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Mínimo existencial e dignidade da pessoa humana

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  • Gisele Leite

É verdade que a noção de dignidade da pessoa humana bem como o mínimo existencial são indissociáveis, sendo onipresentes no constitucionalismo contemporâneo, particularmente, o brasileiro.

A concepção original do mínimo existencial advém do direito alemão e dos debates havidos pela doutrina e jurisprudências germânicas, na década de cinquenta, onde se passou a cogitar sobre a existência de garantia de um mínimo indispensável à sobrevivência humana digna.

Robert Alexy[1] em 1952 identificou a tese em decisão do Tribunal Constitucional alemão, exarada sobre a assistênciasocial, quando se erigiu a existência de direito fundamental a um mínimo existencial. Em verdade, a consagrada Constituição alemão não apresenta um extenso rol de direitos sociais, por isso o Tribunal Alemão teve que se dedicar a construção de quais seriam os direitos mínimos a serem assegurados pelo Estado alemão, aos seus cidadãos, afirmando existir, pelo menos um direito fundamental social não escrito, umverdadeiro direito subjetivo ao mínimo existencial.

Lembremos, pois, que o mínimo existencial não se restringe apenas garantir a existência física da pessoa, nem mera sobrevivência. E, por força de sua função instrumental, é efetivado, quando além da sobrevivência, garantem-se igualmente as condições para vida digna, livre e participativa.

Apesar da falta de dicção normativa específica, reside o mínimo existencial em diversos princípios constitucionais, entre estes, o da liberdade, pois sem o mínimo existencial inviabiliza a sobrevivência do homem e, ipso facto, desaparecem as condições essenciais de liberdade[2].

O fundamento primacial do mínimo existencial está nas condições para o exercício da liberdade, ou até na liberdade para com objetivo de diferenciá-las da liberdade que é mera ausência de constrição. Assim, o direito às condições mínimas de existência inclui-se entre os direitos de liberdade, igualmente conhecidos como direitos humanos ou direitos naturais, pois é inerente à condição humana, sendo mesmo direito público subjetivo com validade erga omens, aproximando-se do conceito e das consequências do estado de necessidade. Portanto, não se esgota no vasto rol contido no artigo 5º da Constituição Federal brasileira vigente, nem em nenhum catálogo preexistente, pois sendo dotado de historicidade, é variável conforme o contexto social e cultural.

Segundo Ricardo Torres, o mínimo existencial pode ser encarado como sinônimo de mínimo social ou direito constitucional mínimo, fundamentando-se nas iniciais condições para o exercício da liberdade, existente na noção de felicidade, nos direitos humos e pautado nos princípios de igualdade e dignidade humana.

Afinal, o mínimo existencial, de fato, tem dupla dimensão, a saber: um direito às condições mínimas de existência humana digna, não passível de ser objeto de intervenção do Estado seja pela via tributária e, ainda, exige que existam prestações positivas, o que serve para o incremento de políticas públicas de inclusão e mobilização social.

Do mínimo existencial nem os prisioneiros, os facínoras, os doentes mentais e indigentes podem ser privados. Aliás, como doutrinador, Ricardo Torres optou por reduzir o quantitativo dos direitos fundamentais sociais, em prol de maior qualidade e efetividade, inclusive no plano jurisdicional, o que se confrontou com a posição do constituinte brasileiro que procurou garantir a fundamentalidade formal e material dos direitos sociais de forma ampla.

Contemporaneamente, a reflexão dentro do Estado Democrático de Direito se assevera principalmente sobre o mínimo existencial, sob a teoria dos direitos humanos e do constitucionalismo, correspondendo a um dos objetivos da República brasileira a erradicação da probreza e da marginalização e, ainda, a redução de desigualdades sociais e regionais.

Ainda existe igual respaldo em declarações internacionais dos direitos humanos onde consta frequentemente a ressalva ao direito ao mínimo existencial, positivado no artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) in litteris:

“Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.

Muitos anos mais tarde, adveio a Resolução 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1986 reconheceu in verbis:

“Que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político-abrangente, que visa o constante incrementodo bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em participação ativa, livre e significativa no desenvolvimentoe na distribuição justa dos benefícios daí resultantes”.

Observa-se que o direito ao desenvolvimento humano passa a ter extraordinária relevância para o tema do mínimo existencial, assim se postula a manutenção de despesas orçamentárias obrigatórias e indispensáveis para real garantia da liberdade humana.

Em relação às semelhanças entre o mínimo existencial e a teoria dos direitos fundamentais[3], tal semelhança reside nas características comuns normativas, que reforça a preocupação com a maior concretização, eficácia e validade das suas teorias.

Ressalve-se que o mínimo existencial também possui dimensão negativa, pois impede que o Estado bem como outros indivíduos atuem contrariamente à obtenção ou manutenção de condições materiais indispensáveis para uma vida digna e uma dimensão positiva, abrangendo as prestações materiais vocacionadas à realização deste mínimo.

Tal aspecto negativo é mais presente no campo tributário, atravésde fixação de imunidades fiscais, pois o poder de imposição do Estado, não pode adentrar a esfera de liberdade mínima do cidadão representado pelo direito à subsistência.

É o caso de isenções de imposto de renda sobre certos contribuintes que ganham apenas o mínimo necessário para sua subsistência, bem como os portadores de doenças graves, incuráveis e terminais.

São conferidas imunidades tributárias nessas circunstâncias para que possam ser assegurados os direitos da liberdade e garantir que sejam efetivados princípios pré-constitucionais. Dessa forma, percebe-se que o princípio da capacidade contributiva, que manda tributar de acordo com a riqueza de cada qual, só fundamenta a ordem tributária no que excede à reserva da liberdade e ao mínimo necessário à existência digna.

Essas imunidades funcionam frequentemente como mecanismo de compensação das prestações positivas estatais. Com certeza, que as prestações positivas estatais seriam mais justas pela possibilidade de adequação às situações individuais dignas do apoio estatal, mas a sua opção por oferecer imunidade tributária, torna-se o dever constitucional do Estado menos complicada e juridicamente mais segura.

Entram em debate os fundamentos e objetivos do Estado Constitucional para haver a delimitação de conteúdo dos direitos fundamentais com ênfase aos direitos socioambientais e o papel da jurisdição constitucional na esfera da efetivação dos direitos fundamentais e do controle de atos dos demais órgãos estatais.

Destaque-se que recentemente a forte vinculação com o direito à vida com dignidade chamada de direito humano e fundamental, relaciona-se com o mínimo existencial que é correspondente ao núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais que tem servido de critério material para a solução com o suo de ponderação de direitos e/ou valores.

O crescente incremento de demandas judiciais que envolvem a imposição ao poder público, de prestações na esfera socioambiental ou a prestação de direitos fundamentais contra as intervenções restritivas por parte do Estado.

O mote sempre frequente do mínimo existencial é notado na instância do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal com ênfase especial na atuação do Ministro Gilmar Mendes que é considerado como um dos artífices do processo de reconstrução e aperfeiçoamento da nossa jurisdição constitucional que tem no STF a mais notável expressão, mas não, a única.

Curial é ressalvar que o Estado aponta a falta de legitimidade democrática do Judiciário para prover implementação de políticas públicas, com base no princípio da separação dos poderes e, ainda, na discricionariedade administrativa de conveniência e oportunidade,incompatíveis com a atuação de magistrados.

A concretização do mínimo existencial fora construída originalmente pela jurisprudência da Corte Constitucional da Alemanha, onde há a reserva do possível que impede que o indivíduo faça existência de direitos sociais superiores daquilo que racionalmente, pode-se esperar da sociedade, pois extrapolaria ao limite do razoável, sendo pois, inexigível que imputa tal Ônus. Assim, não cabe ao cidadão exigir do Estado o fornecimento de prestações supérfluas.

Igualmente de origem germânica, o conceito de reserva do possível está ligado às prestações indispensáveis e que inegavelmente superam ao conceito de mínimo existencial. Porém, nos países subdesenvolvidos ou mesmo os em desenvolvimento, a situação é diferente pois o Estado não poderá alegar a reserva do possível[4] de modo indiscriminado, para dar legitimidade a sua omissão na efetivação de direitos fundamentais prestacionais. Foi nesse sentido que se deu a decisão da Segunda Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.389.952-MT (2014), cujo relator foi Ministro Herman Benjamin, in litteris:

“É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto a um outro princípio, conhecido como princípio do mínimo existencial. Desse modo, somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se devem investir.

Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseramao Estado. Todavia, se não sepode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna, entre os quais, sem a menor dúvida, podemos incluir um padrão mínimo de dignidade às pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais.

Por esse motivo, não havendo comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político. REsp 1.389.952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Informativo 543)”.

Já com base na inequívoca supremacia da dignidade humana, vem a jurisprudência do STF reconhecer, pacificamente, a legitimidade constitucional da intervenção do Judiciário na implementação de políticas públicas, afastando qualquer obstáculo pertinente à reservado possível ou separação de poderes.

E, nesse sentido, cita-se o julgado abaixo em sede de repercussão geral:

“Ementa: REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS. INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL.

I – É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais.

II – Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial.

III – Sentença reformada que, de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal.

IV – Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes. V – Recurso conhecido e provido.

(RE 592581, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015)”.

Conclui-se que o Poder Judiciário ao atuar de forma afirmativa e efetivar a aplicação do preceito constitucional tem contribuído para a concretização dos direitos sociais básicos que integram o mínimo existencial para uma existência digna.

A noção da reserva do possível impactou a efetividade de direitos sociais e as prestações materiais que estariam submetidas às capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiados pelos cofres públicos.

Tal princípio passou a ser aplicado em diversos países com o fito de limitar as exigências em benefício de direitos fundamentais, considerando as condições financeiras de cada Estado, bem como sua possível adequação e necessidade do pedido, sob o critério proporcional.

Aliás, nesse sentido, a jurisprudência germânica e acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, enxerga no princípio da proporcionalidade que, por sua vez, subdivide em subprincípios da adequação, da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito, trata-se de parâmetro de controle das restrições impostas pelo Estado em face dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Enfim, a expressão fatídica “reserva do possível” passou a identificar o fenômeno econômico de limitação dos recursos disponíveis diante de necessidades quase sempre infinitas a serem por estes supridas. Há, em verdade, duas dimensões de reserva do possível, a fática e a jurídica.

Sendo que a primeira se refere à possibilidade financeira, enquanto que a segunda atina à legalidade orçamentária bem como a competência dos Entes para efetivação do direito. Entre tais duas vertentes da reserva do possível deve o administrador pública buscar tornar sua ação a mais eficiente que possível. Observando os limites materiais e, ainda, as imposições jurídicas.

Portanto, deverá ponderar entre as diversas alternativas possíveis, escolhendo aquela que promova o melhor custo-benefício. Entre o bônus e o ônus, não estão apenas os recursos financeiros em si, mas propriamente, toda sorte de interesses coletivos e individuais afetados diretamente pela gestão administrativa.

Em tempos de pandemia do Covid-19[5] é importante sublinhar que as teorias tanto do mínimo existencial como a da reserva do possível não podem sobrepujar o direito fundamental à saúde e à vida. E, mesmo ante a inexistência de direto comando constitucional ou mesmo infraconstitucional que condicione o direito à saúde a patente hipossuficiência financeira do cidadão[6], não há como negar-se ao mínimo necessário para uma sobrevivência digna, principalmente, a gravidade da virose provocada pelo coronavírus.

Ainda que enxerguemos o mínimo existencial como parcela mínima a ser garantida a pessoa a fim de que não lhe seja subtraída sua condição de humanidade. Verifica-se, igualmente, que a sua ausência reduz a vontade do homem, e destrói-lhe a autonomia, confisca-lhe os desejos, deixando-o abandonado às contingências do acaso.

Evidentemente que a tese do mínimo existencial desenvolvida particularmente no período do pós-guerra, em face de inexistente previsão legal de direitos fundamentais sociais na lei alemão. O primeiro doutrinador em sua defesa foi Otto Bachof ainda nos idos de 1950 e que considerava que o mínimo existencial era mesmo um desdobramento do princípio da preservação da dignidade da pessoa humana.

