Home Blog Page 291

Os poderes do relator no agravo de instrumento

0

* Sylvia Camata Krabbe

De todos os recursos previstos no Código de Processo Civil, nenhum sofreu até hoje modificações tão profundas como o Agravo. Referidas mudanças vêm sendo implementadas desde o advento da Lei 9.139/95, que alterou toda a disciplina desse recurso, cujo texto anterior era o da lei 5.925/73, que também modificava o texto original da lei que instituiu o CPC, tal como se acha em vigor (Lei 5.869/73).  

Primitivamente, o agravo era interposto no prazo de cinco dias perante o juízo “a quo”, devendo o instrumento ser formado com as peças a serem trasladadas, que passavam por conferência, seguida de intimação ao agravado para também indicar peças para traslado, vistas à parte contrária em caso de juntada de documento, intimação do agravado para resposta, enfim, uma série de atos processuais dispendiosos e pouco eficazes, que só prejudicavam a efetividade e a celeridade processual.  

O projeto do que viria a se tornar a Lei 9.139/95 teve longa tramitação no Congresso Nacional, por conta das amplas e polêmicas mudanças sugeridas, que viriam a alterar substancialmente a disciplina do recurso de agravo. As mudanças implementadas, todavia, serviriam (como de fato serviram) para dar maior celeridade em sua tramitação e efetividade quanto ao resultado pretendido.  

Ao relator do agravo de instrumento, na forma como originariamente previsto, não cabiam muitas atribuições, a não ser o indeferimento, em caso de “manifesta improcedência”, ou ainda, a conversão em diligência na hipótese de estar insuficientemente instruído, conforme primitiva redação do artigo 557 do CPC.  

A partir da vigência da Lei 9.139/95 e as profundas modificações por ela inseridas na disciplina do agravo, mormente o de instrumento, o relator passou a ter uma série de poderes, expressamente elencados no artigo 527 do CPC, tais como o de, liminarmente,  negar seguimento ao recurso ou atribuir-lhe efeito suspensivo (hipótese que anteriormente era perseguida com a impetração de Mandado de Segurança).  

Hodiernamente, após a edição da Lei 10.352/01, o agravo de instrumento novamente sofreu modificações substanciais, em especial quanto aos poderes atribuídos ao relator do recurso, tendo o texto do artigo 527 do CPC sido profundamente alterado.  

Agora, incumbe ao relator, além das atribuições já citadas, a possibilidade de converter o agravo de instrumento em agravo retido (inciso II) e deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal (inciso III).  

Passemos a analisar essas inovações:  

a)   conversão do agravo de instrumento em agravo retido  

O texto do inciso II atribui ao relator do agravo de instrumento a possibilidade de “(…) converter o agravo de instrumento em agravo retido, salvo quando se tratar de provisão jurisdicional de urgência ou houver perigo de lesão grave e de difícil ou incerta reparação, remetendo os respectivos autos ao juízo da causa, onde serão apensados aos principais, cabendo agravo dessa decisão ao órgão colegiado competente;”  

Importante ressaltar que a opção pela forma de interposição do agravo é da parte, à exceção das hipóteses expressamente determinadas por lei, tal como as  previstas no parágrafo 4º do artigo 523, casos em que o agravo será obrigatoriamente retido.  

Assim, achando-se a parte diante de questão passível de reforma urgente, deve valer-se do agravo na forma de instrumento; já se a decisão não resultar em lesão grave ou de difícil reparação, de acordo com o juízo de valor da parte, ressalte-se, poderá agravar na forma retida nos autos, apenas para evitar a preclusão, deixando a questão para apreciação posterior em caso de apelação.  

Agora, com a alteração das disposições do artigo 527 do CPC, incumbe ao relator verificar e, de acordo com o seu juízo de valor, processar ou não o agravo na forma de instrumento. Não estando presentes, sob a ótica do relator, a urgência e a possibilidade de lesão grave e de difícil ou incerta reparação, poderá este converter o agravo de instrumento em agravo retido, determinando a remessa dos autos ao juízo de origem, para apensamento aos autos principais.  

Evidentemente, tamanho poder atribuído ao relator não poderia deixar de ser passível de recurso, expressamente previsto no texto do inciso II do citado artigo, que admite a interposição de agravo, esse dirigido ao órgão colegiado competente, no prazo de cinco dias.  

Parece-nos evidente também que na maioria absoluta das vezes, para não dizer em todas as hipóteses que a conversão ocorrer, haverá a interposição de recurso, tendo em vista que o juízo de valor da parte em relação à necessidade urgente de reforma da decisão conflitará com o juízo de valor do relator, o que irá comprometer ainda mais o já tão atravancado procedimento recursal.  

O que se conclui é a clara intenção do legislador em privilegiar o agravo retido e reduzir a utilização do agravo de instrumento, invertendo-se a ordem que vigorava até então, limitando e criando embaraços à parte na hora de optar pelo regime do agravo a ser interposto.

b)    Antecipação de tutela, total ou parcial, em relação à pretensão recursal

Na anterior redação do inciso II do artigo 527 do CPC,  ao relator do agravo de instrumento já era permitido atribuir efeito suspensivo ao recurso, desde que mediante prévio requerimento do agravante e nas hipóteses elencadas no artigo 558 do mesmo diploma legal.

Na prática, porém, surgiram situações nas quais não estaria a se pretender a atribuição de efeito suspensivo, já que a decisão agravada era negativa, ou seja, era pela “não concessão” ou pela “não realização” de determinado ato processual, como por exemplo, na hipótese de indeferimento de liminar.

Começou-se a aplicar então o que a doutrina veio a chamar de “efeito suspensivo ativo”, ou seja, era a possibilidade de antecipar, em sede recursal, os efeitos da decisão recorrida, cuja providência foi negada no juízo de origem. A aplicação desse “efeito suspensivo ativo” foi controvertida no início, passando a jurisprudência a acatá-lo como mais uma forma de diminuir a impetração de mandados de segurança contra ato judicial, mediante interpretação teleológica do artigo 558 do CPC.

O que se fez então, na nova redação do inciso II do artigo 527, foi apenas regulamentar o que na prática já ocorria, passando o chamado “efeito suspensivo ativo” a ser tratado como antecipação de tutela, possibilitando ao relator a sua concessão na forma total ou parcial e determinando seja o juiz comunicado da decisão.

Destarte, cumpre salientar que, embora hajam controvérsias em sede doutrinária, não é passível de recurso a decisão do relator que defere ou indefere efeito suspensivo ou antecipação de tutela no agravo de instrumento, conforme jurisprudência extraída da obra de Theotônio Negrão (Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor – 35ª edição – Edit. Saraiva – p. 583) :  

“A decisão do relator que indefere efeito suspensivo a agravo de instrumento é irrecorrível” (JTJ 202/288); no mesmo sentido: JTJ 203/229. Contra ela também não cabe mandado de segurança (JTJ 187/145).  

Também não comporta recurso algum a decisão liminar concessiva de efeito suspensivo ao agravo (RF 338/309). Contra tal decisão, não cabe medida cautelar perante o STJ (RSTJ 149/82).  

“Não cabe agravo regimental das decisões atinentes à agregação de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, bem como daquelas em que o relator deferir antecipação de tutela ou tutela cautelar” (6ª conclusão do CETARS). Neste sentido, quanto ao não cabimento de agravo regimental contra decisão do relator que concede ou nega efeito suspensivo a agravo: JTJ 185/239, 205/277, RJTJERGS 187/166.

Por fim, resta a nós, operadores do direito, aguardarmos os desdobramentos da aplicação dos novos dispositivos concernentes ao agravo, em especial a posição a ser tomada pela jurisprudência, a fim de tecermos maiores comentários acerca da efetividade das medidas implementadas.


BIBLIOGRAFIA 

NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003.  

NERY JÚNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6ª ed., rev., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Código de Processo Civil Anotado. 2ª ed., rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1996.  

TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da Nova Reforma do CPC. 2ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.  

WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2ª ed., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 

WAMBIER, Luiz Rodrigues; CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. 5ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 1, 2002.  

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC Brasileiro. 3ª ed., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.  

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY JÚNIOR, Nelson (coords.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis de acordo com a Lei 9.756/98. 1ª ed., 2ª tir., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

 


Referência  Biográfica

Sylvia Camata Krabbe –  Advogada, administradora de empresas, especialista pela PUC/SP, professora de Direito Processual Civil, Prática Processual Civil e Introdução ao Estudo do Direito Civil e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas.

advocaciakrabbe@aasp.org.br

Tortura: distinção lógico-sistemática com o crime de maus tratos

1

* Rosa Maria Abade 

1. Considerações Preliminares

Da análise de diversos estudos existentes sobre a tortura, conclui-se que se trata de uma das práticas mais bárbaras da espécie humana, que foi utilizada ao longo da história pela maioria das civilizações conhecidas, chegando em algumas épocas a ser elevada à categoria de prática judicial lícita.

Apenas ao longo dos anos, paulatinamente, é que se passou a proibir a tortura e outras penas cruéis, desumanas ou degradantes do ordenamento jurídico internacional.

O homem passou a ter direitos no âmbito internacional, obtendo a tutela de organismos internacionais, através dos tratados e convenções internacionais, destacando, dentre tais instrumentos jurídicos, a Convenção de 1984, proclamada pelas Nações Unidas, que definiu a tortura como crime especial.

No Brasil, tortura não era tida como um crime autônomo, passando a ser  diante de um fato de suma gravidade, como o da Favela Naval, de Diadema, na Grande São Paulo, sendo  elaborada a lei 9544 de 07 de Abril de 1997, a Lei da Tortura.

Apesar de elaborada com poucos artigos, a lei 9455/97,  prevê várias e distintas condutas e as pune com severidade, mas, dada a forma célere com que foi elaborada, votada e sancionada, apresenta-se repleta de defeitos que têm se tornado objeto de inúmeras críticas e análises doutrinárias,  principalmente diante de vários conflitos havidos entre o novo ordenamento e as leis anteriores.

Cabe aqui uma análise direcionada, além das demais, sobre o inciso II, do art. 1º, o qual prevê “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

 Efetua-se para tanto uma análise  do crime de tortura sob este aspecto estabelecendo um paralelo e um confronto com o crime de maus tratos.  E para tanto necessário se faz um esboço analítico do artigo 136 do Código Penal.

O assunto teve despertar com notícias, que comumente deparamos, de babás que espancam crianças, idosos, enfim aqueles que necessitam de cuidados, e diante de dúvidas e críticas surgidas sobre o correto enquadramento legal. E nesta busca,  verificamos que esta deve ser analisada no caso concreto, já que “ não deixa de ser uma norma de definição em aberto a ser complementada, pois diversas são as formas de tortura, bem como diversos podem ser os resultados.”1

O estudo em tela nos permite  concluir que a diferença entre o crime de tortura e o crime de maus tratos está no elemento normativo da tortura, contido no inciso II, do art. 1º da Lei 9455/97, que exige que a vítima tenha um intenso sofrimento físico ou mental.

2. Tortura Conceituação

Segundo o dicionário Aurélio “Tortura significa o suplício ou tormento violento infligido a alguém.”

Em análise jurídica, a tortura é formada pelas condutas: “constranger”, “submeter” e  “omitir”.            

Na tipificação legal não há definição  para o vocábulo ‘tortura’, apenas diz o que constitui o crime de tortura, cujo objeto jurídico protegido é a dignidade humana.

Conforme professa  Plácido e Silva2 : “tortura é o sofrimento ou a dor provocada por maus tratos físicos ou morais. É o ato desumano, que atenta à dignidade humana. É o sofrimento profundo, angústia, dor. Torturar a vítima é produzir-lhe um sofrimento desnecessário. É tornar angustioso o sofrimento.”        

A Convenção de 1984 utilizou-se, no artigo 1º, dos verbos infligir, obter, castigar, intimidar e coagir. Todos eles apontando para o abuso, para o autoritarismo e para a ilegalidade.  

Assim, tortura é algo degradante da condição humana e não pode ser aplicada dentro do Estado de Direito que respeite as garantias individuais.

É por esta razão que a nossa Carta Magna, no artigo 5º, III, deixa claro que, “Ninguém será submetido à tortura”, excluindo assim esta como meio possível de aplicação.

3. A TORTURA NA  LEI 9455/97

O Art. 1º  prevê o que constitui crime de tortura. Em análise ao contido no inciso I, verificamos que condiciona a tipificação do crime de tortura ao preenchimento de três elementos, sendo uns objetivos do tipo e outros de caráter subjetivo. Os dois primeiros encontram-se no próprio inciso, enquanto o terceiro está presente nas suas alíneas "a", "b", e "c".

Esses elementos são: o meio empregado; as conseqüências sofridas pela vítima, e a finalidade pretendida (dolo específico) ou o motivo.

As conseqüências são de duas ordens, o constrangimento e o sofrimento físico ou mental causados. É, assim, necessária a ocorrência concomitante de ambas. Só se tipificará o crime se a vítima for constrangida pelo emprego de violência ou grave ameaça, e que este lhe cause sofrimento físico ou mental, pois pode acontecer que, apesar da violência, em sentido amplo, a vítima não se sinta constrangida ou não tenha sofrimento de qualquer ordem.

Por derradeiro, vêm as finalidades ou o motivo: são três, devendo, no entanto, ser preenchida apenas uma, para a tortura se caracterizar. Na alínea "a", o fim é a obtenção de informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.

A vítima a que se refere a lei é a do crime de tortura. Ocorrerá também o delito quando as informações, declarações ou confissão forem prestadas por terceiro. A expressão "terceira pessoa" não ficou bem colocada, já que a mesma só realizará uma das condutas descritas se esta se encontrar constrangida, de forma que o sofrimento mental seja possível de resistir. Ora, ocorrendo isso, o terceiro estará torturado, posto que foi constrangido, com emprego de grave ameaça, e lhe foi causado sofrimento mental. Portanto, a dita terceira pessoa também é vítima.

A alínea "b" traz como finalidade "provocar ação ou omissão de natureza criminosa". Constitui tortura obrigar a vítima a praticar um crime, mediante ação ou omissão. É necessário, que a ação ou a omissão criminosa seja praticada em virtude de ter sido a vítima constrangida a tanto, ou seja, que, através do emprego de violência ou grave ameaça, a ela tenha sido causado sofrimento físico ou mental suficiente para constrangê-la à prática delituosa.

A alínea "c" aduz ser motivo da violência ou grave ameaça a discriminação racial ou religiosa, afastando  aqui, demais  discriminações, tais como, em razão de ideologia política ou em razão de preferência sexual. Nestas, mesmo estando presentes o constrangimento, a violência ou grave ameaça e o sofrimento físico ou mental, não se poderá falar em tortura, pois, em sendo taxativa a enumeração, não se estende a outros fatos além daqueles expressos na lei, em virtude da interpretação restrita das normas penais.

O inciso II   do artigo 1° da Lei 9455/97  prevê a prática do delito daquele que tem a vítima  sob sua guarda, poder ou autoridade, que com emprego de violência ou grave ameaça, submete-lhe a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar o castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.  O sujeito ativo é, assim, próprio, pois só poderá incorrer no crime as pessoas detentoras daqueles atributos. Também é próprio o sujeito passivo. O sofrimento deve ser intenso, não compreendendo, no entanto, a lesão corporal de natureza grave, já que esta está prevista no § 3º do art. 1º. O dolo específico se caracteriza na aplicação de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

A pena imposta ao delito de tortura simples (art. 1º, I e II) é de reclusão de dois a oito anos. A pena é mais elevada que as previstas nos delitos de constrangimento ilegal,  de maus-tratos, cuja previsão é detenção, de três meses a um ano, ou multa, e de detenção de dois meses a um ano, ou multa, respectivamente.

O § 1° do artigo 1° da Lei da Tortura, refere-se a tortura  do preso ou de pessoa sujeita a medida de segurança, sendo o sujeito passivo, aquelas pessoas que se encontrem sobre tais condições.  Aqui o meio utilizado é mais abrangente, pois, não se referindo à violência ou grave ameaça, aumentou a esfera de atuação do sujeito ativo. Mas, ao mesmo tempo, condicionou essa tipificação, já que é necessário que o meio empregado não esteja previsto em lei e que não seja resultante de medida legal. Desta forma, a colocação do preso nas denominadas "solitárias", desde que efetuadas  nos termos do art. 45, e seus parágrafos, e 53, IV, da LEP, não constitui tortura por ser previsto em lei.

A finalidade do § 1° do artigo 1° é a proteção do direito individual constitucional previsto no art. 5º, XLIX, no qual "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral". A pena imposta é a mesma do caput , reclusão, de dois a oito anos.

Já  § 2° do mesmo artigo prevê a conduta omissiva. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. Este artigo contém um equívoco, já que tipifica como conduta menos grave a conduta de quem o dever de evitar a tortura e deixa de fazê-lo.  Este parágrafo somente será aplicado àquele que tem o dever jurídico de apurar a conduta delituosa e não o faz (  o art. 13,§ 2º, do CP).

O  § 3º do artigo 1° trata da  tortura qualificada pelo resultado. Prevê este como figura preterdolosa.  A lesão corporal e a morte são conseqüências culposas da tortura. Não são desejadas pelo autor, que age com dolo no antecedente (tortura) e culpa no conseqüente (lesão corporal grave ou gravíssima ou morte, resultados não pretendidos).

