institui um serviço público específico e divisível, estipulando as condições pelas quais os indivíduos podem usufruí-lo, não pode  mais o administrador deixar de prestar tal serviço nos termos e condições fixados pela lei”. 

Defendendo a posição de que, somente a ação popular pode ter natureza condenatória, em determinadas situações, pois apenas a  desconstituição do ato impugnado  não se mostra suficiente para ressarcimento de prejuízos eventualmente causados pelo agente público,   José Afonso da Silva[4],  esclarece  que: 

“O ato inválido, por lesivo, constitui ilícito gerador de prejuízo, e justifica a atribuição da natureza condenatória reparadora à sentença que acolhe o pedido do autor. Não fosse assim, a defesa do patrimônio público não se comporia, e não se obteria a finalidade precípua da ação popular, como instrumento de controle de atos do poder público ou equiparados, no que respeita à moralidade administrativa”. 

Confirmando tal entendimento, temos a  sentença judicial proferida pelo juiz J. G. Rodrigues de Alckmin, confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[5], que assim decidiu: 

“Não seria bastante, portanto, limitar-se a função fiscalizadora atribuída ao cidadão à simples declaração de nulidade do ato lesivo, proibindo-lhe, porém, obter a reparação devida aos cofres públicos. Não se obteria, assim, a finalidade visada na ação popular”. 

No mesmo sentido, é o entendimento de Ruy Armando Gessinger[6], entendendo que a ação popular tem, também,  natureza condenatória: 

“Poder-se-ia alegar que seria imaginável caso de ação popular sem efeito condenatório. Improcederia a alegação, por uma razão bem simples: são requisitos, para que caiba a ação popular, ser o ato impugnado ilegal e lesivo. Ora, sendo lesivo, mister se faz que tal dano seja reparado. Daí o efeito condenatório que sempre estará presente”.

Temos que a ação popular tem natureza jurídica declaratória, constitutiva e muitas vezes, condenatória, e essa conclusão é  tirada do próprio texto que disciplina o cabimento e o processamento da ação popular,  Lei nº 4.717/65, que em  seu artigo 11, in verbis  prescreve: 

“Art. 11. A sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de  dano, quando incorrerem em culpa.” (grifamos) 

O artigo 12,  à confirmar a natureza condenatória da ação popular, determina  de forma expressa, que:, 

“A sentença incluirá sempre, na condenação dos réus, o pagamento, ao autor, das custas e demais despesas, judiciais e extrajudiciais, diretamente relacionadas com a ação e comprovadas, bem como o dos honorários de advogado.” (grifamos) 

O artigo 14, por sua vez, tira qualquer dúvida quanto a natureza condenatória da ação popular, ao prescrever que: 

“Art. 14. Se o valor da lesão ficar provado no curso da causa, será indicado na sentença; depender de avaliação ou perícia, será apurado na execução.

 

§ 1º Quando a lesão resultar da falta ou isenção de qualquer pagamento, a condenação imporá o pagamento devido, com acréscimo de juros demora e multa legal ou contratual, se houver. 

                            (…) 

§ 3º Quando o réu condenado perceber dso cofres públicos, a execução far-se-á por desconto em folha até o integral ressarcimento do dano causado, se assim mais convier ao interesse público”. (grifamos) 

Entendemos que o processo, como um instrumento processual à serviço da jurisdição, deve servir de remédio para a efetiva prestação jurisdicional. Será de todo incabível, que a ação popular se preste apenas para declarar a nulidade ou desconstituir um ato tido como lesivo ao patrimônio público, sem que,  no  mesmo provimento, não possa condenar o causador dos eventuais danos, à sua reparação, notadamente numa época em que se proclama a necessidade de maior efetividade ao processo, maior celeridade na prática dos atos processuais, em busca da diminuição no tempo das demandas judiciais, como fundamentos  que nortearam a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2005), e as alterações subseqüentes na legislação processual civil, introduzidas pelas Leis 11.187/05, 11.232/05, 11.256/06, 11.257/06 e 11.280/06, além de outras alterações que são objeto de projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 

2.2   Objeto da ação popular 

O objeto da ação popular, está relacionado diretamente ao pedido da ação, e que legitima o cidadão à requer a prestação jurisdicional. 

Segundo Milton Paulo de Carvalho[7], a respeito do objeto da ação, diz: 

“O pedido é o conteúdo da demanda, a pretensão processual, o objeto litigioso do pedido, o mérito da causa. É o anseio, a aspiração do demandante, de que para aquela parcela da realidade social por ele trazida na demanda e que lhe está sendo prejudicial, seja dada a solução conforme ao direito segundo o seu modo de entender”. 

Dentro das hipóteses previstas na Constituição Federal, art. 5º, LXXIII, cabe ao magistrado, ao receber o pedido inicial, fazer uma análise sumária, para verificar se a pretensão  atende ou não  ao objeto da ação popular, de conformidade com a delimitação contida no  artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, ou seja, para: 

“(… )  anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”. (grifamos) 

Atendido o objeto da ação popular,  deve o Juiz, no  juízo de admissibilidade,  examinar também se a demanda atende às  condições da ação, exigidas no artigo 267, inc. VI, do Código de Processo Civil, quais sejam, a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das  partes e o interesse processual. 

3.   A Ação Popular Ambiental na Constituição Federal de 1988 

A ação popular ambiental, como instrumento assegurado pelo  legislador constituinte, ao cidadão, para proteção do meio ambiente, se constituiu em importante inovação, para a garantia do exercício da cidadania, uma vez que somente através da efetiva participação política, nasce o comprometimento das  pessoas com a causas que são de interesse coletivo e da sociedade, de forma global. 

Embora o instituto da ação popular existisse no plano infraconstitucional (Lei 4.717/65), a elevação da ação popular ao plano constitucional, e a ampliação dos casos de seu cabimento, incluindo-se a proteção do meio ambiente, em prol da sadia qualidade de vida e da vida com dignidade,  se constituiu em importante avanço para a cidadania.

A ação popular ambiental habilita o cidadão a tutelar tanto a defesa do erário público ou patrimônio público, da moralidade pública, atinentes a proteção ambiental e ao bem difuso ambiental, conforme se depreende do disposto no artigo 5.º, LXXIII da Constituição da República Federativa do Brasil.

Objetiva-se na ação popular ambiental, a uma desconstituição de um ato lesivo e à condenação dos responsáveis do poder público ou terceiros à reposição do statu quo anterior, admitindo ainda, a condenação do infrator ambiental, à indenização por de perdas e danos.  Nesse passo, faz parte desta tutela jurisdicional a possibilidade de obter por esta via a reparação  do dano ambiental, a título individual, com dimensão coletiva difusa em face do bem protegido.

Por outro lado,  a proteção ambiental deve ter, quanto possível, caráter preventivo, porém, isso nem sempre é possível, diante da ação agressiva e devastadora dos depredadores dos bens ambientais,  em contraposição, com a lenta  resposta jurisdicional.  Consumado o ato lesivo, sem dúvida a finalidade preventiva, se transformará para a finalidade de ressarcimento dos danos causados.

3.1 – Instrumento processual, ao alcance do cidadão,  vinculado aos interesses difusos

Segundo o Professor Celso Antonio Fiorillo[8],

“A ação popular é um dos remédios jurisdicionais mais antigos e, mesmo com marchas e contramarchas da história, podemos dizer que foi pioneiro na defesa dos direitos coletivos lato sensu”.

Para Heraldo Garcia Vitta[9],

“(…) a ação popular é um dos instrumentos jurídicos colocados à disposição das pessoas para proteger o meio ambiente”.

A  Ação Popular Ambiental mostra  que o sistema positivo brasileiro instituiu uma democracia social ambiental, concedendo ao cidadão legitimidade, a título individual, de exercer a tutela jurisdicional ambiental, ao contrário do  que vigora na Itália, onde o ambiente surge como bem público e o dano ao meio ambiente como um dano ao Estado, com conseqüente institucionalização pública dos instrumentos processuais destinados à defesa ambiental.

No Brasil, ao atribuir ao cidadão a legitimidade na defesa jurisdicional do ambiente, via ação popular, está sendo aperfeiçoado  o exercício da tarefa solidária e compartilhada do Estado e a coletividade, na consecução do poder dever da proteção ambiental. A Ação popular é o meio jurisdicional idôneo para defesa por parte dos cidadãos, de interesse seu e de toda uma coletividade.

Esse compartilhamento se depreende do mandamento constitucional do artigo 225, que determina ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio ambiente, e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Anteriormente à vigência da atual Constituição Federal, promulgada em 1988, a ação popular era de uso restrito, havendo grande discussão na doutrina, quanto a legitimidade para sua proposição.

Discutindo o conceito  de ação popular e seu alcance, no seu nascedouro, é importante a lição de Fagundes Seabra,[10] que assim expressou:

”Não é o ser intentada contra pessoa jurídica de direito público, nem o dizer respeito a relações jurídicas em que o Estado, ou outra dessas pessoas, seja interessada ou parte, que lhe empresta caráter específico. Para que se lhe atribua sentido especial, é preciso que alguma coisa a peculiarize  processualmente. E é à luz dessa orientação que e há de conceituar a ação popular, que sendo remédio de direito processual, embora com aplicação  relações de direito administrativo, daquele, dos princípios que o regem, há de trazer os elementos específicos da sua classificação. É o elemento que permite lhe atribuir caráter formal peculiar é o interesse à propositura, que, aparecendo individualizado nas ações em geral (até mesmo nos casos de substituição processual, onde o autor, não sendo o titular da relação de direito substancial, o é, entretanto, do direito de agir), nessa ação, que envolve direitos, bens ou interesses regidos pelo direito administrativo, se apresenta indeterminado, pelas repercussões impessoais da lide”.

Foi José Carlos Barbosa Moreira[11] um dos primeiros doutrinadores  a se posicionar em favor da ação popular como instrumento de defesa dos direitos difusos, fundando sua posição no alcance que devia  ser dado à lesão do patrimônio, que não poderia ficar adstrita apenas as lesões de caráter pecuniário, como era a previsão inicial da Lei 4.717/65.

A polêmica a respeito do alcance da ação popular chegou ao fim, no entanto, com  a Constituição de 1988[12], que autorizou de forma expressa, o cabimento da ação popular para proteção  dos danos ao meio ambiente, ao asseverar:

“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio  histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

Assim, a ação popular passou à condição de ação popular constitucional, sendo definida por José Afonso da Silva[13]  como:

“(…) instituto processual civil, outorgado a qualquer  cidadão como garantia  político-constitucional (ou remédio constitucional), para a defesa do interesse da coletividade, mediante a provocação do controle jurisdicional corretivo de atos lesivos do patrimônio público, da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural”.

Na lição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo[14],

“a ação popular presta-se à defesa de bens de natureza pública (patrimônio público) e difusa (meio ambiente), o que implica a adoção de procedimentos distintos. Com efeito, tratando-se da defesa do meio ambiente, o procedimento a ser adotado será o previsto na Lei Civil Pública e no Código do Consumidor, constituindo, como sabemos, a base da jurisdição civil coletiva. Por outro lado, tratando-se da defesa de bem de natureza pública, o procedimento a ser utilizado será o previsto na Lei nº 4.717/65”.

A ação popular, colocada no plano constitucional,  como um instrumento idôneo à proteção do meio ambiente, alargou o alcance dessa modalidade de ação, possibilitando aos cidadãos em geral, a busca da proteção jurisdicional, para preservação de bem de interesse coletivo.  

Por sua vez, a  prática efetiva do exercício deste instrumento jurisdicional legitima e dá maior transparência, controle e fiscalização aos atos praticados pelo poder público. Acrescente-se, conforme já referido, que este meio de defesa da cidadania ambiental abre espaço para intervenção direta do indivíduo, em verdadeira possibilidade do exercício da cidadania participativa nas correções das disfunções existentes nas tarefas da proteção ambiental como bem pertencente à coletividade.

Trata-se, de fato, da abertura de uma via de mão dupla na proteção ambiental, onde o cidadão pode passar de mero beneficiário e destinatário da função ambiental exercida pelo Estado para ocupar uma posição positiva, podendo intervir nesta, exercendo sua responsabilidade social compartilhada, conforme preceitua o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, com legitimidade inconteste, para reclamar direito coletivo, sem ter que invocar e demonstrar interesse pessoal no ato lesivo ao meio ambiente.

O direito do cidadão, a título individual, de acesso à justiça jurisdicional da proteção ambiental faz surgir a figura do direito subjetivo ao meio ambiente, ecologicamente equilibrado, que não é incompatível com a autonomia do bem ambiental. Não se deve esquecer de que o bem ambiental é de evidente relevância para a coletividade e caracterizado, como bem jurídico próprio e autônomo, tutelado em si e por si mesmo.

A proteção jurídica subjetiva do ambiente fica clara a partir do momento em que a Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito fundamental ao meio ambiente extensivo a todos os brasileiros. Neste perfil entende-se que a tutela, via ação popular ambiental é um direito subjetivo fundamental de caráter difuso da coletividade e acionável individualmente pelos cidadãos e, por isso, está  inserido dentro da categoria de dano ambiental individual.

Existe  uma  diferença primordial da tutela jurisdicional subjetiva, via ação popular, das demais de índole individualista. Esta diferença  está no fato de que esta última funda-se em um interesse próprio e, no caso de ressarcimento de lesões, destinam-se ao indivíduo diretamente, de forma exclusiva e pessoal. No entanto, no primeiro caso, apesar de ser identificável com um interesse individual de toda coletividade,  a tutela destina-se à proteção de um bem jurídico de dimensão coletiva ou difuso e o ressarcimento não se faz em prol indivíduo, mas, sim, indiretamente, em favor da coletividade, por se tratar de um bem indivisível e de conotação social.

Trata-se, de fato, de um direito fundamental na sua dupla natureza, posto que são, de um lado, direitos subjetivos e, por outro, constituem elementos fundamentais de ordem objetiva da comunidade.

E como conseqüência, o legislador constitucionalista de 1988, aquinhoou  os brasileiros em geral, e os estrangeiros residentes no pais, com um instrumento processual de grande alcance para o exercício e o fortalecimento da cidadania.

3.2 – Os destinatários da norma ambiental

Os destinatário da norma ambiental, são os brasileiros e os estrangeiros residentes no país, nem qualquer distinção ou restrição, conforme se infere do texto constitucional vigente. 

É no artigo 225, da Carta Magna, que encontramos de forma clara, os destinatários dos bens ambientais e consequentemente, da norma ambiental, ao definir que: 

“(…) todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (…)”. 

A partir da colocação do meio ambiente, como essencial à sadia qualidade de vida, significou dizer que, sem meio ambiente equilibrado, não haverá vida com qualidade, vida digna, o que parece-nos  absolutamente verdadeiro. 

Mas não parou aí o legislador constituinte. Ao mesmo tempo em  que definiu o meio ambiente como essencial, atribuiu ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 

A destinação da norma ambiental  fica clara, e pode ser constatada a partir da atribuição de um  direito/dever,  ao cidadão, ensejando que este,  no plano do direito individual, possa agir em favor da proteção do meio ambiente, como um direito difuso e coletivo, em  co-responsabilidade, com o Estado, para conservá-lo e preservá-lo inclusive para as gerações futuras.

Aliás, foi sábia em nosso entendimento, a orientação  legislativa, de colocar especificamente ao dispor dos cidadãos, individualmente, a possibilidade de demandar direito difuso, em prol da coletividade, pois o meio ambiente transcende as fronteiras do direito individual, para se irradiar como  um direito coletivo, essencial, um verdadeiro macrodireito, que não pode ser classificado como bem público, nem como bem privado (Código Civil, art. 98). 

Trata-se,  de direito difuso,  o que significa dizer, o meio ambiente não é especificamente,  propriedade de ninguém:   pertence a cada um e, ao mesmo tempo, pertence a todos, não havendo  como identificar o seu titular,  e considerando que seu objeto é insuscetível de divisão. Cite-se, como  exemplos, o ar, as florestas, a fauna, as águas pluviais, que são bens ambientais de uso comum do povo, e sem os quais, não há que se falar em vida digna.

3.3 –  A Cidadania plena  pode admitir  restrição de direitos? 

Este é o desafio que ousamos enfrentar no presente trabalho.  Ao nosso ver, a  cidadania, tal como está posta na Constituição Federal vigente, para ser exercida em toda sua plenitude, não pode sofrer qualquer restrição no exercício de seus direitos individuais assegurados constitucionalmente, sejam eles direitos civis, políticos ou sociais.

A responsabilidade da  vida em sociedade,  deve ser compartilhada por todas as pessoas que a compõe, independentemente da estratificação social a quem pertençam, o que importa dizer, independente de idade, raça, credo religioso, matiz política, posição econômica, etc.

A resposta à pergunta proposta, exige porém, uma interpretação sistemática do texto constitucional, desde seus fundamentos, até os direitos individuais, sociais, e os bens ambientais  assegurados, como meios de garantia `para todas as pessoas, de um bem maior, a vida, tutelada de forma inequívoca na Constituição Federal de 1988, e de plena vigência.

O legislador constituinte de 1988, ao promulgar a Constituição Federal, em prol de um Estado de Democrático e de Direito, o fez para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna.

Portanto, se são valores supremos, podemos entender, que são valores absolutos, e como tal, indispensáveis, fundamentais, e a perseguição na consecução desses valores, está plenamente assegurada no próprio preâmbulo do texto constitucional vigente.

A seguir, a Constituição Federal, no art. 1º, incisos II e III,  assegura como fundamentos, e sem qualquer distinção aos destinatários da norm constitucional,  a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

O artigo 3º, ao descrever os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,  estabelece: 

“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; 

                            (…) 

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 

                            (…)”  (grifamos)  

Pelo texto, os objetivos fundamentais da República são dirigidos  a todos, sem qualquer preconceito, inclusive de idade ou outras quaisquer formas de discriminação, o que depreende, que a  defesa  de tais  objetivos, está  de forma irrestrita, ao alcance de todos os detentores de direitos, e não apenas para  parte deles. 

O artigo 5º, caput,  assevera  que: 

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 

Está garantida, portanto, à todos, a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, o que importa afirmar, sem restrições de quaisquer direitos. A única delimitação feita, a respeito da destinação da norma constitucional,  à rigor, e até por  obviedade, é que  ela se dirige  aos brasileiros de forma geral, e aos estrangeiros residente no País, pois fora dos limites territoriais do Brasil, as  normas jurídicas, devem atender  os princípios de direito internacional que regem a relação entre os povos. 

No extenso rol de direitos e garantias  do artigo 5º, destacamos alguns que são chaves importantes para o conceito de cidadania plena que concebemos, tais como: 

“I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; 

É garantida, portanto, a isonomia entre homens e mulheres, para assegurar o acesso aos direitos em geral  garantidos à nível constitucional, inclusive a preservação do meio ambiente equilibrado. 

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

 

a) O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. 

Pela aludido dispositivo, todos, portanto, sem qualquer distinção,  tem direito de petição em defesa de direitos, em face de ilegalidades, contra os agentes públicos, como é o caso específico do cabimento da ação popular ambiental, para defesa dos bens ambientais.

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 

Essa é uma garantia constitucional da maior importância, e que assegura a todos os cidadãos, o direito debater às portas do Poder Judiciário para reclamar qualquer lesão de direito, incluindo-se aqui, o meio ambiente;

LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, e ao patrimônio histórico e cultural […]. (grifamos)  

Por este inciso, o constituinte elevou a ação popular ao nível de preceito constitucional, praticamente derrogando as disposições contrárias que estão dispostas na Lei nº 4.717/65, e que reconhecia como  cidadão, apenas os que estava habilitado ao exercício dos direitos políticos, entendo-se apenas os eleitores.

Parece-nos que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição de 1988, restando  pois  derrogado e sem eficácia jurídica.

LXXVII – são gratuitas […] e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício a cidadania.

 

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

 

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em quer a República do Brasil seja parte. 

Este inciso e seus parágrafos, é primordial para o entendimento do novo conceito de cidadania contemplado pelo constituinte, pois: 

Primeiro,  assegura a gratuidade de todos os atos necessários ao exercício da cidadania, incluindo-se o direito ao meio ambiente;   

Segundo, determina que os novos direitos e garantias estabelecidas no texto constitucional, passaram a ter eficácia imediata, com a promulgação da Constituição, e nesse passo, o meio ambiente passou a ser um direito difuso, de uso comum do povo; 

Terceiro, garantiu a todos os contemplados da norma constitucional brasileira, outros direitos assegurados no plano internacional, referendados por tratados  dos quais o Brasil é signatário, com destaque para os que determinam a conservação do meio ambiente, como um bem da humanidade. 

Ao tratar dos direitos sociais, o artigo 6º  assegura a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados “na forma desta Constituição”, o que significa dizer que tais direitos são destinados  aos brasileiros e aos estrangeiros residentes  no  País, sem quaisquer distinção, preconceito ou discriminação.     

Ao tratar da Ordem Econômica e Financeira, no artigo 170 da Constituição vigente, o legislador constituinte  determinou, in verbis: 

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: 

                            (…) 

V – defesa do consumidor;

 

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; 

                            VII – redução das desigualdades regionais e sociais; 

(…)”. (grifamos) 

Mais uma vez o legislador constituinte reafirmou que a ordem econômica e financeira, tem o fim de assegurar a todos existência digna, relacionando, dentre outros, dois princípios que destacamos como vitais para o alcance da plena cidadania, quais sejam, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente. 

A seguir, ao tratar da política urbana, no artigo 182, a Constituição Federal vigente, prevê:

“A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” 

É nas cidades que vivem mais de 80% da população brasileira, e a organização e o desenvolvimento do espaço urbano, é vital para uma vida digna. No mais, a Carta Magna garante o bem-estar de todos os habitantes das cidades  sem objeções de raça, idade, nacionalidade, etc., sendo mais uma razão para se afirmar que o exercício da cidadania, não admite restrições de qualquer natureza. 