De sorte que o direito à vida e à integridade corporal não poderia ser restritivamente interpretados, mas exigiam, uma ação proativa do Estado. Assim todos os textos constitucionais do século XX liderados pela Constituição de Weimar passaram a abarcar nova categoria de direitos fundamentais; os econômicos e sociais. Assim, o Estado teve que assumir nova postura, a de garantidor de condições necessárias para o desenvolvimento da personalidade humana.

Também há outro fundamento de proteção ao mínimo existencial, embasado intimamente na relação entre a não-tributação do mínimo existencial e as prestações assistenciais. Havendo grossa incongruência de se tributar o mínimo, para depois se devolver em forma de prestações periódicas, a fim de garantir uma vida digna ao povo, gerando gastos administrativos desnecessários.

Assim, o Estado não pode, enquanto Estado tributário, subtrair aquilo, que o Estado Social deve devolver. Portanto, quando o Estado se compromete constitucionalmente em garantir o mínimo existencial por meio de prestações, implementando programas que para tanto, é o caso do direito social à moradia, proporcionar residência àqueles que não a possuem, não caberá ao mesmo Estado, através de tributação, retirar aquilo a que se comprometeu a dar.

Lembremos que o mínimo existencial não se restringe a pessoa humana considerada isoladamente, mas igualmente se estende à sua família. Especialmente aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade, seja porque são carentes de recursos necessários para vida digna, seja as que estão fora da linha de pobreza, porém, com elevadíssimo risco de adentrar nesta, assim merecem especial proteção do Estado.

Aliás, a expressão “vulnerabilidade”[7] pode ser tomada em diversas acepções desde a econômica como a étnica (índios, quilombolas, etc.) ou de grupos religiosos minoritários. Portanto, a tributação sobre o mínimo existencial é um paradoxo imoral pois retira do cidadão a própria dignidade e do Estado, o seu princípio social.

Vulnerável é algo ou alguém que esteja suscetível a ser ferido, ofendido ou tocado. Vulnerável significa uma pessoa frágil e incapaz de algum ato.

O termo é geralmente atribuído a mulheres, crianças e idosos, que possuem maior fragilidade perante outros grupos da sociedade. É a Lei 13.146/2015, chamada de Lei Brasileira de Inclusão, dirigida aos deficientes, que trata especificamente da matéria.

Em seu artigo 2º, considera com deficiência a pessoa[8] “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Há diversas facetas da vulnerabilidade em nosso sistema jurídico, a saber: o Código Civil considera incapazes os menores de 16 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxico e “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade” (artigo 4º).

O artigo 217-A do Código Penal pune com 8 a 15 anos de reclusão o estupro de vulnerável, nele incluindo os menores de 14 anos “que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

O Código do Consumidor, ao conferir tratamento privilegiado a quem consome, por exemplo, permitindo que proponha a ação no seu domicílio (artigo 101, I), está tratando-o como vulnerável. Não no sentido de incapacidade física ou psíquica, mas sim, na condição de parte menos capacitada a participar das relações de consumo, seja porque não pode discutir o contrato, seja porque não tem acesso à elaboração do produto ou para discutir a prestação do serviço.

A Lei 10.741/2013 concede benefícios aos idosos, considerando-os, portanto, mais vulneráveis. Assim, entre outras prioridades, a lei assegura-lhes o direito a prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda (artigo 3º, § 1º, inciso IX).

Os refugiados,igualmente, se acham em situação de vulnerabilidade e têm direitos reconhecidos na Lei 13.445/2017. Aindasem regramento estão as vítimas de acidentes decorrentes de fenômenos ligados à mudança do clima, algo que tende a aumentar. Isto gerará o aparecimento de inúmeras pessoas em situação de vulnerabilidade. Não é um problema restrito à defesa civil, vai muito além, e exige organização prévia.

O ideal de justiça tributária deve seguir a máxima latina: primumvivere, deinde tributum solvere,que significa literalmente, precisamente que o direito ao mínimo vital representa uma exigência que se antepõe ao interesse do Estado na consecução de arrecadação, por isso, nem todo cidadão será conclamado a contribuir.

No entardecer do século XIX, Rui Barbosa já destacava em seu relatório, a necessidade de se respeitar o mínimo existencial ao consignar in litteris: “[…] considero absoluta a necessidade de não submeter à acção do imposto directo o mínimo necessário à existência (Existenzminmun) nas classes mais desfavorecidas”.

Desde 1958 é reconhecida a isenção do IR para determinados rendimentos considerados necessários à subsistência da pessoa, essa faixa de valores é denominada “zona zero” (Nullzone).

O BVerfGE, 25/09/1992 – 2 BvL 5/91 levou em consideração as necessidades de habitação, custos de aquecimento e os benefícios médios concedidos pela assistência social para, com base nesses dados, reconhecer que o mínimo isento da legislação do IR não protegia de forma adequada o mínimo existencial.

Portanto, o princípio da reserva do possível não se destina a negar efetividade ao texto constitucional vigente, tampouco aos direitos fundamentais como o direito à vida, à saúde nesta enunciados. E, não se presta a não prestação de um direito fundamental, promovendo óbitos por omissão de socorro ou de má prestação de serviço em face da tremenda precariedade da saúde pública brasileira.

Curial recordar que o Judiciário poderá efetivamente ser invocado para o caso concreto onde ocorra o descumprimento de direitos fundamentais por parte do Estado, bem como, para analisar a relevância do pedido, observando constantemente o cumprimento do mínimo essencial.

Dentro do âmbito contratual, é a partir das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, que o STJ dividiu os ônus: nem manteve o valor do contrato na variação tradicional (pretensão de devedores), nem permitiu a cobrança segundo o preço exato do dólar (pretensão de credores), mas decidiu por equidade e proporcionalidade, chegando a um valor intermediário para as dívidas. Ou seja, estabeleceu um princípio da divisão dos prejuízos inesperados pela metade entre credores e devedores.

É o princípio que se entende obviamente como obrigatório de ser seguido em casos de crise (correspondeàratio decidendi, enquanto fundamento determinante, que vincula decisões futuras em termos de teoria de vinculação a precedentes, positivada no nosso Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 489, §1º, VI).

Por todas, veja-se as seguintes decisões: “Como já decidido por esta Primeira Turma do STJ no RMS 15.154/PE, Rel. Ministro Luiz Fux, j. 19/11/2002, ‘O episódio ocorrido em janeiro de 1999, consubstanciado na súbita desvalorização da moeda nacional (real) frente ao dólar norte-americano, configurou causa excepcional de mutabilidade dos contratos administrativos, com vistas à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das partes’”. (STJ, REsp n.º 1.433.434/DF, 01ª Turma, Rel. Min. Sérgio Kiuna, DJe de 21.03.2019).

É crasso que o direito à saúde[9] está umbilicalmente vinculado com o exercício de outros direitos que constam na Carta Internacional dos Direitos Humanos, e deste depende, particularmente, os direitos à alimentação, habitação, ao trabalho, educação, à vida, à não discriminação, à igualdade, à vedação da tortura, à privacidade, ao acesso à informação e à liberdade de associação, reunião e de ir e vir. Mas, como sabemos, nenhum dos direitos fundamentais são absolutos[10], podendo ocasionalmente e excepcionalmente sofrer restrições em prol de outros valores maiores.

De acordo com as Orientações para Organização das Ações no Manejo do Novo Coronavírus (Covid-19)[11] na Atenção Primária à Saúde, elaborada pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, o ideal é que os assintomáticos e os sintomáticos leves fiquem em casa, uma vez que o isolamento domiciliar é a principal medida de proteção”. Assim, o controle da doença depende da permanência das pessoas e famílias em suas respectivas casas.

Porém,existem pelo menos, dois grupos populacionais que não podem adequadamente tomar tal medida, que é a população em situação de rua e os moradores de habitações precárias e inaptas ao isolamento domiciliar, é o caso de casas superlotadas[12] e sem acesso à infraestrutura de fornecimento de água e coleta de esgoto. Portanto, é vital que os respectivos governos tomem medidas urgentes para ajudar as pessoas sem moradia adequada.

E as autoridades deve tomar especial cuidado para impedira que outras pessoas venham se tornar desabrigadas, como é o caso, de despejos, quando há perda de renda se torna irremediável, impossibilitando o pagamento de alugueres, hipotecas e demais taxas. Assim, boas práticas são recomendáveis tais como moratórias emdespejos[13], adiamentos de pagamento de hipotecas e, etc.

A intervenção do Poder Judiciário nos contratos[14], à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometa o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica” (STJ, REsp 1.321.614/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 03.03.2016).

No Estado do Rio de Janeiro, outrora capital do país, o direito humano à água não é assegurado a todos, pelo menos água potável que seja acessível ao uso pessoal e doméstico, tendo em vista as recentes descobertas da CEDAE quanto ao conteúdo impróprio da água[15].

Lembremos que a falta da água potável necessária pode provocar desidratação e até morte, além de elevar o risco de doenças relacionadas à água bem como comprometer a higiene pessoal e doméstica que em face da pandemia, potencializa os riscos à saúde e à vida de seus cidadãos.

Portanto, é perfeitamente possível identificar para em respeito ao mínimo existencial o direito ao acolhimento emergencial de populações vulneráveis, em contextos atípicos, como o de pandemias e crises humanitárias, constituindo uma obrigação mínima do Estado, decorrente do direito humano à moradia, relacionado ainda com outros direitos básicos tais como à vida, saúde e alimentação que devem ser imediatamente implementados, sob pena de configurar gravíssima violação de direitos humanos.

Conforme já explicita Sarlet, “o STF tem consolidado o entendimento de que nesta seara incumbe ao Estado, em primeira linha, o dever de assegurar as prestações indispensáveis ao mínimo existencial, de tal sorte que em favor do cidadão há que reconhecer um direito subjetivo, portanto, judicialmente exigível, à satisfação de necessidades vinculadas ao mínimo existencial e, portanto, à dignidade da pessoa humana”.

E, nesse sentido, conforme o grande doutrinador constitucionalista expõe, assume especial relevância o direito à vida: “O direito à vida (e, no que se verifica a conexão, também o direito à saúde) constituindo, além disso, pré-condição da própria dignidade da pessoa humana”.

Para além da vinculação com do direito à vida, o direito à saúde (aqui considerado em lato sensu) encontra-se umbilicalmente atrelado à proteção da integridade física (corporal e psíquica) do que ser humano, igualmente posições jurídicas de fundamentalidade indiscutível.

Referências:

Alemanha. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (1949) Tradutor: Assis Mendonça, Aachen. Revisor Jurídico: Urbano Carvelli; Bonn: Editora Impressa. Última atualização: 28 de março de 2019.Disponível em: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf Acesso em 14.6.2020.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.  Trad. de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed.  São Paulo: Malheiros, 2006.

KANT, Immanuel.  Fundamentação da metafísica dos costumes. Os pensadores.  Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 2002.

MORAIS, Ezequiel. Os deveres de consideração e a pandemia. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/blog/os-deveres-de-consideracao-e-a-pandemia.html Acesso em 14.06.2020.

OLIVEIRA, Antônio Ítalo Ribeiro. O mínimo existencial e a concretização do princípio e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50902/o-minimo-existencial-e-a-concretizacao-do-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana Acesso em 14.6.2020.

Nota Técnica NE-HABURB. Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/defensoria-sp-sugere-medidas.pdf Acesso em 14.6.2020.

SALSENTER, Thamis (Coordenação) Direito à saúde entre a liberdade e a solidariedade: os desafios jurídicos do combate ao novo coronavírus – Covid-19 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/321211/direito-a-saude-entre-a-liberdade-e-a-solidariedade-os-desafios-juridicos-do-combate-ao-novo-coronavirus-covid-19 Acesso em 14.06.2020.

SARLET, Ingo; FIGUEIREDO, M.F. Reserva do Possível, Mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações.Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre (RS), 24.07.2008. Disponível em: http://www.revistadoutrina.tref4.jus.br/index.htm? Acesso 14.6.2020.

TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

[1] Robert Alexy (Oldenburg, Alemanha, 9 de setembro de 1945) é um dos mais influentes filósofos do Direito alemão contemporâneo. Graduou-se em direito e filosofia pela Universidade de Göttingen, tendo recebido o título de PhD em 1976, com a dissertação Uma Teoria da Argumentação Jurídica, e a habilitação em 1984, com a Teoria dos Direitos Fundamentais – dois clássicos da Filosofia e Teoria do Direito. A definição de direito de Alexy parece com uma mistura do normativismo de Hans Kelsen (o qual foi uma versão influente do positivismo jurídico) e o jusnaturalismo de Gustav Radbruch, mas a teoria da argumentação o colocou bem próximo do interpretativismo jurídico. É professor da Universidade de Kiel e em 2002 foi indicado para a Academy of Sciences and Humanitiesat the University of Göttingen. Em 2010 recebeu a Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha.

[2] O direito à informação é fortemente lesionado quando o usuário não tem conhecimento sobre a manipulação e o destino de seus dados sensíveis – ideia esta consubstanciada no princípio da finalidade, que implica prévio conhecimento do titular de dados sobre os “propósitos legítimos, específicos, explícitos” do tratamento de seus dados (art. 6º, inciso I, LGPD). Além do desrespeito à privacidade e à informação, a epidemia do novo coronavírus também pode ser cenário de grandes restrições à autonomia extrapatrimonial ou existencial não só dos pacientes diagnosticados e daqueles com suspeita, mas da população em geral. É preciso ter em mente, todavia, que muitas dessas restrições devem ser toleradas diante da necessidade de proteção de interesses socialmente relevantes, como é o caso da saúde da coletividade.

[3]O direito internacional dos direitos humanos, em particular o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), exige que as restrições aos direitos por razões de saúde pública ou emergência nacional sejam legais, necessárias e proporcionais. Restrições como quarentena ou confinamento compulsórios de pessoas sintomáticas devem, no mínimo, serem conduzidas de acordo com a lei. Elas devem ser estritamente necessárias para alcançar um objetivo legítimo, baseadas em evidências científicas, proporcionais para o alcance desse objetivo, nem arbitrárias, nem discriminatórias em sua aplicação, ter duração limitada, e devem respeitar a dignidade humana e estarem sujeitas à revisão.

[4]Surgiu o princípio da reserva do possível na Alemanha, em 1972, resultado de ação impetrada por discentes que pleiteavam direito de ingresso na Universidade Pública, no curso de medicina. E, a alegação articulada foi com base na Lei Fundamental Alemã, em seu artigo 12, I, onde estabelece que: “todos os alemães têm o direito de livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional. E, justificando tal direito, os requerentes realizaram interpretação sistemática da norma, uma vez que sendo limitado o ingresso universitário, uma norma de direito fundamental, liberdade para escolha da profissão e da formação profissional regulada no artigo 12, I, estaria sendo violada.  Em resposta, o Tribunal Constitucional Federal utilizou no julgamento a indagação, de que, tais direitos seriam efetivados dentro da reserva do possível, isto é, dentro das vagas disponibilizadas que são equivalentes à capacidade financeira do Estado em arcar com custos decorrentes desse exercício, surgindo a partir daí, a decisão que passou a ser conhecida como numerus clausus.

[5]A escassez de máscaras e produtos de proteção para manejo de pacientes nesse contexto de crise sanitária é causa de grande preocupação para as autoridades no Brasil. Diante dessa situação, o governo brasileiro adotou medidas para restringir as exportações desses produtos para empresas que participaram de licitação, mas desistiram de contribuir com o abastecimento interno, optando pela exportação do material. Além da limitação a exportações, o Ministério da Saúde indicou que não estão descartadas outras intervenções no setor, incluindo a possibilidade de apreensão do material diretamente nas fábricas que descumprirem a determinação de fornecimento para o mercado nacional. A Lei 13.979 traz mecanismos para coibir essa prática que torna mais vulneráveis pacientes e profissionais de saúde. Com o intuito de resguardar esses segmentos diante da severa ameaça de desabastecimento de produtos que têm como finalidade o tratamento e o combate ao COVID-19, o art. 3, VII, prescreve a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa” como medida de enfrentamento da crise de saúde.

[6]Os governos devem garantir que os profissionais de saúde tenham acesso a equipamentos de proteção adequados e que existam programas de proteção social para as famílias de profissionais que falecem ou adoecem como resultado de seu trabalho e garantir que esses programas incluam trabalhadores informais, que representam uma grande parcela do setor de prestação de serviços de apoio e cuidados.

[7] O legislador pátrio atribuiu, ab initio, a condição de vulnerável ao menor de quatorze anos ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. No entanto, já no artigo 218-B CP depara-se, novamente, com a adjetivação de vulnerável para outra faixa etária, qual seja, menor de dezoito anos, aparentemente, sem qualquer justificativa razoável. Com efeito, são situações completamente diferentes a condição de menor de quatorze anos, comparada à condição do menor de dezoito. Inegavelmente, o legislador ampliou o conceito de vulnerabilidade — que define satisfatoriamente a condição do menor de quatorze anos — para alcançar, incompreensivelmente, o menor de dezoito (art. 218-B CP). Na realidade, o legislador utiliza o conceito de vulnerabilidade para diversos enfoques, em condições distintas, sem qualquer justificativa razoável. Esses aspectos autorizam-nos a concluir que há concepções distintas de vulnerabilidade. Na ótica do legislador, devem existir duas espécies ou modalidades de vulnerabilidade, ou seja, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa; aquela se refere ao menor de quatorze anos, configuradora da hipótese de estupro de vulnerável (art. 217-A CP); Para contemplar a equiparação de vulnerabilidade, nas respectivas menoridades (quatorze e dezoito anos), qual seja, “ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Nos dois dispositivos, o legislador cria hipóteses de interpretação analógica (ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência) que, no entanto, deve obedecer aos atributos dos respectivos paradigmas.

[8]A Lei 8.899/2004 concedeu passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual. O objetivo, certamente, foi proteger estes vulneráveis, facilitando seu deslocamento a locais de tratamento ou de moradia de seus familiares.

[9]O direito à saúde exige que os equipamentos, bens e serviços de saúde sejam:disponíveis em quantidade suficiente,acessíveis a todos, sem discriminação, inclusive para os grupos marginalizados,aceitáveis, no sentido que devem respeitar a ética médica e serem adequados do ponto de vista cultural, ecientífica e medicamente apropriados e de boa qualidade.

[10] A quarentena foi imposta ao primeiro paciente diagnosticado com o coronavírus em território brasileiro e o isolamento foi aplicado aos brasileiros que regressaram da China no início da epidemia – fato que, aliás, motivou a elaboração de legislação específica para regulamentar as demandas jurídicas oriundas do COVID-19. O tratamento médico compulsório também já ganhou destaque no noticiário nacional com a imposição de internação hospitalar para dois franceses vindos da Espanha, que apresentaram sintomas de gripe assim que chegaram a Paraty, no Rio de Janeiro. O casal foi colocado em imediato isolamento para a realização de exames. Diante da resistência do casal em permanecer no ambiente hospitalar, o caso foi levado ao Poder Judiciário pela prefeitura de Paraty, que obteve decisão favorável à continuidade da internação compulsória até os resultados dos exames descartarem a contaminação pelo COVID-19.

Há circunstâncias que podem relativizar os limites e os espaços de liberdade pessoal. A autonomia privada decorre diretamente do imperativo constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da República, em seu art. 1, III. Como todo e qualquer direito no ordenamento pátrio, seu exercício não pode ser ilimitado ou absoluto.

[11]COVID-19 é uma doença infecciosa causada por um novo coronavírus primeiramente identificado em dezembro de 2019. Os vírus “corona” compõem uma família de vírus conhecidos por causarem infecções respiratórias. Não há, ainda, qualquer vacina que previna COVID-19 e nenhum tratamento específico em relação a esse vírus além da gestão dos seus sintomas.

[12]No Rio de Janeiro, 22% da população mora em favelas. Isso significa quase 2 milhões de pessoas vivendo nesses territórios populares. Favelas como o Morro do Alemão, Rocinha, Maré e Jacarezinho, possuem alta densidade demográfica, são maiores do que cidades de médio porte no Brasil.  O que todas essas favelas têm em comum é que, em grande parte delas, as casas foram construídas por seus moradores. Há também conjuntos habitacionais – caso da Maré – construídos pelo Estado. Mas mesmo nesses casos o que se encontra é uma concentração de um bom número de pessoas vivendo sob o mesmo teto.

[13] Nesse viés, andou mal o veto presidencial apresentado à Lei 14.010/2020 que suspenderia os despejos e desocupações habitacionais por falta de pagamento.

[14] Os deveres de cooperação e de colaboração recíproca (considerados deveres gênero – os demais são espécies) consistem na prática dos atos necessários à completa realização dos fins almejados pelas partes no contrato, conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão, sem omissões e proibidos os excessos [Übermaßverbot]. Esse sentido de cooperação e colaboração deve, pois, com suporte no princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I, da CRFB/1988), orientar os contratantes [ou candidatos a contratantes] diante dos eventos imprevistos ou previstos, de consequências imprevisíveis ou previsíveis, que venham dificultar o cumprimento das obrigações pactuadas, permitindo trazer ao contrato as adaptações necessárias e exigidas pelo novo contexto, para conservar, assim, a relação negocial, embora com nova dinâmica. Os italianos utilizam o mesmo mecanismo, baseados também no princípiocostituzionale di solidarietà sociale (art. 2º, da CRI)”.

“Exige-se das partes um comportamento cooperativo, colaborativo, leal e solidário, permeado pela probidade e balizado pela plena informação e transparência. Além da observância ao solidarismo, os deveres anexos de cooperação e colaboração mútua (Pflicht zur Zusammenarbeit der Parteien) têm por fim conservar os contratos (princípio da manutenção dos pactos), visando a execução mais equânime, eficiente e justa possível para as partes, em especial nos contratos existenciais e relacionais, naqueles em que as relações jurídicas são complexas, de longa duração (contratto di durata), tais como os contratos de fina

[15] Há uma evidente degradação ambiental nos mananciais que são utilizados para abastecimento público da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Essa degradação compromete a qualidade da água, dificulta seu tratamento e pode colocar em risco a saúde pública. A companhia de saneamento é responsável pelo controle da qualidade da água tratada, respeitando as resoluções legais. A vigilância da qualidade da água é de responsabilidade do setor da Saúde (Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais da Saúde), que deve garantir a segurança e qualidade da água a ser distribuída para a população. A falta de informações claras e precisas também configura um cenário de insegurança. É necessário que haja transparência imediata da real situação da qualidade da água distribuída para consumo pela população do Rio de Janeiro e que os setores responsáveis pelo controle e vigilância da qualidade atuem de forma coordenada, cooperativa e rápida para garantir água segura e de qualidade, conforme determina a legislação.


 

Em um país chamado favela

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  • Gisele Leite

Resumo: O significado da favela no contexto brasileiro e as políticas públicas relacionadas a tal fenômeno doravante denominado de comunidade.

Palavras-chave: Favela. Políticas Públicas. Favela-Bairro. Discriminação. Violência. Sociologia.


Dentro do contexto político e cultural brasileiro, a favela[1] é palavra importante e seu emprego inicialmente ocorreu no Rio de Janeiro,no começo do século XX, para descrever o bairro popular formado inicialmente no morro da Providência.

Em verdade, a favela enquanto vocábuloassumiu múltiplos sentidos e vetores, ao longo da história brasileira e de acordo com variações regionais e conjunturais.

Nem sempre é o nome do território onde moram pobres em uma cidade. Em Porto Alegre, há as vilas. Na própria cidade que inaugurou seu uso, há áreas refratárias à denominação, a despeito da similaridade com algumas outras às quais esta se aplica.

Nem sempre é o nome adotado pelos próprios habitantes e não está necessariamente comprometida com a referência à superfície inclinada dos morros.

No Rio de Janeiro, o termo preferido, em geral, nas derradeiras décadas, é comunidade. Já que por vezes a favela[2] e favelado equivalem às categoriasde acusação, que estigmatizam a dimensão social da geografia e entendem preconceitos a toda uma população a ponto de moradores de favelas que se verem instados a falsificar endereços para evitardiscriminação quando procuram emprego.

Há outras denominações como “aglomerações urbanas subnormais”, principalmente no discurso oficia, durante o século XX, favela foi sinônimo de problema queo poder público deveria antes remover que resolver.