Outras figuras qualificadas estão presentes no § 4° da Lei da Tortura. Este dispositivo, traz causas de aumento de pena e estão dispostas em três incisos I, II e III. O inciso I trata de qualidade inerente ao sujeito ativo, ser agente público.

O inciso II aufere qualidades do sujeito passivo. Dessa forma, será qualificada a tortura quando o crime for cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente. Criança é o menor de 12 anos. Quanto às gestantes exige-se que tenha ciência da gravidez. Quanto a deficiência da vítima pode ser a física ou a mental.

O inciso III do § 4°,  qualifica o delito se for cometida mediante o seqüestro. Este dispositivo somente será aplicado quando houver privação da liberdade por tempo prolongado, absolutamente desnecessário, ou quando houver deslocamento da vítima para local distante.

Os efeitos da condenação estão dispostos no § 5°. Atingem os servidores públicos em sentido amplo, envolvendo os detentores de cargo, função ou emprego público.   Esses servidores, além de perderem seus cargos, funções ou empregos, ficam interditados para exercê-los pelo dobro do período da pena aplicada. Não podem, assim, voltar ao serviço público enquanto não ultrapassado aquele lapso temporal.

Uma vez preso em flagrante, não caberá fiança ao acusado da prática de tortura. Só será posto em liberdade se provar irregularidade no flagrante, caso em que será ilegal a sua prisão (§ 6° do artigo 1° da lei 9455/97)

Não pode, da mesma maneira, ser concedida graça ou anistia. Também o indulto não pode ser concedido, tendo em vista o que dispõe a Lei 8.072/90, em seu art. 2º, I.

A inclusão deste dispositivo foi feita como forma de reforçar a sua aplicação, pois já há previsão, na Lei de Crimes Hediondos, art. 2º, I e II, toda a matéria aqui disciplinada. No que diz respeito às hipóteses restantes tratadas na Lei de Crimes Hediondos, referentes à tortura, permanecem em vigor, naquilo que não contrariam a Lei 9.455/97.

Também não pode ser concedida liberdade provisória aos acusados por crime de tortura (art. 2º, II, Lei 8072/90).

O §2º, do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos, determina que, em caso de condenação, o juiz decidirá, fundamentalmente, se o réu poderá apelar em liberdade. Há uma inversão da regra geral de que se deve fundamentar para prender, e não para se deixar em liberdade. Por essa razão, o condenado por prática de tortura, mesmo primário e de bom comportamento, deverá ser recolhido imediatamente, não havendo necessidade, para tanto, que se espere o trânsito em julgado da sentença. E mais, não precisa o Juiz fundamentar, pois a gravidade do delito já é o seu próprio fundamento. A contrário senso, se entender o Juiz que o condenado deve aguardar o trânsito em julgado em liberdade, terá que fundamentar sua decisão. Se não o fizer, é nula, tendo como conseqüência a prisão do réu.

O § 7° da Lei 9455/97  derrogou o § 1º do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos. Este dispunha que a pena, pelos crimes previstos no referido artigo, seria cumprida integralmente em regime fechado, não se respeitando a progressão de regimes. A Lei de Tortura modificou esse panorama, determinando, no seu art.1º, § 7º, que o cumprimento da pena iniciaria em regime fechado, admitindo-se a sua progressão.  A única exceção é a hipótese do § 2º, que imputa pena inferior a quem se omitiu de apurar ou evitar tortura. Aplica-se a eles o disposto no Código Penal, art. 33, § 2º, "c", que determina a possibilidade de o início do cumprimento da pena ser em regime aberto, em caso de não reincidência.

A extraterritorialidade da lei está disposta no art 2° da Lei 9455/97. Para que este dispositivo seja aplicado é necessário,  que ocorra uma das hipóteses: que a  vítima seja brasileira ou que o autor da tortura esteja em local em que a legislação pátria é aplicável.

Por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art.233, cominou pena para a prática de tortura contra criança, restando este dispositivo inaplicável, por falta de definição legal acerca do referido crime.

Com o advento da Lei de Tortura, que disciplina as suas figuras típicas, incluindo, entre os casos de aumento especial de pena, o fato de o delito ser praticado contra criança, levou abaixo o disposto no artigo citado. É que, tendo o legislador fixado pena diversa, o art. 233, do ECA, tornou-se incompatível com a nova lei.  Para evitar dúvidas, preferiu-se expressamente revogá-lo.

CONFRONTO ENTRE O CRIME DE TORTURA E O DELITO DE MAUS TRATOS

O tema da tortura há muito preocupa estudiosos, humanistas e pregadores dos direitos humanos e vem provocando incessante luta  diante das barbáries cometidas contra as pessoas fragilizadas pelas condições fiísicas ou sociais.

Contra as crianças, especificamente,  a violência normalmente ocorre em casa e são situações vivenciadas no cotidiano.

Os direitos da criança e do adolescente são protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.069/90), o qual reconhece os direitos próprios de toda criança e adolescente, necessários à sua total proteção (art. 1º).   O art. 18 do mesmo Estatuto, contextualizado no Cap. II, que trata “Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade”, impõe que “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

Os abusos que caracterizam violência contra crianças e adolescentes se apresentam, sob forma de agressão física, sexual, psicológica.  A partir da prática de tais atos, e com dificuldade probatória na maioria das vezes, é que se poderá verificar se constituem simples crime de maus tratos previsto no art. 136, do Código Penal ou tortura-castigo, inserida no inciso II, do art. 1º da Lei 9.455/97.   

Para uma análise inicial, verificamos que tanto o delito previsto no artigo 1º , II da Lei 9455/97 e o delito de maus tratos, previsto no artigo 136 do Código Penal, assemelham-se em vários aspectos.  A  objetividade jurídica   de  ambos delitos também  assemelham-se: são a vida e a dignidade humanas.

Ambos os crimes são próprios, sendo o sujeito ativo a pessoa que exerce a guarda, a vigilância ou autoridade sobre outra (sujeito passivo).  Há, assim, uma relação jurídica preexistente entre o sujeito ativo e o passivo. Só quem tem a legitimação especial de autoridade, ou titular de guarda ou vigilância poderá cometer o crime.

ANA PAULA NOGUEIRA FRANCO3, ensinou que "ao analisar as ações nucleares dos tipos começam a surgir as diferenciações”.

No delito de maus-tratos a ação é a exposição ao perigo através das modalidades: a) privando de cuidados necessários ou alimentos; b) sujeitando a trabalho excessivo; c) abusando de meio corretivo. Já no art. 1º, II, da Lei nº 9.455/97, a ação se resume em submeter alguém (sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso sofrimento físico ou mental com emprego de violência ou grave ameaça.

Verificamos ainda que no crime de maus-tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. No crime de tortura,  o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Não se deve esquecer, outrossim, que o sofrimento físico está intimamente ligado ao conceito de dor, tormento, ao passo que o sofrimento mental relaciona-se com a angústia, o temor, a violação moral ou psicológica; se não estiverem presentes quaisquer destes elementos a conduta será atípica pelo menos em relação à Lei n. 9.455/97.

O art. 1º, II, da Lei nº 9.455/97,  entra em conflito com as modalidades instantâneas do art. 136 do CP (b) sujeitando a trabalho excessivo e c) abusando de meio corretivo), pois o meio utilizado pode ser uma violência física ou moral.

Na tortura, o fim a que se presta a guarda, poder ou autoridade não está especificado, sendo, por isso, mais abrangente. Nos maus-tratos, a ação do sujeito ativo é de conteúdo ainda mais variável, pois se pode manifestar de diversas maneiras, entre as quais estão incluídas aquelas previstas na tortura, meios de correção ou disciplina (prevenção). Nestes, a vida ou a saúde da pessoa é exposta a perigo, enquanto que naquela, alguém é submetido a intenso sofrimento físico ou mental.

A distinção entre os crimes de maus tratos e tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no tipo subjetivo, onde se o agente  abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos. Caracterizará tortura quando a conduta for praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.

Para tanto, deve o juiz analisar o caso concreto, ao auferir o enquadramento no delito de maus tratos ou na figura delituosa mais gravosa, verificando assim, antes de tudo o elemento volitivo do agente.

Conclusão

O crime de tortura, portanto,  tendo como vítima criança, adolescente (aliás, qualquer pessoa) restará consumado se, da violência ou grave ameaça, aplicadas como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, causar intenso sofrimento físico ou mental.

A  questão dos maus-tratos e da tortura deve assim ser resolvida verificando-se a vontade do  agente. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus tratos. Se a conduta não tem outro móvel senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura.

Ao analisarmos, mormente a hipótese de criança entregue regularmente aos cuidados de sua ama, de sua babá, enquanto os pais trabalham ou realizam uma viagem, onde muitas vezes, por vil prazer, agridem praticando espancamentos, sem qualquer finalidade corretiva, deve ser imputada a conduta mais gravosa e não incluí-las entre os sujeitos do art. 136 do Código Penal, como têm ocorrido.

NOTAS

1. NOGUEIRA, Paulo L. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Editora Saraiva. 1991. P.303.

2. SILVA , Oscar José de Plácido e, Vocabulário Jurídico, 11ª ed, Rio de Janeiro. Forense, 1991.

3. FRANCO, ANA PAULA NOGUEIRA, Distinção entre Maus-Tratos e Tortura e o art. 1º, da Lei de Tortura, in Boletim do IBCCrim, n. 62/Jan-98, p. 11.

BIBLIOGRAFIA

FERNANDES, Paulo Sérgio Leite e FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Aspectos jurídico-penais da tortura. 2. ed. Editora Ciência Jurídica, 1996.

FRANCO, Alberto Silva. Tortura. Breves Anotações sobre a Lei n. 9.455/97. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.19, São Paulo : RT, 1997.

FRANCO, Ana Paula Nogueira Franco. Distinção entre Maus Tratos e Tortura e o art. 1º da Lei da Tortura”. Boletim do IBCCrim. N. 62, Jan. de 1998, p. 11).

GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito Penal e Processo Penal – Tortura. São Paulo : RT, 1999.

JURICIC, Paulo, CRIME DE TORTURA, Ed. Juarez de Oliveira, 1999

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Tortura: notas sobre a Lei 9.455/97. RT/Fasc. Pen. Ano 86, v. 746. Dezembro de 1997. p. 476-482.

SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Algumas notas sobre a nova Lei de Tortura. Boletim IBCCrim, n. 54. Maio de 1997. p. 02.

 


Referência  Biográfica

Rosa Maria Abade  –  Advogada; Professora de Direito Penal e Processo Penal na UnG e UNICSUL;. Especialista em Processo Penal e Mestranda na PUC-SP.  2003

rosamariaabade@terra.com.br

A Usucapião Coletiva no Novo Código Civil

0

* Marina Câmara Albuquerque

I. Introdução

            Para uma obra de tamanha relevância social e sob a óptica da mais desvelada e sensível crítica, o Código Civil brasileiro de 1916 vigorou dignamente até o alvor do novo milênio. Isso a despeito de haver sido o direito homônimo, conforme lapidarmente observa o Professor Otavio Luiz Rodrigues Junior, provavelmente "a província jurídica que mais padeceu com as transformações do último século, envolto que estava nas púrpuras romanas, incensado pelas orações medievas e sensibilizado pelas homenagens que lhe prestara o Oitocentos" (1).

            A primorosa obra cujo anteprojeto foi concebido por Clóvis Beviláqua, enfim, sucumbiu a uma nova codificação, o que veio a ser a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Após um quarto de século de tramitação do projeto e um ano de vacatio, o novel diploma passa agora a ser, de modo mais contundente, objeto do crivo da comunidade jurídica nacional.

            Muitas de suas mudanças parecem refletir uma concepção das relações humanas decerto menos patriarcal, menos formal e, sobretudo, menos liberal. Com efeito, o legislador de 2002 é avesso ao individualismo arraigado à vida privada passada. Em meio a preceitos outros vários, essa mentalidade restou particularmente condensada no destaque dado à função social da propriedade.

            Dessarte, comandos sem correspondentes no Código de 1916 foram formulados para servir à concreção do fim social do domínio. A respeito, é merecedor de uma análise especial o inusitado conteúdo dos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo diploma. Convém, de início, transcrever o que anuncia o referido dispositivo:

            "Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

            § 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

            § 2º. São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

            § 3º. O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

            § 4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

            § 5º. No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores."

            Foi disposto tal preceito na Seção I, das "Disposições preliminares", do Capítulo I, da "Propriedade em Geral", do Título III, da "Propriedade", por seu turno integrante do Livro III da parte especial, do "Direito das coisas". De plano se percebe que, com o viso de reverenciar o caráter social da propriedade, o legislador impropriamente versou sobre modos de sua perda em apêndices de um preceito geral.

            Na opinião do Professor Miguel Reale, que coordenou o projeto, os §§ 4º e 5º do referido art. 1.238 consagram uma "inovação do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando não só um novo conceito desta, mas também um novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo de posse-trabalho" (2).

            Sobre a construção teórica desses mesmos dispositivos, Carlos Alberto Dabus Maluf narra que "o relatório Fiuza, recepcionando por sua vez o relatório Ernani Satyro, acolhe os argumentos do Prof. Miguel Reale quando afirma que se trata de um dos pontos mais altos do Projeto, no que se refere ao primado dos valores do trabalho como uma das causas fundantes do direito de propriedade" (3).

            No transcorrer do presente estudo, serão oportunamente perquiridos os seguintes pontos acerca da novidade em liça: natureza jurídica, aspectos comuns e divergentes com a usucapião (4) coletiva urbana, constitucionalidade e modos de argüição em juízo.

II. Natureza jurídica

            Uma primeira indagação surge da leitura dos §§ 4º e 5º do sobredito art. 1.238: qual a natureza jurídica dessa forma de "privação da coisa"? Seria uma desapropriação implementada por particulares, em substituição ao poder público, ou uma usucapião coletiva condicionada à obrigação de indenizar? (5) Ou, ainda, seria um instituto completamente novo, a galgar autonomia conceitual?

            No longínquo ano de 1972, o mestre Caio Mário da Silva Pereira vaticinou a controvérsia que o preceito viria a suscitar em crítica ao Anteprojeto do vigente Código Civil. Relata Jackson Rocha Guimarães que o grande civilista concebeu o instituto como "inconstitucional, irrealizável e inconveniente. Inconstitucional porque a desapropriação está subordinada a cânones constitucionais. Não cabe à legislatura ordinária criar mais um caso de desapropriação, e muito menos sem ‘prévia’ indenização. Irrealizável, porque não ficou definido quem irá pagar: os ocupantes obviamente não podem ser, porque a hipótese tem em vista a invasão por favelados e pessoas sem resistência econômica; o Estado não pode ser compelido a desapropriar, pois que ao Executivo e não ao Judiciário é que compete a fixação das linhas de orientação econômica do governo. Inconveniente, conclui o professor de direito civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, porque fixa esta modalidade esdrúxula de desapropriação sem controle do Executivo, sem fiscalização do Legislativo, apreciada pelo juiz, cujas convicções podem ser deformadas por injunções que a sua própria atividade jurisdicional não tem elementos para coibir" (6).

            Informa ainda aquele autor que, em resposta, o Professor Miguel Reale, ferrenho defensor da nova codificação, asseverou que, em rigor, não se tratava de "um ato expropriatório, mas antes uma forma de pagamento da justa indenização devida ao proprietário, impedindo que esse se locuplete com o fruto do trabalho alheio" (7).

            Jackson Rocha Guimarães fortalece a corrente do mestre Caio Mário, além de censurar a ambigüidade daquele autor quando noutra passagem afirmou: "… abre-se, nos domínios do direito, uma via nova de desapropriação, que não se deve considerar prerrogativa dos Poderes Executivo ou Legislativo" (8).

            Operando uma certa miscelânea entre os institutos da desapropriação e da usucapião, o Deputado Ricardo Fiuza, relator do projeto na Câmara dos Deputados, propugnou o que adiante se transcreve:

            "Os múltiplos casos de ‘desapropriação indireta’, que são casos típicos de ‘desapropriação pretoriana’, resultantes das decisões de nossos tribunais, estão aí para demonstrar que o ato expropriatório não é privilégio nem prerrogativa exclusiva do Executivo ou do Legislativo. Nada existe que torne ilegítimo que, por lei, em hipóteses especiais, o poder de desapropriar seja atribuído ao juiz, que resolverá em função das circunstâncias verificadas no processo, em função do bem comum. Sobretudo depois que a lei de usucapião especial veio dar relevo ao trabalho como elemento constitutivo da propriedade." (9)

            Para os processualistas Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, o mencionado dispositivo "cria a desapropriação judicial", o que definem como "o ato pelo qual o juiz, a requerimento dos que exercem a posse-trabalho, fixa na sentença a justa indenização que deve ser paga por eles ao proprietário, após o que valerá a sentença como título translativo da propriedade, com ingresso no registro de imóveis em nome dos possuidores, que serão os novos proprietários" (10).

            O Professor Miguel Reale considera ser "revolucionária" a novidade trazida pelos §§ 4º e 5º do Código de 2002, pois acredita que assim o magistrado deterá, em caráter inédito, competência para desapropriar. (11) Nessa mesma linha, Maria Helena Diniz afirma ser essa uma "hipótese em que se dá ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casos concretos" (12).