Por fim, o artigo 225, analisado minuciosamente nos capítulos antecedentes, garante que: 

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (…)”. (grifamos) 

Mais uma vez o legislador  garantiu um direito primordial à vida humana  – o meio ambiente – à todos, sem quaisquer restrição ou discriminação. 

Portanto, cidadania plena, se constrói com a participação efetiva e consciente das pessoas, não só através dos partidos políticos, mas em associações de classe, comunidades de bairro, ou mesmo no nível individual, em ações e interferências que  se refletem na comunidade em que tais pessoas vivem e interagem, ou de forma global, na própria sociedade.       

Na hipótese dos direitos fundamentais, garantidores da sadia qualidade de vida às pessoas, serem desrespeitados, cabe, em nosso entender, a defesa de tais direitos por qualquer um do povo, sem qualquer discriminação ou restrição. 

Somente dessa forma, estaremos dando irrestrita  efetividade aos preceitos constitucionais que garantem plena cidadania e dignidade humana a todas as pessoas, brasileiras ou não, desde que residentes no País, sem considerar-lhes a raça, origem, idade, sexo, condição econômica, nível cultural, credo religioso ou  ideologia política,   a qual pertençam. 

Assim, à luz do que dispõe a Carta Magna vigente, entendemos que o exercício da plena cidadania, não admite restrição de direitos.

3.4 –  A legitimidade ativa na ação popular ambiental, em face do “novo conceito de cidadão”

Uma questão de grande relevância, face à autorização constitucional, da ação popular ambiental, é quanto a legitimidade ativa para propositura da ação.

E do que decorre essa discussão? Para melhor posicionamento, é importante que se faça uma breve análise da ação popular concebida pela Lei 4.717/65, para o fim de proteger a coisa pública.

Esta atribui legitimidade ativa, conforme disposição de seu artigo 1º, para “qualquer cidadão”, estabelecendo no § 3º, “que aprova para ingresso em juízo, será feita com o título de eleitor, ou com documento que a ele corresponda”.

Reportando-nos ao tempo da referida lei, ano de 1.965, temos que pela Constituição Federal então vigente, promulgada em 1946, era considerado cidadão, o eleitor regularmente inscrito, com mais de 18 anos de idade.

Igual disposição prevaleceu na Constituição Federal subseqüente,  outorgada pelo regime militar em  1.967, e na Emenda Constitucional nº 01/1969, que preservaram a condição de cidadão, para os eleitores, entendendo-se estes, os maiores de 18 anos,  que era a idade mínima para o alistamento eleitoral. 

A partir da Constituição Federal de promulgada em 08 de outubro de 1988, o conceito de cidadania passou a ser rediscutido, em razão dos novos fundamentos constitucionais, da cidadania e da dignidade  da pessoa humana.

Para a consecução desses fundamentos basilares, a Constituição assegurou  direitos individuais, civis e políticos, no artigo 5º; direitos sociais garantidores do Piso Vital Mínimo, constituídos do direito à educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, entre outros, no artigo 6º;  pelo artigo 225, assegurou  direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantindo bens ambientais representados pelo meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente do trabalho e cultural, extensivo a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, sem qualquer restrição, preconceito ou discriminação.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado, foi  guindado a um direito constitucional, “de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade  de vida”.  Em suma, a Carta Magna, passou  tutelar a vida em todas as suas formas, em sua dimensão máxima, garantindo cinco causas de pedir essenciais à sadia qualidade de vida, quais sejam: o patrimônio genético, o patrimônio cultural, a vida na cidade, a saúde e os recursos naturais, sem os quais, não se pode falar em dignidade humana.

Foi estimulada a participação popular, através de vários instrumentos criados pelo legislador constitucional,  tendo como exemplos,  o mandado de injunção, a elaboração de leis por iniciativa do povo, além da ação popular  ambiental, conforme a previsão contida no artigo 5º, inc. LXXIII.  O direito do voto, foi ampliado, contemplando os  analfabetos e os menores, a partir dos dezesseis anos. 

Parece-nos que a partir de então, um novo conceito de cidadão, emergiu da Carta Magna de 1988.

A doutrina, em sua maioria,   se mostra ainda tendente a aceitar a legitimidade ativa na ação popular constitucional, tal qual, a concebida na Lei nº 4.717/65, ou seja, aos cidadãos, considerados este, apenas os eleitores.

Assim é o entendimento de Edis Milaré:[15]

“O direito de propor ação popular é deferido apenas àquele que ostente a condição de cidadão, ou seja, ao eleitor, que participa dos destinos políticos da Nação.

Wilson de Souza Campos Batalha[16], diz que:

‘A ação popular é ação de conhecimento, que não compete a quisque de populo, nacionais ou estrangeiros residentes mo País, mas exclusivamente “aos cidadãos”, natos ou naturalizados, detentores de direitos políticos” .

No mesmo passo,  segue Rodolfo de Camargo Mancuso[17]:

“Na ação popular ‘a situação legitimante’ é a constante no art. 5º, LXXIII da CF e nos arts. 1º e 4º da Lei 4.717/65, ou seja, a atribuição, a qualquer cidadão, do direito a uma gestão eficiente e proba da coisa pública (patrimônio público, mio ambiente, moralidade administrativa) Sendo assim, tal ‘situação legitimante’ deve passar, logicamente, pelo exame do conceito de “cidadão”. […] Todavia, somente essa condição de ‘brasileiro’ não basta para conferir legitimidade ativa na ação popular, porque os tetos exigem ainda o implemento da condição de eleitor, a saber: a prova de estar o brasileiro no gozo dos direitos políticos (direito de voto, que a Constituição Federal atribui, obrigatoriamente, ‘para os maiores de 18 anos” e, facultativamente, para os analfabetos, os maiores de setenta anos, os maiores de dezesseis e maiores de 18 anos’), vedado tal direito aos estrangeiros (art. 14, § 1º, incisos e alíneas e § 2º).”

Para José Afonso da Silva[18]

“(…) a cidadania se adquire com a obtenção da qualidade de eleitor, que documentalmente se manifesta na posse do título de eleitor válido. O eleitor é cidadão, é titular da cidadania, embora nem sempre possa exercer todos os direitos políticos.

Na mesma posição doutrinária, se somam, entre outros,    Hely Lopes Meirelles, Toshio Mukai, Michel Temer,   Pinto Ferreira[19].  Este último assim entende:

“(…) A legitimação ativa recai, por conseguinte, em qualquer cidadão. O conceito de cidadão é um conceito restrito, devendo discriminar-se, assim, as duas condições, a condição de cidadão e a condição de nacional. São, destarte, duas coisas diferentes, a saber: a nacionalidade e a cidadania. A nacionalidade vincula a pessoa à nação; a cidadania é o vinculo que associa o indivíduo ao Estado, atribuindo-lhe o direito de sufrágio ou o gozo dos direitos políticos. O nacional é o brasileiro, que pode ser o brasileiro naturalizado, conforme a nacionalidade, seja de origem ou derivada. O cidadão é o brasileiro que tem a fruição legal dos direitos políticos”.

Pela interpretação sistemática da Constituição Federal de 1988, tendo como ponto de partida seus fundamentos basilares – a cidadania e da dignidade humana – e ainda, da atribuição do meio ambiente como um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida das pessoas, entendemos que a ação popular ambiental, criada no artigo 5º, inciso XLLIII,  não tem como legitimados ativos, apenas os  cidadãos titulares de direitos políticos, nos moldes da Lei 4.717/65, disposição infraconstitucional, que ao nosso ver, restou derrogada, para o fim de legitimação na nova ação popular ambiental.

É importante ainda se analisar a co-participação da coletividade junto ao Poder Público,  com a imposição constitucional de um dever de defender a preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações.

Ora, se é um direito-dever, o exercício ativo de ambos, no tocante ao meio ambiente, não deve  sofrer qualquer espécie de limitação para seu gozo e exercício, uma vez que a Constituição Federal não fez qualquer reparo, aos destinatários da norma, de ser eleitor ou não, ser  brasileiro ou não.

Nessa direção é a posição do Prof. Celso Antonio Pacheco Fiorillo[20] um dos pioneiros na tese revisional do conceito de cidadania, a partir da Carta Constitucional de 1988, que entende inaplicável a legitimidade ativa explicitada nos arts. 1 e 3º da Lei 4.717/65, para a ação popular ambiental, e argumenta  que:

“Todavia, aludida relação em sede de ação popular ambiental não é acertada, porquanto estaria restringindo o conceito de cidadão à idéia ou conotação política, ou seja, somente o indivíduo quite com as suas obrigações eleitorais poderia utilizar-se da ação popular. Dessa foram, em sendo de todos os bens ambientais, nada mais lógico que não só o eleitor quite com a Justiça Eleitoral, mas todos os brasileiros e estrangeiros, residentes no País possam ser rotulados cidadãos para fins de propositura da ação popular ambiental”.

Essa posição embrionária e pioneira assumida pelo Prof. Celso Antonio Pacheco Fiorillo,  discutida exaustivamente ao longo das aulas ministradas,  motivou o presente trabalho, convicto de que um “novo conceito de cidadão” exsurgiu da Carta Magna de 1988, não limitado apenas, de forma discriminatória,  ao detentor do direito do voto.

A conceituação de cidadão de José Sergio Monte Alegre[21] é elucidativa para a construção  do conceito de cidadão ora defendida:

“(…) a palavra cidadão, na linguagem constitucional, não é sempre equivalente perfeito de eleitor. Prova de que não se acha no art. 64 do ADCT, pois do contrário somente o eleitor teria direito a receber um exemplar da Constituição Federal, isso apesar de todos os brasileiros estarem igualmente sujeitos às suas disposições! Porém, não só ali.  No n. V, do § do art. 58, há também prova de que não existe relação necessária entre cidadão e eleitor, porquanto se houvesse, as Comissões da Câmara e do Senado, ou as do Congresso Nacional, não poderiam solicitar depoimentos a não ser de autoridades e eleitores! E mais: a insistir-se na idéia de equivalência, apenas o partido político, a associação, o sindicato ou o eleitor poderiam representar ao Tribunal de Contas contra irregularidades ou ilegalidades, enquanto que qualquer pessoa poderia dirigir às comissões parlamentares, do Congresso, da Câmara e do Senado, petições, reclamações, representações ou queixas contra atos das autoridades ou entidades públicas, quaisquer que sejam, o que seria rematada estultice, dessa de fazer corar um frade de pedra! Daí se segue que, se a um mesmo vocábulo o texto atribui significados descoincidentes, o acertado é dar-lhes, em cada caso, o sentido mais ajustado à finalidade do sistema inteiro, porque é de sistema que se trata…”.

A mesma posição começa a ganhar corpo, e se difundir em trabalhos monográficos e artigos, dos quais destacamos Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim[22], Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do  Estado de Pernambuco, que defende a amplitude do conceito de cidadão, ao escrever:

“Muito se tem discutido sobre a limitação ao exercício dos direitos individuais. Dentro desse contexto, cabe indagar: válido é o § 3º do artigo 1º da lei nº 4.717/65, que exige título de eleitor como requisito para ajuizamento da ação popular?

[…] Hodierarnamente, reconhece-se a distinção entre os conceitos de cidadania e nacionalidade, sendo a nacionalidade considerada vínculo ao território de um estado e a cidadania referindo-se à participação efetiva do indivíduo na vida social e na vida do Estado(…)”.

No referido artigo, o Dr. Pierre Souto Maior estabelece uma diferença entre conceito de cidadania em sentido amplo e sentido restrito, sendo o primeiro, referente a participação do cidadão nas atividades próprias do exercício de direitos individuais, tendo tal preceito fundamentando no artigo 1º da Constituição federal, enquanto que, em sentido estrito, aí sim, trata da condição de ser eleitor, votar e ser votado.

No dizer do  aludido magistrado, Dr. Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim,

“(…) para praticar atos de exercício da cidadania e, portanto, ser considerado cidadão, não é necessário estar no gozo dos direitos políticos, pois, do contrário, poder-se-ia pensar que os condenados criminalmente não podem peticionar em defesa de seus direitos individuais ou requerer informações à órgão público. Já quanto ao último dispositivo mencionado, há uma melhor distinção quanto aos conceitos de cidadania e direitos políticos, quando afirma que não será objeto de delegação ao Presidente da República a elaboração da legislação pertinente à nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais.

Ressalte-s, outrossim, a condição do analfabeto que se abstém do alistamento eleitoral. Não dispõe, portanto, de título de eleitor. Impedido estaria  de praticar os atos supracitados?  Deixaria de ser cidadão?  Evidente que não, o que reafirma a amplitude do conceito de cidadão.

Dessa forma, data vênia, ao contrário do que José Afonso da Silva prega […], errônea é a afirmação simplória de que cidadão é quem pode votar e ser votado, ou que se adquire a condição de cidadão com o alistamento eleitoral.”

Ao fazer a análise do conceito de cidadania incutido na Lei 4.717/65, enfatiza que a exigência da prova de eleitor, feita com a apresentação de título de eleitor exigido na lei infraconstitucional, tinha apoio na Constituição federal então vigente, a Carta de 1946, que não tinha como princípio fundamental a cidadania, tal como concebido na Carta Magna de 1988, não vislumbrando-se naquela Constituição um comprometimento formal e cabal do Estado,  em estimular ações em favor do fortalecimento da cidadania plena,  uma vez  que era pueril, a noção de cidadania em sentido amplo e em sentido estrito, estabelecendo-se tal diferença, pela primeira vez na Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional  nº 01/69.

Arremata assim o Dr. Pierre Souto Maior, posicionando-se em favor do “novo conceito de cidadão”  nascido com a Constituição de 1988:

“(…) o artigo 5º, inciso LXXIII, sendo direito individual garantido pela Constituição da República, deve ser interpretado o mais amplamente  possível.

O Estado brasileiro assumiu compromisso de estimular o exercício da cidadania em seu grau máximo. Verdadeiro fundamento de nossa Constituição, a cidadania não pode ter suas formas de exercício restringidas por uma interpretação que relega a um segundo plano uma diretriz básica do sistema constitucional brasileiro.

De todo o exposto, a legitimidade para propor ação popular não deve  ser restrita a quem vota ou é votado, pois não se trata de direito político, mas direito fundamental do cidadão que, mesmo condenado criminalmente, ou analfabeto, contribui para a formação da riqueza nacional. Repita-se que não se pode partir de uma lei ordinária, que há muito necessita de reformulação, para contrariar a Constituição da República que, como já se disse, produziu um Estado comprometido, fundamentalmente, com o exercício da cidadania. O § 3º do artigo 1º da lei nº 4.717/65 não foi recepcionado pela atual Constituição. Dessa maneira, a legitimidade para ajuizar ação popular deve ser franqueada a todos os cidadãos. […] Solução esta que se coaduna com a interpretação teleológica e sistemática da Constituição da República e afirma a condição de cidadão do analfabeto e do condenado  criminalmente”.

Em consonância com  a conceituação moderna de cidadania, formulada a partir da interpretação sistemática da Constituição Federal de 1988, de plena vigência, a partir de seus fundamentos em cidadania e dignidade humana, esposamos o entendimento que a legitimidade ativa na ação popular ambiental, se estende a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, sem quaisquer preconceito ou discriminação, destinatários do direito ambiental, como um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida,  consagrado no artigo 225, da Carta Magna, a quem o legislador constituinte atribuiu inclusive, co-responsabilidade com o Estado com o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

4. Conclusão

Foi instigante a pesquisa para formulação do conceito de cidadão, como legitimado ativo na ação popular ambiental,  criada pelo legislador constituinte, a partir do artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal de 1988. 

Tal conceito foi formulado após uma visão histórica do conceito de cidadania, construído no Brasil, desde a  Proclamação da Independência, em 1822, começando a nível constitucional,  pela Constituição Imperial de 1824, passando pelas Constituições subseqüentes até os dias atuais. 

Marchas e contramarchas sofreu a conceituação da cidadania, tornando-se mais abrangente nas Constituições promulgadas em momentos históricos de períodos democráticos, tais como em 1946 e 1988, quando os direitos civis, políticos e sociais foram mais exaltados, e foram criadas condições favoráveis à uma maior participação das pessoas, na vida política nacional. Importante se dizer, que cidadania importa em participação na vida política e social da sociedade, e esta somente se torna possível nos Regimes Democráticos. 

No fortalecimento da cidadania, e na reformulação de seu conceito clássico, reproduzido ao longo da história constitucional do Brasil,  de que é  cidadão é apenas aquele que detêm direitos políticos, pode  votar e ser votado,  vimos a promulgação da Constituição Federal de 1988, erigida em pleno Estado Democrático de Direito, e que estabeleceu como fundamentos, em seu artigo 1º, incisos II e III, a cidadania e a dignidade humana. 

A partir de então, entendemos que foi formulada  uma nova concepção da cidadania,  ao garantir a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, sem restrições, direitos individuais em profusão (artigo 5º), direitos sociais (artigo 6º) garantidores do Piso Vital Mínimo (educação, saúde, moradia, trabalho, assistência previdenciária, lazer, dentre outros), existência digna, conforme os ditames da justiça social, resguardando  princípios assecuratórios de defesa do consumidor e defesa do meio ambiente (artigo 170, incisos V e VI).  

A Constituição garantiu ainda o ordenamento do pleno de desenvolvimento das funções sociais da cidade, onde vivem mais de 4/5 da população brasileira, como a garantia do bem-estar de seus habitantes (artigo 182), bem como  assegurou,  que todos  têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerando o bem ambiental, um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida das pessoas (artigo 225). 

Para manutenção dos bens ambientais, essenciais à vida humana, sem  os quais não há como se falar em dignidade humana, o pressuposto maior assegurado no artigo 1º, inciso III, do texto constitucional, a legislador constituinte atribuiu aos destinatários da norma ambiental, em co-responsabilidade com o Estado, o dever de defendê-lo e preservá-lo (o meio ambiente), para as presentes e futuras gerações. 

A partir daí,  construímos o conceito do “novo cidadão” idealizado na lei maior, que bipartiu o conceito estabelecido pela Lei 4.717/65, e que considera cidadão apenas quem detêm direitos políticos, pode votar e ser votado. 

Idealizamos esse novo conceito a partir da concepção de que existe uma divisão no conceito de cidadania, em sentido amplo e sentido estrito, agasalhado na envelhecida Lei 4.717/65. 

O conceito de cidadão construído na Constituição federal de 1988, têm sentido amplo,  e significa a participação efetiva, sem restrições de qualquer natureza, dos interessados na preservação dos bens ambientais tutelados, não tendo sido recepcionada pela carta constitucional, a regra restritiva  contida nos artigos 1º e 3º da Lei 4.717/65. 

Assim,  no tocante à ação popular ambiental, restaram legitimados,  a partir da promulgação da Constituição Federal vigente  (08 de outubro de 1988),  todos os brasileiros e estrangeiros residentes no pais, independente de sexo, condição econômica, idade, nível cultura, credo religioso,  inscrição partidária ou atuação política,  para figurarem no pólo ativo de tais ações, como forma, inclusive, de dar efetividade ao mandamento constitucional  contido no artigo 225, que atribui como dever da coletividade, a preservação e conservação do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações. 

Assim, concluindo, temos que: 

Primeiro: se todos são iguais perante a Constituição Federal, sem distinção e discriminação de qualquer natureza; 

Segundo: se os bens ambientais, indispensáveis à preservação da vida humana com qualidade e dignidade, são disponibilizados à todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País; 

Terceiro: se todos  têm o dever de preservar e conservar tais bens ambientais; 

Quarto: se o meio idôneo disponibilizado aos cidadãos, para defender o bem difuso ambiental, e que se constitui em patrimônio de toda a coletividade nacional, é a ação popular ambiental, não vemos como atribuir apenas à parcela votante da população brasileira, a legitimidade ativa  para propositura de tal ação. 

Pelos ditames estabelecidos na Constituição federal de 1988, e em decorrência do conceito de cidadão  que emergiu a partir de então,  concluímos que  todas as pessoas destinatárias  da norma ambiental, são legitimados ativos para a ação popular ambiental.

NOTAS

[1] Direito Ambiental Brasileiro, p. 332

[2] RT 156/160, Apud  Rodolfo de Camargo Mancuso.  Ação Popular, p. 261.

[3] Ação popular mandatória, p. 90

[4] Ação popular constitucional, p. 242-243

[5] RT 214/146, apud Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação Popular, p. 262

[6] Da ação popular constitucional, Ajuris, 1985, Apud  Rodolfo de Camargo Mancuso, Ob. Cit., p. 262

[7] Do pedido no proceso civil, p. 97

[8] Ob. Cit.,  p. 332

[9] O meio ambiente e ação popular, São Paulo, Saraiva, 2000

[10] Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Controle Jurisdicional dos atos do Estado, vol. 1, 5ª edição, Ação Popular, São Paulo, Ed. RT, pág. 70.

[11]  A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos, in Temas de direito processual, São Paulo, Saraiva, 1977.

[12] CF, art. 5º, LXXII

[13] Curso de direito constitucional positivo, 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2001, p. 466.

[14] Ob. Cit.,  p. 334.

[15] Direito do ambiente, p.  459

[16] Direito Processual das Coletividades e dos Grupos, p. 280

[17] Ob. Cit., p. 153-154

[18] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 332

[19] Apud  Rodolfo de Camargo Mancuso, Ob. Cit., p.  155

[20] Direito Ambiental Brasileiro, p.

