*Tassus Dinamarco
Ordinariamente a função preponderante do recurso de agravo1 é o ataque das decisões interlocutórias proferidas pelo órgão judicial durante o procedimento i) em primeiro ou segundo grau de jurisdição; ii) nas hipóteses de competência originária das cortes estaduais, federais, e, também; iii) perante os órgãos de superposição, notadamente os tribunais superiores. É o recurso mais utilizado nos foros do país.
Mas há situações em que o recurso de agravo, interposto mediante instrumento, pode, como veremos, acabar por extinguir o processo com resolução de mérito ao esgotar a necessidade de nova decisão judicial2, normalmente esperada com cognição de verdade3 no momento em que o Poder Judiciário profere sua última palavra no feito depois de esgotadas as provas produzidas pelas partes dentro do arco de garantias previstas no due process law como pressuposto de validade nas atividades daquele poder estatal.
Os atos do juiz consistem em sentenças, decisões interlocutórias e despachos4. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 do CPC5; decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente6; despachos são todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma7.
Segundo o art. 522, caput, do CPC, “Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento”; “O agravo de instrumento será dirigido diretamente ao tribunal competente, através de petição com os seguintes requisitos: I – a exposição do fato e do direito; II – as razões do pedido de reforma da decisão; III – o nome e o endereço completo dos advogados, constantes do processo. A petição de agravo de instrumento será instruída: I – obrigatoriamente, com cópias da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado; II – facultativamente, com outras peças que o agravante entender úteis. Acompanhará a petição o comprovante do pagamento das respectivas custas e do porte de retorno, quando devidos, conforme tabela que será publicada pelos tribunais. No prazo do recurso, a petição será protocolada no tribunal, ou postada no correio sob registro com aviso de recebimento, ou, ainda, interposta por outra forma prevista na lei local. O agravante, no prazo de 3 (três) dias, requererá juntada, aos autos do processo de cópia da petição do agravo de instrumento e do comprovante de sua interposição, assim como a relação dos documentos que instruíram o recurso. O não cumprimento do disposto neste artigo, desde que argüido e provado pelo agravado, importa inadmissibilidade do agravo”8.
Esse o apanhado geral do procedimento do recurso de agravo interposto na modalidade por instrumento, deduzido pelo Código de Processo Civil como pressupostos de admissibilidade para sua subida, manutenção e julgamento no tribunal.
Analisemos, a partir daqui, seu procedimento no tribunal, os poderes conferidos ao relator e a desnecessidade de outra decisão de mérito no processo quando o agravo de instrumento comete esta função, extraordinariamente.
Pelo art. 527 do CPC, “Recebido o agravo de instrumento no tribunal, e distribuído incontinenti, o relator: I – negar-lhe-á seguimento, liminarmente, nos casos do art. 557; II – converterá o agravo de instrumento em agravo retido, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, mandando remeter os autos ao juiz da causa; III – poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão; IV – poderá requisitar informações ao juiz da causa, que as prestará no prazo de 10 (dez) dias; V – mandará intimar o agravado, na mesma oportunidade, por ofício dirigido ao seu advogado, sob registro e com aviso de recebimento, para que responda no prazo de 10 (dez) dias (art. 525, § 2o), facultando-lhe juntar a documentação que entender conveniente, sendo que, nas comarcas sede de tribunal e naquelas em que o expediente forense for divulgado no diário oficial, a intimação far-se-á mediante publicação no órgão oficial; VI – ultimadas as providências referidas nos incisos III a V do caput deste artigo, mandará ouvir o Ministério Público, se for o caso, para que se pronuncie no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. A decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo, somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar”9.
Pausadamente, é reflexivo que os incisos conferem ao relator o poder de decisão procedimental10, sem resolução de mérito da lide11. Isso ocorre nas hipóteses dos incisos I ao negar seguimento liminarmente12 ao agravo de instrumento por reputá-lo inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior13; no inciso II, primeira parte, ao converter o agravo de instrumento em agravo retido; no inciso III, primeira parte, ao atribuir efeito suspensivo ao recurso14; no inciso IV ao requisitar informações ao juiz da causa; no inciso V ao determinar a intimação do agravado e permitir que o mesmo junte aos autos documentos que entender conveniente; e, por último, no inciso VI ao determinar a remessa dos autos ao Ministério Público para que ele oficie nos casos em for obrigatória sua intervenção como fiscal da lei15.
Pelo que se nota, porém, o inciso III, segunda parte, dá ao relator o poder de deferir, em antecipação de tutela16, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão. A decisão liminar17, proferida sob este fundamento, somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar18, diz o parágrafo único do art. 527 do Código de Processo Civil. Assim, é meridiano o entendimento de que a decisão em tela cuida de ato processual destinado a conceder antecipadamente a tutela de direito material total19 ou parcialmente, cujos efeitos estão ligados ao bem da vida discutido em juízo.