Nas primeiras décadas do século XX, imersa na atmosfera emanada pelo ímpeto autoritário de reformaspromovidas por Pereira Passos[3], favelas, assim como cabeças de porco e os casarioslocalizados no centro da cidade, sempre esteve associada à precariedadede condições higiênicas e sanitárias.

E, já indicava grandes focos de doenças contagiosas. Assim, sua extinção ou seu deslocamento, converteu-se em exigênciade saúde pública e de melhoria urbanística.

A favela percebida como espaço da pobreza e da marginalidade acarretava ainda a depreciação do valor imobiliário de bairros prósperos, ou pelo menos,economicamente promissores para o futuro investimento.

Depois, tornou-se fonte do mal e perigo, resultando em grave ameaça aos bons costumes o que demandavapor campanhas menos sanitárias e mais moralizadoras de parte de entidades religiosas e sociais que promoveram por longo tempo, e que mitigavam a misériae a invisibilidade com caridade e filantropia.

As favelas conheceram a fundo a era de remoções para limpar a paisagem, modernizar, arejar, oxigenar e, de novo, higienizar[4] e valorizar o patrimôniodepreciado pela vizinhança imprópria. Havendo incêndios criminosos, expulsões, intervenções brutais do Estado deixaram marcas profundas na memória da cidade.

Foi gradual e crescentemente, foram ocupadas as áreas disponíveis nos morros e nas regiões acessíveis, contíguas aos bairros nos quais havia empregos, na regiãometropolitana e, sobretudo, nos bairros afluentes da capital.

A linha de trem rumo à zona norte que deixou de ser o eixo da ocupação urbana, assim comoa industrialização cedeu à hegemonia dos serviços e da informalidade.

Foi a decadência política do Rio de Janeiro que preparou o declínio econômico, empurrado para as adjacências da zona sul da cidade os aglomerados de trabalhadorespobres e suas famílias.

Os morros foram invadidos e, então, as favelas proliferaram. E, o poder público tratou apenas de extrair habilidosamente benefíciospolíticos, trocando a carta da remoção pelo compromisso com a fixação. E, passou a cogitar em urbanização de favelas e reconhecimento de direitos.

Não obstante ser relevante e grande a contribuição econômica, política e cultural[5] para a cidade, as favelas do Rio de Janeiro,são desde seu surgimento, na passagem para o século XX, percebidas como espaços indesejáveis. Seja por serem encaradas como problema eminentementesanitário ou moral, por outro lado, aparecem constantemente na mídia como foco transmissor da violência e da criminalidade.

É a persistência na representaçãonegativa das favelas e seus habitantes que nos remete a sua história como objeto de diferentes modalidades de controle, ora por parte do poder público,ora seja por parte de instituições sociais como Igreja Católica[6].

O contextual casamento de conveniência entre os pobres e as elites governantes, com a aposentadoria de ameaças veladas ou explícitas de remoção, a favelanão escapou da veloz ciranda de (des)qualificações generalizantes[7]; desde os anos 1980, virou sinônimo de transgressão à lei e à ordem, espaço que requerincursões policiais, praça de guerra e “caverão” (carro blindado da polícia).

Em resumo, para as elites e para a classe médica branco, não raro, para os governantes, a favela foi e continua a ser, o lugar do “outro”.

Sendo a encarnaçãonefasta de alteridade diabólica, que caberia, enfim, destruir ou exorcizar, mas também, simultaneamente, redentora, iluminada, cujo destino históricoconsagraria a libertação do país, instaurando a igualdade e justiça.

A narrativa sobre as favelas[8] não pode omitir o pendular movimento, continuamente acalentadono imaginário carioca, senão brasileiro, sincopado pela oscilação entre dois polos, a saber:que são idealizações simétricas e inversas.

Criaram-se duas expectativas opostas, cultural e politicamente poderosas: de um lado, o povo da favela vai descer para salvar o Brasil e promover a revolução desejada – supunha-se,sonhava-se ou temia-se. Ou, por outro lado: a favela vai descer para o asfalto e tocar o terror.

Nossa figura sombria da paranoia coletiva, talvez mais do que em outro lugar, o racismo instilou seu veneno repulsivo e letal.

Entre as políticas públicas cabe destacar a transformação da favela em bairro que pode conferir diferentes leituras ao termo“favela”. Transformado no programa Morar Carioca em 2010, pelo então prefeito Eduardo Paes, o Favela-Bairro foi retomadoem 2017 sendo considerado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento como um projeto-modelo de políticas públicas no combateà pobreza e à miséria.

No dia 17 de abril de 2017, o então secretário municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Obras, Índio da Costa, afirmou ao jornalista Edimilson Ávila, do RJTV, que a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro pretendia retomar o Favela-Bairro. Apesarde já ter o aval do prefeito Marcelo Crivella.

Até 2019, o Favela-Bairro, que contou com investimentos de R$ 300 milhões beneficiando 16 comunidades e cerca de 40 mil famílias. Segundo a prefeitura, serão gerados, aproximadamente, três mil empregos diretos e indiretos. Após as obras de urbanização, os imóveis das comunidades contempladas serão legalizados, ou seja, serão concedidos títulos de propriedade aos moradores.

Em 2018, uma das colaboradoras do jornal comunitário “Voz das Comunidades” (cidade do Rio), Melissa Canabrava, criticou os veículos de mídia do Brasil por só mostrarem a violência das favelas. Melissa Canabrava também criticou a cobertura da imprensa tradicional, na ocupação do Complexo do Alemão, em 2010.

Em dezembro de 2019, equipes de reportagens, com ajuda de moradores das favelas iniciaram uma pesquisa de nível nacional para mostrar como vivem os moradores dentro dessas localidades. Os resultados foram reportados no Fantástico, da Rede Globo, e em formato de podcast, no G1.

A pandemia do coronavírus avançou particularmente sobre as favelas cariocas que já concentram ao menos oitenta e um mortes e quatrocentos e vinte e dois casos confirmados da virosa. Segundo os dados da Prefeitura do Rio de Janeiro os dados apontam que a doença causada pela virosa aumentou dez vezes emum mês. O total de morte já ultrapassa Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense em terceiro lugar no ranking do Estado, com sessenta casos.

Segundo estudos paralelos coletados pelas unidades de saúde da Rocinha e do Complexo da Maré indicam que os óbitos podem atingir a 74, mais do que o triplo emcomparação aos 24 registros oficias nessas áreas.

Os especialistas ainda apontam um outro mais grave problema que é subnotificação, o que torna a proliferaçãomais célere do vírus e, agravado ainda mais em áreas de maior circulação de pessoas em espaço reduzidos.

Eis que na favela a transmissão comunitária está fora de controle sobretudo nas camadas menos favorecidas da sociedade carioca, é o que analisa a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz.

As mortes nas favelas cariocas superam a maior parte dos municípios da Grande Rio, como Niterói e São Gonçalo. Durante a epidemia, morreram mais pessoas nas comunidades do que em Nova Iguaçu, cidade com mais de 820 mil moradores.

Com 60 mortes até sexta-feira (8), segundo o governo do RJ, Nova Iguaçu é o 3º município com mais mortes por covid-19, atrás apenas da capital fluminense (1.002) e de Duque de Caxias (96). – (In: BARRETO FILHO, Herculano. Covid:mortes avançam em favelas e superam a terceira cidade com mais óbitos no RJ Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/10/coronavirus-mortes-em-favelas-do-rio-aumentam-oito-vezes-em-um-mes.htm?cmpid=copiaecola Acesso em 31.05.2020.

Tal situação demanda que os governantes efetivem política pública eficaz para o combate ao Covid-19 no ambiente que representa a favela por suas características e necessidades.

Referências:

BARRETO FILHO, Herculano. Covid:mortes avançam em favelas e superam a terceira cidade com mais óbitos no RJ Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/10/coronavirus-mortes-em-favelas-do-rio-aumentam-oito-vezes-em-um-mes.htm?cmpid=copiaecola Acesso em 31.05.2020.

CARDOSO, Adalberto. Metamorfoses da pobreza. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002006000200014Acesso em 30.5.2020.

FREIRE, Letícia de Luna. Favela, bairro ou comunidade? Quando uma política urbana torna-se uma política de significados.Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7156 Acesso em 30.5.2020.

MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela. A maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo:Editora Gente, 2014.

[1] Euclides da Cunha em sua obra “Os sertões” publicada em 1902 se referia à Jatropha phyllacantha, também conhecida como faveleira e mandioca-brava, de nome formado provavelmente como diminutivo de fava. Ocorre que no morro da Favela, que tinha posição estratégica, acamparam as tropas federais enviadas para esmagar Canudos. Para o etimologista Antenor Nascentes, de volta ao Rio de Janeiro, veteranos da campanha pediram permissão ao ministério da Guerra para construir casas para suas famílias no morro da Providência. Daí, por diante, o morro, seja como recordação da campanha, seja por alguma semelhança de aspecto ou por estar sobranceiro à cidade, assim como o de Canudos, passou a chamar-se de Favela, nome que se tornou por assim dizer nacional.

[2]As favelas no Brasil ou aglomerados subnormais no Brasil (denominação adotada oficialmente pelo IBGE a partir do Censo de 2010), são considerados como uma consequência da má distribuição de renda e do déficit habitacional no país. A migração da população rural para o espaço urbano em busca de trabalho, nem sempre bem remunerado, aliada à histórica dificuldade do poder público em criar políticas habitacionais adequadas, são fatores que têm levado ao crescimento dos domicílios em favelas.

[3]  Levantamento do Instituto Pereira Passos, órgão de planejamento da Prefeitura do Rio de Janeiro, mostra que, de 967 trabalhos feitos sobre favelas até 2002,43% tiveram 19 favelas delas como objeto. Só a Rocinha teve 82 estudos registrados, seguida do Complexo da Maré, com 75 trabalhos.

[4]No Brasil, o saneamento básico é adequado em 67,3% dos domicílios em aglomerados subnormais (nas áreas urbanas regulares eram 85,1%), sendo que 56,3% dos domicílios estavam conectados à rede geral de esgoto e 11% à fossa séptica. No entanto, mais de 88% desses domicílios tinham um fornecimento de água adequado. No que tange a energia elétrica, 72,5% dos domicílios em aglomerados subnormais tinham serviços de energia elétrica adequados, mas 99,7% tinham acesso à energia elétrica.

[5] As favelas cariocas projetadas nas comédias musicais cinematográficas, conhecidas como chanchadas, nos anos 1930 ao início da década de 1960 passou a ser representada cada vez mais politizada. E, meio às polêmicas sobre as remoções das favelas e a atuação social da Igreja Católica na transformação desse tipo de habitação popular em problema público. Assim a favela deixa de ser o berço do samba para ser problema público.

[6]  Segundo o Doutor Adalberto Cardoso, in litteris: “O papel da Igreja Católica, aliás, tem espaço destacado na análise de Valladares. Instituição decisiva na história política e social brasileira, está presente como um dos agentes responsáveis por “problematizar” a favela, primeiro em chave conservadora e caritativa (antes dos anos 1950), depois respondendo às mudanças que desaguariam no Segundo Concílio do Vaticano e, mais tarde, na Teologia da Libertação. No Rio as mudanças na Igreja seriam antecipadas por uma figura emblemática, Dom Helder Câmara e sua Cruzada de São Sebastião, criada em 1955 para dar “solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro”, o que resultaria, na prática, num movimento pela sua urbanização. Um dos subprodutos dessa cruzada foi a geração de informação mais detalhada sobre diversas favelas do Rio, coisa que o Censo Demográfico de 1950, primeiro a identificar esse espaço de habitação popular, não permitia”.

[7]  No relatório “Aspectos humanos da favela carioca”, publicado em 1960 e dirigido por José Arthur Rios, que, segundo o próprio autor, cruzou o método monográfico de Lebret e a ecologia humana da Escola de Chicago para produzir um estudo que ia de encontro aos dogmas de então, como frisa Valladares. A pesquisa, financiada pelo jornal O Estado de S. Paulo, teria inovado em método e resultados, já que as favelas foram apresentadas como realidades heterogêneas e internamente diferenciadas, análises que teriam sido “esquecidas” por muitos pesquisadores atuais que continuariam a difundir os dogmas que a autora quer desmontar.