[21] Apud Celso Antonio Fiorillo Pacheco, Ob. Cit., p. 336-337

[22] Cidadania e ação popular. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/defaul.asp?action=doutrina&iddoutrina=2282Acesso em: 20/12/2005

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REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

CLOVIS BRASIL PEREIRA:  Advogado, com escritório na cidade de Guarulhos (SP); Especialista em Processo Civil; Licenciado em Estudos Sociais, História e Geografia. É Mestre em Direito (área de concentração: direitos difusos e coletivos). Professor convidado do Curso de Pós Graduação em Direito Civil e Processual Civil do Curso Êxito, de S. J. dos Campos (SP): Professor convidado da Pós Graduação em Processo Civil na Universidade Guarulhos;   Professor Universitário;  ministra cursos na ESA- Escola Superior da Advocacia, no Estado de São Paulo,  Cursos Práticos de Atualização Profissional e  Palestras sobre temas atuais; é membro da Comissão do Advogado-Professor da OAB-SP; membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-Guarulhos; é colaborador com artigos publicados nos vários sites e revistas jurídicas. É coordenador e editor do site jurídico www.prolegis.com.br.  

Contato:   prof.clovis@54.70.182.189

 


 

 

 


Execução provisória. Possibilidade de aplicação da multa prevista no art. 475-j do CPC

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* Roberto de Assis Matos

A Lei nº 11.232/2005, responsável por expressivas alterações no Código de Processo Civil Brasileiro, no que diz respeito à execução de sentença judicial, acabou com a necessidade da dualidade processual para se atingir a satisfação do pedido mediato e, com isso, dar o devido valor às sentenças judiciais que, até então, eram meros tickets para ingresso no trem expresso denominado execução.

O jurisdicionado, antes da reforma pela mencionada lei, necessitava exercer seu direito de ação duas vezes (no mínimo), porque, ao procurar um profissional com capacidade postulatória para esclarecimentos acerca da sua pretensão, subliminarmente, recebia a notícia de que o seu pedido, na verdade, eram dois: imediato e mediato. Tudo bem, pensava o esperançoso futuro sujeito processual; afinal de contas, se peço um e ganho dois, que mal poderá ter?

Pois bem. Ingressava o passageiro processual nos recintos da estação justiça e esperava o anúncio do número do seu primeiro trem, intitulado expresso do conhecimento. Adentra, juntamente com seu advogado, e logo na entrada é recebido pelo estiloso condutor-juiz, que lhe abre as portas com um grande sorriso, como se já soubesse da sua chegada. O jurisdicionado, contente, olha para seu patrono que, com toda postura, lhe afirma:

– Viu só, não te falei que íamos ser bem recebidos. Quando é a Senhora Constituição que nos recomenda, não há condutor no Brasil capaz de nos fechar as portas. Vamos entrar.

Já dentro do trem, empolgado com todo aquele ambiente ao estilo romano, permanece o passageiro de pé ao lado do condutor e rapidamente já começa a narrar o caminho para o seu vitorioso destino. Depois de algumas voltas, percebe que algumas vias estão tão "agravomente" obstaculizadas que mesmo que o condutor insista, não poderá passar, sendo necessário fazer o trajeto por outro caminho. É o momento em que, ao olhar para trás, no interior do trem, constata a existência de inúmeros outros passageiros, já sentados, aguardando a chegada aos seus respectivos destinos. É quando, já não tão empolgado diante da demora, questiona seu patrono e recebe a seguinte justificativa:

– Calma. Vai dar tudo certo. É que esse condutor é um pouco lento. Vamos tomar nosso assento.

A viagem se prolonga. O Senhor Jurisdicionado, de há muito já sentado, vê o condutor passar pela casa do réu e, como ele não é encontrado, assiste a um bate-papo infrutífero com os vizinhos para só encontrá-lo meses depois, no seu local de trabalho. Quando todos já estão juntos no trem, passeia o condutor pela zona sul da cidade, na esperança de que a vista agradável acalente os ânimos e faça surgir dali uma próspera amizade e conseqüente interrupção antecipada do juris-tur.

Isso não acontece e a viagem continua, chegando a ser necessário visitar outras cidades, com paradas demoradas só para ouvir a história de um morador local. Passados anos e noites, de repente o trem chega na estação sentença. O condutor pára, anuncia o fim da viagem e pede que todos dêem um visto no seu ticket. O Senhor Jurisdicionado olha para a estação sentença, vê um punhado de letreiros bonitos, alguns até em "neon-negrito" e, perdido, dirige-se uma vez mais ao seu guia na esperança de ouvir a tão esperada notícia, quando surge o seguinte diálogo:

(Advogado) – Gostou da viagem? Demorada, mas compensadora, não é?

(Sr. Jurisdicionado) – É Doutor?

(Advogado) – É, você não viu o ticket? Ganhamos.

(Sr. Jurisdicionado) – É Doutor? Que legal então, né! Então agora é só pegar aquele papelinho e ir ao banco trocar pelo meu dinheiro?

(Advogado) – Calma, não é bem assim. Por que a pressa? Até parece que não gostou da viagem. Nós conseguimos o seu pedido imediato. Agora, ganhamos um ticket para pegar outro trem e buscar seu pedido mediato. Olha ali o trem… é aquele com o nome expresso da execução. Vamos correr. Vem que eu já tracei o novo itinerário e preciso entregá-lo ao condutor.

(Sr. Jurisdicionado) – Vai demorar essa outra viagem, Doutor?

(Advogado) – Ah! Veja bem!!! Depende.

(Sr. Jurisdicionado) – Depende de que Doutor?

(Advogado) – Uma pergunta por dia, por favor, até porque temos muitos dias e noites para conversar sobre isso. Primeiro vamos ter que encontrar o réu de novo e avisá-lo de que pegaremos o expresso da execução.

(Sr. Jurisdicionado) – Como assim…, de novo? Eu vi o réu assinando o ticket também. Olha ele lá no expresso do conhecimento indo embora… Pega ele, Doutor, pega…

E assim caminhava a humanidade jurídica até o advento da Lei nº 11.232/2005, que veio com a promessa de uma justiça mais célere e efetiva. Para isso, dentre outras coisas, deu à sentença de mérito a força executiva inerente ao poder estatal não só de dizer, mas, também, de satisfazer o direito à uma obrigação de fazer, não-fazer ou receber coisa distinta de dinheiro.

Mas não foi só. Quanto às pretensões para recebimento de quantia certa, trouxe a citada lei todo um regramento novo, eliminando a necessidade de uma segunda ação e condensando tudo num único procedimento, agora bifásico.

O foco deste singelo estudo está na mensagem do introduzido artigo 475-J no Código de Processo Civil e sua possível aplicação na execução provisória, também alterada e disciplinada na letra "O" do dispositivo inserido.

A polêmica novidade vem assim redigida: CPC 475-J – "Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação".

Para análise acerca da aplicação deste dispositivo em sede de execução provisória, em especial no tocante à mencionada multa de 10%, necessário se faz nos posicionarmos quanto ao termo a quo da contagem dos exigidos quinze dias para o espontâneo pagamento do montante da condenação sem o acréscimo-sanção. Melhor refletindo, imprescindível será, antes, estabelecer o que devemos considerar como sendo o momento da condenação.

Considera-se judicialmente condenado aquele que, por sentença, for declarado devedor de quantia certa ou a ser liquidada e estará condenado quando esta sentença tornar-se pública, ou seja, sair da esfera do seu prolator. A meu ver, prolatada em audiência ou entregue em cartório (ou na secretaria), serão estas as datas das respectivas condenações. O que ocorre, de plano, é que esta condenação, para se tornar definitiva, precisa de um plus: o trânsito em julgado. O trânsito em julgado tem o condão de, neste aspecto, tornar alguém definitivamente condenado e nada mais. Não fosse assim, não haveria argumentos para sustentar a existência de uma execução provisória (que prefiro chamar de execução antecipada). A execução só é tratada como não-definitiva porque não-definitiva também poderá ser uma eventual condenação.

Constatado o momento da condenação, resta estabelecer o dies a quo do prazo de quinze dias previsto para o pagamento espontâneo do montante fixado na sentença, antes da efetiva análise acerca da possibilidade de sua aplicação na denominada execução provisória.

O silêncio da lei em estabelecer o termo inicial do debatidíssimo prazo de quinze dias, data venia, se não foi intencional, foi providencial, na medida em que a mens legis da reforma é o atingimento do binômio celeridade-efetividade. E digo isso porque o jurisdicionado já vencido numa fase de cognição deve ser estimulado a, espontaneamente, cumprir com o provimento estatal, sob pena de sofrer mazelas ainda maiores em seu patrimônio. Considerá-lo cientificado da possibilidade de um acréscimo de 10% no montante já fixado pelo magistrado apenas com o simples decurso do prazo contado do trânsito em julgado ou – menos pior – com a muitas vezes inútil intimação de seu patrono é, na verdade, retirar da efetividade o tempero celeridade. É que o vencido, já insatisfeito com a condenação, agora (já na seara da execução) sabedor de que terá de pagar com acréscimo de 10%, certamente obstacularizará ao máximo o recebimento pelo seu credor.

Vou mais além. Se é certo que a execução (definitiva ou não) só ocorrerá a requerimento do credor, então é possível que ela nem ocorra. Imagine a hipótese de, espontaneamente, o vencido, intimado da condenação, independentemente de saber ou não as conseqüências da multa moratória, procure seu credor e efetue o pagamento tal como determinado na sentença. Nada há que obrigue este credor, já satisfeito, a comunicar o poder judiciário acerca da satisfação de sua pretensão, tanto que o legislador, atento a esta possibilidade, inseriu o parágrafo 5º no art. 475-J do CPC, para alertar que, não sendo requerida a execução no prazo de seis meses, o juiz mandará arquivar os autos, sem prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte. Prolatada a sentença e, conseqüentemente, atendido pelo Estado o pedido imediato, pode ser o bastante para que o vencedor consiga, por si só, seu pedido mediato. Mas caso isso não aconteça, o que é o mais provável, querendo, deve o agora credor retornar ao Poder Judiciário e, nos mesmos autos, requerer a execução, momento em que se justifica interpelar o vencido com o ultimato de 15 dias para pagar sem incidência de qualquer acréscimo, num verdadeiro ato de desestímulo ao ingresso na fase executiva ou abandono da fase pré-executiva (recursal), tudo em nome da célerefetividade.

O prazo de quinze dias previsto no art. 475-J do CPC deve ser contado da intimação pessoal do vencido, até como homenagem ao art. 238 do CPC[1], presumindo-se válidas com o só encaminhamento ao(s) endereço(s) declinado(s) nos autos, garantindo-se o contraditório sem ferir a celeridade.

Sustentar como início de contagem do prazo de 15 dias a data do trânsito em julgado (como tem entendido parte da doutrina e a jurisprudência do STJ[2]), é negar aplicação do dispositivo na execução provisória, cuja possibilidade passo a argumentar.

Dispõe o par. 1º, do artigo 475-I, do CPC que será provisória a execução da sentença quando impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo. Por sua vez, o art. 475-J do mesmo estatuto disciplina que, caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de 10%.

De início, reporto-me ao art. 475-O do CPC para enfatizar que o legislador dispôs que a execução provisória da sentença far-se-á do mesmo modo que a definitiva. Do mesmo modo, porém, sem, é claro, ter havido o trânsito em julgado da sentença. O trânsito em julgado seria como um pressuposto processual objetivo negativo para a existência da execução provisória.

O termo "provisória" que acompanha a palavra "execução" – e por isso prefiro chamar de execução antecipada – não significa que a execução será incompleta; indica que houve uma opção por iniciar a antecipação dos atos executórios porque a sentença proferida não teve sua eficácia suspensa por vontade da lei ou do magistrado.

Havendo uma sentença condenatória – e como vimos a condenação surge com a mera publicização do julgado (o que não deve ser confundida com a publicação no diário de justiça) – com seus efeitos em pleno vapor, nasce para o vencedor o direito de optar por aguardar ou não o trânsito em julgado.

Prolatada a sentença, já não há mais que se falar em esgotamento da função jurisdicional, porém, o Estado-Juiz volta à inércia, uma vez que dependerá da provocação das partes a remessa à revisão pela superior instância ou o início da fase executiva, ou, ambos (remessa à reapreciação e execução antecipada).

Permitir antecipação no exercício da juris-dicção (fase cognitiva) é um trabalho de preservação da garantia de reversibilidade da situação. Permiti-la (a antecipação) no exercício da juris-efetivação (fase executiva) vai mais além: é uma tarefa de preservação também de garantias para a eventual necessidade de indenizar, preocupação esta que o Estado deixou a cargo do vencedor do primeiro round da demanda.

Ao possibilitar a execução antecipada, o Estado transfere ao vencedor o ônus da análise do risco de os atos executivos (por si sós de natureza ofensiva) serem entendidos como descabidos e, portanto, tipificados como passíveis de indenização. É o que está bem claro no inciso I, do art. 475-O, do CPC, quando afirma que corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido. É uma séria advertência ao candidato a exeqüente, porém, que não deve ser vista com excepcionalidade, sob pena de caracterizar como excepcionais as decisões acertadas da justiça de primeiro grau. Não devemos nos esquecer que, para dizer o direito, o magistrado passa por uma longa e exauriente reflexão cognitiva acerca do direito material discutido, com todas as oportunidades para o exercício de ampla defesa e demais consectários do devido processo legal.

A possibilidade de reforma de uma decisão deve ser analisada pelo pretenso exeqüente, de maneira que, se opta por antecipar seu requerimento de execução, a ele deve ser dado o novo tratamento célerefetivo, com todos os mecanismos inibitórios-desestimulantes anti-procrastinatórios, inclusive, a possibilidade de recebimento da multa prevista no art. 475-J do CPC, caso o executado, pessoalmente intimado, não efetue o depósito do montante da condenação em quinze dias.

Peço venia para abrir um parêntese, a fim de esclarecer eventuais manifestações de afronta à razoabilidade ou proporcionalidade constitucionais. Ao se falar em depósito do montante da condenação, entendo não se tratar necessariamente e exclusivamente de dinheiro e sim de garantia de cumprimento das decisões judiciais, pois, se assim fosse, para condenações vultosas, o prazo de quinze dias seria demasiadamente insuficiente para tornar líquida tamanha quantia. Nada impede que, havendo em seu patrimônio algo de valor equivalente, possa o vencido oferecê-lo em juízo como demonstração de boa-fé com o cumprimento da sentença, a fim de evitar a incidência da multa sancionatória. Seria um contra-senso qualquer vedação neste sentido, até porque nada impede que o vencedor aceite como dação em pagamento o bem ofertado, feitas as devidas compensações. Postergar essa possibilidade apenas para a fase executiva, seria andar na contramão de direção da celeridade/efetividade, uma vez que é o que acabaria ocorrendo em futura penhora e adjudicação (na hipótese); a diferença seria o acréscimo de 10% na obrigação do executado que teve a infelicidade de não ter tido liquidez suficiente naquele prazo (15 dias) que lhe fora concedido para tanto. Seja como for, trata-se de um tema para discussão futura e mais aprofundada.

Continuando. Ao insistir na necessidade de intimação pessoal para que tenha início a contagem do prazo de quinze dias do art. 475-J, o que pretendo é estabelecer uma coerência no sistema. Entendo não poder haver dois pesos e duas medidas. O prazo de 15 dias deve ter como início de contagem a mesma referência tanto para a execução definitiva quanto para a não-definitiva (provisória). E o que as diferencia, em essência, é a existência ou não de decisão com trânsito em julgado, o que o afasta como referência para demarcar o início de qualquer coisa em ambos os institutos. O que se busca com a execução, definitivamente ou não, é um único resultado: satisfação (definitiva ou não) e se definitivamente posso ver atendido meu pedido mediato acrescido de 10% pela relutância do executado, o que me impede de obter o mesmo quantum antecipadamente, ainda que não definitivamente? Seria como se obter uma tutela antecipada (ainda na fase de cognição) sem os acréscimos devidos pela mora, pelo simples fato de não se ter, ainda, sentença definitiva de mérito. Se for necessário reverter, a reversão se fará, também, pelo todo (na tutela ou na efetivação).

Quanto à segurança jurídica na antecipação da execução, andou bem o legislador, que se preocupou em resguardá-la quando fez constar no inciso II que fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento. Se necessário, o executado, nos mesmos autos, transforma-se em exeqüente, sendo possível o levantamento da caução prestada, conforme disciplinado no inciso III[3]. Acautelou-se a lei com a exigência de caução suficiente e idônea prestada nos próprios autos, caso haja requerimento de levantamento antecipado de eventual depósito em dinheiro ou de práticas que importarem em alienação de propriedade com possibilidade de dano. Em relação à idoneidade ou suficiência da caução, fica a cargo do julgador a apreciação, cabendo a ele autorizar ou não, em favor do exeqüente, o levantamento da quantia já depositada, pois, na pior das hipóteses, ficará a própria quantia depositada pelo executado antecipado como se caução fosse, postergando sua liberação, agora sim, para data posterior ao trânsito em julgado no processo em grau de recurso.

CONCLUSÃO

Relembrando citação de uma canção do Legião Urbana, disse o saudoso poeta: o futuro não é mais como era antigamente.

Hoje, somos o futuro de um passado processual recente em que, para resguardar alguns direitos, suprimiam-se outros. Sopesavam-se direitos de mesma dimensão na tentativa injusta de quantificá-los para justificar a aplicação de um em detrimento de outro. E assim tem sido desde a denominada reforma do poder judiciário implantada pela EC 45/2004.

A Lei nº 11.232/2005, ao condensar os processos de conhecimento e de execução em um único procedimento bifásico, procurou resguardar, ao mesmo tempo, todos os direitos e garantias dos indivíduos de boa fé, numa verdadeira preocupação com a pacificação social. Ao conceder um prazo moratório de 15 dias para um vencido cumprir espontaneamente o provimento jurisdicional, não teve como objetivo dar ao credor 10% a mais no seu direito e sim dar ao vencedor 100% a menos de tempo na resolução de seu conflito. Deixar de intimar o vencido pessoalmente para cumprir espontaneamente sua obrigação sem multa, é criar mais uma possibilidade de conflito ou agravar o já existente. Transferir a intimação para a pessoa do advogado, é dar ao causídico uma capacidade "pagatória" que não lhe é inerente. Como sancionar um advogado por não conseguir alertar seu cliente em 15 dias, se o próprio poder judiciário, com todo o aparato que possui, muitas vezes leva mais de meses para localizar pessoas? Entender assim é transferir um ônus, que é do Estado, aos advogados, sem que se tenha dado a eles poderes especiais para tanto. E no sistema dos juizados especiais cíveis (que dispensa a capacidade postulatória): será que o magistrado terá de nomear, àqueles que não têm, um advogado para intimá-lo de que dispõe de 15 dias para pagar o valor fixado na sentença, sob pena de acréscimo de 10%? Se no JECiv a intimação é pessoal para o demandado sem advogado, por que não sê-lo na justiça comum? Não há qualquer comprometimento na celeridade, ao contrário, evita-se, em muito, o início da fase executiva.

De outro lado, não há como sustentar ser o trânsito em julgado a referência para o início do prazo de 15 dias constante no CPC 475-J, com todo respeito à posição que vem sendo adotada pelo STJ. Não é o que diz o dispositivo e, se assim fosse, incabível seria sua aplicação em sede de execução provisória, cuja existência só se justifica pela ausência de trânsito em julgado e de efeito suspensivo em recebimento de recurso.

A EC 45/2004, ao inserir o inciso LXXVIII[4], no art. 5º, da CF88, preocupou-se com a notória morosidade e com o descrédito social no poder judiciário, pouco eficiente na pacificação com justiça, escopo magno da jurisdição.

Temos, ainda hoje, uma justiça de primeiro grau insegura consigo mesma, que necessita de uma terapia processual para assumir o papel para o qual foi criada. Antecipar tutela já foi uma revolução, na medida em que, para muitos, foi e ainda é considerada uma verdadeira ofensa constitucional, por afrontar dispositivo que afirma que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal. Mas devido processo legal não é sinônimo de devido processo letal. Estar em juízo, hoje, ainda é uma longa viagem cara para o demandante e um investimento/financiamento para o demandado. Antecipar tutela, a meu ver, é um instituto que, de certa forma, contribui para a morosidade e um transtorno para o magistrado que se vê, no seu dia-a-dia, obrigado a apreciar em cognição sumária inúmeras demandas complexas. Explico. Hoje, na maioria das ações, há pedido de tutela antecipada e o magistrado passa quase que todo seu dia ou presidindo audiências e/ou decidindo antecipações de tutela. E o restante dos processos? Vão ficando cada vez mais esquecidos e atrasados, de maneira que, para se atender parte dos jurisdicionados, necessário se faz deixar de lado uma outra grande parte para apreciação num futuro distante. O que necessitamos é que haja maior prestígio às decisões de primeiro grau e isso só acontecerá quando a magistratura julgar com convicção suficiente para retirar de suas decisões a possibilidade de suspensão dos seus efeitos (antecipação de tutela na sentença). Por que será que no sistema dos juizados especiais cíveis a regra é o recebimento de recurso apenas no efeito devolutivo (Lei nº 9.099/95, art. 43) ? Não precisamos de lei para isso, nem tampouco virar do avesso o art. 520 do CPC. Nossos juízes não precisam de confirmação de seus julgados para torná-los, desde já, eficazes e a eficácia, por si só, não significa imediata execução porque vedada – a meu ver corretamente – a execução ex officio. O que o jurisdicionado espera é que o juiz cumpra seu ofício, ou seja, julgue pra valer e o jurisdicionado, se quiser, que faça valer o julgado, assumindo todas as responsabilidades com uma possível modificação. Sentença que possibilita efeito suspensivo é sentença com calda de recurso "necessário": recurso necessário para lhe dar eficácia.