Deste modo, há situações concretas nas quais se o relator defere a tutela à parte, desde que não o faça parcialmente, acaba por esgotar o objeto da lide, sem que haja a necessidade de prosseguimento do procedimento-processo20. Assim, a extinção do mesmo com resolução de mérito é medida que se impõe, após, é claro, a remessa dos autos à Turma ou Câmara que julgaria o mérito recursal, homologando21, destarte, anterior decisão de mérito proferida pelo relator, de direito material, segundo a necessidade demonstrada pela parte na minuta22 de seu agravo de instrumento23.
Em casos tais, a decisão interlocutória inicialmente proferida pelo relator, em função delegada do colegiado ao qual está vinculado, passa a ter força de decisão de mérito após a homologação de seus pares, e, assim, encontra fundamento no § 1.º do art. 162 do CPC por implicar alguma das situações previstas no art. 269 do mesmo Código, especificamente se ocorrer acolhimento do pedido recursal do agravante com fulcro no inciso I do citado art. 26924 do código processual em vigor.
Com o auxílio dos professores Rafael Oliveira e Paula Sarno Braga, citando Teresa Arruda Alvim Wambier25, Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha afirmam que “A apreciação da matéria impugnada pelo recorrente, bem como da matéria devolvida/trasladada por força de lei, constitui exame de mérito do recurso. Esse exame somente pode ocorrer após o juízo positivo de admissibilidade, cuja análise lhe é preliminar. Daí se concluir que é possível, em razão da profundidade do efeito devolutivo ou simplesmente do efeito translativo, que o tribunal, em sede de agravo, extinga todo o processo principal, desde que o recurso haja sido admitido. Nesse caso, há uma curiosidade: o processo será extinto, mas não terá havido sentença, somente uma decisão interlocutória e um acórdão ou decisão monocrática do relator. Daí se poder dizer que, nesse caso, ‘a sentença’ é o acórdão ou o acórdão tem conteúdo de sentença, produzindo seus efeitos e ostentando sua consequência de pôr termo ao processo (ou à fase de acertamento)”26.
Alegação no sentido de que o recurso de agravo de instrumento deferido com fundamento no inciso III, segunda parte, do CPC, fere o procedimento, extinguindo-se o processo com resolução de mérito e cujo caminho natural seria a decisão proferida pelo Poder Judiciário mediante recurso de apelação (e outros assemelhados27) em que o objetivo do recorrente é a ampla devolutividade28 da matéria, deve receber do intérprete a mesma ponderação sobre a necessidade em prosseguir com um julgamento em que o direito material29 tutelado à parte por essa via excepcional acaba por esgotar a utilidade e adequação deste mesmo procedimento. Por isso tem razão Luiz Guilherme Marinoni ao afirmar que “O direito de ação de base constitucional não pode ser limitado a um ato de provocação da jurisdição, pois deve dar ao cidadão a possibilidade de obter a efetiva proteção do direito material violado ou ameaçado de lesão. Porém, para que o autor possa obter a tutela do direito material, ele deve exercer a ação – ou atuar ou agir
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Notas de rodapé
1 Na redação da Lei n.º 11.187, de 19 de outubro de 2005, o CPC previu, expressamente, duas modalidades deste recurso: retido e por instrumento (art. 522, caput). Há, ainda, outras modalidades de agravo, como, por exemplo, o agravo regimental previsto pelas leis de organização judiciária local, pelos tribunais superiores em seus regimentos internos bem como em leis especiais.
2 Casuística que não escapou da argúcia do juiz Carlos Fonseca Monnerat, Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor na Universidade Católica de Santos, onde é titular das turmas de pós-graduação
3 Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart abordam interessante estudo sobre a cognição judicial em tópico intitulado “O convencimento do juiz”, seguido dos seguintes sub-tópicos: “Verdade e convicção”, “Convicção e participação judicial”, “Limitações à produção da prova”, “A tese sueca sobre o convencimento judicial”, “A acentuação da função da verossimilhança. Överviktsprincip, Überwiegensprinzip e verossimilhança preponderante”, “A teoria de Gerhard Walter”, “Objeções à teoria da verossimilhança preponderante”, e “O convencimento judicial e a regra do ônus da prova”, in Curso de Processo Civil, v. 2, Processo de Conhecimento, 6ª edição revista, atualizada e ampliada da obra Manual do Processo de Conhecimento, RT, SP, 2007, pp. 456/464.