[8] Em 1897, cerca de vinte mil soldados que haviam retornado ao Rio de Janeiro após a Guerra de Canudos, na província oriental da Bahia, começaram a morar no já habitado Morro da Providência. Durante o conflito, a tropa governista havia se alojado na região próxima a um morro chamado “Favela”, o nome de uma planta resistente da família Euphorbiaceae, que causava irritação quando entrava em contato com a pele humana e que era comum na região. A planta era da espécie Cnidoscolus quercifolius, chamada de árvore “faveleira”. Por ter abrigado pessoas que haviam lutado naquele conflito, o Morro da Providência recebeu o apelido de “Morro da Favela”. O nome tornou-se popular e, a partir da década de 1920, os morros cobertos por barracos e casebres passaram a ser chamados de favelas.

Sucesso no tratamento de cardiopatia grave não afasta direito à isenção de IR, decide Primeira Turma

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​Na hipótese de contribuintes acometidos por doenças classificadas como graves – nos termos do artigo 6º, inciso XIV, da Lei 7.713/1988 –, o direito à isenção de Imposto de Renda não pode ser afastado pela falta de atualidade do quadro clínico que gerou o benefício, como estabelecido na Súmula 627 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O entendimento foi reafirmado pela Primeira Turma do STJ ao reformar acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e, por unanimidade, garantir a isenção do IR a um aposentado que apresentou quadro de cardiopatia grave durante anos, mas obteve sucesso no tratamento da doença após cirurgia realizada em 2016.

“O referido benefício independe da presença, no momento de sua concessão ou fruição, dos sintomas da moléstia, pois é de conhecimento comum que determinados males de saúde exigem, da pessoa que os teve em algum momento de sua vida, a realização de gastos financeiros perenes – relacionados, por exemplo, a exames de controle ou à aquisição de medicamentos”, afirmou o relator do recurso do contribuinte, ministro Napoleão Nunes Maia Filho.

Na ação, o aposentado pediu o reconhecimento em definitivo da isenção e a restituição dos valores pagos dentro do prazo prescricional de cinco anos. No entanto, o TRF4 entendeu que, para dar direito à isenção, a doença precisa ser atual, não sendo razoável o aposentado gozar indefinidamente do benefício apenas por ter sido cardiopata grave no passado.

Risco de reincidênc​​​​ia

O ministro Napoleão Nunes Maia Filho destacou que, apesar do sucesso no tratamento da cardiopatia, as informações do processo indicam que a doença, além de impor gastos adicionais, tem natureza reincidente – ou, pelo menos, risco de reincidência.

Para o relator, o acórdão do TRF4 contrariou a Súmula 627 do STJ, segundo a qual a contemporaneidade dos sintomas não é requisito para a concessão da isenção.

Napoleão Nunes Maia Filho apontou precedentes do STJ no sentido de que o prazo prescricional nesse tipo de ação tem início após a declaração anual de ajuste, de forma que o marco inicial da prescrição não se confunde com a mera retenção na fonte.

Como a ação foi ajuizada em 2016, o ministro reconheceu que o aposentado tem direito à devolução dos valores que incidiram do ano-base 2011 (cuja declaração é apresentada em 2012) em diante, como requerido na petição inicial.  REsp 1836364


FONTE:  29 de junho de 2020.

Juízo do domicílio do autor decidirá medidas urgentes em ação sobre negativa do auxílio emergencial

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A ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Assusete Magalhães designou provisoriamente a 2ª Vara Federal de Santo André (SP) – domicílio do autor – para decidir sobre eventuais questões urgentes em mandado de segurança impetrado em desfavor da Caixa Econômica Federal (CEF), da União e da Empresa Pública de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev), questionando a negativa, por parte da CEF, do pagamento do auxílio emergencial à impetrante. O benefício vem sendo concedido pelo governo federal durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

De acordo com a impetrante do mandado de segurança, a CEF indeferiu o requerimento do auxílio emergencial sob o argumento de que não estariam preenchidos os requisitos para a sua obtenção. Entretanto, a impetrante alega que atende todas as exigências da Lei 13.982/2020 para o recebimento do auxílio – entre eles, não ter emprego formal ativo, não receber benefício previdenciário ou assistencial e não exercer atividade empresarial.

Domicílio do autor

A ação foi ajuizada perante a Justiça Federal de Santo André, que declinou da competência para uma das varas federais do Distrito Federal, em virtude de as autoridades impetradas terem sede em Brasília. Ao receber os autos, o juiz da 8ª Vara Federal Cível de Brasília suscitou o conflito por entender que a opção da autora ao entrar com o processo na comarca de Santo André seria respaldada pelo artigo 109, parágrafo 2º, da Constituição.

A ministra Assusete Magalhães apontou que, ao menos em exame preliminar, é aplicável ao caso dos autos o entendimento firmado pelo STJ no sentido da possibilidade de que o mandado de segurança seja impetrado no foro do domicílio do autor, nos casos em que ele se dirige contra autoridades da União e de suas entidades autárquicas. O objetivo, segundo a ministra, é facilitar o acesso à Justiça.

A decisão cautelar tem validade até que a Primeira Seção julgue o conflito de competência entre a 2ª Vara Federal de Santo André e a 8ª Vara Federal de Brasília.

“Considerando a natureza urgente do pedido veiculado, designo, com fundamento nos artigos 955 do Código de Processo Civil de 2015 e 196 do Regimento Interno do STJ, o juízo federal da 2ª Vara de Santo André/SP, suscitado, para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes” – concluiu a ministra.


FONTE:  STJ, 30 de junho de 2020.

TST confirma sucessão empresarial e condena hospital de forma solidária

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A sucessora terá de arcar também com o pagamento de verbas trabalhistas da empresa sucedida.

29/6/2020 – A Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (SDI-2) negou provimento ao recurso do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo-SP, contra a decisão que reconheceu a sucessão empresarial em relação à Saúde ABC Serviços Médicos Hospitalares Ltda. e sua obrigação de arcar, de forma solidária, com o pagamento de verbas rescisórias a um auxiliar de enfermagem.

Créditos

O empregado ajuizou ação trabalhista, em setembro de 2012, contra o hospital e a ABC. Disse que foi admitido aos serviços da ABC em 21.12.2004, a qual, segundo ele, foi adquirida pelo Hospital Alemão e continuou operando normalmente no mesmo endereço e local. Na ação, o empregado sustentou ter havido sucessão empresarial do hospital em relação à ABC. Dessa forma, o Alemão deveria responder, solidariamente, pelos créditos trabalhistas.

Sucessão

O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido de sucessão empresarial do empregado, condenando apenas a empresa Saúde ABC ao pagamento das verbas rescisórias do trabalhador. Todavia, a sentença foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), que reconheceu a sucessão empresarial entre as empresas e as condenou solidariamente ao pagamento das parcelas trabalhistas do empregado.

Leilão

No recurso ao TST, a empresa sustentou ter o Regional cometido “erro de fato” ao entender que o hospital sucedeu a empresa Saúde ABC, fato este que jamais existiu, segundo a instituição, pois o imóvel onde a ABC funcionava foi arrematado em leilão. “Não houve qualquer relação jurídica com a ABC”. O hospital negou ter havido relação de emprego com o auxiliar, o qual teria, apenas, trabalhado na ABC no prédio arrematado pelo Hospital Alemão. “Não tivemos participação em nenhum momento dessa relação”, declarou.

Erro de fato

O relator, ministro Evandro Valadão, ressaltou que a empresa insistiu no entendimento de que a decisão regional incorreu em erro de fato ao sustentar ter havido sucessão empresarial.  Todavia, observou, a existência ou não de sucessão empresarial foi o cerne da ação matriz, tendo sido debatida em todos os graus de jurisdição, cuja conclusão foi desfavorável à empresa hospitalar. Para o relator, não houve erro de fato capaz de autorizar a rescisão, nos termos da OJ 136 da SBDI-II do TST.

Precedente

O ministro destacou já haver decisão no mesmo sentido, na qual é parte também o Hospital Alemão, em julgamento realizado pela SDI-2, que seguiu o entendimento do parágrafo 1º do artigo 966 do novo CPC/2015, que diz haver erro de fato quando a decisão rescindenda (do Regional, no caso) admitir fato inexistente, ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido. Nas duas situações, segundo o artigo, é indispensável que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado.

A decisão foi seguida de forma unânime pelos magistrados da subseção especializada.   Processo: RO-1002538-96.2016.5.02.0000


FONTE:  TST, 29 de junho de 2020.

DIREITO À SAÚDE:  Plano deve fornecer medicamento fora do rol da ANS para tratamento de câncer

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Magistrado considerou que a limitação, recusa ou demora do custeio do tratamento pode acarretar danos irreparáveis para a saúde.

Plano de saúde deve fornecer medicamento de alto custo fora do rol da ANS para mulher em tratamento de câncer de mama. Decisão é do juiz de Direito Fernando José Cúnico, da 12ª vara Cível de São Paulo.

A mulher alegou que descobriu ser portadora de carcinoma invasivo de mama, passou por alguns procedimentos médicos e recentemente entrou em processo metastático, sendo indicado pelo médico o medicamento Ribociclibe, de alto custo.

O plano de saúde, no entanto, negou o fornecimento sob os argumentos de ausência de previsão no rol da ANS e de o medicamento ser experimental.

Ao analisar o caso, o magistrado destacou que na medida em que se discute o direito à saúde e ao tratamento de enfermidade prevista no contrato, a limitação, recusa ou demora do custeio do tratamento necessário ao segurado, pode acarretar danos irreparáveis para a saúde. 

“Em vista da natureza do contrato em tela, no sentido de assegurar a assistência médica ampla à parte autora, possui o réu o dever implícito em tal contrato de colaborar com o mesmo, a fim de garantir totalmente o sem bem-estar e integridade pessoal, à luz do princípio da boa-fé que deve nortear a execução contratual na esfera consumerista, na forma do artigo 4º. , III do CPC.”

Para o juiz, não cabe à requerida prescrever o tipo de tratamento que a autora deve ser submeter, mas sim o médico que a assiste.

Assim, condenou o plano de saúde a custear e fornecer o medicamento pelo tempo e dosagem determinados em prescrição médica. Processo1028238-08.2020.8.26.0100


FONTE: Migalhas, 29 de junho de 2020.

DIREITO AMBIENTAL:  Erro na concessão de licença não isenta empresa de pagar pelo dano ambiental

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​A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou um recurso da Cosan Lubrificantes e Especialidades e manteve condenação imposta à empresa pelos danos ambientais causados pela construção de um post​o de combustíve​is em área de Mata Atlântica em Paranaguá (PR), com base em licenças ambientais que posteriormente foram consideradas ilegais.

Para o colegiado, o erro do poder público na concessão das licenças não exime a empresa de pagar pelos danos ambientais.​​​

A empresa construiu o posto de combustíveis em uma área de três hectares de Mata Atlântica, amparada em licenças ambientais do governo estadual e do Ibama. A sentença da ação civil pública movida pelo Ministério Público contra a construção reconheceu ilegalidade nas licenças e condenou a empresa a pagar R$ 300 mil para reparar o dano ambiental.

A Cosan alegou ser vítima de erro do poder público. Para a recorrente, não há nexo de causalidade entre a construção com base em licença reputada como legal e o dano ao meio ambiente.

Segundo a ministra Nancy​ Andrighi, relatora, mesmo que se considere que a instalação do posto de combustíveis somente tenha ocorrido em razão de erro na concessão das licenças, é o exercício dessa atividade, de responsabilidad​​e da empresa recorrente, que gera o risco concretizado no dano ambiental, “razão pela qual não há possibilidade de eximir-se da obrigação de reparar a lesão verificada”.

Risco integral

A ministra lembrou que a exoneração da responsabilidade pela interrupção do nexo causal decorrente do ato de terceiro é admitida nos casos de responsabilidade subjetiva e em algumas teorias de risco que regem a responsabilidade civil objetiva, mas não pode ser alegada quando se tratar de dano subordinado à teoria do risco integral, como é o caso dos danos ambientais.

“Os danos ambientais são regidos pela teoria do risco integral, colocando-se aquele que explora a atividade econômica na posição de garantidor da preservação ambiental, sendo sempre considerado responsável pelos danos vinculados à atividade”, frisou a ministra.