À luz das reformas introduzidas pela Lei nº 11.232/2005, execução provisória com possibilidade de aplicação da multa prevista no art. 475-J do CPC se coadunam e fortalecem os princípios da celeridade e efetividade. Nossa sociedade litigiosa está farta de juris-falação; o momento é de juris-efetivação.

O futuro não pode e não deve ser mais como era antigamente.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] Art. 238. Não dispondo a lei de outro modo, as intimações serão feitas às partes, aos seus representantes legais e aos advogados pelo correio ou, se presentes em cartório, diretamente pelo escrivão ou chefe de secretaria.

Parágrafo único. Presumem-se válidas as comunicações e intimações dirigidas ao endereço residencial ou profissional declinado na inicial, contestação ou embargos, cumprindo às partes atualizar o respectivo endereço sempre que houver modificação temporária ou definitiva.

[2] (REsp n. 954.859/RS, relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Terceira Turma, DJ de 27.8.2007.)

[3] CPC 475-O III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.

[4] CF 5º LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Roberto de Assis Matos: Graduado em Direito pela UNESP – Universidade Estadua Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003). Diretor de Divisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, exercendo suas funções no Cartório do Juizado Especial Cível da Comarca de Ribeirão Preto. Professor de Direito Processual Civil do Curso de Direito do Centro Universitário Moura Lacerda da cidade de Ribeirão Preto. Pós graduando em Direito Processual Civil.


AUSÊNCIA DE PARECER DO PROCURADOR DE JUSTIÇAPara TJ, parecer de procurador não ofende contraditório e ampla defesa

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DECISÃO: * TJ-GO – A emissão de parecer pela Procuradoria de Justiça não ofende o princípio da contraditório e da ampla defesa, uma vez que, em segundo instância, sua atuação é como custus legis (fiscal da lei) e não como parte, capaz de pedir ou contestar. A decisão, unânime, é da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) que seguiu voto do juiz-relator Márcio de Castro Molinari (foto), em substituição no Tribunal, e negou habeas-corpus (hc) a Antônio Fernandes Lando Contart. Ele pretendia anular a decisão proferida pela Turma Julgadora dos Juizados Especiais de Goiânia que o condenou a pena alternativa de 9 meses de detenção ao argumento de que seu direito constitucionalmente garantido à ampla defesa e ao contraditório foi cerceado após parecer desfavorável da Procuradoria de Justiça, que teria atuado na qualidade de dominus litis.  

No entanto, para Márcio Molinari, que comentou tratar-se de matéria inusitada no TJGO, não há que se falar em ofensa a tal princípio ou em desequilíbrio dos sujeitos do processo na lide, pois não são raras as vezes em que o MP atua na condição de custus legis, totalmente independente e desvinculado da atuação de primeiro grau. “Na maioria das vezes O MP se manifesta em franco favorecimento ao réu, até mesmo para absolvê-lo, comportamento que denuncia de forma irrefutável que seu compromisso é unicamente o de velar pela correta aplicação da lei”, asseverou.

Na opinião do relator, o impetrante não comprovou a ocorrência do efetivo prejuízo, o que configuraria a ilegalidade do constrangimento a ser reparado via do hc. “Não ficou demonstrado o prejuízo até porque na sessão de julgamento a defesa tem resguardado o direito de pronunciar-se após a intervenção oral do acusador. O simples fato de ter sido dado provimento ao recurso ministerial não implica, necessariamente, ter havido prejuízo à defesa”, comentou, citando acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatado pelo ministro Gilson Dipp.

Ementa

A ementa recebeu a seguinte redação: “Habeas Corpus. Emissão de Parecer Pelo Representante do Ministério Público em Segundo Grau. Afronta ao Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa. Inocorrência. A emissão de parecer pela Procuradoria de Justiça não ofende o princípio do contraditório e da ampla defesa, porquanto sobre estar atuando o parquet na qualidade de custus legis, função prevista e referendada pelos artigos 257, II, e 610, ambos do CPP, o Órgão Julgador não fica vinculado a seu parecer, de caráter meramente opinativo (art. 638, RITJ-GO). Ordem Denegada”. Habeas-Corpus nº 34242-7/217 (200900509745), de Goiânia. Acórdão de 17 de março de 2009.

Texto: Myrelle Motta

 

FONTE:  TJ-GO, 27 de março de 2009.

 


CUMULAÇÃO DE PENSÕES NÃO É PERMITOPensão por morte de companheiro não pode ser cumulada com a de marido falecido

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DECISÃO: *STJ  Salvo em casos de direito adquirido, é proibida pela Lei n. 8.213/91 a concessão de pensão por morte de ex-companheiro à beneficiária de pensão deixada pelo falecido cônjuge, sendo possível, no entanto, a opção pela mais vantajosa. A observação foi feita pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso especial do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Após a morte do companheiro, a pensionista entrou na Justiça solicitando o pagamento da pensão. O benefício foi concedido na primeira instância. Ao julgar apelação do INSS, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) confirmou a sentença, negando provimento ao pedido do Instituto. “Como ficou comprovada a união estável e a dependência econômica com o ex-segurado, faz jus a autora à pensão por morte do companheiro falecido”, afirmou o tribunal carioca.

Em sua defesa, o INSS opôs dois embargos de declaração, mas ambos foram rejeitados sucessivamente. No recurso para o STJ, o instituto previdenciário alegou violação dos artigos 535, I e II, do Código de Processo Civil, e 124, VI, da Lei n. 8.213/91. “Conforme declaração expressa da própria embargada, a nova aposentadoria, deferida nas duas instâncias inferiores e a ser implantada por meio destes autos, não pode ser paga cumulativamente com a outra pensão que a autora já vem recebendo desde 1980”, afirmou o órgão.

Conforme alegou o INSS, tal realidade jurídica deve interferir nos cálculos dos valores a serem pagos, haja vista o lapso de tempo a ser considerado para efeito de pagamento do benefício concedido nos presentes autos, sob pena de ilegalidade. “Daí a necessidade de ser resguardado, desde a fase de conhecimento, o direito de opção da demandante”, afirmou o INSS.

A Quinta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial. “Os benefícios previdenciários são regidos pela legislação vigente à época em que satisfeitas as condições para a sua obtenção”, ressaltou o ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do caso. “No caso do benefício em questão, o fato gerador do benefício é o óbito do segurado, ocorrido em 05/10/94, devendo, portanto, o benefício pretendido pela autora ser regido pela vigente daquela época, ou seja, pela Lei 8.213/91”, acrescentou.

Segundo o texto da Lei n. 8.213/91, artigo 124, salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social: (…) VI. Mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, ressalvado o direito de opção pela mais vantajosa.

“Assim o fato de a autora já receber pensão do seu falecido marido impede a posterior concessão da pensão por morte de seu companheiro, uma vez que há vedação legal à cumulação dos benefícios, por força do artigo 124 da mesma lei”, concluiu o ministro Arnaldo Esteves.


FONTE:  STJ, 24 de março de 2009.

 

SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL DOS SINDICATOSSindicato não precisa de autorização expressa de cada associado para atuar como substituto processual

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DECISÃO: * TRT-MG – Conforme a atual interpretação do artigo 8º, inciso III, da Constituição Federal, o sindicato representante de categoria profissional possui legitimidade ativa para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representa, independente da vontade dos substituídos e sem a necessidade de prévia autorização destes.Com esse fundamento, a 4ª Turma do TRT-MG rejeitou a preliminar de ilegitimidade ativa do sindicato para ajuizar ação trabalhista na condição de substituto processual, suscitada pela segunda reclamada.  

De 1993 a 2003, o TST adotou a aplicação da Súmula 310, que limitava a atuação judicial dos sindicatos em defesa de seus associados, com várias restrições. Em 2003, a Súmula 310 foi cancelada, possibilitando a substituição processual plena. Desta forma, os conflitos trabalhistas poderiam ser resolvidos de forma coletiva. Com a revogação dessa súmula, passou a ser admitido o ajuizamento de ações pelos sindicatos na defesa de interesses dos sindicalizados, a título de substituição processual (hipótese na qual o sindicato está habilitado para acionar a justiça em seu próprio nome, ainda que defendendo direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria profissional). O cancelamento decorreu de interpretação do artigo 8º, inciso III, da Constituição Federal, que autoriza o sindicato a atuar como substituto processual de toda a categoria quando o pedido for baseado em direitos individuais homogêneos, ou seja, direitos de origem comum.

Rejeitando a preliminar suscitada pela segunda ré, o desembargador relator, Júlio Bernardo do Carmo, salientou que, por se tratar de ação proposta pelo sindicato da categoria profissional, na condição de substituto processual, não há necessidade de autorização expressa de cada associado individualmente, com prévia aprovação em Assembléia Geral da categoria. Ao rejeitar os argumentos da ré, o relator enfatizou que a regra prevista no artigo 5º, inciso XXI, não pode ser confundida com o disposto no artigo 8º, inciso III, da Constituição Federal, que é mais específico por tratar exclusivamente da organização sindical. O artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal dispõe que: “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente.” Ou seja, esse dispositivo faz referência às entidades associativas de forma genérica, o que difere do caso em questão, no qual a entidade é sindical. “A comparação, aliás, do inciso III do artigo 8º da Carta Magna com a disciplina inscrita na disposição constitucional do inciso XXI do artigo 5º leva à conclusão de que se o Sindicato tivesse legitimação para representar apenas os associados, quando por estes autorizado, a regra do art. 8º, inciso III, seria inócua, em face da prerrogativa ampla que a outra norma já confere, ao dispor sobre a representatividade das entidades associativas em geral” – frisou o desembargador.  (RO nº 00534-2008-134-03-00-0 )


FONTE:  TRT-MG, 26 de março de 2009.

 

QUITAÇÃO INTEGRAL DE CONSÓRCIO
Consórcio deve emitir carta de crédito a herdeiros

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DECISÃO:  * TJ-MT – O Consórcio Nacional Volkswagen Ltda. deverá efetuar a emissão de carta de crédito referente à cota de um consorciado de Sapezal (480 km ao noroeste de Cuiabá), que faleceu e tinha em cláusula de contrato a determinação de quitação integral em caso de morte. Caso não cumpra a decisão, deverá pagar multa diária de R$ 500. De acordo com o entendimento da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, quando o titular da cota falecer, a carta de crédito deverá ser liberada imediatamente e não na contemplação ou encerramento do grupo, como alegou a empresa. A decisão foi unânime (Agravo de Instrumento nº 12.493/2009).  

O débito da cota do falecido foi quitado integralmente, mas a administradora informou que a liberação da carta de crédito somente seria disponibilizada por meio de sorteio ou quando do encerramento do grupo. Nas razões recursais, a empresa agravante alegou discordar da decisão que determinara a entrega imediata da carta de crédito aos herdeiros e sustentou a impossibilidade de emissão da carta em face dos prejuízos do grupo.
  
Contudo, para o relator do recurso, desembargador Sebastião de Moraes Filho, o pagamento das parcelas restantes com quitação integral da dívida afigura-se como lance e, assim, deve ser considerado pelo consórcio. Explico que, como o débito foi quitado integralmente, há de prevalecer favoravelmente aos requerentes, no caso, os representantes do espólio do falecido consorciado, até mesmo em observação ao artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor. Esse artigo dispõe que as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

A unanimidade da decisão foi conferida pelo juiz convocado João Ferreira Filho (1º vogal) e pelo desembargador Guiomar Teodoro Borges (2º vogal).

 

FONTE:  TJ-MT, 27 de março de 2009.


BANCO É CONDENADO POR COBRANÇA INDEVIDA
Banco deve ressarcir em dobro

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DECISÃO: * TJ-MG – Wanderley Salgado Paiva, juiz da 30ª Vara Cível de Belo Horizonte, determinou a um banco o ressarcimento em dobro de valores cobrados de forma indevida de um correntista, sob as rubricas “diversos” e “juros”. “Ante a ausência de embasamento jurídico ou legal para a cobrança dos encargos mencionados, patente é a ilegalidade de sua cobrança”, concluiu.

Conforme dispõe o artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: “O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”.

Um caminhoneiro, cliente do banco, contou que precisou utilizar todo o limite do seu cheque especial. Ele estava passando por dificuldades financeiras e, em razão da crise, cancelou o limite do seu cheque especial, o que ocasionou a devolução de alguns cheques. Consequentemente, o seu nome foi inserido nos cadastros de inadimplentes. Ele declarou que teve que arcar com todos os encargos e taxas cobradas pelo banco, sendo que os juros atingiram o patamar de 16% ao mês. Alegou que os encargos cobrados foram ilegais e abusivos, contrariando o Código de Defesa do Consumidor.

Requereu o ressarcimento em dobro dos valores indevidos cobrados, incidindo as mesmas taxas de juros e encargos praticados pelo banco, e indenização por danos morais.

O representante do banco declarou que os encargos e tarifas cobradas têm embasamento legal e previsão em contrato. Para o banco, o caminhoneiro estaria agindo de má-fé.

Conforme apuração pericial, o banco procedeu a lançamentos na conta do cliente que não estavam amparados por previsão contratual ou legal.

O magistrado observou que o banco não juntou ao processo qualquer elemento que fundamentasse as cobranças. Para ele, o banco agiu de má-fé ao fazer incidir sobre a conta do caminhoneiro encargos e tarifas que sabia serem indevidos.

Quanto ao recebimento dos juros no mesmo patamar praticado pelo banco, o magistrado esclareceu que não existe disposição legal que dê suporte a essa pretensão. Explicou que as taxas bancárias cobradas são regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional. “Os valores a serem restituídos devem ser acrescidos apenas de correção monetária e juros legais”, determinou.

Por fim, Wanderley Salgado não vislumbrou a presença de sofrimento moral hábil a justificar a indenização por dano moral.

Essa decisão está sujeita a recurso.   Processo nº: 0024.99.022.226-7


FONTE:  TJ-MG, 25 de março de 2009.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Personalidade jurídica é desconsiderada por fraude e abuso de direito

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DECISÃO: * TJ-MT – A Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso manteve decisão de Primeiro Grau que desconsiderou a personalidade jurídica de uma empresa do município de Tangará da Serra (239 km a médio-norte de Cuiabá). De acordo com os magistrados de Segundo Grau, quando comprovada a existência de fraude à execução, mostra-se possível a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para assegurar a eficácia do processo de execução judicial (Agravo de Instrumento nº 119.142/2008).

O agravante argumentou que não havia requisitos, estabelecidos no artigo 50 do Código Civil, ensejadores da desconsideração da personalidade jurídica. Entretanto, o relator do recurso, desembargador Benedito Pereira do Nascimento, destacou que foi possível constatar que o agravante vinha se utilizando de todos os meios para se esquivar do pagamento da indenização que lhe fora imposta por sentença judicial, transitada em julgado, desde o ano de 1998.

O magistrado explicou que fatos trazidos nos autos demonstraram que inúmeras buscas foram efetuadas e não foram encontrados bens passíveis de penhora da empresa executada como em nome do agravante. Além disso, o relator pontuou que, com o objetivo de burlar os efeitos da execução, o agravante teria transferido todos os bens da empresa executada para uma terceira empresa, tendo como cotistas duas filhas. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que a ocorrência de fraude à execução judicial constitui motivo suficiente para a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Essa teoria versa que é permitido estender a responsabilidade além dos limites tradicionais estabelecidos entre o sócio e a sociedade em certos casos ou além dos limites entre duas pessoas jurídicas componentes da “constelação empresarial”.

O voto do relator foi acompanhado na integralidade pelo juiz substituto de Segundo Grau Marcelo Souza de Barros (primeiro vogal) e pelo desembargador Márcio Vidal (segundo vogal).


FONTE:  TJ-MT, 27 de março de 2009.

Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová: uma gravíssima violação dos direitos humanos

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*Cláudio da Silva Leiria   

“O direito à vida não se resume ao viver…O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, a dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente, filosóficos que tão grave questão encerra. A liberdade de alguém admitir, ou não, receber sangue, um tecido vivo, de outra (e desconhecida) pessoa.” (trecho do voto – vencido – do Desembargador Marcos Antônio Ibrahim no Agravo de Instrumento n.º 2004.002.13229, julgado em 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ). 

Resumo: A recusa dos pacientes da religião Testemunhas de Jeová em receber transfusões de sangue em situações de iminente risco de vida tem suscitado debates nos meios médicos e jurídicos. O presente artigo tem a pretensão de demonstrar que essa recusa tem apoio na Constituição Brasileira e também na legislação infraconstitucional.  

Palavras-chave: Transfusões de sangue. Liberdade religiosa. Testemunhas de Jeová. Princípios constitucionais. Direitos dos pacientes. 

Sumário: 1. Introdução. 2. Os riscos das transfusões de sangue. 3. Alternativas médicas às transfusões de sangue. 4. Do direito à liberdade religiosa. 5. Da objeção de consciência e da não-privação de direitos por motivo de crenças religiosas. 6. Direito à privacidade. 7. Do princípio da legalidade. 8. Princípio da dignidade da pessoa humana. 9 . Do artigo 15 do Código Civil. 10. Do artigo 17 do Estatuto do Idoso. 11. Do artigo 10 da Lei de Transplantes. 12. Da inexistência da obrigação jurídica de viver. 13. A questão da recusa de menores a tratamentos com transfusões de sangue. 14. Princípios bioéticos da autonomia, da beneficência, do consentimento esclarecido e da justiça. 15. Precedentes jurisprudenciais de respeito à autonomia do paciente no exterior e no Brasil. 16. Lei islandesa sobre os direitos dos pacientes. 17. Direito dos pacientes a tratamentos alternativos às transfusões de sangue. 18. Da necessidade de mudanças nos currículos de ensino médico e jurídico. 19. Da responsabilidade civil e penal do médico. 20. Principais conclusões. 21. Resumen. 22. Referências. 

1 – INTRODUÇÃO 

Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, diante, basicamente, da interpretação que fazem das passagens bíblicas dos Livros de Gênesis, 9:3-4[1]; Levítico, 17:10[2] e Atos 15:19-21[3], recusam-se a se submeter a tratamentos médicos ou cirúrgicos que incluam transfusões de sangue[4]. Na impossibilidade de se valerem de tratamentos alternativos (sem sangue), negam-se a receber transfusões, mesmo que isso possa levá-las à morte.    

Esta postura das Testemunhas de Jeová periodicamente desperta a atenção dos meios de comunicação social, que, por ignorância ou má-fé, acabam dando uma conotação de que os adeptos dessa religião são pessoas fanáticas e suicidas.  Entretanto, nada poderia ser mais equivocado, pois elas apenas buscam tratamentos e alternativas médicas que reputam seguros (sem sangue) e aceitáveis sob o prisma de suas convicções religiosas. 

É inegável que a postura firme das Testemunhas de Jeová em rechaçar as transfusões de sangue tem alavancado o progresso científico de descoberta e aprimoramento de tratamentos alternativos[5].  Ademais, elas organizaram uma rede, de âmbito internacional, de Comissões de Ligações com Hospitais (COLIH), existentes em 230 países e territórios, que auxiliam na transferência de pacientes para hospitais ou equipes médicas que usam alternativas às transfusões de sangue. Também fazem trabalho de esclarecimento junto aos profissionais de saúde quanto a esses tratamentos alternativos, bem como em relação aos riscos das transfusões de sangue.

A recusa às transfusões de sangue possui importantes reflexos na esfera médica – acarretando dilemas éticos  pois os médicos estão condicionados a enxergar a manutenção da vida biológica como o bem supremo – e no âmbito jurídico, no qual se debate se é direito do paciente recusar um tratamento médico por objeção de consciência quando este, aparentemente, é o único meio apto a lhe salvar a vida.

Felizmente, as comunidades médicas e jurídicas, ainda que de forma tímida, têm dado sinais de que tendem a reconhecer o direito do paciente rejeitar determinados tratamentos médicos, independentemente do risco que ele esteja correndo com essa recusa.

Tem-se a modesta pretensão de demonstrar que, frente às normas constitucionais que tutelam a liberdade de crença e de consciência, o direito à intimidade e à privacidade, os princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, bem como em razão de dispositivos da legislação infraconstitucional – fatores aos quais se associa o risco inerente às contaminações nas transfusões – é absolutamente legítima a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a tratamentos médicos/cirurgias que envolvam a administração de sangue e seus derivados, mesmo nos casos de iminente risco de vida.

Neste artigo, segue-se a linha interpretativa de que, havendo recusa do paciente de receber transfusão de sangue em situações de iminente risco de vida não se configura a colisão de direitos fundamentais (direito à vida X direito de liberdade religiosa)[6], mas, sim, concorrência de direitos fundamentais, pois a conduta sujeita-se ao regime de dois direitos fundamentais de um só e mesmo titular. 

2 – OS RISCOS DAS TRANSFUSÕES DE SANGUE 

Rejeitar transfusões de sangue torna-se cada vez menos uma questão religiosa e mais uma questão médica.  Atualmente, não é pouca a literatura médica a relatar que as transfusões de sangue envolvem inúmeros riscos, muitas vezes letais. 

Os testes realizados pelos bancos de sangue não geram a segurança necessária quanto à pureza desse material biológico. Um Diretor da Cruz Vermelha Americana, tecendo considerações sobre os altos custos envolvidos em tais testes declarou que ‘Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado[7]’.  

O Dr. LUIZ GASTÃO ROSENFELD, hematologista, disse que apesar de toda a evolução tecnológica, diante dos conhecimentos atuais, as transfusões de sangue não eram totalmente seguras no que diz respeito à transmissão de moléstias infecciosas[8].

WILSON RICARDO LIGIERA faz esclarecedora síntese dos riscos decorrentes das transfusões de sangue: 

“Ela (a transfusão) também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo.  Em recente e conceituado trabalho científico, Herbert et al comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva.

“Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológicas, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas.