            Com a devida vênia, o entendimento dos doutrinadores supracitados parece ter sido fora de propósito. Uma mais detida reflexão conduzirá ao reconhecimento de que a desapropriação, por ser um instituto de Direito Administrativo, não pode ser transfigurada ao ponto de possibilitar a legitimação ativa de particulares na relação jurídica material subjacente.

            Pontifica Hely Lopes Meirelles que a desapropriação, como uma ato de intervenção do Estado na propriedade, "é a mais drástica das formas de manifestação do poder de império" (13), poder esse cuja iniciativa é naturalmente exclusiva do Estado. Ademais, é o procedimento expropriatório composto por uma fase declaratória e uma outra executória, que por seu turno pode ser administrativa, em caso de acordo, ou por vezes necessariamente judicial.

            Logo, absolutamente impertinente se coloca o comentário de que a usucapião ora estudada, por depender de uma declaração judicial, seria uma "desapropriação judicial", ou de que o magistrado deteria o poder de desapropriar. Notadamente porque a jurisdição que lhe é afeta apenas compreende o poder de dizer o direito pertinente ao caso concreto. O que ainda, por força do princípio da inércia jurisdicional, somente permite que as partes dêem início ao processo.

            Em rigor, guarda o instituto perfeita correspondência com a usucapião, entendida como o "modo de aquisição do domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei" (14). A propósito, impende notar que a usucapião tem "existência filiada aos efeitos que o tempo exerce na relação jurídica, acarretando a sua extinção (prescrição extintiva) ou a sua transformação numa relação de outra natureza (prescrição aquisitiva ou usucapião). A usucapião, segundo Ebert Chamoun, não é senão a transformação da posse em propriedade pelo decurso do tempo" (15).

            Cabe destacar que a usucapião empresta base jurídica a situações de fato, funcionando como um prêmio a quem atribui prestabilidade socioeconômica ao bem, assim como, de outro passo, consubstancia uma sanção ao proprietário inerte.

            Outrossim, há uma questão fundamental no que toca à natureza do instituto ora pesquisado, qual seja, a previsão de indenização do proprietário, que é elementar na desapropriação e tradicionalmente ausente na usucapião. Tal questão concorreu para o estabelecimento da indigitada confusão de conceitos sobre o tema.

            A razão dessa usucapião coletiva, em realidade, é a mesma que move tanto a desapropriação de imóveis rurais por interesse social para reforma agrária, prenunciada no art. 184 da Constituição Federal de 1988 e disciplinada pela Lei Complementar nº 76/1993, como a desapropriação para a implementação das metas traçadas nos incisos I e III do art. 2º da Lei nº 4.132/1962, que considera de interesse social: "I – o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;" e "III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola".

            De certa forma, assim, essa nova modalidade de usucapião coletiva acaba por ser um "atalho", um caminho mais curto em que o Estado-Administração se ausenta, para dar lugar a que a própria população persiga o mesmo resultado de específicas desapropriações, de tão elevado interesse social e econômico, assim em regiões rurais como em cidades.

            Daí se extrai que a precitada norma traz uma nova modalidade de usucapião, aqui intitulada de usucapião coletiva pro labore, diversa das já previstas na Constituição da República, no próprio Código e na legislação extravagante. Portanto, não se cuida da usucapião ordinária (CC/2002, art. 1.238) ou da extraordinária (CC/2002, art. 1.242), tampouco da usucapião constitucional rural (CF/1988, art. 191, e CC/2002, art. 1.239, que derrogaram a Lei nº 6.969/1981) ou da constitucional urbana (CF/1988, art. 183; CC/2002, art. 1.240; e Lei nº 10.257/2001, art. 9º), também intituladas de usucapião especial, pro labore ou pro misero, muito menos da usucapião indígena de que cogita do art. 33 da Lei nº 6.001/1973.

III. Usucapião coletiva urbana

            Importa atentar, por fundamental, para a aproximação dessa nova usucapião com a também recente usucapião coletiva urbana, comumente chamada de "usucapião favelada", disciplinada em pormenores no art. 10 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que instituiu o Estatuto da Cidade. Convém transcrever o inteiro teor da norma em referência:

            "Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

            § 1º. O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

            § 2º. A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

            § 3º. Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

            § 4º. O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.

            § 5º. As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes."

            É bastante provável que o novo Código e o Estatuto da Cidade não tenham sido cotejados durante os respectivos estudos e as tramitações parlamentares. Logo, apenas depois pôde ser notada a similitude de suas indicções no que toca à usucapião coletiva. Nada obstante, algumas particularidades destacam e justificam a diversidade desses comandos normativos.

            A usucapião de que cuida o Estatuto da Cidade apenas tem por objeto as áreas urbanas. Já a usucapião coletiva do Código tem ganas de abranger terrenos tanto urbanos quanto rurais. A primeira pressupõe que a área seja maior que duzentos e cinqüenta metros quadrados, enquanto a segunda usa o conceito vago de "extensa área". Quis o legislador delegar à doutrina e à jurisprudência, sobretudo, a tarefa de definir o significado de uma extensa área, o que logicamente deve resultar na definição de parâmetros diversos para os centros populosos e os sítios interioranos.

            Ademais, o art. 10 da Lei nº 10.257/2001 estabelece um número maior de requisitos: os posseiros devem formar uma população, na acepção de grupo de indivíduos que vivem no mesmo local; a comunidade deve ser de baixa renda; o lugar deve servir à moradia dos posseiros; o conhecimento dos lindes ocupados por cada indivíduo ou por sua família deve ser impossível ou bastante dificultoso; e, finalmente, os ocupantes não podem ser proprietários de qualquer outro imóvel urbano ou rural.

            Em contrapartida, o § 4º do art. 1.238 do Código dispõe que os pretendentes haverão de ser um "considerável número de pessoas", expressão essa tão imprecisa quanto à acima referida "extensa área". A norma ainda assume um maior grau de vaguidão na medida em que se busca raciocinar o que seja um considerável número de pessoas numa extensa área. Como apontar, pois, onde termina a discricionariedade e começa a arbitrariedade do magistrado que decidir um impasse em um caso concreto sobre o tema?

            Para o legislador de 2002 não interessa a classe social ou a capacidade econômica das pessoas, se paupérrimas ou afortunadas, se carentes de um teto ou proprietárias de outros domínios. Basta que as numerosas pessoas tenham, em conjunto ou separadamente, levantado obras e prestado serviços "de interesse social e econômico relevante", cujo delineamento consistirá em mais um teste de bom senso para o julgador. Impende ainda salientar – nada obstante pareça evidente – que o direito de usucapir apenas deverá ser reconhecido acaso satisfeitos forem dois pressupostos adicionais: se o aludido interesse for atual, ou seja, se estiverem em plena operacionalidade as obras e os serviços realizados, e se o respectivo complexo socioeconômico não puder ser deslocado sem grave sacrifício desse mesmo interesse.

            De resto, foi lacônico o Código Civil sobre outras peculiaridades dessa usucapião coletiva pro labore, a qual reclama maiores esclarecimentos que as modalidades tradicionais do instituto. A respeito, interessa considerar a sua íntima ligação com a usucapião coletiva urbana, também inspirada em emblemas do mais alto grau de socialidade. A propósito, Sílvio de Salvo Venosa nota que essa forma de aquisição solidária da propriedade "apresenta-se sob a mesma filosofia e em paralelo ao art. 1.288, § 4º, do Novo Código Civil (…). Em ambas as situações encontramos a busca pelo sentido social da propriedade, sua utilização coletiva" (16).

            A propósito, assevera Vicente Ráo que "para que a analogia seja perfeita e certa a sua solução, é preciso que a semelhança entre o caso previsto e o não previsto pela lei consista no fato de possuírem, ambos, como termo comum de referência, a razão suficiente da própria disposição: ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio. A ratio legis deste brocardo mais não indica senão a razão suficiente da lei" (17).

            Por conseguinte, é mister invocar a aplicação à usucapião coletiva do novo Código, por analogia, da disciplina relativa à impossibilidade – ou mesmo à grande dificuldade – de definição dos limites das numerosas posses e à conseqüente formação de um condomínio indiviso especial, a configurar a unidade do referido complexo socioeconômico, conforme prevêem o caput e os §§ 3º a 5º do art. 10 do Estatuto da Cidade.

            Impende reconhecer, nada obstante, que esse condomínio necessário será decerto alvo de incompreensões e de complicações práticas, haja vista a própria desordem inerente ao crescimento e à conformação dos aglomerados populares.

            Justamente por isso se prescinde da identificação da extensão das posses individuais, porquanto, por expressa ordem legal, cada ocupante será dotado de igual fração ideal. Assim, vale clarificar, apenas através de um acordo formal poderão os condôminos estabelecer cotas discrepantes, consoante a amplitude das posses ou dos esforços dedicados em prol do interesse econômico e social judicialmente reconhecido.

            Consectário do estabelecimento dessa propriedade será a repartição entre os condôminos, conforme consintam em assembléia, dos ônus fiscais incidentes sobre o imóvel. O que torna, convém reparar, quase que impraticável a execução forçada dos respectivos créditos pela Fazenda Pública competente.

            Independentemente de tais considerações, aplicam-se à usucapião coletiva as causas que obstam, suspendem e interrompem a prescrição, ex vi do preceito geral inscrito no art. 1.243 do Código de 2002.

            O diferencial da usucapião coletiva codificada reside no elemento trabalho como meio para a proporção de benefícios econômicos e sociais, bem como no direito de indenização do expropriado. Direito esse impulsionado pela contraposta necessidade de preservação do direito de propriedade, dado os largos horizontes de aplicabilidade do novo instituto.

            Sob outra perspectiva, causa estranheza que a prescrição aquisitiva, concebida como resultado da inércia do titular do direito de propriedade conjugada com o decurso do tempo, nesse específico caso faça nascer o direito à recomposição em pecúnia da perda sofrida. Assim, deve a previsão desse direito, por força do caráter como que punitivo da privação do domínio por usucapião, ser interpretada restritamente, de modo que a indenização não haverá de ser necessariamente prévia. A justiça do quantum correspondente, outrossim, exigirá o abatimento do valor agregado ao imóvel em razão do trabalho dos ocupantes.

IV. Constitucionalidade da usucapião coletiva

            Superado o impasse concernente à conceituação do instituto, cumpre examinar se dita usucapião coletiva pro labore – em suas origens severamente objurgada pelo mestre Caio Mário – tem alicerce jurídico, sobretudo principiológico, em nosso sistema constitucional.

            A quaestio ora em liça foi estudada na Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ocorrida nos dias 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação do Excelentíssimo Senhor Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça. O que resultou na edição do Enunciado de nº 82: "É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil".

            Também é essa a posição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem "a norma é constitucional porque resolve a aparente antinomia entre o direito de o proprietário reinvidicar a coisa de quem injustamente a possua e a função social da propriedade, com a manutenção do bem com aquele que lhe deu função social com a posse-trabalho" (18).

            Quanto à usucapião coletiva urbana, após a tachar de "revolucionária", Sérgio Ferraz paradoxalmente enfatiza a constitucionalidade do instituto:

            "Se há propriedade condominial, coletiva pois, não há razão para se inadmitir a aquisição coletiva de propriedade, inclusive pela via do usucapião, inexistindo vedação a isso no inciso XXII do art. 5º da Constituição.

            "Doutra parte, a superação da deterioração urbana e das patologias favelares, com lastro na principiologia constitucional (particularmente, mas não só: função social da propriedade, art. 170, II e III; defesa do meio ambiente, idem, inciso VI; redução das desigualdades sociais, idem, inciso VII; garantia do bem-estar dos habitantes da cidade, art. 182, caput; harmonia social, "Preâmbulo"; dignidade da pessoa humana, art. 1º, III; justiça e solidariedade sociais, art. 3º, I; erradicação da pobreza e da marginalização, art. 3º, III), confere inequívoco lastro jurídico à inovação do usucapião coletivo, na busca de soluções para a questão da submoradia.

            "Dessa sorte, e em definitivo, parece-nos insensato e infundado divisar ‘suspeita de inconstitucionalidade’ no usucapião coletivo." (19)

            Opostamente, Carlos Alberto Dabus Maluf repele ambos os comandos normativos, os quais acoima de ofensores ao direito de propriedade insculpido na Magna Carta. Vale conferir as suas razões:

            "As regras contidas nos §§ 4º e 5º abalam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade, mediante o arbitramento judicial de uma indenização, nem sempre justa e resolvida a tempo, impondo dano ao proprietário que pagou os impostos que incidiam sobre a gleba. As regras esculpidas nesses parágrafos são agravadas pela letra do art. 10 e seus parágrafos da Lei nº 10.257, de 10.07.2001, conhecida como o Estatuto da Cidade, uma vez que nela é permitido que essa usucapião especial de imóvel urbano seja exercida em área maior de duzentos e cinqüenta metros, considerando área maior do que essa ‘extensa área’. Prevê também que a população que a ocupa forme, mediante o requerimento da usucapião da usucapião, um condomínio tradicional; e mais, não dá ao proprietário o direito à indenização. Tal forma de usucapião aniquila o direito de propriedade previsto na Lei Maior, configurando um verdadeiro confisco, pois, como já dissemos, incentiva a invasão de terras urbanas, subtrai a propriedade de seu titular, sem ter ele direito a qualquer indenização." (20)

            Por fim, apresenta o autor uma solução para o suposto estorvo: "Essas regras, a do novo Código Civil e a do art. 10 e seus parágrafos da Lei nº 10.527/2001, devem ser modificadas por um projeto de lei específico, evitando-se, assim, que o Judiciário seja obrigado, por intermédio de inúmeras ações que haverão de surgir, a declará-las inconstitucionais" (21).

            Todavia, uma mais atenta ponderação sobre a polêmica conduz, primeiramente, à ilação de que o termo revolucionário é inidôneo para qualificar a usucapião coletiva do novo Código, sobretudo porque não poderia coerentemente o ser sem farpear a ordem constitucional estabelecida. Preferíveis são, pois, as palavras de Silvio Rodrigues, que com certa cautela afirmou ser a figura "realmente audaz e inovadora" (22).

            Noutro passo, diante da incomum elasticidade dos elementos normativos veiculados nos §§ 4º e 5º do notável art. 1.228, é plausível o prognóstico de que o Supremo Tribunal Federal venha a optar por uma interpretação conforme a Constituição, em sede de controle abstrato ou difuso de tais comandos.

            A mencionada técnica interpretativa, consoante a sedimentada jurisprudência do Pretório Excelso, "só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco". (23) Desta mercê, deverão imperar os esforços em extrair a acepção normativa harmônica com a Lex Mater, ainda que necessária seja a redução do alcance da expressão literal dos dispositivos em debate.

            Em rigor, as teses sobre a inconstitucionalidade das normas sobre a usucapião coletiva urbana e a usucapião coletiva pro labore têm uma essência acentuadamente egoística. Sob uma óptica mais transigente, em realidade, é possível inferir a fidelidade de seus comandos aos princípios magnos, o que restou patenteado pela autorizada doutrina acima referida.

            Convém advertir, nada obstante, que como muitos outros direitos subjetivos, a usucapião coletiva está sujeita a ser um veículo de abusos, o que deve ser oportuna e energicamente reprimido pelos poderes constituídos competentes. Sobre o perigo de institucionalização de atos de vandalismo premeditado, alerta Sílvio de Salvo Venosa: "Em que pese a boa intenção do legislador, teremos que lidar com fraudes a esses dispositivos e com os costumeiros atravessadores que se valem da massa coletiva para obter vantagens econômicas, além de dividendos políticos" (24).

            Sobredita ameaça, no que tange à usucapião coletiva pro labore, emerge de modo mais denso nos domínios campestres. Se os programas nacionais de reforma agrária traspassam já incontáveis intempéries (conflitos fundiários, invasões de terras produtivas, carência de infra-estrutura, cultivo ilegal de plantas psicotrópicas nas áreas expropriadas, etc.), o manejo livre do novo instituto arrisca tumultuar esse quadro.

            Com efeito, a possível difusão de pretensões coletivas de usucapir dessa maneira abrirá alas, a seu tempo, a conflitos internos por posses, já que não serão as terras loteadas, mas compartilhadas em regime condominial. Esse problema induvidosamente reclama, além da escrupulosa aplicação dos comandos normativos ordinários, a busca de uma política agrária responsável, que concentre redobrada atenção nos planos de desapropriação de imóveis rurais que não sejam socialmente funcionais. Afinal, não se pode olvidar, a má distribuição de renda é um problema mais social que jurídico propriamente dito.

            De tão imprecisos que são os termos do § 4º do art. 1.228 do Código de 2002, os vindouros problemas sobre o tema em regra quedar-se-ão adstritos à apreciação dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça. Isso por força do óbice enunciado na Súmula nº 279 do Supremo Tribunal Federal e na Súmula nº 7 do Superior Tribunal de Justiça, que de todo impedem a reapreciação de matéria de fato nas instâncias excepcionais dos recursos extraordinário e especial.

            Nada obstante, é crédula a espera de que a desejada interpretação conforme à Constituição do mencionado dispositivo não desvaneça no jogo de palavras. Que sirva, dessarte, de bom estalão para a magistratura nacional.

