Introdução
No Direito brasileiro, as normas internacionais de Direitos Humanos trazem consigo fortes peculiaridades. Tratados e convenções foram ratificados pelo Estado brasileiro ao longo dos anos e, como “divisor de águas”, conferiu o poder reformador, através da EC nº 45/04, status de norma constitucional àqueles que forem aprovados por maioria qualificada (3/5).
No plano da hermenêutica constitucional, doutrina e jurisprudência trouxeram certo suporte para a construção de conceitos e termos capazes de conferir harmonia ao ordenamento jurídico.
Por outro lado, a prática constitucional tem demonstrado grandes divergências quanto à efetiva aplicação das normas de direitos humanos, em especial no que diz respeito à tutela jurisdicional dos direitos das pessoas com deficiência.
O presente artigo traz como objetivo um esclarecimento maior acerca desta realidade. Para tanto, serão tecidas algumas considerações acerca da natureza jurídica das normas internacionais de direitos humanos que passaram a vigorar no Brasil antes e depois da EC nº 45/04.
1. Normas Internacionais de Direitos Humanos anteriores à EC nº 45/04
Em relação às normas internacionais de direitos humanos aplicáveis no Brasil, podemos destacar: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos2; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3; Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH4; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher5.
Tomando como referência a CADH, esta tem sido considerada como fonte de Direito em diversas áreas, merecendo destaque o Direito Processual Penal.
Contudo, uma relevante discussão jurídica foi levantada no Brasil: a “prisão civil do depositário infiel”. Nesse tema, podemos afirmar que, aparentemente, existe um conflito de normas.
No plano interno, traz o texto constitucional uma regra originária que, de forma excepcional, autoriza a prisão civil em discussão6.
Por outro lado, a CIDH não menciona tal possibilidade, trazendo apenas a prisão pelo inadimplemento de obrigação alimentar como uma das exceções de prisão civil7.
O Judiciário, após o julgamento desta questão em diversas instâncias, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal – STF8, fixou um
entendimento que, no Brasil, prisões civis de depositários infiéis não são admissíveis. A doutrina esclarece: a CADH é uma norma “supralegal”9.
Entretanto, uma dúvida razoável poderia surgir:
“Se a CADH possui natureza supralegal, ou seja, está acima das leis e abaixo da CF/88, diante deste aparente conflito, não deveria prevalecer a regra constitucional?”
Aqui, a hermenêutica constitucional traz os esclarecimentos necessários:
No plano internacional, o Brasil adota o princípio da prevalência dos Direitos Humanos10. Com base no princípio da Unidade da Constituição e da ponderação, a prisão do depositário infiel é uma regra excepcional que, embora expressamente prevista no texto constitucional, não está em harmonia com o ordenamento jurídico, razão pela qual deve ser afastada.
Por fim, de forma bastante assertiva, prescreve a súmula vinculante nº 25 do STF que tal prisão é ilícita11. Mais um esclarecimento: a) não é inconstitucional (o texto constitucional expressamente autoriza); b) não é ilegal (existe previsão expressa no Código Civil12); c) é ilícita (viola o ordenamento jurídico brasileiro).
2. Normas Internacionais de Direitos Humanos posteriores à EC nº 45/04
Em relação aos “bastidores” desta mudança trazida pelo poder reformador, merece destaque os estudos feitos por Flávia Piovesan acerca da natureza jurídica das normas de direitos humanos13.
Com a promulgação da EC nº 45/04, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, as normas internacionais de direitos humanos receberam um tratamento especial: se forem aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 (três quintos) dos parlamentares de cada casa, serão consideradas “Emendas Constitucionais”.
Como exemplo, podemos mencionar a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 25/08/2009.
No que diz respeito à tutela jurisdicional das pessoas com deficiência, dentre as diversas ações propostas com o objetivo buscar a efetivação de direitos fundamentais assegurados pela presente norma internacional, destacamos aqui uma discussão jurídica:
“A possibilidade jurídica de, por analogia, conceder horário especial a servidores estaduais e municipais, independente da compensação de horário, que tenham cônjuge, filho ou dependente com deficiência.”
Sobre o tema, há grande divergência dentro do próprio judiciário: para alguns magistrados, não é tarefa do judiciário o reconhecimento de tais direitos, pois, seria uma forma de exercício do chamado “ativismo judicial”; para outros, a “judicialização” de demandas com
esta representam o acesso efetivo à justiça assegurado por Estados Constitucionais14.
Por fim, importante registrar que esta discussão está no STF sob o tema nº 1.097 de repercussão geral, aguardando decisão do plenário15.
Conclusões
As normas de direitos humanos possuem grande relevância jurídica diante da finalidade de conferir ao indivíduo sua efetiva dignidade.
No Brasil, apesar desta divisão acerca das normas internacionais, a efetivação dos direitos humanos é o vetor de interpretação e aplicação capaz de nos apontar, na visão de Konrad Hesse, qual é a “Vontade da Constituição”16.
Nesse sentido, caberá ao intérprete e aplicador do direito a missão de construir uma ampla visão acerca desta temática.
Referências Bibliográficas
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1991.
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria do processo civil, volume 1, 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
Heitor Miranda de Souza