“Alguns exemplos de doenças infecciosas e parasitárias, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais são: a AIDS (sigla, em inglês, para ‘síndrome da imunodeficiência adquirida’, causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a tripanossomíase (Doença de Chagas), a malária, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (vírus da leucemia e linfoma de células T Humano) e por outros protozoários e bactérias.

“(…)

“Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a terapêutica transfusional, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão da tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema imunológico do paciente, aumentando as chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores.  Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: ‘Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões.[9]

Também há de se fazer menção aqui aos imensos riscos diante da chamada ‘janela imunológica’, que corresponde ao tempo que o organismo leva para produzir, depois da infecção, uma certa quantidade de anticorpos que possa ser detectada pelos exames de sangue específico.  Assim, por exemplo, se uma pessoa que foi infectada pelo vírus HIV (AIDS) doar sangue até 11 dias após a infecção, os exames feitos nesse sangue não detectarão o vírus, ou seja, obter-se-á um falso resultado negativo.

As Testemunhas de Jeová não rejeitam todos os tratamentos médicos.  Recusam, no entanto, uma terapia que, conforme é admitido pelas próprias autoridades em saúde, acarreta muitos riscos graves.

3 – ALTERNATIVAS MÉDICAS ÀS TRANSFUSÕES DE SANGUE

 Ainda que de forma sucinta, mencionar-se-ão algumas alternativas médicas às transfusões de sangue.  Essas alternativas experimentaram grande desenvolvimento nos últimos trinta anos, podendo-se conjecturar, com boa dose de razoabilidade, que em poucas décadas os progressos técnicos acabarão totalmente com a necessidade de transfundir sangue.

a) Dispositivos cirúrgicos para minimizar a perda sanguínea: eletrocautério/eletrocirurgia; cirurgia a laser; coagulador com raio de argônio.

b) Técnicas e dispositivo para controlar hemorragias: pressão direta; agentes hemostáticos; hipotensão controlada.

c) Técnicas cirúrgicas e anestésicas para limitar a perda sanguínea: hipotermia induzida; hemodiluição hiperrvolêmica, redução de fluxo sanguíneo para a pele; recuperação sanguínea intraoperatória.

d) Dispositivos e técnicas que limitam a perda sanguínea iatrogênica: oxímetro transcutâneo; uso de equipamento de microcoletagem.

e) expansores de volume[10]: lactato de Ringer; solução salina hipertônica; colóide Dextran.

Com o uso de alternativas médicas já foram feitas, sem sangue: cirurgias de coração aberto; cirurgias ortopédicas e oncológicas; transplantes de fígado, rim, coração e pulmão; transplantes de células-tronco periféricas.

De bom alvitre salientar, no entanto, que quando o paciente perde de 25% a 30% do volume sanguíneo, está em iminente perigo de vida face ao risco de choque hipovolêmico[11]. Assim, a transfusão de sangue seria imperiosa para restabelecer o volume intravascular e restaurar a capacidade de transporte de oxigênio, não podendo, atualmente, ser suprida por outra alternativa médica.  

4 – DO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no inciso XVII, proclama: ‘Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.’

Neste tópico, deve-se iniciar tentando responder a indagação: O que é religião?

ALEXANDRE DE MORAES esboça sintética resposta, afirmando que ‘a religião é um complexo de princípio que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto’[12].

JEAN RIVERO, na obra Les Libertés Publiques (Paris, PUF, vol. 2º, 1977, p. 148 e s.) , sobre a ‘especificidade do fato religioso’, tece as seguintes considerações:

“(A religião) afirma a existência de realidades sobrenaturais, a propósito das quais o homem está em situação de dependência: a religião organiza as relações que esta dependência postula.

“(…)

“O crente adere a esta informação, aceita esta organização de suas relações com o sobrenatural.  Em vista disso, sua adesão transborda largamente a simples profissão de uma opinião num outro domínio, pois ela comporta, não uma mera preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade considerada como objetiva, transcendente e superior a todas as outras.

“(…)

“Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total.  Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação.  Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente conseqüente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.[13]

Inegável que a liberdade de religião veio bastante prestigiada no texto constitucional.  Assim, no Preâmbulo da Carta Magna, os constituintes declararam que a promulgaram sob a proteção de Deus;  no artigo 5º merecem destaque os incisos VI[14] (liberdade de consciência e de crença, livre exercício dos cultos religiosos, proteção aos locais de culto e suas liturgias), VII (assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva) e VIII (não-privação de direitos por motivo de crença religiosa). 

A liberdade religiosa é um direito fundamental de primeira geração (ou dimensão), impondo ao Estado um dever de não-fazer, de não-interferir naquelas áreas reservadas ao indivíduo.  Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA[15], há três subdivisões da liberdade religiosa: a) liberdade de crença, que assegura a liberdade de aderir a uma religião, de mudar de religião, ou não seguir religião alguma; b) liberdade de culto, que é o poder expressar-se em casa ou em público em relação às tradições, cerimônias e ritos da religião que se adotou; e, c) liberdade de organização religiosa, que confere aos que professam uma determinada religião o direito de se organizarem sob a forma de pessoa jurídica para a realização de atos civis em nome da fé professada. 

Como bem destaca JAYME WEINGARTNER NETO,  

‘O Estado deve levar a sério o fato de que a religião ocupa um lugar central na vida de muitas pessoas, devendo, portanto, ‘consideração e respeito por todas as formas de religiosidade, mesmo pelas mais inconvencionais (núcleo da livre escolha de crença – CPJ 1.1.2).  O Estado tem, neste contexto, um dever de abster-se de perturbar; a adesão/abandono de uma confissão religiosa, a educação religiosa das crianças por seus pais ou responsáveis, o serviço religioso, o uso de indumentária própria ou de símbolos religiosos, etc.  Trata-se de uma reserva de intimidade religiosa cujo mérito intrínseco é insindicável pelo Estado[16].

No século XX, dois importantes documentos internacionais prestigiaram a liberdade religiosa: a Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação com base na religião ou crença (1981) e o Documento Final de Viena (1989).

A liberdade de religião, conforme o dispositivo constitucional, não abrange apenas o direito de crer em uma doutrina, mas também o de exercer os preceitos da fé professada.  Nessa última hipótese se insere o expressar a fé em todos os aspectos da vida, seja fazendo proselitismo, demonstrando a fé em público, escrevendo e compondo músicas a respeito, bem como recusando tratamentos médicos específicos.

As Testemunhas de Jeová, ao rejeitarem um determinado tratamento médico (transfusão de sangue), mesmo nos casos de iminente risco de vida, estão apenas querendo viver de acordo com suas crenças. Ora, a religião é um modo de expressão espiritual, cultural e ideológica de um agrupamento humano, e por isso deve ser respeitada, especialmente nas hipóteses em que o exercício de seus dogmas e prescrições não causa lesões aos direitos de terceiros.  

5. DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DA NÃO-PRIVAÇÃO DE DIREITOS POR MOTIVO DE CRENÇA RELIGIOSA  

Objetar quer dizer recusar-se a fazer algo.  Objeção de consciência é expressão que designa os casos em que um indivíduo, por alguma convicção pessoal profunda, íntima, recusa-se a praticar determinado ato ou aceitar alguma específica situação.

 Infelizmente, as Testemunhas de Jeová, por motivo de crença religiosa, têm cerceado um elementar direito agasalhado constitucionalmente – o de recusar um determinado tratamento médico (transfusão de sangue) que é repleto de riscos, como já visto. 

 A objeção de consciência não fere o princípio da isonomia, sendo mero sofisma o argumento de que se estaria a privilegiar o direito de uma minoria. Ora, o princípio da isonomia deve ser visto dentro de um quadro amplo de direitos, liberdades e garantias.  A liberdade de consciência é norma especial, que prevalece sobre a norma geral da isonomia.  Para se ter justiça, ocioso dizê-lo, deve-se tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.  Assim, por exemplo, não fere o princípio da isonomia reserva de vagas para deficientes físicos em concursos públicos, atendimento privilegiado em várias situações para crianças, adolescentes e idosos (Leis 8.069/90 e 10.741/03).

 Outra falácia encontradiça é o argumento de que o Estado dispõe de um ‘Direito superior’ ao do particular, algo como um jus imperii.  Ocorre, no entanto, que a força tem limites, não podendo o Estado compelir alguém a algo pelo que sente extrema repulsa.

 Também a justificar a objeção de consciência tem-se o fato de que a sociedade humana é plural, e isso é um fato irreversível. 

 6 – DIREITO À PRIVACIDADE

A Constituição Federal, no inciso X do artigo 5º, tutela o direito fundamental à privacidade nos seguintes termos: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’.

A privacidade é necessidade básica do ser humano, que deseja viver com sossego e tranquilidade, sem ter a sua vida íntima e privada indevidamente devassada por terceiros, nem ser sufocada por ingerências do Estado que ultrapassem imperiosas necessidades sociais.

Em fecundo parecer, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO[17] anota que o direito à privacidade é o dos que reclamam a não-ingerência do Estado, da coletividade ou de algum indivíduo, impondo um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular do direito que não pode ser violada por quem quer que seja.  Agrega, com base em famoso julgado da Suprema Corte Americana, que duas são as facetas desse direito: a) evitar a divulgação de questões pessoais, e, b) independência em tomar determinada espécie de decisões importantes.

O mesmo parecerista frisou que a doutrina e jurisprudência americana incluem no direito à privacidade as decisões relativas ao próprio corpo (vacinações, testes de sangue obrigatórios); concepção e contracepção; tratamentos médicos; e estilos de vida.

Não é ocioso destacar que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), no seu artigo 11, itens 1 e 2, garante a proteção da lei contra interferências arbitrárias na vida privada, honra e dignidade do indivíduo.

O jurista CELSO RIBEIRO BASTOS[18], em parecer, bem gizou que:

“Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual.  Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão.  Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos.” 

Assim, também sob o prisma da proteção constitucional da intimidade e da privacidade, incabível forçar-se alguém a receber transfusão de sangue.

7 – DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Sob a ótica legal, plenamente admissível a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a transfusões de sangue, mesmo nos casos de iminente risco de vida.

A Constituição Brasileira, no seu artigo 5º, inciso II, prescreve que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, salvo em virtude de lei (princípio da legalidade).  Assim, como no país não há lei que obrigue  qualquer pessoa a aceitar transfusões de sangue como tratamento médico, a recusa será válida, devendo ser respeitada.

CELSO RIBEIRO BASTOS[19] faz as seguintes considerações sobre esse tema:

“…a Lei Suprema dita um requisito para que exista a restrição à liberdade. Esta restrição consiste na necessidade de lei, com o que fica implícito que a restrição à liberdade pode existir.  É dizer, as leis dotadas de caráter genérico e abstrato definem diversas situações, deixando uma margem de liberdade, ou melhor, um espaço para fazer ou não fazer alguma coisa.”

O eminente parecerista, após afirmar que ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a tratamento específico contra a sua vontade, ilustra esse direito de recusa com o exemplo de pessoa que, apresentando problemas visuais, fosse obrigada a procurar um oftalmologista e a usar os óculos por ele prescritos, ou, ao passar por problemas financeiros, fosse compelida a consultar um economista e seguir suas orientações.

Também, já foi observado alhures que não se poderia abolir a opção individual de rejeitar transfusões de sangue sem ferir a Constituição, pois se isso acontecesse, estaria criada a absurda situação de alguém preferir ficar em casa para não ter a sua liberdade pessoal violada pelo médico.  Mas então teria de ser criada uma lei para obrigar uma pessoa a ir ao médico…  

8 – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana é o cume, o ápice do sistema jurídico brasileiro e do da maioria dos países: na verdade é um superprincípio, do qual decorrem a necessidade de respeito à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo, relacionando-se, também, à proteção da igualdade e da liberdade do ser humano.

Para INGO WOLFGANG SARLET: 

“…a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional de dignidade.  Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças.  Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos por parte de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção[20]”.

 Mesmo o direito fundamental à vida não é absoluto[21], encontrando limites no princípio da dignidade da pessoa humana, que, afinal, é o alicerce de todo e qualquer direito.  Note-se que é a dignidade da pessoa humana – e não a vida – um dos fundamentos da República (CF/88, art. 1º, inciso III). Ainda, um dos objetivos fundamentais da República é justamente promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa.

 Assim, impor uma transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová equivaleria a violentá-lo, não só no seu corpo, mas também nas suas convicções religiosas, no seu modo de ver e compreender o mundo. Em outras palavras, seria fazer tabula rasa da dignidade do aderente dessa religião. 

 Analisou esse ponto com muita propriedade ANA CAROLINA DODE LOPEZ, em trecho que merece detida reflexão[22] (grifos não constam do original):

“Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados.  A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada?  Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.

“O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez.” 

MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ e MAÍLA MELLO CAMPOLINA fazem a aguda afirmação de que erigir a vida como um ‘bem coletivo’ ou como pertencente ao Estado é tirar do ser humano a única coisa que deveras possui: ele próprio[23].

A conclusão inafastável, portanto, é que também pelo princípio da dignidade da pessoa humana é vedada a transfusão de sangue contra a vontade do paciente da religião Testemunha de Jeová, mesmo quando a vida corra sérios riscos. 

9. DO ARTIGO 15 DO CÓDIGO CIVIL 

Legitima também a recusa a tratamentos médicos, como transfusões de sangue, o disposto no artigo 15 do novel Código Civil, o qual prescreve que ‘Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica”.

Essa inovadora disposição legal tem cariz protetora dos direitos individuais, devendo ser lida como ‘ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica’.  Com efeito, se o médico acreditar na necessidade urgente de uma transfusão de sangue, é porque o paciente estará correndo risco de vida, o que impõe que nenhuma terapia  seja realizada sem o seu prévio consentimento[24]; ou, olhando a questão de outro ângulo, refira-se que a própria transfusão de sangue é, incontestavelmente, um tratamento de risco, seja pela insegurança e precariedade dos testes sorológicos efetuados, quer pelo desconhecimento do comportamento de vírus e outros agentes potencialmente patogênicos existentes eventualmente no material biológico a ser objeto da transfusão. 

Nesse passo, pede-se vênia para transcrever as judiciosas considerações de FELIPE AUGUSTO BASÍLIO[25] sobre o assunto: 

“…pela nova regra do Código Reale, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.

“As conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos.  Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar.”

Conclui-se que o artigo 15 do Código Civil revogou, então, quaisquer normas de hierarquia igual ou inferior que autorizavam a intervenção médica contra a vontade do paciente (especialmente os artigos 46 e 56 do Código de Ética Médica, vindo a lume por mera resolução do Conselho Federal de Medicina, e o art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal), mesmo naqueles casos de iminente risco de vida[26]. 

10 – DO ARTIGO 17 DO ESTATUTO DO IDOSO 

Mais uma inovação legislativa chancela o direito de os pacientes, independentemente dos motivos, recusarem transfusões de sangue: está-se falando do  artigo 17 do Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003), que possui a seguinte redação:“Artigo 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:

I – pelo curador, quando o idoso for interditado;

II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil;

III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;

IV –  pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.

Assim, como regra geral, o art. 17 do Estatuto do Idoso autoriza que o paciente, independentemente do seu estado clínico, mas desde que no domínio de suas faculdades mentais, escolha o tratamento de saúde que entender mais adequado.

Veja-se bem que o inciso III do parágrafo único do artigo 17 deixa evidente que não basta a situação de iminente risco de vida para que seja o médico possa escolher o tratamento.  Imperioso que, antes, ocorra a impossibilidade de manifestação do paciente, familiares ou de seu representante legal. Dito de outra forma: o médico, nos casos de iminente risco de vida, só poderá agir ao próprio talante se tornar-se impossível conhecer, por qualquer meio, a vontade do paciente ou representante legal quanto ao tratamento.

Por evidente, em respeito ao princípio da isonomia, a autorização para que o paciente idoso, mesmo em situação de iminente risco de vida, possa recusar tratamento médico, deve ser estendida, em uma interpretação constitucional, aos pacientes civilmente capazes de idade inferior a 60 anos pois não há qualquer razão lógica/ética/jurídica para não se fazê-lo. 

11 – DO ARTIGO 10 DA LEI DE TRANSPLANTES

O art. 10, ‘caput’, da Lei n.º 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos) prescreve que “O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento”.  E o § 1º desse artigo prevê que naqueles casos em que o receptor for juridicamente incapaz, ou estiver em condições de saúde que impeçam ou comprometam sua manifestação válida de vontade, o consentimento será dado pelos pais ou responsáveis legais.

Percebe-se, assim, que a legislação mencionada coloca em primeiro plano – portanto, acima da vontade do médico – o consentimento do paciente. Desta forma, mesmo que o paciente se encontre em iminente risco de vida, pode decidir se quer, ou não, se sujeitar ao transplante.

Desta maneira, como o sangue é considerado um tecido[27], devem as transfusões se submeterem ao princípio – veiculado na lei – de que ‘quem decide é o paciente’, independentemente da situação de iminente risco de vida.  

Não se desconhece o teor do parágrafo único do art. 1º da Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos: “Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo, o sangue, o esperma e o óvulo’. Entretanto, a exclusão expressa do sangue ‘para os efeitos da lei’ jamais poderia significar que, de fato, sendo um tecido, pudesse ser transfundido contra a vontade do paciente.

A expressão ‘para os efeitos da lei’ deve ser interpretada no sentido de que para fazer a disposição do sangue o doador, por exemplo, não precisará de autorização judicial (art. 9º);  que prescindirá de autorizar a doação preferencialmente por escrito e diante de testemunhas (art. 9º, § 4º); que o receptor não precisa estar inscrito em lista única de espera, etc.

12 – DA INEXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO JURÍDICA DE VIVER

Aos pacientes, independentemente de posicionamentos morais, filosóficos ou religiosos, não se pode impor uma obrigação jurídica de viver mediante o recebimento de uma transfusão de sangue, se considerarmos que ninguém está obrigado para com si mesmo. Deveras, para existir uma relação jurídica é necessário que hajam pelo menos duas pessoas – sujeito ativo e sujeito passivo -, podendo uma delas exigir um bem, a que a outra está obrigada a entregar.

Nesse andar, ANDRÉ FRANCO MONTORO[28], seguindo a lição de DEL VECCHIO, afirma que podemos definir a relação jurídica como o vínculo entre pessoas, por força do qual uma pode pretender ou exigir um bem de outra pessoa, que é obrigada a uma prestação (ato ou abstenção).

Decorre do conceito acima que a sociedade como um todo não tem o direito subjetivo de exigir que um dos seus membros preserve sua própria vida contra a vontade e, portanto, não tem esse membro o dever de atender a essa pretensão da sociedade. E de outra quadra, ninguém está obrigado a defender seu próprio direito.

Sob outro enfoque, é de se afirmar que, em respeito às liberdades do cidadão, o Estado só pode exigir-lhe condutas, positivas ou negativas, que não violem os direitos de terceiros.  E nada mais, sob pena de, em cruel inversão de valores, o homem servir ao Estado, e não este àquele.

Como bem ressaltado por J. STUART MILL[29] 

el único propósito sobre el cual el poder puede ser realmente ejercido sobre cualquier miembro de uma comunidad civilizada, contra sus deseos, es para prevenir el daño a otros.  Su propio bien, ya físico o moral, no es suficiente garantía.  No lo podemos forzar a llevar a cabo tal o cual acto porque el hacerlo sea lo mejor para él, porque lo hará más feliz, porque em opinión de otros sería lo más sabio o lo más correcto.  Estas serían buenas razones para discutirlo o razonarlo com él, para persuadirlo, para rogarle que lo realice; pero no para obligarlo, amenazarlo o cartigarlo por haberlo realizado…La única parte de la conducta de cualquiera, por la que debe de responder a la sociedad, es aquella que concierne a los demás.”  

O médico DIXON cita também J. STUART MILL para expressar que é o paciente quem pode dispor sobre a própria saúde, aceitando ou rejeitando quaisquer espécie de tratamentos: ‘…cada qual é o guardião correto de sua própria saúde, seja ela física, seja mental, seja espiritual.  A humanidade é que mais lucra ao permitir que cada um viva como bem lhe parecer, em vez de compelir cada pessoa a viver como parece ser bom para os demais[30].’

Mas, frise-se novamente, o paciente Testemunha de Jeová não é um suicida, quer viver, mas declina de receber tratamento que  vai de encontro às suas convicções religiosas e que, ademais, repita-se vezes várias, é de alto risco.

Ainda nesse tópico, necessário tecer considerações sobre a conceituação da palavra ‘inviolabilidade’, constante no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, para que, ao final, se possa responder à indagação: a inviolabilidade do direito à vida permite – ou proíbe – que o indivíduo possa recusar tratamento médico em caso de iminente risco de vida?

Parece extremamente razoável dizer que o termo ‘inviolabilidade’ não deva ser interpretado no sentido de proibição de o indivíduo dispor da própria vida, mas sim como a impossibilidade de terceiro violar o bem da vida de outrem. 

Afirmando o referido acima em outras palavras: não se pode confundir ‘inviolabilidade’ com ‘indisponibilidade’, termos que juridicamente traduzem conceitos distintos. A inviolabilidade diz respeito a direitos outorgados a certas pessoas, em virtude do que não podem ser molestadas ou atingidas.  Já a indisponibilidade é atributo daquilo que não se pode dispor ou ceder.

Assim, por exemplo, o artigo 5º, ‘caput’, da Constituição Federal dispõe que a ‘propriedade’ também é inviolável.  Ora, tal não impede que o indivíduo, na forma da lei, possa alienar o bem para terceiro, nem que o poder público possa fazer restrições ao direito de propriedade, inclusive por legislação infraconstitucional, como sói acontecer. 

De idêntica forma, a ‘intimidade’, segundo o mesmo artigo 5º, é inviolável. Entretanto, a ‘inviolabilidade’ não proíbe que o indivíduo participe de reality shows televisionados (Big Brother, v.g.), ou então, publique autobiografia em que narre fatos pessoais e íntimos de sua pessoa.   