V. Argüição em juízo

            Uma derradeira preocupação repousa sobre as fórmulas processuais aplicáveis à usucapião coletiva pro labore. A lei não é clara quanto à imprescindibilidade de propositura da ação de usucapião, de acordo com o rito estabelecido nos arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil.

            Decerto movidos pela assentada possibilidade de argüição da usucapião em defesa, quiseram os mentores do projeto que o juiz fixasse a indenização devida e determinasse a transcrição do domínio no bojo da ação reivindicatória. Assim propugnou um de seus relatores: "Para atender a esse conflito de interesses sociais, o Projeto prevê que o juiz não ordene a restituição do imóvel ao reivindicante, que teve êxito na demanda, mas que lhe seja pago o justo preço" (25).

            Nessa esteira, Sílvio de Salvo Venosa procura demarcar pontos de desencontro entre a usucapião coletiva urbana e a usucapião coletiva pro labore no que toca aos modos de argüição em juízo:

            "No primeiro caso de usucapião coletivo, os habitantes da área adiantam-se e pedem a declaração de propriedade. No segundo caso, eles são demandados em ação reivindicatória pelo proprietário e apresentam a posse e demais requisitos como matéria de defesa ou em reconvenção, nesta pedindo o domínio da área. Na situação enfocada do Código Civil, porém, a aquisição aproxima-se da desapropriação, pois de acordo com o art. 1.228, § 5º, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, a sentença valerá como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. Nessa situação, o Código Civil menciona que a ocupação deve ser de boa-fé, por mais de cinco anos. Haverá, sem dúvida, um procedimento custoso na execução, pois cada possuidor deverá pagar o preço referente a sua fração ideal do terreno, ou outro critério de divisão que se estabelecer na sentença." (26)

            Em continuidade, o mencionado autor cuida de suprimir, por completo, a possibilidade de a pretensão subjacente ao referido instituto ser processada conforme o rito próprio da usucapião: "Destarte, se o proprietário não desejar ter contra si uma ação de usucapião, deverá reivindicar a área para lograr obter indenização" (27).

            Essa proposição, todavia, não está bem-acabada. A esdrúxula idéia de transfigurar-se a ação reivindicatória em uma dita "desapropriação judicial", para assim condicionar o direito a uma justa indenização à iniciativa do titular do domínio, não condiz com o mínimo senso de razoabilidade. Jamais poderia o magistrado fazê-lo de ofício, por força do já aludido princípio da inércia jurisdicional. A atecnia do legislador em situar o instituto em seu devido lugar, tal como uma nova modalidade de usucapião, não é apta a produzir reflexos também desastrosos no processo.

            Logo, deve a usucapião coletiva pro labore, assim como determina o Estatuto da Cidade no que tange à usucapião coletiva urbana, ser normalmente declarada na sentença da correlata ação de que tratam os arts. 941 a 945 da Lei Adjetiva. Excepcionalmente, e porque assim o vêm admitindo a doutrina e a jurisprudência, a pretensão de usucapir poderá ser deduzida em reconvenção ou em ação declaratória incidental propostas no âmago da ação reivindicatória (28), apesar da intuitiva incompatibilidade de procedimentos. Frise-se, por essencial, que nessa última sede deverá o pedido contraposto ser expresso, sob pena de ofensa ao elementar princípio da ação.

            De uma ou de outra forma, a indenização é devida ao proprietário, pois foi o que dispôs o legislador, sem fazer alusão a distinção alguma: "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus". De outra parte, é axiomático que aqui, opostamente ao que décadas atrás prelecionava o civilista Caio Mário, caberá aos prescribentes o dever de indenizar. Absolutamente nenhuma ingerência ou participação tem a Administração Pública nessa relação jurídica.

            Assim, há de ser cauteloso o magistrado na condução da execução forçada do cumprimento da obrigação de indenizar, dado que a resistência ilegítima de "um considerável número de pessoas" – naturalmente sem a liquidez e a capacidade econômica do Estado – não deverá dar azo a que seja elidida a imposição legal de que seja a indenização essencialmente justa.

            Em juízo, deverão os posseiros ser representados por uma associação regularmente constituída, tal como racionalmente o exige o inciso III do art. 12 da Lei nº 10.257/2001, ou ainda pelo Ministério Público, na defesa de um direito coletivo, quiçá inclusive difuso, conforme a relevância do interesse econômico e social em debate. O Parquet, aliás, deve necessariamente intervir em todos os termos do feito na condição de custos legis, por aplicação analógica do § 1º do referido artigo ou mesmo diante da presença do interesse público a que se refere o inciso III do art. 82 do Código de Processo Civil.

VI. Conclusões

            A partir das ponderações expendidas, são estas, em suma, as conclusões elementares do presente estudo:

            a) a novidade contida nos §§ 4º e 5º do Código Civil de 2002 consubstancia uma excepcional modalidade de usucapião, intitulada de usucapião coletiva pro labore;

            b) essa usucapião é movida pela mesma ratio legis de determinadas desapropriações previstas na legislação específica, em benefício de relevantes interesses econômicos e sociais, embora o Estado, nesse último caso, não participe da relação jurídica material subjacente;

            c) diante da imprecisão das expressões e das lacunas existentes na disciplina do novel instituto codificado, invoca-se a aplicação analógica das regras dispostas no Estatuto da Cidade para a usucapião coletiva urbana, no que evidentemente não houver incompatibilidade;

            d) a usucapião coletiva pro labore é constitucional, assim entendida se devidamente reduzido for o alcance demasiado genérico de seus elementos normativos, de modo que se lhe dê uma interpretação conforme a Magna Carta, em respeito ao direito de propriedade insculpido no seu art. 5º, inciso XXII;

            e) a usucapião coletiva pro labore pode ser regularmente argüida em juízo por meio do exercício da ação de rito especial de que tratam os arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil ou, ainda, em sede de reconvenção ou de ação declaratória incidental propostas em ação reivindicatória; e

            f) o titular do domínio sempre terá direito à indenização legalmente prevista, que haverá de ser justa, embora não necessariamente prévia.

            Por fim, é forçoso reconhecer, a exemplo do que fez o Deputado Ricardo Fiúza, último relator do novo Diploma: "É claro que há imperfeições, falhas, omissões. Mas essas imperfeições são justamente o apanágio de toda a obra humana e daquele princípio que é um dos mais verdadeiros da sabedoria popular: ‘É melhor ter o bom do que esperar o ótimo’, porque raramente se tem o ótimo" (29).

NOTAS

            01. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002, p. 22-23.

            02. Apud in NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 419.

            03. Novo Código Civil Comentado. Coordenado por FIUZA, Ricardo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.097.

            04. Ao oposto do que fez o legislador de 1917, na nova codificação a palavra usucapião foi apropriadamente colocada no gênero feminino. Sobre a etimologia, a grafia e o gênero da palavra, bem como sobre o dissenso existente em torno do tema, conferir RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 163-179.

            05. No Código Civil de 2002, tratam da usucapião os arts. 1.238 a 1.244, no capítulo afeto à aquisição da propriedade imóvel. Já a desapropriação recebeu referência expressa no inciso V do art. 1.275 do Código Civil. Conforme mencionado, o instituto sob enfoque foi ineditamente disposto no art. 1.228 do novel diploma.

            06. O novo Código Civil e o Direito das Coisas. Revista dos Tribunais nº 798 – abril de 2002, p. 56.

            07. Idem, ibidem.

            08. Idem, p. 57.

            09. Citação de Carlos Alberto Dabus Maluf in Novo Código Civil Comentado. Coordenado por FIUZA, Ricardo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.097.

            10. Obra citada, p. 419.

            11. Prefácio do Novo Código Civil Brasileiro, 2. ed. São Paulo: RT, p. XV.

            12. Curso de Direito Civil Brasileiro, 18. ed. São Paulo: Saraiva, v. 4, p. 178.

            13. Direito Administrativo Brasileiro, 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 569.

            14. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 5, p. 105.

            15. RIBEIRO, Benedito Silvério. Obra citada, p. 182.

            16. Direito civil: direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 205.

            17. O direito e a vida dos direitos, 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 505.

            18. Obra citada, p. 419.

            19. Estatuto da Cidade – Comentários à Lei Federal nº 10.257/2001. Coordenado por DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 144.

            20. Obra citada, p. 1.098.

            21. Idem, ibidem.

            22. Direito Civil, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 5, p. 107.

23. Pleno. Medida liminar na ADI nº 1.344-1/ES. Relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Moreira Alves. DJU de 19.04.1996, p. 12.212.

            24. Obra citada, p. 206.

            25. Novo Código Civil Comentado. Coordenado por FIUZA, Ricardo. São Paulo: Saraiva, 2.002, p. 1.097.

            26. Obra citada, p. 205-206.

            27. Idem, p. 206.

            28. Ver, por todos, NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, obra citada, p. 799, e aresto da Quarta Turma do STJ, Resp nº 45.374/MG, Relator o Excelentíssimo Senhor Ministro Barros Monteiro, DJU de 23.09.1996, p. 35.111. Nada obstante, Theotônio Negrão noticia a existência de julgados no sentido de que a "usucapião, na reivindicatória, é matéria de contestação, não de reconvenção" (Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 30. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 372), o que se baseia na absurda premissa de possuir a referida ação real o caráter dúplice.

            29. Obra citada, p. XXXI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade – Comentários à Lei Federal nº 10.257/2001, São Paulo: Malheiros, 2002.

            DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 18. ed. São Paulo: Saraiva, v. 4.

            FIUZA, Ricardo (coord.). Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.

            GUIMARÃES, Jackson Rocha. O novo Código Civil e o Direito das Coisas. Revista dos Tribunais nº 798 – abril de 2002.

            MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

            NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 5. ed. São Paulo: RT, 1999.

            RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos, 5. ed. São Paulo: RT, 1999.

            RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1.

            RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002,

            RODRIGES, Silvio. Direito Civil, 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 5.

            VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

 


Referência  Biográfica

Marina Câmara Albuquerque:   Bacharela em Direito da Universidade Federal do Ceará e Assessora Jurídica da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Ceará.

marinacam@bol.com.br

Valores éticos no exercício da advocacia

0

* Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas

Sumário: 1. Introdução; 2.  A Logosofia Como Ciência Auxiliar do Direito; 3.  O Exercício da Profissão e a Atuação das Deficiências Psicológicas; 4. Convivência humana;  5.  Valores éticos na convivência;  6. Conclusão.

 


INTRODUÇÃO

                           O saudoso professor JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO em seu livro PRÁTICA FORENSE[1], falando da atividade diária do advogado, lembrou o emérito EDUARDO COUTURE, numa das mais belas páginas de deontologia jurídica, Os Mandamentos do Advogado, digna de figurar entre os livros clássicos sobre o assunto, como O Advogado, de Henri Robert, Das Boas Relações entre os Juízes e os Advogados, de Calamandrei, El Abogado, de Ossorio, a Oração dos Moços, de Rui Barbosa, e, mais recente, a obra de Carvalho Neto, Advogados – Como Aprendemos, Como Sofremos, Como Vivemos, livros que, juntamente com o Código de Ética Profissional, aprovado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados, em 25 de junho de 1954, repassados de sabedoria, deveria figurar obrigatoriamente à cabeceira de todo lidador da advocacia. Ouçam-se as palavras de COUTURE:  

                           "Aquele que deseje saber em que consiste o trabalho do advogado, há que explicar o seguinte: de cada 100 assuntos que passam pelo escritório de um advogado, 50 não são judiciais. Trata-se de dar conselhos, orientação e idéias, em matéria de negócios, assuntos de família, prevenção de futuros litígios etc. Em todos esses casos, a ciência cede lugar à prudência. Dos dois extremos do dístico clássico que define o advogado, o primeiro predomina sobre o segundo, e o "homem bom" se sobrepõe ao "sabedor do direito".  

                           Dos outros 50, 30 são de rotina. Trata-se de gestões, tramitações, obtenção de documentos, questões de jurisdição graciosa, defesas sem dificuldades ou causas julgadas sem contestação da parte contrária. O trabalho do advogado transforma aqui o seu gabinete em escritório de despachante. Seu lema poderia ser como o daquelas companhias norte-americanas, que produzem artigos de conforto: "more and better service for more people".  

                           Dos 20 restantes, 15 representam alguma dificuldade e exigem um trabalho mais intenso. Trata-se, porém, dessa classe de dificuldades que a vida nos apresenta a cada passo e que a concentração e o empenho de um homem diligente estão acostumados a levar de vencida. 

                           Nos restantes cinco reside a essência da advocacia. São os grandes casos profissionais. Grandes, não certamente, pelo seu conteúdo econômico, senão pela magnitude do esforço físico e intelectual que o seu trato exige. Causas aparentemente perdidas, através de cujas fissuras filtra um raio de luz que serve de guia ao advogado para abrir a sua brecha; situações graves, que é preciso sustentar por meses e meses, e que exigem um sistema nervoso a toda prova, sagacidade, aprumo, energia, visão longínqua, autoridade moral, fé absoluta na vitória."  

                            A vida profissional é rica em oportunidades de convivência. Por dever de ofício, somos levados a  conviver com as mais variadas pessoas, serventuários, colegas advogados, juízes, secretários, etc.  

                           E essa convivência para ser harmônica e saudável exige de nós uma conduta ética elevada.

                           Esse tema é atualíssimo, basta dizer que a 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB, ocupa-se do assunto e anuncia " um novo manual de ética do advogado". Segundo o veiculado pelo OAB NACIONAL, Órgão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, de outubro-98, sob o título "Vem aí o novo manual de ética", "depois de preparar a estrutura da OAB para a apuração do processo ético-disciplinar, o órgão passará a discutir o novo manual com os conselheiros, presidentes de Seccionais, membros dos tribunais de ética e demais integrantes da Ordem. "Essa Segunda fase terá um caráter didático-pedagógico, define Carlos Tork. Segundo ele, mais do que propor alterações no processo interno de julgamento da conduta dos advogados, o importante é despertar novamente o debate na classe sobre a importância dos procedimentos éticos no exercício da profissão."  

                           "Precisamos da participação de todos para dar ênfase nessa discussão", defende Tork.  "Somos uma referência para todo o País e por isso não podemos descuidar nenhum pouquinho dessa área", acrescenta. "Hoje a questão ética é a maior preocupação dos advogados brasileiros", conclui." [2]        

                            A boa educação recebida no lar é básica e é útil a essa convivência.

 

                           Entretanto, devemos estar sempre atentos, pois ao atuarmos podemos eventualmente agradar alguns e desagradar outros. Entrar em atritos, pois nessa convivência as falhas caracterológicas se manifestam dificultando o bom relacionamento.

                           Algumas dessas deficiências, pela natureza da atividade forense, encontram campo propício para atuar em nossa mente e assim são as responsáveis por atuações, por vezes desastrosas e desagradáveis, como veremos, no correr desta exposição.  

                           Para nosso alívio, nem só de deficiências é formada a nossa psicologia, há nela valores e pensamentos construtivos que são eficientes colaboradores nessa maravilhosa e difícil arte de conviver.  

                           Mas esses valores, quando não se manifestam espontaneamente em nossas atuações diárias, podem ser criados e cultivados.  

                           O exercício da observação quando a utilizamos para o nosso aperfeiçoamento, nos permite burilar a própria psicologia, quando nos dispomos a fazer um bom uso do que é fruto dessa observação. Ao observar o que de ruim eu vejo no outro e ao invés de criticar a conduta alheia, para menosprezar, eu volto para dentro de mim e me pergunto se eu agiria daquela forma, o resultado é outro, porque nesse instante, nessa análise da conduta do semelhante eu me dou conta de que todos nós seres humanos podemos a cada dia melhorar o nosso comportamento, tornando-o mais agradável e tolerável.  

                             Todas as profissões têm um Código de Ética imprescindível ao exercício da atividade profissional, porque, em todas elas, estamos lidando com o nossos semelhantes, estamos CONVIVENDO.

 

                             O trato cordial é norma iniludível. O respeito não deve faltar nesse relacionamento, nesse CONVIVER.

                                   

                             O citado professor JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO  ensina que:

                             "Dentre as normas do Código de Ética, que estão a reclamar exame e comentário adequado que pudessem servir de esclarecimento e repertório de deontologia para os profissionais, inclusive com a coletânea e a divulgação de decisões do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, as que disciplinam as relações pessoais com o cliente e as relações em Juízo estão a merecer especial atenção.

                             Não se catalogaram jamais, e talvez jamais se apresentem exaustivamente enumerados os cuidados a respeito, que vão desde a necessidade de apreender a personalidade do cliente e do juiz, para saber como se conduzir diante um ou outro, seus hábitos, suas virtudes e deficiências, até inúmeros aspectos a considerar no capítulo cada dia mais complexo e difícil das comunicações humanas.

                              Sem embargo, um ponto parece certo, e dele bem possivelmente decorrerão, naturalmente, consequências que irão repercutir em tudo o mais: hão de existir, à custa de quaisquer esforços e sacrifícios, entre o advogado e o cliente, assim como entre o advogado e o juiz, a compreensão e o respeito, mútuos."[3]                                         

A LOGOSOFIA COMO CIÊNCIA AUXILIAR DO DIREITO

                            Nesta exposição vou me valer de uma das ciências auxiliares do Direito.                                

