Revogação parcial da Lei de Imprensa simboliza o “apagão” da ditadura militar de 1964

*Clovis Brasil Pereira

Introdução

A Lei 5.270/67, denominada de “Lei de Imprensa”, foi  sancionada pelo governo militar que se apoderou do poder em 1964, e que se valeu de suas normas repressivas para estabelecer por mais de 20 anos a censura e a supressão das liberdades individuais em nosso país.

A intenção deliberada dos  governos militares que se sucederam até o início da democratização ocorrida a partir de 1984, foi a de calar os meios de comunicações em geral, e as mais diversas expressões culturais, representadas pelos teatrólogos, compositores musicais, cantores, autores, professores, estudantes, políticos  e profissionais liberais em geral, amordaçando-os de forma generalizada, com a implantação da censura prévia, com a violenta  repressão e a prisão de todos os que ousaram pensar e difundir idéias de liberdade que se opunham  aos interesses da ditadura.

Foram tempos obscuros, de perseguição política, de supressão dos direitos individuais e coletivos, que nenhuma recordação positiva trazem aos que prezam a liberdade, e militam a favor da cidadania.

O fim do arbítrio e a plena redemocratização do Brasil

Com a Constituição Federal promulgada em 1988, denominada de “Constituição Cidadã”, tivemos o reencontro com o pleno Estado de Direito, e que na sua essência tem como pressupostos a soberania popular, a independência dos poderes e o respeito às liberdades individuais.

A vigente constituição brasileira, está assentada em dois fundamentos que representam os pilares do estado democrático de Direito, representados pelo respeito à cidadania e à dignidade  humana.  

O processo de transição entre o regime ditatorial que se apoderou do poder durante 20 anos – 1964 a 1984 – e a fase preliminar da democratização, iniciada em 1984, que se estendeu até 1988, não foi capaz de ceifar do nosso ordenamento jurídico, de uma só vez, os entraves e as  amarras entre um passado indesejado, e o futuro de liberdade sonhado pela sociedade brasileira.

Claramente as restrições ao exercício da plena liberdade de expressão contidos na Lei de Imprensa, não mais se ajustavam ao clima de livre expressão e manifestação do pensamento  que passou a ser garantido pela Constituição de 1988.

Porém, embora a nítida incompatibilidade, a Lei de Imprensa não foi expressamente revogada, embora os novos fundamentos constitucionais não a tivessem recepcionado.

Passados mais de 24 anos, do fim do regime ditatorial, somente  em 2008, tivemos uma manifestação eficaz do Supremo Tribunal Federal, através  de liminar concedida pelo Ministro Carlos Ayres Brito, na ADPF 130, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista, suspendendo a aplicação de 20 dos 77 artigos da Lei de Imprensa.

O que foi suspenso liminarmente pelo STF

Os artigos da lei que tiveram sua aplicação suspensa, até que seja julgada definitivamente a Ação proposta, são os seguintes: 

a)  a parte inicial do § 2º do art. 1º (a expressão “…a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem …”);

b) o § 2º  do art. 2º;

c) a íntegra dos arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 20, 21, 22, 23, 51 e 52;

d) a parte final do art. 56 (o fraseado “… e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa…”);

e) os §§ 3º e 6º do art. 57;

f)  os §§ 1º e 2º do art. 60;

g) a íntegra dos arts. 61, 62, 63, 64 e 65.

Dentre os dispositivos legais suspensos,  destacamos  as principais alterações que assolavam mais de perto a livre manifestação do pensamento: 

1.  O fim da censura, com a garantia aos espetáculos e diversões públicas da livre e plena  manifestação do pensamento; 

2. Os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) devem ser analisados à luz do Código Penal, que apresenta penalidades mais brandas que a Lei suspensa.

 3. A responsabilização civil dos jornalistas e das empresas que exploram os meios de informação ou divulgação, que deverá seguir ao disposto no Código Civil.

 4. Suspensão da aplicação de multa para notícias falsas, deturpadas ou que ofendam a dignidade de alguém.

 5. A proibição de apreensão de jornais e revistas que ofendam a moral e os bons costumes.

 6. A impossibilidade do aumento de um terço das penas, no caso de crime contra a honra contra autoridades constituídas (Presidentes da República, da Câmara e do Senado, Ministros do Supremo, chefes de Estado e diplomatas).

Os efeitos da Liminar concedida 

Muitos artigos suspensos já faziam letra morta em nosso ordenamento jurídico, uma vez que a jurisprudência já vinha admitindo sua inaplicabilidade em vários casos, em razão da não recepcionalidade plena da Lei pela Constituição de 1988.

Porém, como efeito direto da liminar concedida pelo Ministro Carlos Ayres Brito, e confirmada pelo Plenário do STF no dia 28 de fevereiro de 2008, estão suspensas todas as ações em curso perante o Poder Judiciário em todo o território nacional, que tenham por base os artigos que foram contemplados na decisão proferida, restando, por conseqüência, suspenso o prazo prescricional de tais ações até o julgamento do mérito da ação, que está previsto para ocorrer dentro de seis meses, conforme foi decidido pelo STF.