Ela afirmou que, nessa hipótese, não cabe questionamento sobre a exclusão da responsabilidade pelo suposto rompimento do nexo causal, seja por fato exclusivo de terceiro ou por força maior.

Nancy Andrighi ressaltou que, no Brasil, os danos ambientais são regidos pelo princípio do poluidor-pagador, que atribui a quem exerce a atividade econômica o dever de arcar com os custos decorrentes da exploração, evitando a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. A obrigação de reparar o dano, segundo a ministra, decorre tão somente do simples exercício da atividade que, vindo a causar danos a terceiros, fará surgir, para o agente que detenha o controle da atividade, o dever de indenizar.  REsp 1612887


FONTE:  STJ, 30 de junho de 2020.

JURISPRUDÊNCIA:  Honorários advocatícios e Imposto de Renda são temas da nova edição da Pesquisa Pronta

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​A Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) disponibilizou na página da Pesquisa Pronta quatro novos entendimentos da corte. Entre os temas abordados na nova edição estão o momento de retenção do Imposto de Renda sobre honorários advocatícios e a base de cálculo desse tipo de honorários nos embargos à execução julgados procedentes.

A Pesquisa Pronta permite a busca em tempo real sobre determinados temas jurídicos. A organização é feita de acordo com o ramo do direito ou com grupos predefinidos (assuntos recentes, casos notórios e teses de recursos repetitivos).

Direito processual civil – honorários adv​​ocatícios

Em entendimento firmado no AgInt no REsp 1.609.254, sob relatoria do ministro Benedito Gonçalves, a Primeira Turma estabeleceu que “a base de cálculo dos honorários advocatícios nos embargos à execução julgados procedentes corresponde ao excesso apurado”.

Direito processual civil – legitim​​idade

No julgamento do AgInt no AREsp 1.122.473, relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma destacou que, “segundo entendimento desta corte, a sociedade de advogados, pessoa jurídica de direito privado, e, portanto, com personalidade jurídica distinta dos sócios que a integram, deve ser representada em juízo por advogado, devidamente constituído por procuração nos autos, não se tratando, pois, de hipótese de postulação em causa própria”.

Direito tributário – exec​​ução fiscal

“No julgamento do REsp 1.520.710, submetido ao rito dos recursos repetitivos, a Corte Especial do STJ consolidou o entendimento de que, na vigência do CPC/1973, é possível a cumulação da verba honorária fixada nos embargos à execução com a arbitrada na própria execução contra a Fazenda Pública, sendo vedada, contudo, a compensação entre ambas”.

A afirmação foi feita pelo ministro Benedito Gonçalves ao relatar o AgRg no AgRg no AREsp 619.556, na Primeira Turma.

Direito tributário – Imposto de Re​​nda

Em julgamento de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho (AREsp 818.622), a Primeira Turma destacou que, “conforme a jurisprudência desta corte, a exceção contida no artigo 46, parágrafo 1º, II, da Lei 8.541/1992 – que determina a retenção, pela fonte pagadora, do Imposto de Renda sobre rendimentos pagos em cumprimento de decisão judicial – não afasta a auto-aplicação das disposições contidas no caput do mesmo dispositivo; de modo que a retenção do Imposto de Renda na fonte cabe à pessoa física ou jurídica obrigada ao pagamento dos honorários advocatícios no momento em que o rendimento se torne disponível para o beneficiário”.


FONTE:  STJ, 26 de junho de 2020.

Existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos processuais.

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  • Gisele Leite

Resumo: A possibilidade da realização de negócio jurídico processual faz com que a doutrina avalie cuidadosamente seus planos de existência, validade e eficácia

Palavras-Chave: Negócio Jurídico Processual. Plano de Existência. Plano de Validade. Plano de Eficácia. Código Civil Brasileiro de 2002. Código de Processo Civil de 2015.


O artigo 190 do Código de Processo Civil brasileiro de 2015 prevê uma cláusula geral de negociação processual, o que propicia a inserção do princípio da autonomia ou do autorregramento da vontade no processo que se materializou o artigo 3º, §§ 2º e 3º do CPC/2015 (que faz parte do rol de normas fundamentais do processo civil).

Também não significou que durante a vigência do Código Buzaid, não fosse possível a celebração de negócios jurídicos processuais, de sorte que já havia relativo respeito ao princípio de autorregramento da vontade no processo.

Os motivos pelos quais se justificam a defesa no CPC/2015 se ampara no incentivo à autocomposição, a preocupação de melhor delimitação do objeto litigioso do processo, a previsão de considerável o rol de negócios jurídicos típicos, a positivação do princípio da cooperação[1] (no artigo 6º do CPC/2015) e, por fim, a cláusula geral de negociação processual.

O que conta com o apoio do texto constitucional vigente. Apesar disto, há corrente doutrinária que não atribui relevância à vontade no processo civil. É o caso de Cândido Rangel Dinamarco, Vicente Greco, Alexandre Freitas Câmara e Daniel Mitidiero.

Considera-se que a realização de negócios jurídicos processuais pode viabilizar maior efetividade à prestação jurisdicional através de adaptação negociada do processo e, resultando em maior pacificação prometida pelo Estado-juiz, especialmente, devido a efetiva participação das partes no regramento de suas situações jurídicas é a exigência de um processo civil democrático.

Mas, é importante abertas para se evitar a euforia desmedida e, assim, impor à defesa do demandado uma série de negócios jurídicos processuais que podem ser inválidos, ou pior, ineficazes como, por exemplo, as convenções para desconsiderar a coisa julgada, ou para admitir a interposição de recurso com supressão de instância, para pactuar a não desconsideração da personalidade jurídica ou para dispensar a fundamentação das decisões ou do contraditório.

Frise-se que no tange a desconsideração da coisa julgada, nem mesmo a arbitragem, que é privada, poderá realizar.

Apesar que segundo a Lei da Arbitragem (Lei 9. 307//1996) nos artigos 1º, 2º e 3º e 21 tem-se admitindo o rejulgamento da demanda já decidida, por sentença judicial ou arbitral acobertada pela coisa julgada.

Destaque-se que a Lei de Arbitragem deu maior liberdade para as partes sobre possível acordo sobre o procedimento processual, apesar de conservar o respeito ao princípio do contraditório da isonomia das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.

É prevalente entre os chamados arbitralistas que a liberdade de convenção do procedimento processual encontra limites e contornos no princípio do devido processo legal, na ordem pública processual e, também, nas disposições processuais cogentes e presentes na Lei de Arbitragem.

Se nem a arbitragem marcadamente mais liberal admite que um compromisso arbitral[2], seja contrário a uma decisão do juiz togado ou de outro órgão arbitral, o que dirá, o negócio jurídico processual que se situa dentro de um ramo jurídico de direito público, onde o julgado é autorizado a exercer poderes-deveres, de conformação constitucional exercendo uma função pública, notadamente, jurisdicional.

Cumpre ainda recordar a lição deixada por Carlos Alberto Carmona que aduz, in litteris: “O efeito negativo da coisa julgada consiste, em síntese, na proibição de se voltar a discutir, ou decidir, o que consta do dispositivo da sentença de mérito irrecorrível em face das mesmas partes, qualquer que seja a ação futura”.

E a ação futura que pode ser judicial ou arbitral, de sorte que seria inválido o compromisso arbitral, de sorte que seria inválido o compromisso arbitral cujo objeto fosse relação jurídica já anteriormente decidida pelo juiz togado ou órgão arbitral.

Aliás, cumpre assinalar que diversas leis estrangeiras já disciplinam que a decisão arbitral, faz coisa julgada, conforme é em França, Bélgica e, em Portugal. (In: CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. 3ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2009).

Caso o artigo 966, IV do CPC/2015 que prevê a ofensa da coisa julgada como a causa para se expurgar sentença transitada em julgado do mundo jurídico, como pode ser visto como válido e eficaz um negócio jurídico processual que tinha como objeto ao rejulgamento da demanda já decidida por decisão acobertada pela coisa julgada.

Questiona-se: como as partes podem obrigar o Estado-juiz que é um terceiro com relação a avença – a rejulgar a demanda? Cumpre rever o regramento estabelecido pelo Código Civil brasileiro (artigos 104,166, 167, 171 e 177) que se constitui uma teoria geral do negócio jurídico, que é aplicável aos demais ramos de direito brasileiro e que se prendem à licitude do objeto representando o pressuposto de validade de qualquer negócio jurídico.

Tais regramentos podem conduzir as normas do CPC/2015. Assim é exigível sujeitos capazes plenamente, ou pelo menos, devidamente representados, objeto lícito, possível e pelo menos determinável, forma prevista em lei, ou não vedada por esta.

A teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda[3], o negócio jurídico e o ato jurídico stricto sensu são espécies do ato jurídico lato sensu, ou seja, daqueles atos humanos que têm na vontade, o seu elemento nuclear e não constituem em ilícito.

O diferencial entre as duas espécies de ato jurídico consiste que, no ato jurídico stricto sensu, a parte não escolhe a categoria jurídica os efeitos são preestabelecidos e inalteráveis pela vontade dos interessados no passo que, no negócio jurídico, o direito outorga liberdade, às pessoas dos interessados, para que dentro de certos limites, venha autorregrar a sua vontade, permitindo a escolha de categorias jurídicas, de acordo com suas conveniências e possibilidades e permitindo a construção da eficácia das relações jurídicas decorrentes.

O negócio decorre de fato jurídico cujo elemento central é a manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentre de limites pré-determinados e de amplitude variada, o poder de escolha da categoria jurídica e a estrutura jurídica e a estrutura da eficácia das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e a intensidade no mundo jurídico.

Cumpre assinalar, ainda, as características sobre os fatos processuais lato sensu, que são todos aqueles que de algum modo, interferem no desenvolvimento da relação jurídica processual, seja uma ato do processo (que compõe a cadeia do procedimento), como por exemplo, a prévia renúncia ao direito de recorrer de ato decisório, seja um ato praticado fora do processo, porém surte efeitos na relação jurídica processual, como por exemplo, cláusula de eleição de foro, ou compromisso arbitral ou de mediação.

O ato jurídico é processual quanto tem suporte fática uma norma jurídica processual e, se refira a algum procedimento. Tal ato pode ser praticado durante o itinerário ao procedimento ou fora do processo.

Portanto, a sua origem ou sede do ato é irrelevante para classifica-lo como processual.  O negócio jurídico que decorre de norma de natureza processual e que se refere a algum processo, ou melhor, que tenha valor para o processo.

Chiovenda[4] já tratava dos negócios jurídicos processuais, reconhecendo-os como atos processuais cujos efeitos que produzem na relação processual se relacionam imediatamente processual se relacionam imediatamente com a vontade das partes.

Porém, o doutrinador admite de forma restrita, pois partindo da atividade pública do juiz, somente seriam válidos quando expressamente previstos em lei. Aliás, Chiovenda não aceitava negócios jurídicos processuais atípicos.

Lembrando que podem ser dentro ou fora do processo, poderiam ser unilaterais (renúncia, aceitação e, etc.) ou bilaterais (compromisso de submeter a controvérsia a um árbitro); conquanto dotado de eficácia dispositiva.

Conclui-se que os atos processuais e, portanto, regulados por lei processual, quanto à forma, à capacidade e o mais que lhe diga respeito.

Já outros doutrinadores como Carnelutti[5] também tratava de negócios jurídicos processuais. Tal doutrinador, inclusive, apresentava como, por exemplo de negócio processual aquele que tivesse como objeto a convenção de arbitragem.

Goldschmidt[6] classificou os atos processuais em postulatórios ou constitutivos estando entre estes os convênios, os negócios unilaterais e bilaterais.

Planos de existência, validade e eficácia

Para Pontes de Miranda, “a noção fundamental do direito é de fato jurídico depois da relação jurídica. Trata-se de conclusão lógica, pois é a partir de fato jurídico que se forma o mundo jurídico, possibilitando o nascimento de relações jurídica como a produção de toda a sua eficácia, constituída por direitos-deveres, pretensões, obrigações, ações, exceções e outras categorias eficaciais (situações jurídicas)”.

Lembremos que há fatos relevantes para o direito e, outros não. E a valoração de fatos relevantes na convivência humana, é traçada pelas normas jurídicas que possuem a finalidade de ordenar a conduta humana, atribuindo relevância e prevendo o suporte fático-hipotético (que é a hipótese de incidência ou hipótese normativa) e atribuindo-lhes consequências quando de sua concretização no mundo dos fatos.