13. A QUESTÃO DA RECUSA DE MENORES A TRATAMENTOS COM TRANSFUSÕES DE SANGUE 

Segundo o artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, adotada em 20.11.1989: 

“Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança."  

No presente tópico, impõem-se as seguintes perguntas: podem  os pais negar autorização para transfusões de sangue em seus filhos menores? Com que idade o menor poderá recusar tratamentos médicos por objeção de consciência?

 Inicialmente, refira-se que os pais são os detentores do poder familiar, a eles cabendo empreender os melhores esforços para salvaguardar a vida e a saúde dos filhos.  Aos pais também pertence a iniciativa da formação religiosa dos filhos, ao menos até certa idade, quando então estes poderão decidir, por si só, qual religião adotar – caso, é claro, desejarem seguir alguma. 

Para prosseguir-se, necessário fazer referência à doutrina do menor amadurecido (mature minor doctrine), do direito anglo-americano.

Considera-se menor amadurecido aquele paciente que, embora não tendo atingido a idade da maioridade civil, é dotado da capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e as consequências do tratamento médico proposto, podendo aceitá-lo ou recusá-lo.

Na teoria do menor amadurecido, o importante a considerar é a capacidade decisória, e não algum limite prefixado de idade.

Acerca do tema, importante citar que foi reconhecido pelo Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá) o direito de um paciente de 15 anos de idade recusar uma transfusão de sangue:

“Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Dra. Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico, do tratamento deste e da possibilidade mui real de que sua recusa de aceitar sangue ou hemoderivados lhe pudesse ser fatal.  Todavia, ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as consequências de sua recusa de receber transfusões.  A Dra. Scully disse que uma transfusão imposta seria prejudicial para a saúde de [J.] e, a menos que [J.] mudasse de idéia, ela ‘não administraria nenhuma transfusão de sangue, não importa qual fosse o resultado do tratamento dele’.

“No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as consequências do tratamento proposto.  Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico[31].” 

No Brasil, o jovem de 16 anos de idade, já pode votar (CF, art. 14, § 1º, inc. II, ‘c’);  na órbita civil, não é mais absolutamente incapaz, podendo inclusive ser emancipado. 

Assim, deflui inexoravelmente desses comandos legais que o jovem de 16 anos (que pode influir na vida política de seu país, escolhendo governantes e parlamentares, bem como, emancipado, contratar, casar, ser proprietário de empresas, etc) é, de forma ficta, indiscutivelmente amadurecido, pode exercitar a objeção de consciência, recusando tratamentos médicos mesmo com a oposição dos representantes legais.

JAYME WEINGARTNER NETO faz interessante observação sobre o que se pode denominar de ‘maioridade religiosa’:  

“Pode-se presumir, juris tantum, a maioridade religiosa dos adolescentes (pessoa entre 12 e 18 anos de idade, consoante art. 2º da Lei n.º 8.069/90), afastável por demonstração imaturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos considerado, bem como a incapacidade religiosa das crianças (até 12 anos de idade incompletos, conforme o dispositivo citado), também afastável por demonstração de maturidade biopsicossocial para o ato/omissão religiosos em apreço[32]”. 

No Direito Brasileiro, não se deve olvidar que a criança e o adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, crença e culto religioso, conforme dispõem os artigos 15[33] c/c o art. 16, incisos II e III[34] do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90).

Repita-se, se o adolescente é amadurecido (possui a capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e, especialmente, as consequências do tratamento médico proposto), sua objeção de consciência deverá ser respeitada, tenha 12, 13, ou 17 anos de idade.

Em parecer, o Dr. MARCO SEGRE[35] sustenta que é eticamente aceitável que um adolescente manifeste sua recusa, e seja atendido, a uma transfusão de sangue.

Em resumo ao que foi abordado, pode-se concluir que o adolescente a partir de 16 anos de idade, pelos direitos em perspectiva que a lei lhe confere (direito de votar, direitos civis plenos com a emancipação), deve ser considerado maior amadurecido, sem perquirições adicionais, cabendo-lhe recusar ou aceitar determinados tratamentos médicos. Em relação ao adolescente entre 12 e 16 anos de idade, para verificar se deve ser respeitada sua vontade quanto a terapias médicas, necessário aferir previamente se é um ‘menor amadurecido’.

14 – PRINCÍPIOS BIOÉTICOS DA AUTONOMIA, DA BENEFICÊNCIA, DO CONSENTIMENTO ESCLARECIDO E DA JUSTIÇA 

A relação médico-paciente se rege por princípios bioéticos, cuja adequada compreensão lançará luzes sobre a questão da legitimidade ética de recusa a determinados tratamentos e terapias. 

Bioética, na precisa lição de JOÃO DOS SANTOS DO CARMO e JUSELE DE SOUZA MATOS, é 

“disciplina que busca discutir, refletir e lançar bases criteriosas para a prática da ética nas pesquisas, nas decisões e nas aplicações biotecnológicas que envolvem seres humanos e outros seres viventes.  Para a Encyclopedia of Bioethics, ‘Bioética é definida como o “estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar” e ainda como “estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios éticos”[36] 

O campo da Bioética, assim, é bastante amplo, tratando de assuntos variados envolvendo administração da vida e morte em todos os seus aspectos, tais como: pesquisa com seres humanos e animais; direitos reprodutivos/reprodução assistida; engenharia genética; aborto; eutanásia; transplante de órgãos e tecidos, etc.

Na precisa lição de CLOSET[37], as idéias da bioética surgiram a partir: a) dos grandes avanços da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina realizados nos últimos anos; b) da denúncia dos abusos realizados pela experimentação biomédica em seres humanos; c) do pluralismo moral reinante nos países de cultura ocidental; d) da maior aproximação dos filósofos da moral aos problemas relacionados com a vida humana, a sua qualidade, o seu início e o seu final; e) das declarações das instituições religiosas sobre os mesmos temas; f) das intervenções dos poderes legislativos como também dos poderes executivos em questões que envolvem a proteção à vida ou os direitos dos cidadãos sobre sua saúde, reprodução e morte; e, g) do posicionamento dos organismos e entidades internacionais.

Dentre os itens citados no parágrafo supra, provavelmente as denúncias de abusos praticados contra pacientes em experimentos médicos foi o que deu maior impulso ao desenvolvimento da disciplina da Bioética.  Três casos são emblemáticos:

A – A divulgação do artigo ‘Eles decidem quem vive, quem morre’, de autoria da jornalista Shana Alexander, publicado na Revista Life, em 1962.  No referido artigo, foi contada a história da criação de um comitê de ética hospitalar em Washington, nos EUA (Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle).  O ‘Comitê de Seattle’ tinha como meta definir as prioridades para a alocação de recursos para os pacientes renais. Uma das questões enfrentadas pelo Comitê foi sobre os critérios de admissão de pacientes renais crônicos a tratamento de hemodiálise, em razão de que o número desses pacientes ultrapassava o de máquinas de hemodiálise disponíveis.  

B – Em 1967, Henry Beecher publica o artigo Ethics and Clinical Research, enfocando 22 pesquisas médicas, subsidiadas por verbas governamentais e de companhias médicas.  Os 22 relatos de pesquisa foram selecionados de 50 artigos publicados em periódicos científicos internacionais.

Nesses artigos, eram relatadas situações de desrespeito aos pacientes que eram ‘cidadãos de segunda classe’: internos em hospitais de caridade; adultos e crianças com deficiências mentais; idosos, pacientes psiquiátricos institucionalizados, presidiários, recém-nascidos, enfim, pessoas sem autonomia e sem direito de fazer escolhas. Dentre as atrocidades praticadas, cite-se que uma pesquisa exigia a inoculação intencional de vírus da hepatite em indivíduos institucionalizados por retardo mental, visando o acompanhamento da etiologia da doença.  Foram injetadas células vivas de câncer em 22 pacientes idosos e senis hospitalizados, os quais não foram comunicados de que as células eram cancerígenas.

C – Em 1967 Christian Barnard, da África do Sul, transplantou o coração de um paciente tido pela equipe do médico como ‘quase morto’, enquanto que o paciente que recebeu o coração foi diagnosticado como paciente cardíaco terminal[38].

A bioética assenta-se em quatro pilares, ou princípios, a saber: a) o princípio da beneficência; b) princípio da autonomia; c) princípio do consentimento informado; e, d) princípio da justiça.

A – Princípio da beneficência, que expresso no capítulo I, art. 2º, do Código de Ética Médica brasileiro: ‘o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional’.  

Destarte, as experimentações médicas  devem se pautar em fazer o bem, preservando-se a integridade e o direito à vida dos que a elas são submetidas.

Sobre o princípio da beneficência, preciosa é a lição de BRUNO MARINI[39]: 

“Inicialmente, não podemos esquecer que a visão tradicional hipocrática sobre a ‘beneficência’ deve ser encarado num contexto histórico diferente do nosso.  De fato, vivemos numa era em que cada vez mais os direitos do paciente e do cidadão (e aqui se inclui a autonomia) vêm ganhando mais destaque na bioética e na ciência jurídica.  Ao contrário do que acontecia na Idade Média, o médico não mais é encarado como uma autoridade (de caráter quase que mítica) inquestionável e autoritária.

Deve-se deixar bem claro que o princípio da beneficiência requer que o médico faça o que beneficiará o paciente, mas de acordo com a visão deste, e não com a do médico.  

                             B – O princípio da autonomia reconhece o direito da pessoa de decidir, livre de pressões externas, sobre a sua submissão a determinada terapia ou tratamento médico; por esse princípio, pode o paciente inclusive rejeitar toda e qualquer espécie de tratamento. Ter autonomia significa autogovernar-se, fazer escolhas, ter liberdade para decidir acerca de seu comportamento.  

RONALD DWORKIN tece meritórias considerações sobre a força que deve ser emprestada ao princípio da autonomia:  

“Nos contextos médicos, essa autonomia está frequentemente em jogo.  Por exemplo, uma Testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas.  Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação.  Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstância desse tipo[40].”

A mesma linha de pensamento trilha CLAUS ROXIN. Afirma o jurista alemão que é o paciente quem tem o direito de decidir sobre a omissão ou a suspensão de medidas prolongadoras da vida[41]: 

“Em tais situações a questão jurídica é em princípio clara.  Não haverá punibilidade, porque não é permitido tratar um paciente contra a sua vontade. Se um canceroso se recusa a deixar-se operar (como, p. ex., o caso do penalista Peter Noll, muito discutido e também documentado pela literatura), a operação não poderá ser feita. …A vontade do paciente é decisiva, mesmo nos casos em que um juízo objetivo a considere errônea, ou que seja irresponsável aos olhos de muitos observadores. Também quando a mãe de quatro filhos proíbe aos médicos, por motivos religiosos, que lhe ministrem uma transfusão de sangue que lhe salvaria a vida – este caso realmente ocorreu – devem os médicos curvar-se e deixar a mulher morrer.” 

Digno de nota que o Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue (International Society of Blood Transfusion – ISBT/SITS), adotado em 2000 pela OMS (Organização Mundial de Saúde), estabelece no seu artigo 2 que ‘O paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento. Qualquer diretriz antecipada válida deveria ser respeitada’.

Ainda, o art. 48 do Código de Ética Médica (Resolução n.º 1.246/1988 do Conselho Federal de Medicina prescreve que ‘É vedado ao médico: […] Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar[42].

Em artigo sobre a autonomia do paciente, XAVIER A. LÓPEZ DE LA PEÑA e MOISÉS RODRÍGUEZ SANTILLÁN[43] escrevem que ao recusar receber sangue como medida terapêutica, o adepto da religião Testemunhas de Jeová não está atentando contra a própria vida: 

“Si, de outro lado, la idea central de la controversia que suscitan los pacientes Testigos de Jehová ante el prestador de servicios de salud es la de que con su rechazo a aceptar sangre como medida terapéutica estan atentando y disponiendo con ello contra su vida (cometiendo suicidio), y de outro impidiendo que el médico cumpla con su deber de medios para tratarle como señala la lex artis, podríamos entonces iniciar con tratar de discernir em primer lugar si esta acción es un suicidio.  Consideramos que no.  El paciente que bajo estas circunstancias rechaza la transfusión de sangre no quiere de ninguna manera morir puesto que busca la atención médica y acepta cualquier outro recurso que no sea sangre; tampoco esta ejecutando directamente uma acción contra sí mismo, luego entonces no se le puede culpar de intención suicida.  La falta de sangre exógena que considera inaceptable per se no le causará la muerte, sino las consecuencias del choque hipovolémico por sua falta endógena por la causa que ésta sea; es la evolución natural de un processo patológico particular el que le conduciría en todo caso a la muerte.  Em ninguna situación el certificado de muerte establece como causa directa de la defunción a la falta de transfusión sanguínea sino, en su caso y a modo de ejemplo para retomar la idea anterior, a choque hipovolémico por sangrado de tubo digestivo alto secundario a varices esofágicas rotas, o por herida penetrante de abdomen con lesión de aorta abdominal y hemoperitoneo consecuente, etc.”(p. 124)  

Ao invés de estar atentando contra a própria vida quando recusa transfusão de sangue, o paciente aderente da religião Testemunha de Jeová está na verdade prestigiando o bem ‘vida’, pois no conceito desta incluem-se os direitos de personalidade e outros atributos espirituais que, suprimidos, reduzem o ser humano à mera condição de um animal.

Como magistralmente escreveu ANA CAROLINA DODE LOPEZ[44]:

“As motivações e as convicções de cada pessoa dizem respeito apenas a ela, fazem parte do seu livre-arbítrio, não cabe aos outros enumerar as motivações alheias em aceitáveis e inaceitáveis, segundo os seus próprios critérios, sua própria vivência e com um olhar externo ao problema (visão de uma pessoa sadia).

“(…)

“Os motivos que levaram cada um a realizar ou não um tratamento médico dizem respeito à autonomia da pessoa, a razão pode sim decorrer de convicção religiosa, do medo dos efeitos colaterais, por depressão, por pura vaidade, atitude de negação da doença, por todos estes motivos juntos, ou por nenhum deles; não está na alçada dos outros julgar a validade ou não desta motivação, porque é da esfera exclusiva da autonomia da pessoa…”  

Desrespeitar a autonomia do paciente leva a situações graves e incompatíveis com a dignidade humana. Citem-se dois exemplos: a) Em 1976, em Porto Rico, Ana Paz do Rosário concordou em submeter-se a uma cirurgia, desde que não fosse utilizado sangue; entretanto, foi-lhe aplicada transfusão de sangue contra a vontade, por policiais e enfermeiras que, munidos de uma ordem judicial, lhe amarraram na cama para poder executar o ato. Ana Rosário em seguida à transfusão entrou em choque e morreu[45]; e , b) para salvar a vida de paciente que, por motivos religiosos, não consentia em fazer transfusão de sangue após difícil parto, médico pratica tal ato contra a vontade da parturiente e seu marido.  Após a alta, a mulher não foi aceita em seu lar pelo cônjuge, e nem pôde mais frequentar a igreja, sendo repudiada por todos[46].

C – O princípio do consentimento esclarecido (ou informado) requer que o  médico, antes de qualquer intervenção terápica ou cirúrgica, esclareça ao paciente os benefícios e riscos correspondentes, bem como informe acerca de alternativas ao tratamento proposto, possibilitando, assim, que o doente escolha o tratamento que reputar mais conveniente.  

Segundo ZELITA DA SILVA SOUZA e MARIA ISABEL DIAS MIORIN DE MORAES, o consentimento esclarecido está atualmente na pauta das discussões sobre a ética médica, e o propósito de se requerer esse consentimento é o de promover a tomada de decisões autônomas pelo indivíduo em relação aos tratamentos médicos e questões de saúde[47].   

Sobre o procedimento de obtenção do consentimento informado, veja-se a lição de FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA[48] 

“Se o diálogo inclui o respeito à dignidade do paciente, ele expressa também o reconhecimento do paciente, ele expressa também o reconhecimento da autonomia, da liberdade do sujeito que se afirma sobre a fragilidade que a doença e a morte testemunham.  Autonomia expressa a essência humana como liberdade de escolha; antes de tudo a possibilidade de optar em relação a tudo o que diga respeito à própria pessoa.  A opção responsável é o exercício do direito inerente a todo ser humano de responder por si mesmo aos desafios da existência, isto é, de dominar, pela razão e pela vontade, o curso de sua própria história.  Mesmo que o acontecimento escape ao controle da mente e do livre-arbítrio, a pessoa poderá sempre compreendê-lo e tomar posição frente a ele, ainda que esta compreensão seja o entendimento da fatalidade àquilo que a sobrepuja. […]

“Em que sentido o paciente tem o direito de decidir? Na relação terapêutica habitual, o médico detém o privilégio do conhecimento daquilo que é melhor para o paciente.  Ainda assim, a administração de terapêuticas está, em princípio, sujeita ao acordo do paciente, de seus familiares e dos eventuais responsáveis.  Para obter o necessário consentimento, o médico transmite ao interessado a informação pertinente, assegurando-se de que a resposta estará condicionada ao correto entendimento da informação."  

 D – O princípio da justiça ganha força quando surge a necessidade de conscientização acerca da distribuição igualitária e geral dos benefícios e avanços propiciados pelos serviços de atendimento à saúde.

 Assim, conforme refere BRUNO MARINI[49], ‘justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las”, o que impõe a obrigação de o Estado possibilitar o acesso, especialmente na rede pública, de tratamentos alternativos às transfusões de sangue para os objetores de consciência. 

15 – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS DE RESPEITO À AUTONOMIA DO PACIENTE NO EXTERIOR E NO BRASIL

A voo de pássaro, ver-se-á a seguir precedentes jurisprudenciais no exterior e no Brasil em que foi reconhecido o direito de o paciente recusar tratamentos médicos à base de transfusões de sangue.  Gize-se que no direito anglo-americano, devido a uma tradição liberal de forte respeito aos direitos individuais, os precedentes dessa natureza abundam, ao contrário do que acontece em países do Terceiro Mundo, em que a tradição é justamente o escasso respeito aos direitos humanos.

a) ESTADOS UNIDOS

Caso Brooks  Devido a uma úlcera, paciente Testemunha de Jeová solicitou atendimento médico.  Por repetidas vezes alertou ao médico de sua negativa em receber tratamento com sangue, inclusive firmando um documento de exoneração da responsabilidade do profissional.  O médico, sem informar previamente à paciente, transfundiu sangue. Levado o caso à via judicial, o Tribunal de Apelação do Estado de Illinois afirmou que a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos protege o  direito de cada indivíduo à liberdade de sua crença religiosa e seu respectivo exercício.  Aduziu-se que a ação governamental só poderia embaraçar tal direito quando estivesse em perigo, clara e atualmente, a saúde, o bem-estar ou a moral pública. 

Esta foi a primeira decisão de uma corte de apelação nos Estados Unidos em que se reconheceu o direito de um paciente da religião Testemunhas de Jeová a recusar transfusões de sangue não desejadas.

b) CANADÁ

Caso Mallete v. Schulman (Ontario Court of Appeal, 72 O.R 2d 417, 1989) – Em consequência de um acidente automobilístico, uma Testemunha de Jeová sofreu graves ferimentos.  Na sala de emergência do hospital foi encontrada uma diretriz médica, por ela firmada, de que não aceitaria tratamento médico à base de sangue, mesmo que em situação de emergência.  O médico do turno, de forma deliberada, ignorou tal manifestação de vontade, transfundindo sangue no paciente.  A filha adulta da paciente havia objetado energicamente a tal transfusão de sangue, mas mesmo assim o médico não se furtou de fazê-la.  Quando a paciente se recuperou, demandou o médico por administrar-lhe sangue sem o seu consentimento.  A Corte resolveu o caso em favor da paciente, condenando-lhe ao pagamento de vinte mil dólares canadenses pelos danos ocasionados.

O médico apelou da decisão, mas o Tribunal de Apelação de Ontário rechaçou seus argumentos, reafirmando o direito de o paciente decidir a respeito do seu próprio corpo: ‘Um adulto capaz geralmente tem o direito de recusar um tratamento específico ou qualquer tratamento, ou de selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que essa decisão possa acarretar consigo riscos tão sérios como a morte ou possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade.  Independentemente da opinião do médico,  é o paciente quem tem a palavra final quanto a submeter-se a tratamento’. 

Além de confirmar o direito do paciente de decidir sobre o seu próprio corpo em caso de iminente risco de vida, o Tribunal de Apelação destacou que a Diretriz Médica Antecipada é uma forma de comunicar os desejos do paciente em uma emergência quando não possa se expressar. 

c) CHILE

No artigo AUTONOMÍA DEL PACIENTE: EJEMPLO DE LOS TESTIGOS DE JEHOVÁ (reimpresso com permissão da Revista Chilena de Cirurgía (2003; 55 (5): 537-542), AVELINO REMATALES nos fornece dois notáveis exemplos de como o princípio da autonomia da vontade do paciente foi respeitada pelo Poder Judiciário chileno:

1) No ano de 1996, foi  rejeitado o ‘Recurso de Protección Rol n.º 805-96’ na Corte de Apelações de Santiago.  Com o recurso, o Hospital San José pretendia transfundir sangue contra a vontade do paciente, com o argumento que a vida era um bem superior. Ficou decidido de maneira sucinta, mas profunda, que ‘ninguém pode ser forçado a defender seu próprio direito’.