Os juizes que tiveram processos sob sua condução, podem julgá-los de conformidade com a legislação ordinária cabível (Código Civil e Código Penal) e ainda de conformidade com a Constituição Federal, o que na prática, já vinha ocorrendo, com as indenizações por danos morais, com fundamento no artigo 5º, da Constituição Federal e artigo 186, do Código Civil, vigente desde 10 de janeiro de 2003, e os crimes contra a honra, conforme as disposições dos artigos 138, 139 e 140, do Código Penal.

Os fundamentos da decisão do STF

Vale ressaltar os argumentos e fundamentos utilizados pelo Advogado e Deputado federal Miro Teixeira, que representou o PDT na ação interposta, do Ministro Carlos Ayres Brito, que concedeu a liminar, e os demais Ministros do STF, na oportunidade da confirmação da liminar pelo Pleno, como expressão da afirmação da cidadania e da livre expressão do pensamento.

Destacamos, a título ilustrativo:

                   a) Advogado e deputado federal Miro Teixeira: 

“É uma lei que não serve para a solução de conflitos. Esta lei serve para intimidar. Esta lei serve para ameaçar”. 

b)  Ministro Carlos Ayres Brito:

“Imprensa e democracia, na vigente ordem constitucional,são irmãs siamesas”.

“A atual Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), diploma normativo que se põe na alça de mira desta ADPF, não parece mesmo serviente do padrão de democracia e de imprensa que ressaiu das pranchetas da nossa Assembléia Constituinte de 1987/1988”.

c)  Ministro Cezar Peluso:

 "Nenhuma lei pode garrotear a imprensa”.

d)  Ministro Celso de Mello: 

“O Estado não tem poder algum sobre a palavra, as idéias e as convicções de qualquer cidadão dessa República e de profissionais dos meios de comunicação social”.

Dos onze Ministros do STF, apenas o ministro Marco Aurélio de Mello não referendou a liminar concedida pelo Ministro Ayres Brito, sob a alegação de que o instrumento jurídico utilizado pelo PDT para contestar a lei – uma argüição de descumprimento de preceito fundamental – só pode ser usado quando inexistem outros meios de solucionar determinada controvérsia.

Segundo Marco Aurélio, referendar a liminar impediria os cidadãos em geral de ter livre acesso ao judiciário para litigar sobre causas envolvendo a Lei de Imprensa. Isso causaria, segundo ele, a “paralisação da jurisdição”.

Conclusão

A revogação parcial da Lei de Imprensa, ao nosso ver, tem a sua importância maior, por simbolizar o fim de uma era de truculência e desrespeito às  liberdades individuais e coletivas,  ao livre pensamento e expressão de idéias dentre os vários segmentos da sociedade. 

Quanto as condenações na esfera penal e indenizações cíveis, por eventuais excessos dos órgãos de comunicação social, na verdade, tais ilicitudes já vêm de algum tempo, sendo embasadas  na própria Constituição Federal, que garante “a  inviolabilidade da intimidade, a vida privada, a honra  e a imagem das pessoas” (art. 5º, inciso X); no Código Civil, que em seu artigo 186, imputa a realização de como ato ilícito, para quem, “por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral” ; e no Código Penal, artigos 138, 139 e 140,  que tratam respectivamente dos crimes contra a honra (Calúnia, Difamação e Injúria). 

Portanto, temos em nosso ordenamento jurídico, dispositivos legais que podem  dirimir eventuais conflitos entre pretensos ofensores e pretensos ofendidos, sendo totalmente desnecessária a incômoda  convivência, de uma lei que serviu de anteparo para a proteção do regime ditatorial que se implantou no Brasil de 1964 a 1984, com os tempos atuais, de plena vigência do Estado Democrático de Direito.

Por isso, a liminar concedida pelo STF, e que deverá por certo ser confirmada por expressiva maioria, quando de seu julgamento de mérito, representa  a expressão, de  um símbolo de luz, de liberdade e democracia, que decreta definitivamente  o  “apagão” da ditadura militar, de triste memória,  que se instalou no Brasil em 1964.


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

CLOVIS BRASIL PEREIRA:  Advogado, com escritório na cidade de Guarulhos (SP); Especialista em Processo Civil; Licenciado em Estudos Sociais, História e Geografia. É Mestre em Direito,  Professor Universitário, lecionando atualmente as disciplinas Direito Processual Civil e Prática Jurídica Civil nas Faculdades Integradas de Itapetininga (SP) e UNICASTELO, São Paulo (SP);  ministra cursos na ESA- Escola Superior da Advocacia, no Estado de São Paulo,  Cursos Práticos de Atualização Profissional e  Palestras sobre temas atuais; é membro da Comissão do Advogado-Professor da OAB-SP; membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-Guarulhos; é colaborador com artigos publicados nos vários sites e revistas jurídicas. É coordenador e editor dos sites jurídicos www.prolegis.com.br e www.revistaprolegis.com.br

Contato:   prof.clovis@54.70.182.189

 

 

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