                               Segundo o ilustre Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, Dr. JOSÉ ANTÔNIO ANTONINI, em memorável aula inaugural realizada na "Faculdade de Direito do Sul de Minas", em Pouso Alegre, "se o Direito tem como ciências auxiliares a Medicina, a Psicologia, a Psiquiatria, a Cibernética, a Informática, etc, agora é chegada a vez de passar a contar com mais uma: a LOGOSOFIA".

                               "Essa nova geração de conhecimentos tem por campo experimental região pouco conhecida – acrescenta o festejado Professor ANTONINI -, mal transitada, senão totalmente desconhecida: o próprio mundo interno de cada vida humana. Esse mundo onde cada um vive e convive consigo mesmo protegido, à discrição, da incursão alheia. Ninguém penetra nesse mundo sem permissão de seu titular e ainda quando permitido, não além das partes que autoriza o possuidor desse domínio."

                                "Para a exploração, estudo, investigação e conhecimento desse mundo interno é que se dirige essa nova linha de conhecimento, mediante a utilização de um método e uma técnica que lhe são próprias."

                                "Inobstante o vertiginoso avanço das ciências ditas exatas e humanas, não se conseguiu até o presente encontrar ou forjar a chave do problema humano e oferecer uma explicação satisfatória sobre o nosso mundo interior."

                                 "O investigador mede a trajetória dos astros e desconhece a de sua própria vida; segue as modificações do átomo e descuida as de seu pensamento; estuda e analisa tudo, menos o que diz respeito ao próprio  conhecimento da  mente, que é a que lhe permite  discernir e pensar, enquanto se capacita para conhecer a origem e evolução de seu próprio pensamento; lê e comenta mil biografias e treme pensando como terminará a sua; descreve maravilhas sobre a organização das formigas e das abelhas, e quando é instado à organização de seus valores pessoais, vacila ante cem conselhos antagônicos.

                                   Assim, o estudioso, o universitário, ou simplesmente o homem que cuida de sua instrução, encontra-se frente a livros que tratam sobre a essência da história, da filosofia das matemáticas ou a evolução da mitologia, mas nada de certo pode saber a respeito da essência de seu próprio ser, a filosofia de sua condição humana ou a evolução de seu caráter, não obstante constituir tudo isso a primeira e última realidade de sua existência." (Biognose-74).[4]

                                A LOGOSOFIA, no dizer de seu autor, o humanista CARLOS BERNARDO GONZÁLEZ PECOTCHE:

                                "Abarca todos os conhecimentos humanos e transcende para conhecimentos maiores."

                                 Configurando-se em ciência e cultura ao mesmo tempo, a Logosofia ultrapassa a essa esfera comum e, destina-se "a nutrir o espírito das gerações presentes e futuras com uma nova força energética – por excelência mental – necessária e imprescindível ao desenvolvimento das aptidões humanas".[5]                             

                                    Logo, a fonte é inesgotável e oferece generosamente uma gama infinita de elementos úteis ao aperfeiçoamento dos demais ramos do saber existente.

                                    O conhecimento logosófico "encara todos os pontos de estudo que possam interessar ao homem, ajudando-o a cultivar seu espírito com miras a uma superação."

                                    Entendemos que a nova cultura, preconizada pela Logosofia, contém as bases sólidas em que se haverão de fundamentar as normas jurídicas, pois, sendo o Direito uma ciência social, por excelência, está sofrendo, também, as consequências da inevitável decadência da atual cultura vigente.

O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO E A ATUAÇÃO DAS DEFICIÊNCIAS PSICOLÓGICAS

                                    Alguma deficiências psicológicas comprometem o bom desempenho da atividade profissional do advogado. Enunciarei algumas:

A IMPULSIVIDADE

                                 É um pensamento impetuoso que provoca a reação imediata da mente ante qualquer incitação ou motivo que surja excitando. Em todos os casos se manifesta como ato irreflexivo do indivíduo.

                                   Essa falha psicológica altera o ânimo e principalmente a paz interior.

                                   O impulso irrefletido leva, às vezes, a expressar o que se sente ou se pensa em relação a pessoas, assuntos ou coisas, apesar do propósito que se tinha de mantê-lo em reserva. Nesse momento surge outra deficiência, a indiscrição. Claro, as dificiências não atuam sozinhas, atuam em bando, daí a dificuldade em combatê-las. A antideficiência, o antídoto aconselhável, é usar a CONTENÇÃO, conter o impulso. Significa nada menos que o domínio de reação, sempre arbitrária, com efeito deprimente sobre o ânimo.                                  

A SUSCETIBILIDADE  

                                    "O suscetível é uma pessoa predisposta a ver no próximo uma segunda intenção, o que dá lugar a que se melindre ou se ofenda com extrema facilidade."

                                    Para contrapor a essa falha, nada melhor que a EQUANIMIDADE, ou seja, "o sentido da justiça e ao mesmo tempo, a medida exata com que se ajuízam os valores opostos. Ela mantém o homem protegido das atitudes extemporâneas de suscetibilidade, que surgem impulsionadas pelas ligeirezas de juízo."

                                    A AFABILIDADE é o mel que, derramado sobre o vinagre psicológico, melhora seu sabor.

A ASPEREZA

                                    Essa falha temperamental contrai a sensibilidade, sufocando os sentimentos.

                                    "A aspereza torna o caráter acre e sombrio; impele ao isolamento. O ser foge do contato com seus semelhantes e este, do seu, porque a ninguém agrada uma modalidade áspera e pouco amistosa. Seja no lar, junto aos seus, seja fora dele, sua atitude, oposta a toda demonstração jovial ou afetuosa, provoca rechaço, pois sua presença se recebe sempre com escassa mostra de satisfação."

                                     "Não aguenta seu gênio", costuma-se dizer para desculpá-lo. Perguntamos: não tem inteligência e vontade para lutar contra essa insociável deficiência?" [6]

                                      O remédio nesse caso será, também,  cultivar a AFABILIDADE.  

                                    A LOGOSOFIA faz uma grande descoberta ao dar a conhecer o conceito transcendente de PENSAMENTO, definindo-o como os agentes causais do comportamento humano. Eles são a causa de nossos atos e ações. Mudando-se os pensamentos, muda-se a vida.

                                    E as deficiências psicológicas se constituem falhas caracterológicas e são originárias do enquistamento de pensamentos na mente. A ciência logosófica define a deficiência como sendo "o pensamento dominante que, por sua vez, que enquistado na mente, exerce forte pressão sobre a vontade do indivíduo, induzindo-o a satisfazer seu insaciável apetite psíquico."

                                     Em sua aula o festejado professor JOSÉ ANTÔNIO ANTONINI, ensina que: "é tal a influência e gestão dos pensamentos na vida do homem que este chega a ser apelidado pelo nome do pensamento de que é portador. Se de natureza construtiva e cultivada, são gênios, sensatos, ilustres, mestres; se são vítimas de pensamentos dominantes ou obsessivos, como o são os portadores de deficiências psicológicas, pelo nome do pensamento-deficiência que o caracteriza: é chamado de vaidoso, rancoroso, egoista, teimoso, intolerante, etc., havendo os que são tomados por outros de mais baixo nível, passando a ser chamados de ladrão, fraudador, falsário, larápio."

                                    Observou o referido professor ANTONINI que: "estudando e experimentando os conhecimentos logosóficos advertiu que GONZÁLEZ PECOTCHE estaria para esse benefício humanitário no campo da vida bio-psico-espiritual, assim como PASTEUR no campo da biologia. Ambos haviam feito descobertas fundamentais: uma incursionando na realidade física do corpo humano, outra na realidade anímica do espírito humano. Os elementos in natura, em um e outro campo existiam, mas, não haviam sido descobertos, nem se havia, por isso mesmo, desenvolvido técnicas para tratar com eles. 

                                      Essa diferenciação entre a mente e o pensamento e entre tais entidades existentes in natura e a vontade, etc, permite uma nova observação da realidade nos cumprimentos das apreciações e decisões emanadas no campo do Direito." [7]                                                                 

CONVIVÊNCIA HUMANA

                                      O estudo de meu organismo mental e psicológico, me capacita para penetrar nas causas de minhas próprias limitações, descobrir a origem de meus erros e deficiências, como também conhecer meus próprios valores e condições, a fim de aumentá-los progressivamente à medida que vou conseguindo os conhecimentos que me permitam encarar a vida com acerto e conquistar uma efetiva superação em todas as ordens da vida humana. Comprovo, também, que as relações comigo alcançam sua mais ampla efetividade quando consigo manter a harmonia entre o pensar, o sentir e o atuar: quando adquirindo plena consciência de minha responsabilidade, esta se traduz espontaneamente na conduta que observo comigo e com os demais.

                                        A convivência não é a finalidade, mas uma das conseqüências naturais do auto-aperfeiçoamento.                              

                                          Neste ponto cabe o relato de algumas vivências de nosso dia-a-dia, tanto no Fórum como em outras Repartições Públicas. Ficamos esperando no balcão para sermos atendidos e o serventuário vem tranquilamente atendendo aos que se encontram em nossa frente, depois de algum tempo de espera, está na sua hora de tomar o cafezinho, pois ninguém é de ferro, e continuamos ali esperando a nossa vez. Por várias ocasiões fiz interessantes observações, uma delas é o prurido que todos têm de ser "do contra", quanto mais pressa tem o que quer ser atendido, mais devagar o serventuário que está ali o atende.

                                          De outras vezes, quando vou preparado para enfrentar um balcão de uma Secretaria do Foro, sou atendido prontamente e saio dali tranquilo. Quando vou sem realizar um mínimo preparo interno para não me deixar envolver pelos pensamentos de pressa e de intolerância que rondam esses ambientes, sou vítima deles e me vejo incomodado, irritado e saio com a sensação de que não fui bem atendido e perdi muito tempo naquela repartição. Isso não acontece conosco em nossas atividades? Tudo, então, depende de nosso estado de ânimo interno. A causa dessa irritabilidade está dentro de nós mesmos e a forma de eliminá-la não é outra, senão trabalhar internamente para evitar que esses momentos desagradáveis e que afetam nossa tranquilidade tomem conta de meu ser e me veja no final do dia esgotado, extenuado.       

VALORES ÉTICOS NA CONVIVÊNCIA  

                                           Alguns dos valores éticos da convivência apontados pela Logosofia, são o respeito, a paciência, a tolerância, o exemplo.

                                          Esses valores respondem sempre ao interno do ser, ou melhor, têm uma correspondência no interno.  

                                           É preciso, portanto, que haja um cultivo interno desses valores para que eles se exteriorizem em forma de conduta no trato com o semelhante, em ÉTICA.

                                          O conhecimento dos pensamentos e sentimentos têm grande influência no cultivo desses valores éticos aqui assinalados.

                                           A reeducação sugerida pelo conhecimento transcendente contribui para uma revisão de conceitos, visto que eles se encontram desvirtuados. Houve, através dos tempos na humanidade, um grande desvio de conceitos e uma flagrante inversão de valores. É preciso, portanto, repensar, se é que temos pensado alguma vez, sobre essas coisas.

                                           O estudo das deficiências psicológicas me tem permitido conviver melhor, porque ao tomar contato com as falhas caracterológicas de meu temperamento, passo a ser mais comedido e equânime em meus juízos sobre os demais.

                                            Ao verificar que "o intolerante cria em seu redor um ambiente hostil, que o impede de levar uma vida grata", me esforço por afastar de mim esse pensamento e contrapor a ele a"tolerância, considerada por nós elemento indispensável à convivência harmônica". [8]

                                            O interessante é que a intolerância jamais se manifesta para com os de cima, nem contra aqueles de quem se espera tirar partido. Mas ela está presente de forma às vezes constante no trato com os seres mais queridos.

                                             O que se pode dizer quando se aprende que " o suscetível é um indivíduo predisposto a ver no próximo uma segunda intenção, o que dá lugar a que se melindre ou se ofenda com extrema facilidade". E, no combate a esse defeito passamos a utilizar a equanimidade que é o sentido da justiça e a medida exata com que se ajuizam os valores opostos, associado a esse esforço o cultivo da afabilidade.

                                             O uso da observação é um meio eficaz de combater as deficiências, tão detestáveis inimigos da sensibilidade humana. Observação de deficiências em nossos semelhantes, observação essa que se fará sem perder de vista as próprias, sobretudo quando se trate de irregularidades que se assemelham às que se tem empenho em neutralizar. No efeito desagradável que nos produzem as más atuações alheias, pode-se avaliar o que causamos em circunstâncias análogas, surgindo de tão singelo confronto, com maior vigor que antes, a resolução de nos tornarmos mais gratos e suportáveis.

                                             Deve-se ter o cuidado também de observar a ótima impressão que produzem as virtudes do próximo. "Eis o estímulo natural que nos deve inspirar a desenvolver iguais virtudes e a nos converter em exemplos vivos de captação e assimilação de valores espirituais e éticos, valores que a sensibilidade e a consciência reclamam como indispensáveis para mover e ativar as próprias bases internas de superação" .[9]

CONCLUSÃO  

                                            Para terminar, fazemos nossas as seguintes palavras do criador da Ciência Logosófica, publicadas na revista LOGOSOFIA : [10]

                                             "Uma nova era deverá começar para este mundo alquebrado e submerso em tanta desgraça: a era da reconstrução em todas as ordens em que a vida se desenvolve; a era de uma nova concepção da vida que abra aos espíritos as portas de um futuro melhor. Desta maneira haverá terminado a era sombria do desprezo ao semelhante e do desprezo a todo o justo, nobre e bom.

                                               "A nova era terá que se caracterizar, pois, por uma ampla compreensão dos problemas humanos e pelo respeito mútuo, consagrado universalmente; o respeito à vida, à família, aos povos e a quanto constitua a razão da existência. Só assim voltará a humanidade a se humanizar e a alcançar, mais além, cumes no aperfeiçoamento".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.  CASTRO FILHO, José Olympio. Prática Forense. Rio de Janeiro: Forense, (s/d), 483 p.

2 . REVISTA JURÍDICA MINEIRA. Belo Horizonte, V. nº 89, Dez., ano 1990, 243 p.

3. GONZÁLEZ PECOTCHE, Carlos Bernardo. Introdução Ao Conhecimento Logosófico. São Paulo: Editora Logosófica, 1996, 491 p.

4.  GONZÁLEZ PECOTCHE, Carlos Bernardo. Biognose. São Paulo: Editora Logosófica, 1996, 174 p.

5. GONZÁLEZ PECOTCHE, Carlos Bernardo. Deficiências e        Propensões do Ser Humano. São Paulo: Editora Logosófica, 1989, 204 p.              

6.  REVISTA JURÍDICA MINEIRA. Belo Horizonte, V. nº 67, Nov. .ano 1989. 273 p.

7       GONZÁLEZ PECOTCHE, Carlos Bernardo. Diálogos. São Paulo:.Editora Logosófica, 1995, 211 p.

NOTAS

[1] CASTRO FILHO. Prática Forense.,p. 31

[2]OAB Nacional, Órgão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Ano IX nº 66-Out-98

[3] CASTRO FILHO, Prática Forense, p. 119.

[4] ANTONINI, José Antônio. A Logosofia como cência auxiliar do Direito. Revista Jurídica Mineira, Ano VII – Vol. Nº 80- Dez/90, p. 44

[5] CHAGAS, Marco Aurélio Bicalho de Abreu. Uma nova concepção do Direito, Revista Jurídica Mineira, Ano VI – Vol. Nº 67 – Nov/89, p. 07

[6] PECOTCHE, Carlos Bernardo González, Deficiências e Propensões do Ser Humano, p.105

[7] ANTONINI, José Antônio, A Logosofia como ciência auxiliar do Direito, Revista Jurídica Mineira, Ano VII- Vol. Nº 80 – Dez/90, p.50

[8] PECOTCHE, Carlos Bernardo González, Deficiência e Propensões do Ser Humano, p. 139

[9] PECOTCHE, Carlos Bernardo González, Deficiência e Propensões do Ser Humano, p. 25

[10] PECOTCHE, Carlos Bernardo González, Revista Logosofia, nº 53, p. 26

 

Referência  Biográfica

Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas  –  Advogado em Belo Horizonte (MG) –  Palestra proferida na 3ª Semana Jurídica sob o patrocínio do CAHTJ da Universidade do Estado de Minas Gerais-UEMG – Ituiutaba-MG, no dia 29 de outubro de 1998.

E-mail: marcoaureliochagas@zipmail.com.br

Home-Page: www.terravista.pt/Enseada/1042/início.htm

A Moderna Interpretação Constitucional

0

* Amandino Teixeira Nunes Junior 

SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Direito como fenômeno cultural; 3.Constituição como espécie normativa singular; 4.Interpretação constitucional, 4.1.Conceito, 4.2.Especificidade da interpretação constitucional, 4.3.Método de interpretação constitucional, 4.3.3.1.Método integrativo ou científico- Espiritual, 4.3.3.2.Método tópico, 4.3.3.3.Método concretista de Peter Häberle, 4.4.Princípios de interpretação constitucional, 4.4.1.Princípio da unidade da constituição, 4.4.2.Princípio da concordância prática ou da harmonização, 4.4.3.Princípio da força normativa da constituição, 4.4.4.Princípio da máxima efetividade, 4.4.5.Princípio do efeito integrador, 4.4.6.Princípio da interpretação conforme á constituição, 4.4.7.Princípio da proporcionalidade; 5. Modernas técnicas de interpretação constitucional, 5.1.Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, 5.2.Declaração de inconstitucionalidade com apelo ao Legislativo, 5.3.Interpretação conforme à constituição; 6.Conclusão; Bibliografia, Notas.