2) No começo de 2001, a Corte de Apelações de Valparaíso encerrou o caso contra um médico e a esposa de um paciente. Ambos haviam respeitado a vontade do enfermo.  O paciente, que não era Testemunha de Jeová, padecia de uma hemorragia digestiva e se negou a uma transfusão de sangue.  O médico e a esposa do paciente – quem sim era Testemunha de Jeová – respeitaram a vontade expressada.  Devido a uma condição hemodinâmica muito complexa, o paciente morreu.  Os familiares ajuizaram ação contra o médico e a esposa do paciente.  Dois anos mais tarde a Corte absolveu completamente aqueles que respeitaram a vontade do paciente, o consentimento informado, a autonomia, a dignidade e a liberdade.  Felizmente, a enfermeira havia escrito na ficha clínica que o paciente não havia consentido com a transfusão de sangue. Assim, se estabeleceu uma vez mais que o único titular da  vontade é o paciente, e ainda que no estado de inconsciência.

d) ARGENTINA[50]

Caso Bahamondez (CS, 06.04.93, Medida Cautelar ED 153-249). Bahamondez era adepto da Religião Testemunhas de Jeová, civilmente capaz, que foi internado em um hospital em razão de hemorragia digestiva. Negando-se a receber transfusão de sangue, as autoridades do hospital pediram aos juízes autorização para fazer a transfusão de maneira compulsória, alegando que isso era fundamental para manter o paciente com vida. O Tribunal de 1ª Instância e a Câmara Federal de Comodoro Rivadávia concederam a autorização (CFed. Com. Riv. 15.106.89 ED 134-297), entendendo que o direito à vida não é disponível e que a atitude de Bahamondez equivalia a um suicídio lento.

Perante a Corte Suprema, o advogado de Bahamondez alegou que seu cliente queria viver, e não suicidar-se, mas, consciente dos riscos de vida que corria, preferia privilegiar sua fé e convicções religiosas em detrimento das indicações médicas.

A Corte, por maioria, declarou abstrata a questão, ou seja, não se pronunciou porque ao tempo que o expediente chegou à Corte, Bahamondez já havia obtido alta médica.  Inobstante isso, quatro juízes desenvolveram meritórias dissidências em dois grupos, fixando a posição do tribunal para casos similares, levando em conta sua função de garante supremo dos direitos humanos.

O primeiro grupo, formado pelos juízes Mariano Cavagna Martínez e Antonio Boggiano, reconheceram que a liberdade religiosa traz consigo a possibilidade de exercer a ‘objeção de consciência’, que é o direito do indivíduo de não cumprir uma norma ou uma ordem da autoridade que violente suas convicções mais íntimas, sempre que o descumprimento não afete significativamente os direitos de terceiros e o bem comum.  No caso, os juízes mencionados interpretaram que não haviam sido afetados direitos de pessoa distinta da de Bahamondez e, portanto, não se lhe podia obrigar a atuar contra a sua consciência religiosa.  Em síntese, esses votos se fundamentaram no conceito de liberdade de crença religiosa e na necessidade de respeitar a dignidade da pessoa humana.

O segundo grupo, formado pelos magistrados Augusto Belluscio e Enrique Petracchi, sublinhou no seu arrazoado o direito à intimidade, e, invocando julgados norte-americanos (balancing test), mencionou o direito de ‘ser deixado a sós’, afirmando que tal direito não pode ser restringido pela só circunstância de que a decisão do paciente possa parecer irracional ou absurda perante a opinião dominante da sociedade.  Tratando-se, no caso concreto, de homem adulto, consciente e livre, não cabia impor-lhe tratamento que violentasse suas convicções íntimas.

Caso Galacher (CNCiv. Sala G, 11.08.95 ED 154-655, Buenos Aires) Tratava-se do caso de uma mulher adulta, de 30 anos de idade, seguidora da religião Testemunha de Jeová, que sofria da enfermidade de leucemia aguda.  Possuía filhos pequenos. Com a concordância expressa do cônjuge, opunha-se a receber uma transfusão de sangue indicada pelos médicos.

O ‘Fiscal de Cámara’, entre outras considerações de seu arrazoado, sustentou que o Estado Federal sempre reverenciou o ‘fenômeno religioso’; destacou, ainda, que a Sra. Gallacher possuía vontade real e lúcida, além do desejo de continuar vivendo, mas não à custa dos sacrifício de suas convicções religiosas.

 Por sua vez, o Asesor de Menores, ao tecer considerações sobre o efeito que a decisão teria sobre os filhos da enferma, sustentou que os menores se encontravam na alternativa de pedir a sua mãe que vivesse à custa de suas crenças, ou que assumisse sua fé até às últimas consequências e entregasse a vida, dando, desse último modo para seus filhos o exemplo de uma mãe heróica que entrega a vida por suas convicções.

 O Tribunal, citando o caso Bahamondez, priorizou na sua decisão a objeção de consciência, afirmando que o direito de decidir a forma pela qual se possa morrer é um direito personalíssimo. 

 e) BRASIL

 O juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos do processo 024.08.997938-9, indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, que pediu autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová. 

A paciente, por motivos religiosos, não aceitava a transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia, a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina.

O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico tem o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição.  ‘Entretanto’, salientou, ‘estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana’.

O juiz  referiu que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico.  A restrição diz respeito a qualquer tratamento que envolva a transfusão de sangue, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento.

Em trecho lapidar, o magistrado mencionou que no seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, preservar os valores morais, espirituais e psicológicos’.  O Dr. Dresch citou que, embora não fosse lícito à parte atentar contra a própria vida, a Constituição, em seu art. 5º, inciso IV, assegura, também, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos.

O juiz referiu que o recebimento do sangue pelo seguidor da corrente religiosa ‘o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar, que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes’.

Em razão disso, e pela informação de que a paciente se encontrava lúcida, o juiz não autorizou a realização da transfusão de sangue, que estava sendo recusada por motivos religiosos: ‘Desta forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão’, concluiu o juiz.

O juiz Dresch citou outras decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que preservam o direito de seguidores da religião em não passarem por transfusões de sangue[51].  Em uma das decisões do TJMG ficou decidido que é ‘possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico’.

Não houve recurso do hospital, tendo a decisão transitado em julgado em 16/07/2008. 

16. LEI ISLANDESA SOBRE OS DIREITOS DOS PACIENTES

O Anuário de 2005 das Testemunhas de Jeová refere a existência de lei islandesa acerca dos direitos dos pacientes, a qual estipula que nenhum tratamento pode ser dado a paciente sem o seu consentimento, e que se a vontade do paciente é conhecida, deve ser respeitada.

Trata-se da Lei n.º 74/1997 (que entrou em vigor em 1º/07/1997), um autêntico marco legislativo na temática dos direitos dos pacientes de recusar tratamentos médicos, como as transfusões de sangue.  O governo islandês disponibilizou tradução, em inglês, da lei em comento[52].

O artigo 5º da Lei prevê que o paciente tem o direito de obter informações sobre seu estado de saúde, o tratamento proposto (com seus riscos e benefícios), possibilidade de tratamento diverso do originalmente proposto e suas consequências, bem como de consultar outro médico[53].

O artigo 7º determina que o direito de o paciente decidir sobre o tratamento que receberá deverá ser respeitado. Afirma expressamente que nenhum tratamento será dado sem o consentimento do paciente[54].

O artigo 8º prescreve que em caso de um paciente recusar um tratamento, o médico deverá informá-lo das possíveis consequências da decisão[55].

O artigo 9º, por sua vez, abre exceção ao ‘princípio do consentimento para o tratamento’ nos casos em que o paciente estiver inconsciente ou incapacitado de comunicar sua vontade.  Inobstante isso, se preteritamente à impossibilidade de manifestação era conhecida sua recusa por uma espécie de tratamento, sua vontade será respeitada[56].

O artigo 20 assegura ao paciente o direito de ir ao médico que reputar mais conveniente, o que traduz a possibilidade de ser transferido aos cuidados de outro médico ou equipe médica[57].

O artigo 21 estabelece a responsabilidade do paciente pela própria saúde, tendo o direito de participar ativamente do tratamento para o qual consentiu[58].

O surpreendente artigo 24 chancela a possibilidade de o paciente morrer com dignidade, conferindo a ele o direito de fazer cessar um tratamento na fase terminal.  Acrescenta, ainda, que se o paciente for mentalmente enfermo ou estiver impossibilitado fisicamente, o médico deverá consultar os parentes antes de decidir sobre o fim ou a continuidade  do tratamento[59].

Faz-se votos que a magnífica e avançada lei islandesa inspire a legislação de muitos países – especialmente a do Brasil -, para que haja o fortalecimento dos direitos humanos.  

17. DIREITO DOS PACIENTES A TRATAMENTOS ALTERNATIVOS ÀS TRANSFUSÕES DE SANGUE 

Em respeito aos direitos fundamentais daqueles que por motivos religiosos não aceitam determinados tratamentos médicos, o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via SUS, de tratamentos alternativos às tranfusões de sangue – forma de materializar o atendimento dos direitos à saúde e  à objeção de consciência, ambos protegidos constitucionalmente[60]. 

Não se deve aceitar o argumento daqueles que dizem que os tratamentos alternativos às transfusões de sangue não devem ser pagos pelo SUS porque são muito custosos e beneficiam apenas uma minoria.  

Ora, em primeiro lugar, diga-se que as minorias também pagam seus tributos ao Estado, não podendo ser excluídas de terem um atendimento médico de acordo com suas convicções religiosas. 

Em segundo, tratamentos alternativos beneficiam a coletividade inteira, dado que, como já citado, são inúmeros os riscos inerentes às transfusões de sangue: reações do tipo hemolítico e alérgico; transmissão do HTLV-1 e HTLV-2; TT-Vírus; malária; Mal de Chagas; sífilis; doença de Creutzfelt-Jacob (doença da ‘Vaca-Louca’), etc.  Desta forma, o Estado, além de propiciar terapias médicas mais seguras aos usuários do sistema de saúde, evitará gastos com indenizações e tratamentos médicos de pessoas contaminadas pelas transfusões de sangue. 

Em terceiro lugar, como já visto, a própria Constituição Federal protege a objeção de consciência.

Em quarto, não se pode aplicar nestas situações, visando negar o custeio dos tratamentos alternativos, a ‘teoria da reserva do possível’, segundo a qual a satisfação dos direitos sociais fica condicionada à existência de recursos orçamentários do Estado. Em vez disso, aplica-se a ‘teoria do mínimo existencial’, consoante a qual o Estado é obrigado a garantir o mínimo necessário para que a sobrevivência do indivíduo não periclite.

Destarte, o administrador público deve velar para que não seja negado a pessoas de poucos recursos o direito de objeção de consciência à transfusão de sangue somente porque na cidade de origem não existam as terapias alternativas.  Nesse caso, o administrador deve arcar com os ônus de providenciar o tratamento em cidade, ou, se for o caso, Estado diverso do de residência do paciente.  De idêntica forma, o Poder Judiciário deve ser firme em garantir tal direito em caso de recalcitrância do administrador do sistema de saúde.

Nesse aspecto, ventos benfazejos da jurisprudência começam a soprar, pois importante decisão favorável ao direito de o paciente ter custeado pelo SUS tratamento alternativo à transfusão de sangue em Estado diverso da Federação foi tomada, por maioria, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 22.395/2006, cuja ementa é a seguinte: 

“TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE – EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO.  Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como a única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional, não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os princípios dela.  Não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los.  A inclinação de religiosidade é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discriminação.  Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-a, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la.  O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um.  Se o Sistema Único de Saúde do Mato Grosso não dispõe de profissional com domínio da técnica que afaste o risco de transfusão de sangue em cirurgia cardíaca, deve propiciar meios para que o procedimento se verifique fora do domicílio (TFD), preservando, tanto quanto possível, a crença religiosa do paciente.” 

Tratava-se do caso de cidadão de mais de 60 anos de idade que ajuizou na 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Cuiabá (MT) ação cominatória para cumprimento de ação de fazer contra o Estado do Mato Grosso, visando compelir o ente estatal a lhe custear cirurgia cardíaca (sem uso de transfusão de sangue) no Hospital Beneficência Portuguesa, na cidade de São Paulo/SP.  Tal procedimento poderia ser realizado no Estado do Mato Grosso, mas somente mediante transfusão de sangue, o que ia de encontro às convicções religiosas do paciente. 

Em primeiro grau, a antecipação de tutela foi indeferida, o que motivou o ajuizamento do Agravo de Instrumento junto ao TJMT. Por maioria, essa Corte, vencido o Relator Sebastião de Arruda Almeida, que negava provimento, reconheceu o dever do Estado do Mato Grosso custear a cirurgia cardíaca do paciente no Estado de São Paulo (com  técnica que dispensa transfusão de sangue), diante da objeção de consciência. 

 O julgamento teve início em 24.05.2006, tendo o 1º vogal, Desembargador Leônidas Duarte Monteiro, em um primeiro momento, aderido ao voto do Relator, que negava provimento ao agravo.  Nessa sessão, pediu vista o 2º vogal, Des. Orlando de Almeida Perri. 

 Na continuidade do julgamento, em 31.05.2006, o 2º vogal votou favoravelmente à pretensão do agravante, convencendo o 1º vogal a retificar seu voto.

 Pela excelência das razões, calha transcrever trechos do voto vencedor do Des. Orlando de Almeida Perri (2º vogal): 

“Para delimitar o âmbito deste apelo, impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à vida e o de liberdade de crença religiosa.

“O que se põe em relevo é o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa.

“(…)

“Como adepto da doutrina ‘Testemunhas de Jeová’, por força de textos bíblicos (Gênesis 9:3-4, Levítico 17:10 e Atos dos Apóstolos 15:19-21) não admite o recorrente submeter-se a procedimento cirúrgico se houver possibilidade de se utilizar transfusão de sangue, mesmo que isso represente o único recurso a salvar sua vida.

“Os autos mostram que, nesta capital, o único médico a fazer cirurgia cardíaca pelo SUS – Sistema Único de Saúde, não domina a técnica de realizá-la sem o risco de se utilizar transfusão de sangue.

“(…)

“O que incomoda-me bastante é a intransigência estatal em obrigar o recorrente a submeter-se a cirurgia que, pela técnica utilizada, ofenda os princípios religiosos dele.

“(…)

“Ora, a circunstância de o Estado ter em seus quadros um único profissional credenciado a fazer cirurgias cardíacas pelo SUS, que ainda não domina essas técnicas, pode impor ao paciente que submeta-se à cirurgia tradicional olvidando-se seus princípios religiosos? Não estaria o Estado, nessas condições, desrespeitando o direito à liberdade religiosa?

“Certo é que, tratando-se de cirurgia eletiva, o paciente com mal cardíaco submete-se a ela ou não, segundo a sua vontade.  Este preceito transcende à ética médica e alcança a bioética, que tem como um dos princípios basilares o respeito aos valores, crenças e vontades do paciente.

“Ao lado do princípio hipocrático da benevolência, a bioética conclama o respeito à autonomia do paciente em anuir a este ou aquele procedimento médico, principalmente em face do Estado, quando movimentada por princípios religiosos.

“Se ao profissional da medicina impõe-se o dever de acatar a vontade do paciente, ainda que a medida ponha em risco a própria vida dele, que dizer então em relação ao Estado quando a recalcitrância funda-se em motivos financeiros?

“O que pretendo afirmar é que, havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando se apresenta como a única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente.

“É preciso ter em mente que não se trata de capricho, teimosia ou intolerância do recorrente, mas de princípios religiosos, que proíbem a transfusão de sangue alogênico.

“Quase septuagenário, não quer ele arriscar a vida eterna pelos poucos anos de vida terrena.  Diante da situação, afigura-se justo o Estado compeli-lo à escolha entre essas vidas?

“(…)

“Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la.”  

Na questão de obrigar o Estado a montar uma estrutura para propiciar tratamentos alternativos às transfusões de sangue para os objetores de consciência por motivos religiosos, avulta o papel do Ministério Público.  De fato, essa instituição poderia instaurar procedimento administrativo para investigar as deficiências do SUS quanto à disponibilização de tratamentos alternativos às transfusões de sangue, sabidamente arriscadas, firmando Termo de Ajustamento de Conduta com o ente público legitimado ou inclusive ajuizando a ação civil pública competente. 

18 – DA NECESSIDADE DE MUDANÇAS NOS CURRÍCULOS DE ENSINO MÉDICO E JURÍDICO

Pelo que foi abordado ao longo deste trabalho, torna-se visível que alterações nos currículos das faculdades de Direito, Farmácia, Medicina e Enfermagem se fazem necessárias para que os assuntos relativos aos direitos dos pacientes sejam melhor estudados e compreendidos, pois dizem respeito, fundamentalmente, à saúde física e à dignidade do ser humano.

Como bem observa o criminalista PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES em parecer[61], “Postos frente à expansão universal de moléstias viróticas mortais, devem os estabelecimentos de ensino médico e hospitais ministrar urgentemente ensinamento sobre os tratamentos alternativos substitutivos das transfusões, minimizando a possibilidade de contágio, cada vez mais efetiva.” 

Isso nada mais seria do que dar concretude à prescrição do art. 5º do Código de Ética Médica Brasileiro, segundo o qual o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.

Assim, nos programas das disciplinas médicas – inclusive na pós-graduação – torna-se imperioso incluírem-se disciplinas como ‘Tratamentos alternativos às transfusões de sangue’, Sociologia da medicina’, ‘Psicologia do paciente’ e, especialmente, Ética Médica .

JECÉ FREITAS BRANDÃO, prefaciando a obra de Nedy Cerqueira Neves[62], refere que a publicação surpreende ao denunciar que, apesar de a Ética Médica ter 2500 anos de história, somente há 30 anos estava incluída no currículo da graduação médica de maneira formal.  Também revelava que 14,6% das escolas médicas no Brasil ainda não tinham docentes de Ética Médica. Prosseguiu afirmando que esse descaso parecia não ser privilégio do Brasil, já que a World Medical Association precisou recomendar, em resolução, a inclusão do ensino de Ética Médica no currículo das escolas médicas de todo o mundo.

No ensino jurídico, seria de grande valia a inclusão da cadeira de ‘biodireito e bioética, e da de ‘direitos e deveres de médicos e pacientes’; na disciplina de Direito Constitucional deveria ser estudada com detença temas relativos à liberdade religiosa e de consciência. E deveria ser estimulada pelas faculdades de Direito a realização de seminários e a produção de artigos e monografias sobre o direito de recusa de pacientes a determinados tratamentos médicos.

19. DA RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL DO MÉDICO

Restou suficientemente assentado que, em conjunto, os princípios constitucionais da legalidade, da liberdade de crença e consciência, da dignidade da pessoa humana, da proteção da intimidade, bem como alguns dispositivos infraconstitucionais da Lei de Transplantes, do Código Civil e do Estatuto do Idoso devem sobrepor-se ao direito à vida, devendo o médico respeitar a vontade do paciente de não receber transfusão de sangue, mesmo que disso venha a decorrer o óbito.

Desta forma, se o médico informar devidamente ao paciente os riscos da recusa à transfusão de sangue, e mesmo assim o paciente se opor a esse tratamento, estará o profissional agindo conforme o ordenamento jurídico, não podendo ser responsabilizado civil ou criminalmente pelo resultado morte.

Certamente, expressiva parcela dos médicos sentir-se-ia insegura em respeitar a vontade do paciente de recusar transfusões de sangue em  situações de iminente perigo de vida, por temer responder a processo administrativo junto ao Conselho Regional de Medicina ou ser réu em processo cível ou criminal por omissão de socorro, delito previsto no artigo 135 do Código Penal[63].

Entretanto, tais temores não se justificam. Respondendo consulta acerca da responsabilidade do médico por omissão de socorro no caso de acatar a vontade do paciente de recusa de tratamento, o eminente constitucionalista MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, em parecer[64], asseverou: 

“Com efeito, no ângulo penal, inexiste crime sem culpa.  Ora, na hipótese de recusa de tratamento, não haverá culpa por parte do médico em não ser este prestado.  Não terá havido omissão de responsabilidade do médico, mas recusa a tratamento específico por parte do paciente.” 

E acerca da responsabilidade ética em não ministrar o médico o tratamento indispensável em respeito à vontade do paciente, o mesmo autor refere: “Igualmente, não haverá nesse caso responsabilidade do médico por falta ética.  Falta que ele, aliás, não cometeu, porque se o tratamento, ou transfusão, não foram ministrados, isto se deu pela recusa por parte do paciente.”  

TEREZA RODRIGUES VIEIRA, em artigo[65], noticiou a absolvição pelo Conselho Federal de Medicina de uma médica  que respeitou a decisão da paciente coreana Y.C.H. (que era Testemunha de Jeová) em não aceitar transfusão de sangue. A profissional havia sido inicialmente condenada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo[66]. 

Y.C.H. sofreu hemorragia no trabalho de parto, porém já havia manifestado seu desejo de não realização de nenhuma transfusão de sangue em caso de emergência.  A paciente morreu, porém a criança foi salva.

Com base nos depoimentos dos familiares e dos profissionais de saúde que atuaram no caso, o Conselho Federal de Medicina, por 5 votos contra 4, absolveu a médica H.K., entendendo que ela não poderia desrespeitar a vontade da paciente.

Em parecer[67], o Dr. MARCO SEGRE referiu que ‘Sempre mais se considera que a exceção prevista no Código de Ética Médica (art. 46), prevendo a intervenção do médico sobre o paciente – contrariamente a sua vontade, em situações de iminente perigo de vida – seja uma possibilidade que se abre para o médico atuar, e não uma determinação’. 

Evidentemente, se um paciente, de forma livre e consciente, recusa transfusão de sangue mesmo ciente dos riscos iminentes a sua vida decorrentes dessa conduta, não será caso de aplicação do disposto no artigo 46 do Código de Ética Médica, mas sim do artigo 48 do mesmo Diploma Legal, que veda ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.