O suporte fático da norma é composto por elemento nucleares, que, por serem considerados essenciais à sua incidência e à consequente criação do fato jurídico, constituem na base, cuja a ausência ou deficiência acarreta a inexistência do fato jurídico.

Há, ainda, os elementos complementares que não integram o suporte fático, somente o complementa e, se referem exclusivamente à perfeição de seus elementos, repercutindo somente no plano de validade e eficácia dos atos jurídicos stricto sensu e dos negócios jurídicos fundados na vontade humana.

Também existem os atos integrativos que não compõem os atos jurídicos stricto sensu. Pode-se afirmar que o negócio jurídico tem como elemento central logo, como elemento de existência (a manifestação de vontade, declaração consciente da vontade), visando o autorregramento.

No negócio jurídico processual, a existência do processo a que se refira, ainda, quando se referir a sua ocorrência seja exterior, ou seja, fora da sede processual.

Já quanto ao plano de validade, o negócio jurídico material ou processual tem elementos complementares, precisando ser celebrado por: pessoa capaz (plena ou devidamente representado), possuir objetivo lícito, possível e determinável, obedecer forma prescrita em lei ou pelo menos não vedada por esta, a perfeição da manifestação de vontade (que seja livre de vícios tais como erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão).

Convém esclarecer que os vícios da vontade produzem prejuízo a um dos contratantes, pois existe a manifestação de vontade sem corresponder com seu íntimo e verdadeiro querer. Ao passo que os vícios sociais se consubstanciam em atos contrários à boa-fé ou à lei, prejudicando a terceiro.

São vícios da vontade, a saber: o erro[7], dolo[8], coação[9], estado de perigo[10] e lesão[11]. E, são vícios sociais: a fraude contra credores[12] e a simulação[13].

Todos esses elementos retrocitados encontram-se relacionados à perfeição dos elementos nucleares.

O regime jurídico da validade de negócios jurídicos é firmado pelo Código Civil brasileiro em seus artigos 104, 166, 167, 171 e 177 que constitui na teoria geral dos negócios jurídicos, repercutindo em diversos ramos do direito brasileiro.

Não é demais destacar que:

  1. O artigo 104 do CC prevê os requisitos gerais de validade do negócio jurídico;
  2. Que os artigos 166 e 167 especificam, casuisticamente, as hipóteses de nulidade do negócio jurídico, todas derivadas da inobservância de algum dos requisitos gerais de validade;
  3. O artigo 171 especifica as hipóteses de anulabilidade, ou seja, incapacidade relativa; vícios de vontade relacionados à manifestação consciente da vontade, que é o elemento nuclear do negócio jurídico e, a fraude contra credores (relacionada à licitude do objeto).

Já quanto ao plano de eficácia, afirma-se que: O negócio jurídico tem eficácia pessoal limitada à esfera jurídica dos participantes do pacto, pois em geral, a eficácia do negócio jurídico, limita-se à esfera jurídica do sujeito de direito a que se refere.

E, sob pena de ilicitude, salvo os estritos casos em que haja expresso permissivo legal, a eficácia de ato jurídico não pode afetar a esfera jurídica alheia e, que, o negócio jurídico, para surtir seus efeitos jurídicos pode exigir ato integrativo (como por exemplo: a homologação de autoridade) quando expressamente previsto em lei.

Validade e eficácia de negócios jurídicos processuais

Diante dos padrões de referências invariáveis para o negócio jurídico, sejam estes materiais ou processuais, cabe sublinhar que o campo-dependente dos negócios jurídicos processuais é formado pelos critérios ou os tipos de motivos estabelecidos no ordenamento processual necessários para justificar à observância dos padrões de referência invariáveis, que utilizamos para qualificar a conclusão sobre a existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos processuais e, pelos novos padrões de referência que são variáveis, por serem adicionais aos negócios jurídicos processuais e, assim estabelecidos pelo ordenamento processual.

Os motivos necessários para justificar a observância de referências invariáveis constituem os requisitos invariáveis segundo a ordem processual. Já quanto ao plano de existência vige autorregramento da categoria jurídica, conforme estabelece a cláusula geral de negociação processual[14] (artigo 190 do CPC/2015).

Analisando o plano de validade: deve ser celebrado por pessoa capaz no campo processual, conforme preveem os artigos 70 a 73 do CPC/2015; a licitude do objeto e do objetivo no campo processual é fixada pelo ordenamento jurídico-processual, sendo inválido o negócio processual que versar  sobre objeto que a norma processual cogente proíba (exemplo: alterar competência absoluta) ou, que tenha objeto a dispensa de algo que a norma processual cogente impõe (exemplo: dispensa de fundamentação das decisões judiciais); a obediência à forma prescrita em lei ou, pelo menos, não proibida por esta, no campo processual.

Afigura-se inválido o negócio processual que contenha, justamente, forma vedada em lei (exemplo: eleição de foro na forma verbal) ou ainda, negócio processual inserido mediante cláusula em contrato de adesão[15] (invalidade, mas exige-se a duplicidade de vícios, pois a abusividade relaciona-se ao vício de vontade).

Perfeição da manifestação da vontade igualmente definida pela ordem processual, razão pelo que os vícios de vontade (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão) são aferidos conforme as normas processuais (exemplo: negócio jurídico processual unilateral como a desistência ou renúncia à recurso) pode ser anulado, se decorreu de erro de fato ou coação. Podendo-se aplicar interpretação extensiva ao artigo 393 CPC/2015 que disciplina a invalidação do ato processual stricto sensu.

Quanto ao plano de eficácia, refere-se aos negócios processuais que interferem na esfera jurídica do julgador, exigindo, pois, sua ativa participação e, que outros negócios exigirão ato integrativo, tal como uma homologação pelo juiz, quando assim o for previsto em lei.

Já quanto aos negócios jurídicos processuais atípicos, onde há referências variáveis ou adicionais conforme prevê o ordenamento processual, são aqueles dois novos requisitos de validade inseridos na cláusula geral de negociação processual, quais sejam, a saber: a) versar o processo sobre direitos que admitam autocomposição (de grande importância a distinção entre os direitos indisponíveis e direitos que admitem  autocomposição.

Cumpre salientar o que ensina Leonardo Greco, que a validade da convenção sobre a inversão do ônus da prova, sob o direito material posto em juízo, o respeito ao equilíbrio entre as partes e a paridade de armas, para que uma destas, em razão de atos de disposição seus ou de seu adversário, não se beneficie de sua particular posição de vantagem em relação à outra quanto ao direito de acesso aos meios de ação e defesa; a preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo no Estado Democrático de Direito. (In: GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual: primeiras reflexões. Os Poderes do juiz e o Controle das decisões judiciais. In: MEDINA, J.M.G.; CRUZ, L.P.F.; CERQUEIRA, L.O.S.).

Cabe esclarecer que também no regime de invalidação de negócios processuais, pois, em virtude do princípio de ausência de nulidade processual sem prejuízo (pas de nullité sans grief), mesmo diante de vícios que ensejem a nulidade ou anulabilidade dos negócios processuais, estas sanções só serão decretadas se houver prejuízo.

O processo civil brasileiro diante do modelo constitucional adotado para o processo, de onde advém princípios constitucionais, assumindo nítido caráter neoconstitucionalista e neoprocessualista prestigiam com fervor as questões de ordem pública. Apesar de existirem doutrinadores de escol como Fredie Didier Junior e Eduardo Talamini que defendam que o conceito de ordem pública está em vias de extinção.  Sendo que é inegável a repercussão exercida sobre o processo temas como: a força normativa da Constituição Federal; a normatividade de princípios; o método hermenêutico de concreção; a consagração de direitos fundamentais, dentre outros.

Portanto, são imbricadas intimamente a autonomia da vontade, a licitude do objeto e as questões de ordem pública, donde estas exsurgem como limites ao autorregramento de vontade no processo, ou melhor, como parâmetro para se aferir a licitude do objeto do negócio processual e, consequentemente, sua validade.

Nesse sentido, convém recordar que a Lei de Arbitragem explicita o princípio da autonomia da vontade, ao mesmo tempo que dá ampla liberdade para as partes convencionarem sobre o procedimento, respeitados os princípios do contraditório, ampla defesa, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.

Portanto, a convenção sobre procedimento encontra limites no devido processo legal, na ordem pública, bem como nas normas jurídicas processuais cogentes e nas disposições processuais cogentes da Lei de Arbitragem.

Em nosso sistema processual vigente existem vários exemplos de normas de ordem pública, tais como as que disciplinam a coisa julgada, a competência absoluta, a fundamentação de decisões judiciais, a imparcialidade do julgador, a capacidade processual, do vício de vontade, entre outras.

Tais normas correspondem a essência do princípio do devido processo legal também constituem questões de ordem pública.

Diante do exposto pode-se concluir que o negócio processual atípico existe, sendo válido e eficaz desde que atenda aos padrões estabelecidos pelo Código Civil para os negócios em geral. Quanto aos critérios ou tipos de motivos estabelecidos no ordenamento processual que sejam necessários para justificar a observância de referências invariáveis, que serve, para qualificar as conclusões sobre a existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos processuais e, aos padrões adicionais referentes aos negócios processuais atípicos.

Igualmente o negócio processual típico existe, sendo válido e eficaz quando observados as referências invariáveis e também os padrões adicionais e, ainda, aos novos padrões específicos inseridos e definidos quanto a forma.

São exemplos: a convenção do foro de eleição, convenção de calendário processual que exige a participação do juiz, a organização negociada do processo, que também exige a participação do juiz, a convenção sobre o ônus da prova, que não pode ser realizada quando o processo versar sobre direito indisponível ou quando se tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito (artigo 373, §§ 3ºe 4º do CPC), a escolha consensual do perito.

A possibilidade de negócio processual se pauta justificadamente na possibilidade de atender ao princípio da celeridade processual[16], efetivando em duração razoável a entrega da prestação jurisdicional e, da materialização da justiça.

Referências:

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo – influência do direito material sobre o processo. 4.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

DIDIER Jr., Fredie; DE MACEDO, Lucas Buril; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre. (Organizadores) NCPC doutrina selecionada. Vol.1. Parte Geral. Salvador: JusPodvm, 2016.

GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Volume 1. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

TAVARES JUNIOR, Homero Francisco. Aspectos da cláusula geral de negócios jurídicos processuais e do calendário processual previstos no Novo Código de Processo Civil (arts. 190 e 191). Disponível em: https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/8406/1/Aspectos%20da%20clausula%20geral%20de%20negociocios%20juridicos%20%20_artigos%20190%20e%20191_.pdf Acesso em ‘4.6.2020.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional – insuficiência da reforma das leis processuais. Revista da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Disponível em: http://www.abcdpc.org.br/artigos/arigo51.htm Acesso em 14.6.2020.

[1]O CPC vigente representa um código da superação de muitos dogmas. Uma das mudanças mais abruptas, que é objeto desta explanação, se refere ao redimensionamento da atuação do Estado-juiz na condução do processo, ao acolher o denominado princípio da cooperação – ou da comparticipação – no art. 6º, que assim dispõe: In litteris: Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[2]A cláusula arbitral é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios eventualmente derivados do contrato.  É, pois, cláusula-compromisso, necessariamente escrita, ainda que em forma de pacto adjecto, e dela não poderá a parte fugir em função da conhecida construção do nosso direito tradicional, traduzida no axioma: pacta sunt servanda (art.4°). Prevê ainda a lei que a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato, de modo que mesmo ocorrendo nulidade ou outros vícios não implicam, necessariamente, em nulidade da cláusula compromissória (art. 8°). A cláusula compromissória transfere algo para o futuro se houver pendência. É o pacto adjeto em contratos internacionais, civis e mercantis, principalmente os de sociedade, ou em negócios unilaterais, em que se estabelece que na eventualidade de uma possível e futura divergência entre os interessados na execução do negócio, estes deverão lançar mão do juízo arbitral.