 


 

1.Introdução

            O presente artigo pretende identificar e sistematizar os métodos, os princípios e as técnicas da moderna teoria da interpretação aplicáveis ao Direito Constitucional. No seu desenvolvimento, procura-se dar realce tanto ao Direito pátrio como ao Direito estrangeiro, reservando-se especial atenção para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro e do Tribunal Constitucional Federal alemão.

            O estudo que aqui se empreende não tem por objeto formular uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, basicamente, para a atividade interpretativa especificamente constitucional, e procura fundamentar e sistematizar o conhecimento necessário para alcançar tão importante desiderato.

            Neste sentido, procura-se, inicialmente, examinar o Direito como fenômeno cultural, cuidando de afastá-lo dos fenômenos ditos naturais. Adiante, faz-se a apreciação de algumas peculiariedades que singularizam as normas constitucionais, diferenciando-as das demais normas jurídicas.

            Em seguida, percorre-se a interpretação constitucional propriamente dita. Analisam-se, assim, o conceito, a especificidade, os métodos e os princípios de interpretação constitucional.

            Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual das modernas técnicas de interpretação constitucional existentes.

            Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do trabalho.

2. DIREITO COMO FENÔMENO CULTURAL

            O conceito de Direito não é um problema que a Ciência Jurídica ou a Filosofia do Direito tem por resolvido em definitivo. Muitos juristas e jusfilósofos têm se preocupado com o tema, deixando suas valiosas contribuições sem, entretanto, dar uma resposta à questão com caráter de definitividade.

            Não obstante esse fato, é preciso ter em mente que o Direito é um fenômeno cultural e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências ditas naturais, visto que, quanto a estas, as conclusões obtidas se revestem das verdades resultantes do método empírico-indutivo a que se submetem as realidades próprias das ciências naturais.

            A propósito, ensina Inocêncio Mártires Coelho:

            "Em relação a esses objetos, observados os fenômenos e formulada uma hipótese – como "explicação antecipada e reacional" para a sua ocorrência -, se essa solução provisória, após submetida a experimentação, vier a se verificar, então o cientista da natureza dará por concluído o seu trabalho, enunciando uma lei, que traduzirá, em linguagem sintética e generalizadora, as relações constantes e necessárias que existem entre os fenômenos observados." (1)

            E, adiante, aduz o eminente autor:

            "Já os objetos culturais – porque são ontologicamente valiosos – exigem para o seu conhecimento um método específico e adequado, um método empírico-dialético, que se constitui pelo ato gnosiológico da compreensão, através do qual, no ir e vir ininterrupto da materialidade do substrato à vivência do seu sentido espiritual, procuramos descobrir o significado das ações ou das criações humanas. Neste setor da realidade, a busca de explicações constituiria um absurdo tão grande quanto julgar os fenômenos da natureza." (2)

            Destarte, os objetos culturais podem variar em significado e, por conseguinte, ser a eles agregados valores. Diante dos objetos culturais podem ser, assim, produzidas interpretações sempre renovadas e sempre integradas às anteriores.

            Já os objetos naturais não variam em significado. Assim, uma lei física é sempre a mesma em qualquer lugar do planeta, não lhe cabendo qualquer sorte de interpretação. Vale, tão-somente, o quanto for observado e comprovado através da experiência.

            É, pois, entre os objetos do mundo da cultura (compreendido como aquele criado pelo homem: o mundo do espírito) que se insere o Direito.

            Em síntese magistral, diz-nos Gustav Radbruch:

            "Compreender, quer dizer aqui o mesmo que apreender um facto cultural, precisamente um facto cultural, isto é, nas suas ligações e relações com o valor da cultura que lhe corresponde. E se isto é assim duma maneira geral, é evidente que o especial "compreender" da ciência jurídica não poderá ser senão o sabermos aprender também o direito como realização do respectivo conceito; isto é, como um dado cujo sentido é o de realizar a idéia de direito; ou ainda como uma tentativa de realização dessa idéia." (3) 

3. CONSTITUIÇÃO COMO ESPÉCIE NORMATIVA SINGULAR

            Inocêncio Mártires Coelho, em expressiva passagem, assevera que:

            "Sendo ambas – Lei e Constituição – espécies de normas jurídicas, criações do homem, portanto, submetem-se à conceituação genérica do Direito como fenômeno cultural, realidade significativa…" (4)

            Conquanto seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, a Constituição merece exame destacado dentro do ordenamento jurídico, considerando as singularidades que suas normas apresentam.

            Luís Roberto Barroso enumera quatro singularidades das normas constitucionais: a) superioridade hierárquica; b) natureza da linguagem; c) conteúdo específico; d) caráter político. (5)

            A superioridade hierárquica expressa a supremacia da Constituição e "é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido." (6)

            Por sua vez, a natureza da linguagem refere-se à veiculação, no texto constitucional, de normas de índole principiológica que apresentam "maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densidade jurídica." (7)

            J. J. Gomes Canotilho reconhece um "espaço de conformação" aos órgãos concretizadores. Consigna o ilustre mestre de Coimbra:

            "Situadas no vértice da pirâmide normativa, as normas constitucionais apresentam, em geral, uma maior abertura (e, consequentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma operação de concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de conformação" ("liberdade de conformação", discricionariedade") mais ou menos amplo." (8)

            De outra feita, a Constituição é sede de determinadas categorias de normas que refogem à estrutura típica das normas dos demais ramos do Direito. Citem-se as normas determinadoras de competências, as normas de organização, as normas de garantias de direitos fundamentais e as normas programáticas.

            Não se destinam tais normas a prescrever condutas de indivíduos ou de grupos sociais. Têm elas as funções precípuas de estruturar organicamente o Estado, regular os direitos fundamentais e as respectivas garantias e indicar os valores a serem preservados e os fins sociais a serem atingidos.

            Finalmente, a Constituição apresenta normas de caráter político "quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação." (9)

            Isto significa que as normas constitucionais resultam de um poder político fundamental — o poder constituinte originário —, juridicizam o fenômeno político e acarretam consequências para o conjunto de instituições e poderes (partidos políticos, grupos de interesses, categorias empresariais e trabalhistas, opinião pública, etc.) quando concretizadas e aplicadas.

            Na verdade, a Constituição é, como acentua Pontes de Miranda, "o conjunto de regras jurídicas onde as forças políticas encontram o seu leito, o seu equilíbrio." (10) É, em suma, o estatuto jurídico-político do Estado.

            Essas peculiaridades singularizam, pois, as normas constitucionais, exigindo princípios e métodos específicos para a sua interpretação, como se verá adiante. 

4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            4.1. CONCEITO

            A interpretação constitucional busca compreender, investigar e revelar o conteúdo, o significado e o alcance das normas que integram a Constituição. É uma atividade de mediação que torna possível concretizar, realizar e aplicar as normas constitucionais.

            Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:

            "Interpretar as normas constitucionais significa (como toda a interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto constitucional. A interpretação jurídica constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüisticos escritos na constituição." (11)

            Ressalte-se que o preclaro professor português destaca o caráter lingüístico da interpretação constitucional (como de resto de qualquer interpretação), "a exigir que os interlocutores falem a mesma linguagem, como condição de possibilidade de sua mútua compreensão, porque – como adverte Gadamer — quem fala uma linguagem que mais ninguém fala, em realidade não fala." (12)

            Em síntese, a interpretação constitucional consiste num processo intelectivo por meio do qual enunciados lingüisticos que compõem a constituição transformam-se em normas (princípios e regras constitucionais), isto é, adquirem conteúdo normativo.

            4.2. ESPECIFICIDADE DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Inocêncio Mártires Coelho adverte que existe, na doutrina, grande discussão sobre a existência de uma interpretação especificamente constitucional, ou, ao revés, não passa tal pretensão de um anseio de autores entusiasmados. Escreve o ilustre autor:

            "A propósito, qualquer levantamento realizado entre os doutrinadores contemporâneos mais conceituados evidenciará que é grande esse entusiasmo, muito embora, a rigor, a especificidade da interpretação constitucional se restrinja à parte dogmática das constituições, isto é, àquela parte onde estão compendiados os direitos fundamentais, interpretando-se os preceitos restantes de acordo com os "métodos" tradicionais." (13)

            Ernest-Wolfgang Böckenförde, reforçando esse entendimento, coloca os direitos fundamentais como pano de fundo para embasar sua teoria de interpretação especificamente constitucional. (14)

            Nesta mesma perspectiva situa-se Robert Alexy, quando coloca objeções a uma divisão dicotômica entre princípio e regra e desenvolve fecunda doutrina em obra dedicada aos direitos fundamentais. (15)

            Advirta-se que a interpretação constitucional destinada à parte dogmática das constituições – e, portanto, aos direitos fundamentais – serve-se de princípios próprios, aplicáveis apenas às normas constitucionais de índole principiológica, deixando-se às regras constitucionais os métodos hermenêuticos do direito em geral.

            Diante desse panorama, em que se reconhece a existência da especificidade da matéria constitucional – ainda que se possa restringir-se à parte dogmática das constituições -, torna-se evidente que a interpretação especificamente constitucional é, essencialmente, uma hermenêutica de princípios – isto é, "mandatos de otimização" que "podem e devem ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. (16)

            Em síntese, "a doutrina do direito constitucional pressupõe hoje uma metódica constitucional adequada. Em termos aproximados, a metódica constitucional procura favorecer os métodos de trabalho aos aplicadores – concretizadores das normas e princípios constitucionais."(17)

            4.3. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Paulo Bonavides assinala que "a moderna interpretação da Constituição deriva de um estado de inconformismo de alguns juristas com o positivismo lógico-formal que tanto prosperou na época do Estado liberal." (18)

            Com efeito, até a Constituição de Weimer, vivia-se o período de ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do Estado liberal. "Por onde veio a resultar um Direito Constitucional fechado, sólido, estável, mais jurídico do que político, mais técnico do que ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito Constitucional compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à tensões e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade contemporânea." (19)

            Com o aparecimento do Estado Social, quando as constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e classes com interesses antagônicos e contraditórios, surge uma nova interpretação constitucional, que "já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico com o social… " (20)

            Os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.

            Paulo Bonavides destaca três métodos atuais de interpretação constitucional: a) método integrativo ou científico-espiritual; b) método tópico; c) método concretista. (21)

            4.3.1 MÉTODO INTEGRATIVO OU CIENTÍFICO-ESPIRITUAL

            O método integrativo ou científico-espiritual foi desenvolvido por juristas alemães, capitaneado por Rudolf Smend, que assinala:

            "La Constitución no puede ser comprendida sólo como un estatuto de la organización, que estructura el Estado y que faculta e impone ciertas actividades al mismo, sino a la vez, como una forma victal de los ciudadanos que participan en la vida del Estado." (22)

            Na doutrina de Rudolf Smend, a base de valoração, vale dizer, os valores expressos e tutelados pela Constituição (econômicos, sociais, políticos e culturais) operam como valores de interpretação coletivos dos cidadãos e, destarte, devem ser compreendidos e aplicados.

            Como acentua Paulo Bonavides:

            "A concepção de Smend é precursoramente sistêmica e espiritualista: vê na Constituição um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta." (23)

            Adiante, aduz o ilustre professor cearense:

            "O intérprete constitucional deve prender-se sempre à realidade da vida, à "concretude" da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração. " (24)

            4.3.2.MÉTODO TÓPICO

            Por sua vez, o método tópico foi desenvolvido pelos juristas alemães Theodor Viehweg e Josef Esser. A primeira obra sobre o assunto, denominada "Tópica e Jurisprudência", de autoria de Viehweg, foi publicada em 1953.

            O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma "técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada.

            Referindo-se ao método tópico, Paulo Bonavides faz a seguinte ponderação:

            "Da tópica clássica, concebida como uma simples técnica de argumentação, a corrente restauradora, encabeçada por aquele jurista de Mogúncia, compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo satisfatoriamente". (25)

            A principal crítica feita ao método tópico é a de que "além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas." (26) Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado: são rebaixados à condição de meros pontos de vista ou "tópoi", cedendo lugar à hegemonia do problema.

            4.3.3. MÉTODO CONCRETISTA

            Finalmente, o método concretista foi desenvolvido por três juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Cada um deles ofereceu valiosos contributos para o desenvolvimento desse método.

            O método concretista gravita em torno de três elementos essenciais: a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.

            Como salienta Paulo Bonavides:

            "Os intérpretes concretistas têm da Constituição normativa uma concepção diferente daquela esposada pelos adeptos de outros métodos, porquanto não consideram a Constituição um sistema hierárquico-axiológico, como os partidários da interpretação integrativa ou científico-espiritual, nem como um sistema lógico-sistemático, como os positivistas mais modernos. Ao contrário, rejeitam o emprego da idéia de sistema e unidade da Constituição normativa, aplicando um "procedimento tópico"de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de concretização. É uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e casuístico, que aplica as categorias constitucionais à solução direta dos problemas, sempre atenta a uma realidade concreta, impossível de conter-se em formalismos meramente abstratos ou explicar-se pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos jurídicos"(27)

            4.3.3.1 MÉTODO CONCRETISTA DE KONRAD HESSE

            O método concretista de Konrad Hesse parte da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Para Hesse, o teor da norma só se completa no ato interpretativo. A concretização da norma pelo intérprete pressupõe um compreensão desta; essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão.

            Como lembra Lenio Luiz Streck:

            "Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não cabe desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do problema concreto a solucionar. O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos."(28)

            Para Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face do problema concreto, de forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua aplicação ao caso concreto constituem um processo unitário.

            Nas palavras textuais de Hesse:

            "Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma ("Gebot optimaler Verklichung der Norm"). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."(29)

            4.3.3.2. MÉTODO CONCRETISTA DE FRIEDRICH MÜLLER

            O método concretista de Friedrich Müller, segundo Paulo Bonavides, "tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia proposta."(30)

            Para Friedrich Müller, o "texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo"(31), que, após interpretado, transforma-se no programa normativo.

            Além do texto, a norma constitucional compreende também um domínio normativo, isto é, pedaço da realidade concreta, que o programa normativo só parcialmente contempla.

            Segundo Friedrich Müller, a norma constitucional não se confunde com o texto da norma. Ela é mais que isso: é formada pelo programa normativo e pelo domínio normativo. "De sorte que a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário portanto do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico. (32)

            É importante ressaltar ainda que a "análise dos dados lingüisticos (programa normativo) e a análise dos dados reais (domínio normativo) são dois processos parciais, separados entre si, dentro do processo de concretização. " (33) Cabe ao intérprete da norma articular tais processos.

            Para Friedrich Müller, portanto, a normatividade constitucional consiste no efeito global da norma com seus dois componentes (programa normativo e domínio normativo), no processo de concretização, que só se completa quando se chega à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao caso concreto.

            4.3.3.3. MÉTODO CONCRETISTA DE PETER HÄBERLE

            De registrar, com Paulo Bonavides, que:

            "A construção teórica de Häberle parece desdobrar-se através de três pontos principais: o primeiro, o largamento do círculo de intérprete da Constituição; o segundo, o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e, finalmente, o terceiro, ou seja, a referência desse conceito à Constituição mesma, como realidade constituída e "publicização" ("verfassten Wirklichkeit und Öffentlichkeit")"(34)

            Com efeito, o próprio Peter Häberle expõe magistralmente sua tese:

            "Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição."(35)

            E, adiante, aduz o eminente professor alemão:

            "Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" ("Zünftamässige Interpreten") e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade ("weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird"). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade."(36)

            O método concretista da Constituição aberta de Peter Häberle, como se pode perceber, é a própria ideologia democrática e demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos fundamentais: sólido consenso democrático, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.(37)

            4.4. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            Sendo a hermenêutica constitucional uma hermenêutica de princípios, é inegável que o ponto de partida do intérprete há de ser os princípios constitucionais, que "são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui."(38)

            Luís Roberto Barroso assinala ainda que "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser esquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição."(39)

            As normas-princípio (ou simplesmente princípios) distinguem-se das normas-disposição (também referidas como regras) pelo seu maior grau de abstração e por sua posição mais destacada dentro do ordenamento. São formuladas de maneira vaga e indeterminada, constituindo espaços livres para a complementação e desenvolvimento do sistema, por não se limitarem a aplicar-se a situações determinadas, podendo concretizar-se num sem número de hipóteses.

            As normas-disposição, por sua vez, comparativamente às normas-princípio, apresentam um grau de abstração reduzido e têm eficácia restrita às situações específicas às quais se destinam.

            Segundo Luís Roberto Barroso:

            "Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia em sentido normativo, por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição, todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não impede, todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada situação jurídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do Texto Constitucional. "(40)

            Veja-se, a seguir, o catálogo dos princípios de interpretação constitucional encontrados na doutrina. Como se poderá notar, a maioria desses princípios foi formulada a partir dos novos métodos de interpretação constitucional existentes.