4 Art. 162, caput, do Código de Processo Civil.
5 Art. 162, § 1.º, do Código de Processo Civil na redação determinada pela Lei n.º 11.232, de 22 de dezembro de 2005.
6 Art. 162, § 2.º, do Código de Processo Civil.
7 Art. 162, § 3.º, do Código de Processo Civil.
8 Arts. 524/526 na redação de leis especiais emendadas ao Código de Processo Civil.
9 O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem entendido que o despacho que indefere ou concede liminar em agravo de instrumento é irrecorrível, não sendo admitido, portanto, agravo regimental para a respectiva Câmara, que poderá, entretanto, reformar a decisão do relator quando do julgamento do mérito do recurso: 10ª Câmara de Direito Privado, v.u., relator Des. Octavio Helene, AgReg n.º 529.240-4/9-01, j. em 23 de outubro de 2007. No mesmo sentido, ou seja, negando recorribilidade contra a decisão liminar do relator, se posicionou a 21ª Câmara de Direito Privado do mesmo tribunal ao não conhecer agravo regimental por reputar ser ato discricionário do relator a atribuição ou não de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, bem como convertê-lo em agravo retido: v.u., relator Des. Souza Lopes, AgsRegs n.º 7.176.440-8/01 e 7.176.440-8, j. em 17 de outubro de 2007.
10 Ou instrumental em sentido estrito.
11 Vide o art. 267 do CPC na redação da Lei n.º 11.232, de 22 de dezembro de 2005.
12 Significando que o relator, de plano, identifica não ser admissível o agravo de instrumento interposto, indeferindo-o sem que seja concedido qualquer prazo para que o recorrente emende o recurso, não se permitindo, igualmente, analogia com a petição inicial quando é indeferida pelo magistrado se não for emendada nos termos do art. 284, caput, do CPC. O vício constatado na petição do recorrente é insanável, e, assim, não se tolera emenda pelo recorrente, sendo inaplicável, por isso, o art. 284 citado.
13 Vide o art. 557, caput, do CPC.
14 Vide o art. 558 do CPC.
15 Exemplificativamente, vide o art. 82 e seguintes do CPC; v., ainda, a Lei Complementar n.º 75, de 20 de maio de
16 Vide o art. 273 do Código de Processo Civil.
17 Expressão que pode indicar decisão judicial sem audiência de justificação do requerente e sem a oitiva da parte contrária anteriormente à concessão da medida urgente sob o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, principalmente.
18 Juízo de retratação expressamente previsto pela Lei n.º 11.187, de 19 de outubro de 2005. Admitindo a retratação do recurso mesmo antes da Lei n.º 11.187 já decidiu o extinto 1.º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo: RP 9/345.
19 Para nós, contudo, a extinção do processo com resolução de mérito (art. 269 do CPC) através de julgamento antecipado operado pelo recurso de agravo de instrumento, só pode ser aquele em que o relator defere a tutela de forma ampla ou total quanto ao requerimento do agravante, pois o deferimento parcial da tutela antecipatória determinada pelo relator não é capaz de extinguir o feito.
20 Atendendo-se, principalmente, ao princípio da celeridade processual previsto no art. 5.º, LXXVIII, da Constituição Federal na redação da emenda n.º 45/2004.
21 Sem a intervenção dos demais juízes componentes do colegiado haveria supressão ao princípio do juiz natural na melhor interpretação do art. 5.º, LIII, da Constituição Federal.
22 Onde o recorrente expõe as razões de fato e de direito ao tribunal competente para apreciar o recurso.
23 Recurso interposto para atacar decisão interlocutória (incidental) proferida durante o procedimento de acordo com os arts. 522, caput, e 524 e ss. do CPC.
24 Na redação determinada pela Lei n.º 11.232, de 22 de dezembro de 2005.
25 Diz Tereza Arruda Alvim Wambier que “o tribunal, desde que se trate de conhecer de matéria de ordem pública cuja constatação possa ser feito icto oculi, pode extinguir o processo com base no art. 267, em julgando um agravo, em que a matéria não tenha sido ventilada”, in Os agravos no CPC brasileiro, 4.ª ed., RT, SP, 2006, n. 18, pp. 97-101, apud Didier Jr. e Carneiro da Cunha in Curso de Direito Processual Civil, Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, v. 3, JusPODIVM, Salvador-BA, 2007, p. 149.
26 Curso de Direito Processual Civil, Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, v. 3, JusPODIVM, Salvador-BA, 2007, pp. 149/150.
27 Recursos ordinário, especial e extraordinário, verbi gratia.
28 Vide o § 1.º do art. 515 do Código de Processo Civil.
29 Interessante a discussão acerca da possibilidade do recorrido ajuizar ação rescisória visando se ressarcir do prejuízo causado pela irreparabilidade da antecipação da tutela deferida pelo relator e homologada pelo tribunal no feito onde o recurso de agravo excepcionalmente resolveu o mérito da lide (inciso I do art. 269 do CPC). A alegação de que não se pode tolher lesão ou ameaça a direito por força do inciso XXXV do art. 5.º da Constituição Federal, restando, outrossim, manejável pelo prejudicado aquela via (des) constitutiva apta a questionar a decisão coberta pela coisa julgada material é forte (arts. 467 e 485 do CPC).
30 Curso de Processo Civil, v. 1, Teoria Geral do Processo, RT, SP, 2006, p. 180.
31 Idem, ibidem
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
TASSUS DINAMARCO: Advogado, Pós-Graduando