RODRIGO IENACCO DE MORAES e RODRIGO ESTEVES SANTOS PIRES argumentam que ‘numa perspectiva funcionalista, pode-se admitir a juridicidade da irresponsabilidade penal do médico quando, em respeito à convicção religiosa do paciente Testemunha de Jeová, não ministra a transfusão, mas adota todas as alternativas de tratamento no intuito de salvar-lhe a vida, observada a lex arte[68]

De outra banda, entende-se que mesmo nos casos em que o médico fizer a transfusão de sangue contra a vontade do paciente (por óbvio, somente nos casos de iminente risco de vida) não poderá derivar a responsabilidade civil ou criminal, pois estará atendendo o que determina o seu Código de Ética, especialmente os artigos 46 e 56: 

“Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida.”

 

“Art. 56. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.”  

Há, ainda, o disposto no inciso I do § 3º do art. 146 do Código Penal, prescrevendo que não configura o delito de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. 

Ora, em obedecendo legislação escrita, positivada (embora inconstitucional e/ou revogada, como visto) que regulamenta aspectos do seu exercício profissional, o médico não pode receber qualquer punição administrativa ou ser responsabilizado nas esferas cível e criminal. De fato, o médico não é um operador do Direito, para saber que uma norma ‘x’, positivada em texto, é inconstitucional ou se foi revogada; ou que princípio constitucional, em um determinado caso concreto, terá preponderância sobre outro; aliás, sequer os operadores do Direito tem posicionamento unânime a esse respeito, não sendo incomuns decisões judiciais que autorizam a transfusão de sangue contra a vontade do paciente em casos de iminente risco de vida.    

20. PRINCIPAIS CONCLUSÕES 

1 –  Apesar dos avanços técnicos no controle do material biológico, as transfusões de sangue continuam sendo procedimento de risco, pois: a) por elas podem ser transmitidas doenças infecciosas graves, tais como AIDS e Doença de Chagas; e, b) deprimem o sistema imunológico do receptor. 

 2 – A recusa a tratamento médico, estribada em convicção religiosa, tem proteção constitucional, diante da inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI e VIII, da CF/88).

3 – A recusa de submeter-se a qualquer espécie de tratamento médico, independentemente de convicções religiosas, também encontra guarida nos princípios constitucionais da legalidade (‘ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei’) e da dignidade da pessoa humana.

4 – O direito à vida não tem apenas um aspecto físico (conservação biológica do corpo), mas envolve, principalmente, elementos morais, espirituais e emocionais.

5 – Aos pacientes, independentemente de posicionamentos morais, filosóficos ou religiosos, não se pode exigir uma obrigação jurídica de viver mediante a imposição de uma transfusão de sangue, se considerarmos que ninguém está obrigado para com si mesmo.  Para existir uma relação jurídica é necessário que hajam pelo menos duas pessoas – uma que pode exigir uma prestação e outra que tem o dever de atendê-la.

6 – Não se pode confundir ‘inviolabilidade do direito à vida’ com ‘indisponibilidade do direito à vida’, termos que juridicamente têm significados bem distintos. A inviolabilidade diz respeito a direitos outorgados a certas pessoas, em virtude do que não podem ser molestadas ou atingidas por terceiros.  Já a indisponibilidade é atributo daquilo que o titular não pode dispor ou ceder.

7 – A recusa a tratamentos médicos, como as transfusões de sangue, está legitimada pelo disposto no artigo 15 do novel Código Civil, o qual prescreve que ‘Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica”, norma que deve ser lida como ‘ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica’. 

8 – O artigo 17, ‘caput’, da Lei n.º 10.741/2003 (‘Estatuto do Idoso’), ao assegurar àquele que estiver no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento médico que lhe for reputado mais favorável, não erige como óbice ao exercício de tal direito que o paciente corra risco de morte. E o inciso III do parágrafo único desse artigo estabelece que não é suficiente a situação de perigo de vida para que a eleição do tratamento seja feita pelo médico, exigindo, ainda, a impossibilidade de manifestação do paciente idoso, familiares ou representante legal.  Diante desses claros dispositivos legais, pelo princípio da igualdade de todos perante a lei estão revogados os dispositivos normativos de igual ou inferior hierarquia que possibilitam ao médico fazer tratamento médico e/ou cirúrgico contra a vontade do paciente, mesmo nas situações de iminente risco de vida. 

9 – O art. 10, ‘caput’, da Lei n.º 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos) ao prescrever que o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento, desautoriza a transfusão de sangue – que é um tecido – contra a vontade do paciente, mesmo em casos de iminente risco de vida. 

10 – O adolescente a partir de 16 anos de idade, pelos direitos em perspectiva que a lei lhe confere (direito de votar, direitos civis plenos com a emancipação), deve ser considerado maior amadurecido, sem perquirições adicionais, cabendo-lhe recusar ou aceitar determinados tratamentos médicos. Em relação ao adolescente entre 12 anos completos e 16 anos incompletos de idade, para verificar se deve ser respeitada sua vontade quanto a terapias médicas, necessário aferir previamente se é um ‘menor amadurecido’.

11 – Pelo princípio bioético da AUTONOMIA, o paciente tem o direito de decidir sobre a sua submissão – ou não – a determinado tratamento médico, livre de interferências e pressões externas, levando em consideração seus valores mais íntimos, sejam morais, éticos, filosóficos ou religiosos.  O princípio da autonomia deve sobrepor-se ao PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA, pelo qual o médico deverá fazer o que, na sua ótica, beneficiará o paciente.

12 – Mesmo que não se considere revogados o inciso I do § 3º do artigo 146 do Código Penal e o artigo 46 do Código de Ética Médica, tais dispositivos normativos são inconstitucionais, pois, possibilitando a intervenção médica ou cirúrgica contra a vontade do paciente, ferem a liberdade de consciência e de crença, o direito à intimidade e à privacidade, além dos princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana.

13 –  Diante dos grandes riscos inerentes às transfusões de sangue, bem como em respeito ao direito à saúde dos objetores de consciência por motivos religiosos, o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via SUS, de tratamentos alternativos à essas tranfusões.

14 – Os estabelecimentos de ensino médico e de atendimento à saúde devem ministrar urgentemente ensinamento sobre os tratamentos alternativos substitutivos das transfusões, minimizando a possibilidade de contágio. Nos programas das disciplinas médicas – nos níveis de gradução e pós-graduação – torna-se imperioso incluírem-se disciplinas como ‘Tratamentos alternativos às transfusões de sangue’, Sociologia da medicina’, ‘Psicologia do paciente’ e, especialmente, Ética Médica.

15 – No currículo do ensino jurídico deveria ocorrer a inclusão da cadeira de ‘biodireito e bioética, e da de ‘direitos e deveres de médicos e pacientes’; na disciplina de Direito Constitucional deveria ser estudada com detença temas relativos à liberdade religiosa e de consciência. E também deveria ser estimulada pelas faculdades de Direito a realização de seminários e a produção de artigos científicos e monografias sobre o direito de recusa de pacientes a determinados tratamentos médicos.

16 – O médico que atende a vontade do paciente de rejeitar as transfusões de sangue, mesmos nos casos de iminente risco de vida, não pode ser responsabilizado civil  e criminalmente, mesmo que da conduta sobrevenha a morte do paciente. 

21. RESUMEN 

La negativa de los pacientes de la religión Testigos de Jehová a recibir transfusiones de sangre en situaciones de riesgo inminente de vida ha despertado el debate en las comunidades médica y juridica.  Este artículo es un intento de demonstrar que la negativa se apoya en la Constitución Brasileña y en la legislación infraconstitucional.

PALABRAS CLAVE: Transfusiones de sangre. Libertad religiosa. Testigos de Jehová. Principios constitucionales. Derechos de los pacientes.  

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NOTAS

[1] 3 Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento.  Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. 4 Somente a carne com a sua alma – seu sangue – não deveis comer.

[2] “Quanto a qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo.

[3] 19 Por isso, a minha decisão é não afligir a esses das nações, que se voltam para Deus, 20 mas escrever-lhes que se abstenham das coisas poluídas por ídolos, e da fornicação, e do estrangulado, e do sangue. 21 Pois, desde os tempos antigos, Moisés tem tido em cidade após cidade os que pregam, porque ele está sendo lido em voz alta nas sinagogas, cada sábado.

[4] Para as Testemunhas de Jeová é inaceitável receber transfusões de sangue total (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaqueta e plasma). Entretanto, dizem que é uma questão de consciência – cabe ao adepto decidir – se aceitará frações desses quatro componentes primários do sangue.  Os glóbulos brancos, por exemplo, podem ser fonte de interleucinas e interferons (usados para tratar infecções virais e algumas espécies de câncer).

[5] R., Mauricio Besio e H., Francisca Besio, acerca das Testemunhas de Jeová, referem: “Hay que reconocer, sin embargo, que la actitud de ese grupo paradójicamente há permitido grandes avances en el manejo sin transfusiones de pacientes en estado crítico y también en el desarrollo de sustitutos de la sangre. Es innegable el aporte que ellos han hecho en esta área del conocimiento médico.  Desde que este grupo empezó a cuestionar las transfusiones, tanto por motivos religiosos como por las complicaciones de estas terapias, la cantidad de transfusiones de sangre se há reducido considerablemente con el consiguiente beneficio para todos los pacientes. También, es preciso reconocer que, aunque constante, siempre la defensa de sus creencias estas personas le há efectuado de manera respetuosa y buscando soluciones alternativas.” In: Testigos de Jehová y Transfusión sanguínea. Reflexión desde uma ética natura. Revista Chilena de Obstetrícia Ginecologíca 2006: 71(4), p. 275.

[6] Na colisão de direitos fundamentais é necessário que sejam diferentes os titulares dos direitos em foco, havendo antagonismo entre eles.

[7] ‘Como pode o sangue salvar sua vida?’, Associação Torre de Vigia, p. 10.

[8] ROSENFELD LGM, ‘Considerações sobre os riscos das transfusões sangüíneas’, Arquivos do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, 1991, p. 80, apud ‘Cuidados com a família e Tratamento Médico para as Testemunhas de Jeová’, item ‘Aspectos éticos/legais’, p. 26.

[9] LIGIERA, Wilson Ricardo. Tutelas de Urgência na recusa de transfusão de sangue. In: Temas sobre tutela de urgência. Org. Pós-Graduação em Direito da Universidade Paulista – UNIP. São Paulo: Arte & Ciência, 2002,  pp. 165-167.

[10] Utilizados quando há perda de grande quantidade de plasma (parte líquida do sangue).  Têm a função de manter o volume circulatório do sangue no corpo.

[11] No choque hipovolêmico, devido à perda sanguínea, o coração fica incapaz de fornecer sangue para o corpo.

[12] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, p. 119.

[13] Apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue. Parecer Jurídico, São Paulo/SP, 24.10.1994.

[14] Art. 5º (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

[15] SILVA, José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 251.

[16] NETO, Jayme Weingartner. Liberdade religiosa na Constituição, pp. 116-117.

[17] Parecer, op. cit.

[18] BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, p. 19. Parecer Jurídico, São Paulo, 23 de novembro de 2000.

[19] BASTOS, Celso Ribeiro, idem.

[20] SARLET, Ingo Wolfgang.  As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico constitucional necessária e possível. In: (Org) Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 32.

[21] Assim, por exemplo, no direito brasileiro permite-se pena de morte em tempo de guerra, admite-se matar em legítima defesa e estado de necessidade, e o aborto, sob determinadas condições do Código Penal, é autorizado.

[22] LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de Direitos Fundamentais: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.º 958, 16 fev. 2006. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7977. Acesso em 14 jan. 2007.

[23] SÁ, Maria de Fátima Freire de; PONTES, Maílla Mello Campolina. Autonomia privada e biodireito: podemos, legitimamente, pensar em um direito de morrer? In: Revista Jurídica Unijus, v. 11, n.º 15, p. 190.

[24] Salvo, é claro, naqueles casos em que não for possível descobrir a vontade do paciente, seja de forma verbal ou por documento escrito pretérito.    

[25] BASÍLIO, Felipe Augusto. O princípio da dignidade da pessoa humana e a recusa a tratamentos médicos com hemotransfusão por motivos de convicção religiosa.  Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 809, 20 set. 2005.  Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7311. Acesso em 14 jan. 2007.

[26] Em sintonia com o disposto no artigo 15 do Código Civil, tem-se a Lei 10.241/99 do Estado de São Paulo (Lei Mário Covas), que estabelece no seu artigo 2º serem direitos dos usuários dos serviços de saúde de São Paulo: (…) VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados…XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.

[27] O sangue é um tipo especial de tecido conjuntivo, formado pelo plasma (parte líquida) e células (leucócito, eritrócitos e plaquetas)

[28] MONTORO, Franco. Introdução à Ciência do Direito, Editora RT, p. 536.

[29] On Liberty, p. 30, apud LA PEÑA, Xavier A. López e SANTILLÁN, Moisés Rodrigues. In: Por La Autonomia Del Paciente, Gaceta Médica Del México 2002, vol. I, 138(1), p. 122.

[30] apud Dixon, Lowell. Sangue: quem decide? Baseado na consciência de quem?  In: Como pode o sangue salvar sua vida? Cesário Lange-São Paulo: Sociedade Torre de Vigia, 1990, p. 31. 

[31] Apud Cuidados com a família e tratamento médico para as Testemunhas de Jeová, p. 31 do item ‘Aspectos ético/legais.

[32] NETO, Jayme Weingartner. Liberdade religiosa na Constituição, p. 229.

[33] Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

[34] Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:

I – ir, vir, ir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;

II – opinião e expressão;

III – crença e culto religioso;

[35] Situação ético-jurídica da Testemunha de Jeová e do médico e/ou instituição hospitalar que lhe presta atenções de saúde, face à recusa do paciente religioso na aceitação de transfusões de sangue. Parecer, São Paulo, 04.07.1991.

[36] CARMO, João dos Santos; MATOS, Jusele de Souza. Bioética: um texto introdutório, Revista Lato & Sensu, p. 6.

[37] CLOSET, J. Bioética como ética aplicada e genética. In: Garrafa, V.; Costa, S.I.F (Org.). A bioética no século XXI, Editora da UNB, p. 111.

[38] Este fato levou a Escola Médica da Universidade de Harvard, em 1968, a procurar definir critérios médicos para a morte encefálica, com a finalidade de controlar casos semelhantes. No Brasil, o CFM editou a Resolução 1346/97, que define esses critérios.

[39] MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 661, 28 abr. 2005. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641. Acesso em 14 jan. 2007.

[40] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida, aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 319.

[41] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal, pp. 202-203.

[42] O Parecer n.º 46 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, da Presidência do Conselho de Ministros de Portugal (46/CNECV/05) trata da objeção ao uso de sangue e derivados para fins terapêuticos por motivos religiosos, traz importantes subsídios no sentido de que é direito do paciente recusar transfusões de sangue.

Assim, no item 2 do referido Parecer é referido que a autonomia implica a capacidade do doente para exprimir as suas preferências, nomeadamente as decorrentes das suas convicções religiosas.

No item 3, consta que ‘A recusa em aceitar transfusões de sangue e hemoderivados enquadra-se no direito de o doente decidir sobre os cuidados de saúde que deseja receber, desde que lhe seja reconhecida a capacidade para tal e existam condições para a exercer.

No item 4 consta que ‘A recusa de tratamento com sangue e hemoderivados em perigo de vida só pode ser considerado pelo médico quando é o próprio destinatário da terapêutica a manifestá-lo de um modo expresso e livre’.

Textualmente, é referido no item 6 do Parecer do CNECV que ‘Quando haja uma recusa válida o médico e/ou outros profissionais de saúde têm o dever de a respeitar’. 

[43] Por la autonomía del paciente, Gaceta Médica de México 2002; vol.138(1), p.124.

[44] LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de Direitos Fundamentais: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.º 958, 16 fev. 2006. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7977. Acesso em 14 jan. 2007. 

[45] SÁ, Fabiana Costa Lima de. A liberdade religiosa e a transfusão de sangue nas Testemunhas de Jeová. In Revista Themis, Fortaleza, v. 3, n.º 1, p. 325.

[46] Exemplo citado por NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade Civil Médica, 5ª edição revista e atualizada à luz do novo Código Civil, com acréscimo doutrinário e jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 176.

[47] A Ética Médica e o respeito às crenças religiosas. Disponível em http://crmma.org.br/revista/bio1v6/eticmedica.html, acesso em 1º/05/2007.

[48] Direitos e deveres do paciente terminal. In: Revista Bioética, CFM, vol. I, pp.141-142.

[49] MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 661, 28 abr. 2005. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641. Acesso em 14 jan. 2007.

[50] Os dois exemplos citados, em tradução livre, foram extraídos do tema ‘El Derecho a una morte digna y la objeción de conciencia (Dra. Amanda Estela Kees), abordado nas ‘2das Jornadas Interprovinciales sobre responsabilidade civil del medico’, ponencia para la Comison n.º 3.

[51] Dentre elas, a de n.º 1.0701.07.191519-6/001(1), disponível no site do TJMG (www.tjmg.gov.br) .

[52] Disponível em <http://eng.heilbrigdisraduneyti.is/laws-and-regulations/nr/34> Acesso em: 26 fev. 2009.

[53] Information on Health and Treatment. Article 5. A patient has the right to obtain information regarding:

a.        his state of health, including medical information on his condiction and prognosis;

b.       the proposed treatment, as well as information on its corse, risks and benefits;

c.        possible remedies other than the proposed treatment and the consequences of lack of treatment;

d.       the possibility of seeking the opinion of another doctor or other health workers, as appropriate, regarding treatment, condition and prognosis.

[54] The right of the patient to decide wheter he will accept treatment shall be respected. Article 7. The provisions of the Legal Majority Act apply to the consent to treatmente of patients who, on account of lack of intelligence or for the other reasons provided for by the Act, are incapable of making a decision regarding treatment.  In such cases the patient shall nevertheless be consulted to the extent possible.  Whitout prejudice to Article 9, no treatment may be given without the prior consent of the patient, cf. paragraphs 1 and 2.  The consent shall be in writing whenever possible and indicate the information the patient has been provided with and that he has understood the information.   

[55] Treatmente refused. Article 8.  If the patient refuses to accept treatment, a doctor shall inform him about the possible consequences of this decision.  The patient may discontinue treatment at any time, without prejudice to other laws.  If the patient refuses to accept treatment, his doctor or the health worker supervising the treatment shall inform him of the possible consequences of his decision.  Article 26 applies to a refusal to patient to allow treatment of sick children.  The decision of a patient to refuse to accept or to discontinue treatment shall be recorded in his clinical record and it shall be confirmed that that he has received information on the possible consequences of his decision. 

[56] Exemptions from the principle of Consent to Treatment. Article 9.  If a patient is unconscious or his condition is such that he is unable to express his will regarding urgent treatment, his consent shall be taken for granted unless it is known with certainty that he would have refused to accept treatment. 

[57] Choice of a Health Worker. Article 20. Although the country is divided into health regions in accordance with the Health Service Act, a patient has the right to go to the doctor mos convenient for him.  A patient also has the right to seek the opinion of another doctor regarding diagnosis, treatment, condition and prognosis.  The same applies in regard to other health health workers. 

[58] The Patient’s Responsibility for His Own Health. Article 21. A patient is responsible for his own health as far as he is able and his state of health permits.  He shall, as the case may be, participate actively in the treatment he has consented to. 

[59] Treatment of Dying Patients.  A patient has the right to die with dignity.  If a dying patient express clearly that he declines further life-prolonging treatment, or resuscitation efforts, his doctor must respect his decision.  If a dying patient is  mentally or physically too ill to decide on his treatment, the doctor shall endeavour to consult the relatives of the patient and colleagues before he decides on the continuation or temination of treatment.

[60] O Estado também deve fomentar o aumento da oferta dos tratamentos alternativos às transfusões por parte dos prestadores de saúde privados, a fim de que o acesso efetivamente se universalize.

[61] FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Parecer. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, Cesário Lange, SP.

[62] NEVES, Nedy Cerqueira. Ética para os futuros médicos. É possível ensinar? Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2006.

[63] Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte.

[64] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue. Parecer Jurídico, São Paulo/SP, 24.10.1994.

[65] Aspectos éticos e jurídicos da recusa de paciente Testemunha de Jeová em receber transfusão de sangue. In: Rev. De Ciências Jurídicas da Unipar, v. 6, n.º 2, p. 226.

[66] Tratou-se do processo ético-profissional CFM n.º 0654-015/00, que teve origem no processo 2374-020/94 do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.  A decisão do CFM reformou a decisão de 1º grau, que impôs como penalidade à médica ‘Censura confidencial em aviso reservado’.

[67] Consulta n.º 27.278/96 do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), aprovada em 07/10/1997.

[68] MORAES, Rodrigo Ienacco; PIRES, Rodrigo Esteves Santos. Transfusão de sangue em pacientes Testemunhas de Jeová: religião, ética e discurso jurídico-penal. In: Revista Jurídica Unijus, v. 8, n.º 8, p. 94.

22. REFERÊNCIAS

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COMO PODE O SANGUE SALVAR SUA VIDA? Cesário Lange-São Paulo: Sociedade Torre de Vigia de Bíblia e Tratados, 1990.

CUIDADOS COM A FAMÍLIA E TRATAMENTO MÉDICO PARA AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Cesário Lange/SP. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

DE LA PEÑA, Xavier A. López; SANTILLÁN, Moisés Rodríguez. Por La autonomia del paciente. In: Gaceta Médica de México, 2002; vol. 138 (I): 121-127. 

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TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO DAS ESCRITURAS SAGRADAS

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Aspectos éticos e jurídicos da recusa do paciente Testemunha de Jeová em receber transfusão de sangue. In: Revista de Ciências Jurídicas e Sociais da Unipar, v. 6, n.º 2, pp. 221-234, jul./dez. 2003.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Cláudio da Silva Leiria:  Promotor de Justiça no RS

e-mail: claudioleiria@hotmail.com