            4.4.1.PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO

            Na conformidade desse princípio, as normas constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas e dispersas, mas sim integradas num sistema interno unitário de princípios e regras.

            Como acentua J. J. Gomes Canotilho:

            "O princípio da unidade da Constituição obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.(41)

            O princípio da unidade da Constituição, segundo o ilustre constitucionalista português, conduz à rejeição de duas teses ainda presentes na doutrina do direito constitucional: a tese das antinomias normativas e a tese das normas constitucionais inconstitucionais.

            A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão tem conferido singular importância ao princípio da unidade da Constituição. Em decisão magistral, lavrou aquela Carta que:

            "O princípio mais importante da interpretação é o da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal".(42)

            4.4.2.PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO

            Formulado por Konrad Hesse, esse princípio impõe ao intérprete que "os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto."(43)

            O princípio da concordância prática ou da harmonização parte da noção de que não há diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais. Destarte, o resultado do ato interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionalmente tutelados.

            4.4.3.PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

            Também formulado por Konrad Hesse, esse princípio estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência.

            4.4.4. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE

            Segundo esse princípio, na interpretação das normas constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior eficácia.

            Destarte, "as normas constitucionais devem ser tomadas como normas atuais e não como preceitos de uma Constituição futura, destituída de eficácia imediata."(44)

            O princípio da máxima efetividade significa o abandono da hermenêutica tradicional, ao reconhecer a normatividade dos princípios e valores constitucionais, principalmente em sede de direitos fundamentais.

            4.4.5. PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR

            De acordo com esse princípio, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e possibilitem o reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da Constituição.

            Assim, partindo de conflitos entre normas constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente integradoras.

            4.4.6. PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO

            Segundo esse princípio, "nenhuma lei deve ser declarada inconstitucional quando não puder ser declarada em harmonia com a Constituição"(45), sendo esta interpretação a única adequada e realmente válida.

            A aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição só é possível quando, em face de normas infraconstitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, existem diferentes alternativas de interpretação, umas em desconformidade e outras de acordo com a Constituição, sendo que estas devem ser preferidas àquelas. Entretanto, na hipótese de se chegar a uma interpretação manifestamente contrária à Constituição, impõe-se que a norma seja declarada inconstitucional.

            O princípio da interpretação conforme à Constituição constitui uma moderna técnica de controle da constitucionalidade das leis, como se verá adiante.

            4.4.7. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

            Esse princípio, conquanto tenha tido aplicação clássica no Direito Administrativo, foi descoberto nas últimas décadas pelos constitucionalistas, quando as declarações de direitos passaram a ser atos de legislação vinculados. Trata-se de norma essencial para a proteção dos direitos fundamentais, porque estabelece critérios para a delimitação desses direitos.

            O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três aspectos fundamentais: a) adequação; b) necessidade (ou exigibilidade); c) proporcionalidade em sentido estrito.

            A adequação significa que o intérprete deve identificar o meio adequado para a consecução dos objetivos pretendidos. A necessidade (ou exigibilidade) significa que o meio escolhido não deve exceder os limites indispensáveis à conservação dos fins desejados. A proporcionalidade em sentido estrito significa que o meio escolhido, no caso específico, deve se mostrar como o mais vantajoso para a promoção do conjunto de valores em jogo.

            Na Alemanha, berço doutrinário do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão prolatada em 1971, assim o sintetizou:

            "O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental."(46)

            O princípio da proporcionalidade constitui uma verdadeira garantia constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso desatado do poder estatal e auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as normas constitucionais.

5.MODERNAS TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            A moderna interpretação constitucional, como vimos, significa uma reação ao rígido formalismo jurídico em nome da idéia de justiça material e de segurança jurídica. Neste sentido, o que se assiste no segundo pós-guerra, "é uma inclinação da jurisprudência procurando maximizar as formas de interpretação que permitam um alargamento ou restrição do sentido da norma de maneira a torná-la constitucional. Procura-se buscar até mesmo naquelas normas que à primeira vista só parecem comportar interpretação inconstitucional — através da ingerência da Corte Suprema alargando ou restringindo o seu sentido — uma interpretação que se coadune com a Carta Magna."(47)

            Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, destacam-se: a) declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade; b) declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador; c) interpretação conforme à Constituição.

            5.1. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM A PRONÚNCIA DE NULIDADE

            A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade encontra suas raízes na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "o Tribunal rejeita a argüição de inconstitucionalidade, anunciando, todavia, uma possível conversão dessa situação ainda constitucional ("noch verfassungsgemass") num estado de inconstitucionalidade."(48)

            Essa técnica de interpretação constitucional pode ser admitida desde que a norma em exame não seja integralmente inconstitucional, isto é, inconstitucional em todas as hipóteses interpretativas que admitir.

            A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade contém um juízo de desvalor em relação à norma questionada, obrigando o legislador a empreender a medida requerida para a supressão do estado de inconstitucionalidade, bastando para tanto apenas alguma alteração fática.

            5.2. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM APELO AO LEGISLADOR

            A declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador também tem origem na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma sem antes fazer um apelo vinculado a "diretivas" para obter do legislador uma atividade subseqüente que torne a regra inconstitucional harmônica com a Carta Maior. Incumbe-se ao legislador a difícil tarefa de regular determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Constituição."(49)

Gilmar Ferreira Mendes acentua que podem ser designadas pelo menos três grupos típicos dessa técnica de interpretação na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão: a) "apelo ao legislador" em virtude de mudança das relações fáticas ou jurídicas; b) "apelo ao legislador" em virtude de inadimplemento de dever constitucional de legislar; c) "apelo ao legislador" por falta de evidência da ofensa constitucional. (50)

            Com respeito à aplicação da declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador no direito brasileiro, diz-nos Celso Ribeiro Bastos:

            "Esta espécie de decisão perde muito de sua importância no sistema jurídico pátrio, na medida em que uma vez reconhecida inconstitucional a norma, caberá à Corte assim pronunciá-la, o que não obsta que indique o caminho que poderia o legislador adotar na posterior regulamentação da matéria.

            O tema apresenta certa relevância no caso da ação de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, a decisão contém um exortação ao legislador para que, abandonando seu estado de inércia, ultime suas tradicionais funções, regulando determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Carta Magna. A decisão, no caso, apresenta cunho mandamental, no que é capaz de colocar em mora a ação do legislador. Assim, o Tribunal determina que o legislador proceda às providências requeridas, limitando-se a constatar a inconstitucionalidade da omissão."(51)

            5.3. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO

            A interpretação conforme à Constituição, na qual o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações se mostra compatível com

            a Lei Maior, origina-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. "Não raro afirma a Corte Constitucional a compatibilidade de uma lei com a Constituição, procedendo à exclusão das possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais." (52)

            No direito pátrio, essa técnica de interpretação está presente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Veja-se, a propósito, o seguinte trecho da ementa de decisão da ADIN nº 1.344-1-ES, na qual foi relator o Ministro Moreira Alves:

            "Impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme à Constituição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente.

            Quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme à Constituição."

            Na Representação de Inconstitucionalidade nº 1.417-7-DF, de que foi também relator o Ministro Moreira Alves, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal da seguinte forma, na ementa de decisão:

            "O princípio da interpretação conforme à Constituição ("Verfassungskonforme Auslegung") é princípio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação.

            A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF, em sua função de Corte Constitucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo.

            Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo."

            Discorrendo sobre o tema no direito comparado, Celso Ribeiro Bastos faz a seguinte ponderação:

            "No Brasil, ao contrário do que acontece na Alemanha – onde a interpretação conforme à Constituição resulta na procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade, declarando inconstitucionais os sentidos que são incompatíveis com a Lei Fundamental -, a interpretação conforme à Constituição resulta na improcedência da ação de inconstitucionalidade, já que a norma em questão permanece no ordenamento jurídico pátrio, com a interpretação que a coloca em harmonia com a Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal equiparou em seus julgados a interpretação conforme à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução do texto." (53)

6. CONCLUSÃO

            Em desfecho deste estudo, que discorreu sobre diferentes cenários do universo constitucional, sempre tendo em conta a moderna interpretação da Constituição, não há como deixar de reconhecer que:

            a)O Direito é um fenômeno cultural ou realidade significativa e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências naturais, exigindo, para seu conhecimento, o método empírico-dialético.

            b)A Constituição, embora seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, apresenta peculiaridades, que singularizam as suas normas.

            c)As normas constitucionais apresentam, em geral, maior teor de abstração, reconhecendo-se aos seus aplicadores um "espaço de conformação" mais ou menos amplo.

            d)Em face de suas singularidades, as normas constitucionais demandam, para sua interpretação, métodos e princípios específicos.

            e)A interpretação constitucional é uma atividade de mediação que torna possível compreender e concretizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que compõem a Constituição.

            f)A moderna interpretação constitucional caracteriza-se pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.

            g)Dentre os atuais métodos de interpretação constitucional destacam-se o método integrativo ou científico-espiritual, o método tópico e o método concretista.

            h)O método integrativo ou científico-espiritual pressupõe a articulação da norma com os valores econômicos, políticos, sociais e culturais subjacentes à Constituição, que constituem a realidade existencial do Estado.

            i)O método tópico caracteriza-se como uma "técnica de pensar o problema", elegendo o critério ou os critérios recomendáveis para a solução adequada do caso concreto.

            j)O método concretista gravita em torno de três questões fundamentais: a norma a concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.

            l)O método concretista desenvolveu-se a partir das contribuições dos juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle.

            m)Dentre os atuais princípios de interpretação constitucional destacam-se o da unidade da Constituição, o da concordância prática ou da harmonização, o da força normativa da Constituição, o da máxima efetividade, o do efeito integrador, o da interpretação conforme à Constituição e o da proporcionalidade.

            n)O princípio da unidade da Constituição remarca a noção do texto constitucional como sistema unitário e harmônico de princípios e regras, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições (antinomias) entre suas normas

            o)O princípio da concordância prática ou da harmonização impõe ao intérprete a combinação dos bens constitucionais em conflito ou em concorrência, de forma a evitar o sacrifício de uns em relação aos outros.

            p)O princípio da força normativa da Constituição estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar preferência às soluções que, considerando os limites do texto constitucional, possibilitem a atualização das suas normas, garantindo a sua eficácia e permanência.

            q)O princípio da máxima efetividade significa que o intérprete deve atribuir às normas constitucionais o sentido que lhes dê maior eficácia.

            r)O princípio do efeito integrador impõe ao intérprete prioridade aos pontos de vista que levem a soluções pluralisticamente integradoras.

            s)O princípio da interpretação conforme à Constituição induz à interpretação de uma norma infraconstitucional em harmonia com a Lei Maior, em meio a outras alternativas interpretativas que o preceito admitir.

            t)O princípio da proporcionalidade se traduz na adequação meio-fim, na necessidade (ou exigibilidade) da prática do ato legislativo e na aferição de seu custo-benefício (proporcionalidade em sentido estrito).

            u)Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, originárias da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, destacam-se a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, a declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador e a interpretação conforme à Constituição.

            v)Na declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade rejeita-se a argüição de inconstitucionalidade, anunciando-se, porém, uma possível conversão dessa situação (ainda constitucional) num estado de inconstitucionalidade.

            x)Na declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma legal sem antes fazer um "apelo" para obter do legislador uma providência que a torne harmônica com a Constituição.

            z)Na interpretação conforme à Constituição, considerada pelo Supremo Tribunal Federal não apenas como simples regra de hermenêutica mas sobretudo como mecanismo de controle da constitucionalidade, busca-se declarar qual das possíveis interpretações que a norma infraconstitucional admite a que se mostra compatível com a Lei Maior.

 

BIBLIOGRAFIA

            BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999.

            BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1994.

            ____________________. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo, Celso Bastos Editor/IBDC, 1997.

            BASTOS, Celso Ribeiro e TAVARES, André Ramos. As tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio. São Paulo, Saraiva, 2000.

            BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1994.

            CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 1993.

            ______________________________. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra, Coimbra Editora, 1994.

            CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra, Coimbra Editora, 1991.

            COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1997.

            ENTERRÍA, Eduardo García de. Hermenêutica e supremacia constitucional. RDP, v. 77, n. 19, jan / mar / 1986.

            HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e " procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1997.

            HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1991.

            MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo, Saraiva, 1999.

            _____________________. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo, Celso Bastos Editor/IBDC, 1998.

            MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.Brasília, Brasília Jurídica, 2000.

            MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1970.

            RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra, Armênio Amado, 1979.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1998.

            STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000.

            TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1999.

Notas

            1..COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre, Sérgio A.

            Fabris Editor, 1997, pág. 32.

            (2) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., págs. 32-33.

            (3) RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra, Armênio Amado, 1979, pág. 240.

            (4) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit. pág. 31.

            (5) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 107.

            (6) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 107.

            (7) BARROSO, Luís Roberto, op. cit. pág. 107.

            (8) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 1993, pág. 210.

            (9) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 110.

            (10) MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1970, t. 1, pág. 296.

            (11) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 208.

            (12) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 54.

            (13) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 27.

            (14) Veja-se, a propósito: "Escritos sobre derechos fundamentales", Baden – Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1993.

            (15) Consultem-se a respeito: "Derecho y Razón Práctica", México, Distribuciones Fontanara, 1993; e "Teoria de los Derechos Fundamentales", Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

            (16) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 84.

            (17) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 132.

            (18) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1994, pág. 424. (19) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 424.

            (20) BONAVIDES, Paulo, op. cit. pág., 435.

            (21) BONAVIDES, Paulo, op. cit., págs. 434 e ss.

            (22) SMEND, Rudolf, apud. ENTERRÍA. Eduardo Garcia de. Hermenêutica e supremacia constitucional. RDP, v. 77, n. 19, jan/mar/1986, págs. 36-37.

            (23) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 436.

            (24) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 437.

            (25) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 449.

            (26) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 214.

            (27) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 440.

            (28) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, pág. 244.

            (29) HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pág. 22.

            (30) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.

            (31) CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit., pág. 215.

            (32) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.

            (33) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 216.

            (34) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 228.

            (35) HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e " procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pág. 13.

            (36) HÄBERLE, Peter, op. cit., pág.13

            (37) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 472.

            (38) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.

            (39) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.

            (40) BARROSO, Luis Roberto, op. cit., págs. 147-148.

            (41) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 226.

            (42) BVerfGE 19, 206(220) apud BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 189.

            (43) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 91.

            (44) BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., pág. 100.

            (45) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 474.

            (46) BVerfGE 30, 292 (316) apud BASTOS, Celso Ribeiro e TAVARES, André Ramos. As tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio. São Paulo, Saraiva, 2000, pág. 79.

            (47) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., págs., 69-70.

            (48) MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 212.

            (49) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 72.

            (50) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 239.

            (51) BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo, Celso Bastos Editor, IBDC, 1997, pág. 174.

            (52) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 230.

            (53) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 76.

 


 

Referência  Biográfica

Amandino Teixeira Nunes Junior  –  Consultor legislativo da Câmara dos Deputados; Professor do UniCEUB e do IESB, em Brasília (DF); Mestre em Direito pela UFMG e Doutorando em Direito pela UFPE

amandinojunior@uol.com.br

Despacho inicial e efeito interruptivo da prescrição no Processo de Conhecimento

0

Walter Vechiato Júnior 

Código de Processo Civil

      Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição.

      § 1º A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação.

      § 2º Incumbe à parte promover a citação do réu nos dez (10) dias subseqüentes ao despacho que a ordenar, não ficando prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.

      § 3º Não sendo citado o réu, o juiz prorrogará o prazo até o máximo de 90 (noventa) dias.

      § 4º Não se efetuando a citação nos prazos mencionados nos parágrafos antecedentes, haver-se-á por não interrompida a prescrição.

      § 5º Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato.

      § 6º Passada em julgado a sentença, a que se refere o parágrafo anterior, o escrivão comunicará ao réu o resultado do julgamento.
 Código Civil

      Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

      I – por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; ….

1. Processo de conhecimento. O processo de conhecimento tem o objetivo de absorver os fatos constitutivos do autor e os fatos extintivos, impeditivos e modificativos do réu, visando a extinção normal do processo consistente na prestação jurisdicional mediante sentença de mérito em que o pedido inicial é julgado procedente ou improcedente (CPC, art. 269, I). Entre a petição inicial e a sentença, o processo de conhecimento apresenta diversos atos processuais, que respeitam os procedimentos adequados (comum – ordinário e sumário; especial – jurisdição graciosa e contenciosa). O procedimento ordinário, por exemplo, destaca a seguinte seqüência: a) fase postulatória – petição inicial, despacho inicial, citação, atitudes do réu (que abrange a contestação) e réplica; b) fase saneadora – audiência preliminar e saneamento; c) fase instrutória – audiência de instrução e julgamento; e, d) fase decisória – sentença. Entre os atos praticados no processo, o estudo em tela destaca o despacho inicial.

2. Despacho inicial. O despacho inicial corresponde ao primeiro momento processual em que o juiz tem contato físico com os autos do processo, após a entrada no cartório distribuidor (mais de um juízo competente na mesma comarca) ou de protocolo (único juízo na comarca) (CPC, art. 263). Proposta a ação, o despacho inicial do juiz pode ser positivo, negativo e correcional.