[3] A Teoria do Fato jurídico foi desenvolvida, em 1954, por Pontes de Miranda, um dos maiores juristas brasileiros. Segundo referida Teoria, um fato ingressa no mundo jurídico quando colorido o suporte fático. Nesse momento, ocorre a incidência, a qual é infalível e automática, ou seja, independe da compreensão acerca das fontes do Direito ou do próprio fato. Em momento posterior e somente de forma eventual, poder-se-á falar em aplicação. Essa Teoria, quando surgiu, teve grande reconhecimento, porém, como contrassenso as obras pontemirandianas não foram inseridas nos Projetos Pedagógicos dos Cursos de Direito do Brasil.  A teoria do fato jurídico, inaugurada por Pontes de Miranda, possui bastante prestígio nos âmbitos do direito civil e processual civil, porém, pouco se questiona a respeito de seus preceitos claramente construídos sob a concepção unívoca de linguagem adotada pelo neopositivismo ou sua relevância para a atualidade. O conjunto da obra de Pontes de Miranda apresenta-se, sob um ponto de vista epistemológico, como uma teoria de caráter dogmático, mas apenas sua segunda fase classifica-se como dogmática jurídica. Nesse período, evidencia-se o entendimento de que a norma jurídica possui uma única interpretação correta, que ocorre em função da univocidade nas expressões empregadas nos enunciados normativos. É justamente tal característica que permite a tentativa de elucidação do fenômeno jurídico pela descrição de sua forma, sem se importar com o conteúdo.

[4] Giuseppe Chiovenda (1872-1937) jurista italiano e autor de diversas obras jurídicas importantes. Sua contribuição para o Direito deu-se principalmente na área do direito processual, sendo conhecido como um dos maiores expoentes da doutrina jurídica italiana. Defensor do princípio da oralidade processual, seus pensamentos foram referências importantes na elaboração do Código de Processo Civil italiano de 1940. Chiovenda é conhecido por ter influenciado a doutrina processualística, dando-lhe rigor científico, superando a antiga teoria imanentista do direito de ação, onde o direito processual era visto como um simples reflexo do direito material. Atribui-se a Chiovenda a primazia de ter afirmado a autonomia da ação enquanto direito potestativo conferido ao autor, de obter, em face do adversário, uma atuação concreta da lei. Saggi di diritto processuale civile (1903) Nuovi saggi di diritto processuale civile (1930)Princìpii di diritto processuale civile (1934-1937) Instituições de Direito Processual Civil (1942): tradução da 2. ed. italiana por J. Guimarães Menegale; acompanhada de notas por Enrico Tullio Liebman; com uma introdução de Alfredo Buzaid. São Paulo: Saraiva (3 vols.).

[5] Francesco Carnelutti (1879-1965) foi um dos mais eminentes advogados e juristas italianos e o principal inspirador do Código de Proceso Civil italiano. Os seus estudos abrangeram variadas áreas do saber jurídico. Em 1975, foi fundada em Udine a Fundação Forense Francesco Carnelutti, constituída pelos Conselhos das Ordens de Udine, Trieste, Gorizia e Tolmezzo, com o objetivo de apoiar o crescimento da cultura forense e judicial e de fornecer aos advogados um serviço de actualização nas várias áreas forenses e da atividade jurídica. Foi também criador da teoria da lide como centro do sistema processual, proposta metodológica que deixa em plano secundário o estudo da ação e das suas condições, que ocupam a posição central nos institutos processuais descritos pelos estudiosos de seu tempo. Carnelutti chegou a renunciar o conceito de interesse de agir como condição da ação.

[6]Foi James Goldschmidt, quem, em sua obra Der Prozess als Rechtslage (Berlin, 1925) (“O Processo como situação jurídica”), construiu a natureza jurídica do processo de uma nova perspectiva: O processo como conjunto de situações processuais pelas quais atravessam as partes até chegar a uma sentença definitiva. Fundou, por assim dizer, – A teoria da relação jurídica. Concepção empírico-dinâmica do processo: Entendia Goldschimidt que a função do processo se constitui na obtenção de uma sentença com força de coisa julgada, concebida esta como “validade judicial de uma pretensão, juridicamente fundada ou infundada”.In: MENDRONI, Marcelo Batlouni. A Doutrina de Mestre Goldschmidt Disponível em: http://investidura.com.br/biblioteca-juridica/doutrina/direitopenal/4237-a-doutrina-do-mestre-goldschmidt Acesso e, 17.6.2020.

[7]Erro ou ignorância acontece quando ninguém induziu o sujeito ao erro, ocorre quando alguém tem na realidade noção falsa sobre determinado objeto. Tal noção falsa é chamada de ignorância, isto é, o total desconhecimento acerca de certo objeto. O erro é dividido em acidental (erro sobre qualidade secundária da pessoa ou objeto) que não vicia o ato jurídico, pois não incidente sobre a declaração de vontade; erro essencial ou substancial refere-se à natureza do próprio ato e é incidente sobre as circunstâncias e aspectos principais do negócio jurídico. Enseja a anulação do negócio vez que se desconhecido o negócio, este não teria sido realizado.

[8]Dolo é o meio empregado para enganar alguém. Ocorre dolo quando o sujeito é induzido por outra pessoa a erro.

[9]Coação é o constrangimento a uma determinada pessoa, feita por meio de ameaça com intuito de que ela pratique um negócio jurídico contra sua vontade. A ameaça pode ser física (absoluta) ou moral (compulsiva).

[10]Estado de perigo é quando alguém, premido de necessidade de se salvar ou a outra pessoa de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. O juiz pode também decidir que ocorreu estado de perigo com relação à pessoa não pertencente à família do declarante. No estado de perigo o declarante não errou, não foi induzida a erro ou coagida, mas, pelas circunstâncias do caso concreto, foi obrigada a celebrar um negócio extremamente desfavorável. É necessário que a pessoa que se beneficiou do ato saiba da situação desesperadora da outra pessoa.

[11]Lesão ocorre quando determinada pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestadamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Caracteriza-se por um abuso praticado em situação de desigualdade, evidenciando-se um aproveitamento indevido na celebração de um negócio jurídico.

[12]Fraude contra credores é o negócio realizado para prejudicar o credor, que torna o devedor insolvente.

[13]Simulação é a declaração enganosa da vontade, visando obtenção de resultado diverso da finalidade aparente, para iludir terceiros ou burlar a lei. Vale dizer, a simulação é causa autônoma de nulidade do negócio jurídico, diferente dos demais vícios.

[14]No processo que verse direitos passíveis de autocomposição, “é lícito às partesplenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades dacausa”, além de também “convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveresprocessuais, antes ou durante o processo”, o caput do art. 190 do Código de Processo Civilinstitui uma cláusula geral processual, a qual, por seus contornos jurídicos, abrange um tipo aberto,capaz de viabilizar o ajuste da hipótese fática do caso concreto à produção do efeito jurídicodesejado.

[15]O contrato de adesão é o instrumento muito adotado nas relações de consumo. São elaborados, geralmente por uma das partes (proponente) e são usados no dia a dia das relações de consumo, pois já estão em modelos prontos para garantir a agilidade e execução dos negócios. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o contrato de adesão deveria se chamar contrato por adesão, assim entendido “…aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente as cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra”.

[16]Para viabilizar um ordenamento jurídico que se torne totalmente efetivo, mas sim, pleno em acesso a justiça, possibilitou-se então a criação do “princípio da celeridade processual”, por força da Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 08.12.2004, acrescido ao artigo 5.º o inciso LXXVIII, na chamada Reforma do judiciário: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA:

GISELE LEITE:  Professora universitária da área jurídica e da área da Educação, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora em Direito. Pesquisadora. Articulista de vários sites jurídicas e revistas jurídica.

Responsabilidade baseada em fundamentos diversos não conduz à múltipla indenização do mesmo dano

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​O fato de haver múltiplos responsáveis por um dano, ainda que sejam diferentes os fundamentos jurídicos que justificam a responsabilidade de cada um, não significa que haverá multiplicidade de indenizações – uma a cargo de cada causador do dano.

Com esse argumento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou parcialmente decisão da Justiça de Santa Catarina que condenou a proprietária e o motorista de um caminhão a indenizar os danos morais, estéticos e materiais sofridos pela vítima de um acidente de trânsito, a qual havia obtido as mesmas indenizações em ação trabalhista contra sua empregadora.

O colegiado afastou a duplicidade dos danos morais e estéticos, mas reconheceu a responsabilidade do motorista e da dona do caminhão pelo pagamento da pensão à vítima, em solidariedade com a empregadora já condenada na Justiça do Trabalho.

Seguindo o voto da ministra Isabel Gallotti, a turma julgadora entendeu que, se prevalecesse a conclusão das instâncias ordinárias, a vítima receberia duas vezes as indenizações de danos morais e estéticos decorrentes da mesma lesão e, a título de danos materiais, duas vezes a pensão destinada a compensar sua incapacidade para o trabalho. Por outro lado, os condenados na Justiça comum estariam sujeitos a pagar duas vezes pelo mesmo dano, em razão da ação de regresso a que tem direito a empregadora da vítima.

Amputa​ção

O motorista do caminhão atingiu a traseira de um caminhão de lixo, e o acidente causou a amputação da perna de um gari. A Justiça do Trabalho reconheceu falhas de segurança e condenou a empregadora a pagar danos morais e estéticos, além de pensão por danos materiais.

Como o motorista e a dona do caminhão foram excluídos do processo trabalhista – por não estarem envolvidos na relação de emprego – e a condenação recaiu apenas sobre a empresa de coleta de lixo, esta entrou com ação de regresso contra ambos.

A vítima, por sua vez, considerando que o motorista e a dona do caminhão também foram responsáveis pelo acidente, ajuizou na Justiça comum outro pedido de indenização, obtendo sucesso em primeira e segunda instâncias. Para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o trânsito em julgado do processo trabalhista não impede o ajuizamento, pela mesma pessoa, da ação na Justiça comum, pois, embora busque indenização pelo mesmo fato, os réus são distintos.

Além disso, o TJSC avaliou que os fundamentos nos dois pedidos de indenização não se confundem: em um caso, é o acidente de trabalho; no outro, a responsabilidade civil por acidente de trânsito.

Extensão do d​ano

Para a ministra Isabel Gallotti – autora do voto vencedor –, se a vítima já conseguiu da empregadora a reparação plena dos danos sofridos no acidente, não tem o direito de obter outra indenização exatamente pelo mesmo fato. Mencionando o artigo 944 do Código Civil, ela afirmou que, “se a indenização mede-se pela extensão do dano, naturalmente não pode ser multiplicada, conforme seja o número de partícipes do ato ilícito que o causou”.

A magistrada reconheceu que – como entendido pelo TJSC – não há identidade de ações entre os processos trabalhista e civil, pois não são idênticos nem as partes nem os fundamentos jurídicos, embora o fato em discussão seja o mesmo, assim como o dano a ser reparado. Porém, segundo ela, “do fato de não haver identidade de ações não se pode inferir que o autor possa ser duplamente indenizado pelo mesmo dano, ou que os réus possam ser submetidos a duplo julgamento e eventualmente terem de pagar duas indenizações pelo mesmo fato, por um mesmo dano causado a uma só pessoa”.

Solidari​​edade

Como as indenizações de danos morais, estéticos e materiais já foram asseguradas e pagas por força do processo trabalhista, Isabel Gallotti afirmou que, à primeira vista, seria o caso de julgar improcedentes os pedidos da vítima na Justiça comum. No entanto, ela observou que a pensão relativa aos danos materiais se prolongará no tempo, e por isso permanece o interesse da vítima em estender essa obrigação para o motorista e a proprietária do caminhão, também responsáveis pelo acidente.

“Isso não justifica o recebimento de duas pensões mensais, mas devem os réus ser julgados responsáveis solidários em face do autor pelo pagamento da pensão. Isso porque tem o autor o direito de exigir esse pagamento mensal em face de cada um ou de todos os obrigados”, disse a ministra, reportando-se ao artigo 942 do Código Civil.

Isabel Gallotti salientou que, se a empresa pagar regularmente a pensão mensal, a vítima não terá nada mais a exigir, uma vez que “a quitação dada a um devedor solidário a todos aproveita”. Na hipótese de o pagamento falhar, segundo ela, o motorista e a proprietária do caminhão poderão ser cobrados.  AREsp 1505915


FONTE:  STJ,  25 de junho de 2020.