3. Despacho inicial positivo. O despacho inicial positivo indica o recebimento da petição inicial e a ordem para a citação do réu (cite-se). Esta é a regra para todos os processos e procedimentos do CPC. É o momento em que o magistrado avalia o preenchimento das condições genéricas da ação (existência) e dos pressupostos processuais (validade). O recebimento (aptidão) da petição inicial indica que o juiz entendeu que as condições e os pressupostos estão devidamente preenchidos, neste momento, o que não lhe retira a possibilidade, no curso dos autos, de constatar a ausência e extinguir o processo sem julgamento do mérito, pois tais matérias são de ordem pública (CPC, art. 267, IV e VI). Na prática forense, o juiz não declara expressamente o preenchimento das condições genéricas da ação e dos pressupostos processuais, apenas ordena a citação do réu, com as cautelas legais (CPC, art. 285).

              Há quem sustente que o despacho inicial positivo tem natureza de decisão interlocutória, pois as condições e os pressupostos foram observados positivamente pelo juiz, desafiando o agravo de instrumento. Discordo. Primeiro, a teoria abstrata foi adotada pelo ordenamento processual civil vigente, que sustenta a permanente preocupação do juiz com as condições e os pressupostos – existência, podendo o juiz rever a admissibilidade, de ofício ou a requerimento do réu, a qualquer tempo, no primeiro grau de jurisdição – sentença processual. Considerar decisão interlocutória traz a idéia de adoção da teoria da asserção, na qual as condições genéricas da ação são entendidas como exercício do direito de ação, razão pela qual o recebimento da inicial indica que o juiz considerou verdadeiras as assertivas (afirmações) do autor, tornando eventual reexame das condições, em que constatar a ausência, autêntico julgamento de mérito – sentença de mérito. Segundo, não há interesse ao réu recorrer do despacho inicial positivo, pois eventuais questões processuais ou de mérito podem ser sustentadas em contestação, no exercício do contraditório.  

4. Despacho inicial correcional. O despacho inicial correcional manda o autor emendar a inicial naquilo que verificou ausente, em relação aos requisitos genéricos e específicos e à documentação, no prazo de dez (10) dias (CPC, arts. 282, 283 e 284). Este prazo pode ser prorrogado, por igual período e mais de uma vez, desde que o requerimento da prorrogação seja apresentado pela parte dentro do prazo em andamento.

              Cumprida a correção, o juiz manda citar o réu, tal como o despacho inicial positivo (CPC, art. 285). O desatendimento da ordem para correção no prazo legal de dez (10) dias (ou no prazo prorrogado judicialmente, mediante requerimento), implica o indeferimento da inicial e a extinção do processo sem julgamento do mérito (CPC, arts. 267, I, 284, parágrafo único, e 295, VI). É sentença processual da qual cabe, em tese, apelação prevista no art. 296 do CPC – provavelmente será desprovida, se o juízo de admissibilidade for positivo (ausência de interesse em recorrer – necessidade e adequação); descabe ao autor emendar a inicial na interposição do recurso.

              O despacho inicial positivo e o correcional são irrecorríveis. A fundamentação de ambos os pronunciamentos jurisdicionais não precisa ser extensa. Quanto ao despacho inicial positivo, a prática forense tem admitido a singela expressão “Cite-se, com as cautelas legais”. As discussões sobre eventual recurso estão no tópico acima. Já o despacho inicial correcional deve ser claro, sem erros materiais ou omissões, notadamente em relação a tornar explícitos os pontos a serem corrigidos ou emendados pelo autor. Tal providência evita omissão e nulidade (prejuízo ao autor), as quais podem ser, se verificadas no caso concreto, combatidas com embargos de declaração (para sanar a omissão ou erro material) ou agravo de instrumento (para invalidar o despacho por ausência de fundamentação).

              “Embora não exista dispositivo legal impondo a indicação, quando intimada a parte autora para emendar a petição inicial, do requisito ausente na exordial, deve o magistrado, com os olhos nos modernos princípios da instrumentalidade das formas e da economia e celeridade processuais, especificar as falhas contidas na peça, sob pena de, por rigorismo processual, entravar o prosseguimento do feito e impedir a célere composição do litígio” (RT 804/183).

              Nas demandas em que o advogado ou a parte atuar em causa própria – inexistência, recusa ou impedimento de advogado no foro, a ausência de indicação do endereço na petição inicial resulta no despacho inicial correcional, que determina ao advogado-autor ou à parte autora a emenda no prazo de quarenta e oito (48) horas, pena de indeferimento liminar (CPC, arts. 36 e 39, I e parágrafo único, 267, I, e 295, VI).  

5. Despacho inicial negativo. O despacho inicial negativo significa a negativa de seguimento (não-recebimento, indeferimento) à petição inicial (CPC, art. 295); é, na verdade, uma sentença que desafia a apelação prevista no art. 296 do CPC, viabilizando o juízo de retratação em quarenta e oito (48) horas; é possível sustentar o cabimento de embargos de declaração, visando a retratação do magistrado, em decorrência de erro material ou equívoco manifesto.

              Este despacho, que tem natureza de sentença, só é proferido diante de manifesta (evidente) situação demonstrada nos autos que exige a extinção do processo, pelo contrário, deve o juiz emitir o despacho inicial correcional, viabilizando ao autor emendar a petição inicial; persistindo o vício ou a causa extintiva, bem como no caso do autor desrespeitar tal despacho, aí, sim, o juiz profere a referida sentença. “Encerrar o processo, sem dar ao autor a oportunidade para emendar a inicial é ofender o art. 284 do CPC” (DJU 23-10-2000-121). Esta sentença (proferida sem a citação do réu) pode ser: a) processual e resultar na extinção do processo sem julgamento do mérito (ex.: carência inicial – falta de uma ou mais das condições genéricas da ação; procedimento inadequado); e, b) de mérito, para extinguir o processo com julgamento do mérito, no caso em que o magistrado reconhece, de ofício, a decadência do direito material do autor.

      A natureza do despacho inicial negativo pode também ensejar decisão interlocutória, quando o juiz nega seguimento à petição inicial de terceiro que pretende intervir espontaneamente no processo, mediante assistência e ação de oposição (CPC, arts. 50 e 56), bem como à peça de reconvenção, proposta pelo réu no procedimento ordinário do processo cognitivo (CPC, arts. 299 e 315) e a de ação declaratória incidental, pelo autor ou pelo réu (CPC, art. 325). Cabe agravo de instrumento (CPC, art. 524).

6. Interrupção da prescrição – Efeito material do despacho inicial positivo. Prescrição é a perda do direito de ação, dada a inércia do autor em ajuizar a ação para reconhecer o seu pretendido direito. O despacho inicial positivo interrompe a prescrição e cancela o prazo corrido.

              A interzupção da prescrição é efeito material do despacho inicial positivo, que admite a petição inicial (constatação da presença das condições genéricas da ação e dos pressupostos processuais) e determina a citação, mesmo que tenha sido proferido por juiz incompetente. Ocorre uma única vez (CC, art. 202, caput). Na prática forense, é difícil o magistrado tornar explícita, no despacho inicial positivo, a existência (condições) e a validade (pressupostos) da ação e do processo; apenas determina cite-se, com as cautelas legais. Este despacho pressupõe o recebimento (aptidão) petição inicial, para fins de interrupção da prescrição.

              O despacho inicial correcional significa a ordem judicial destinada ao autor emendar a petição inicial, pena de indeferimento (CPC, arts. 39 e 284). Este despacho não indica a aptidão da petição ificial, tanto qum o magistrado constatou alguma falha e viabiliza a retificação ou complementação pelo autor. Com a emenda satisfatória, o magistrado, aí sim, recebe a petição inicial e determina a citação, interrompendo a prescrição.

              O despacho inicial negativo tem natureza de sentença, que extingue o processo sem julgamento do mérito ou, excepcionalmente, com julgamento do mérito (decadência) (CPC, arts. 267 e 269, IV). Não há falar em interrupção da prescrição, pois esta sentença não admitiu a petição inicial. A apelação é cabível no prazo de quinze (15) dias e permite o juízo de retratação, em quarenta e oito (48) horas; sendo este positivo (juiz se retrata e recebe a inicial), a prescrição é interrompida (CPC, art. 296).

              Esta é a regra para o processo cognitivo, cautelar e executivo. O processo de execução do CPC e da LEF já continha esta regra, desde a vigência dos respectivos ordenamentos jurídicos (CPC, art. 617; LEF, art. 8º, § 2º). O processo cognitivo (com regras aplicáveis ao processo cautelar) previa a interrupção da prescrição como um dos efeitos materiais da citação (CPC, art. 219, caput); somente após a efetiva citação (mandado, correio, edital ou hora certa), a prescrição estaria interrompida. O art. 202, I, ab initio, do CC derrogou o art. 219, caput, do CPC, para determinar, no processo cognitivo e cautelar, a interrupção da prescrição no despacho inicial positivo, equiparando-se ao processo executivo. No processo cautelar, a prescrição só se interrompe com o despacho inicial positivo, quando o procedimento for preparatório, pois a cautelar incidental indica a existência de ação principal, na qual o despacho já foi devidamente realizado.

              A interrupção da prescrição, determinada no despacho inicial positivo, retroage ao ajuizamento da ação – data em que a petição inicial foi distribuída ou despachada, pois no instante em que a petição é entregue ao órgão jurisdicional a demanda considera-se proposta e o processo, existente (CPC, arts. 219, § 1º, e 263). Na existência de única vara na comarca, o processo inicia-se com o despacho do juiz na petição inicial (CPC, art. 263, primeira parte); a coincidência entre este despacho (inicial positivo) e a interrupção da prescrição, dispensa o efeito retroativo. Havendo mais de um juízo (ou vara) na comarca, o processo inicia-se através da distribuição (CPC, art. 263, segunda parte), caso em que a interrupção da prescrição no despacho de aptidão da petição inicial retroage à data da propositura.

              As demais regras do art. 219, §§ 2º a 5º, continuam em vigor; o autor deve observar os prazos legais para a citação e suportar as conseqüências de sua negligência (CC, art. 202, I, in fine).  

7. Efeitos da citação. Analisando o art. 219 do CPC, a doutrina ensina que a citação válida gera efeitos processual e material. O efeito processual ou técnico da citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa e o efeito material ou substancial, constitui o réu em mora e interrompe a prescrição.

              Sendo válida a citação, o efeito material aparece diante do juízo competente ou incompetente (absoluta e relativamente), abrangendo todas as tutelas, inclusive as de urgência em que se defere ordem liminar (tutela antecipada e cautelar). Já a citação inválida não produz nenhum efeito no juízo competente ou incompetente.

              Com a vigência do art. 202 do CC, o art. 219 do CPC está derrogado, quanto ao efeito material da interrupção da prescrição, o qual ocorre com o despacho inicial positivo (LICC, art. 2º, § 1º). A situação é equiparada ao processo de execução (CPC, art. 617; LEF, art. 8º, § 2º).

              Assim, o art. 219 do CPC (citação válida) apresenta somente o efeito material da constituição do réu em mora e os efeitos processuais da prevenção, litispendência e litigiosidade da coisa.

8. Citação e interrupção da prescrição.  O art. 202, I, do CC derrogou o art. 219, caput, do CPC, quanto ao efeito material da interrupção da prescrição, o qual ocorre com o despacho inicial positivo (LICC, art. 2º, § 1º). Preserva-se a retroatividade da interrupção da prescrição à data da propositura da ação, quando existente mais de uma vara da comarca (distribuição) (CPC, arts. 219, § 1º, e 263, segunda parte); diante de única vara, o despacho inicial corresponde à data da propositura, dispensando a retroatividade (CPC, art. 263, primeira parte).

              O efeito interruptivo da prescrição, decretado no despacho inicial positivo, é condicionado à efetivação da citação, na forma e no prazo legal (CC, art. 202, I, in fine). A forma indica a citação real (mandado e correio) e ficta (edital e hora certa), já estudada acima.

              A citação deve ser realizada no prazo máximo de cem (100) dias. Tal preceito decorre da interpretação dos §§ 2º, ab initio, e 3º do art. 219, pois deve o autor providenciar a citação do réu no prazo de dez (10) dias subseqüentes ao despacho inicial positivo (cite-se), prorrogável até noventa (90) dias. Vencido o prazo máximo – cem (100) dias, o efeito retroativo da prescrição à data da propositura da ação só se aperfeiçoa se o atraso não ocorreu por culpa do autor (CPC, art. 219, § 4º). Embora a interrupção ocorra com o despacho inicial positivo, segundo o art. 202, I, do CC, a regra do § 4º do art. 219 deve ser preservada, para punir a conduta culposa do autor. Considera-se culpa do autor, v.g., a ausência ou a demora injustificada de recolhimento de despesas processuais atinentes às diligências do oficial de justiça (citação real por mandado, citação ficta por hora certa), do edital (citação por edital), quando não há o requerimento ou a concessão dos benefícios da justiça gratuita.

              O efeito retroativo da prescrição é preservado (não há prejuízo ao autor), independentemente da citação realizada em tempo superior a cem (100) dias, quando existir: a) demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário, no cumprimento do ato citatório (CPC, art. 219, § 1º, in fine) (exs.: remessa de carta ou correio; expedição de mandado; expedição e cumprimento de carta precatória para citação por mandado; formalização do edital); e, b) omissão, desvio ou dificuldade imposta pelo réu para receber o ato citatório. Descabe ao réu sustentar, após a citação ou o comparecimento espontâneo nos autos do processo, o excesso de tempo para o cumprimento do ato e requerer a extinção do processo sem julgamento do mérito por abandono de causa ou ausência de pressuposto processual de validade (CPC, art. 267, II, III e IV), ou, ainda, a extinção do processo com julgamento do mérito em razão da prescrição (CPC, art. 269, IV).

              “As férias forenses não interrompem a prescrição (CC, art. 202), havendo expressa previsão legal de que as citações destinadas a evitar o perecimento do direito devem ser feitas nesse período (CPC, art. 173, II)” (RCLD 25/10; BAASPE 2.179/312-e).

              Antes da vigência do art. 202, I, do CC, o efeito interruptivo se perdia diante:

        – do reconhecimento da nulidade da citação do processo cognitivo nos embargos à execução (CPC, art. 741, I)  – hipótese em que o direito de ação do autor poderia não mais existir, tendo em vista que o vício derrubaria o efeito material da interrupção da prescrição (CPC, art. 219, caput). Agora, a interrupção da prescrição ocorre no despacho inicial positivo; a nulidade da citação decretada nos embargos pode anular todos os atos subseqüentes, mas a interrupção da prescrição, no processo cognitivo, está preservada no despacho inicial positivo; a nova citação deve observar as regras dos §§ 2º e 3º do art. 219;

        – da sentença terminativa (CPC, art. 267, II a X)  – a negligência e o abandono (II e III) da causa, a ausência de pressupostos processuais e de condições genéricas (IV e VI), a perempção, a coisa julgada e a litispendência (V), a convenção de arbitragem (VII), a desistência (VIII), a intransmissibilidade do direito (IX) e a confusão entre as partes (X) implicam a extinção do processo sem julgamento do mérito, motivo pelo qual os efeitos da citação já realizada deixam de existir. A negligência, o abandono, a perempção, a convenção de arbitragem ou a desistência do autor esclarecem, por si só, a desnecessidade de manter-se a interrupção da prescrição; o próprio autor atuou contrário ao exercício do seu direito de ação. A falta de pressuposto processual implica a invalidade do processo e de condição genérica da ação, inexistência do direito de ação. A litispendência e a coisa julgada formal e material indicam a existência de ação anterior, naquela, em andamento (com o mencionado efeito em vigor), e nesta, encerrada; o autor bem conhece suas atitudes que impedem a repropositura da ação. A intransmissibilidade do direito material e a confusão entre autor e réu impedem o exercício do direito de ação.

              Nos moldes do art. 202, caput e I, do CC, a interrupção da prescrição só ocorre uma única vez – no despacho inicial positivo. Sendo o processo iniciado, com a aptidão da petição inicial, e posteriormente extinto sem julgamento do mérito, nos moldes do arts. 267, II a X, e 329 do CPC, a coisa julgada formal não impede a repropositura de nova ação e o reinício do prazo prescricional (na data do trânsito em julgado formal), mas não existe outra interrupção da prescrição no novo despacho inicial positivo. Destacam-se três situações: a) se o processo for extinto por abandono ou negligência do autor, que não providencia a citação do réu, no prazo e na forma legal, o efeito interruptivo não ocorre no despacho inicial e a repropositura da ação corre o risco de ser constada a prescrição do direito de ação (CPC, art. 267, II e III; CC, art. 202, I, in fine); b) se o autor, para salvaguardar um pretendido direito, que sabe não ser seu, ou dele tem dúvidas sobre o titular, ajuizar a ação, simplesmente para interromper a prescrição, a sentença terminativa pode reconhecer a carência superveniente e o exercício mal intencionado do direito de ação, para extinguir o processo sem julgamento do mérito (CPC, arts. 16 a 18, 267, VI, 295, 329). A repropositura da ação é inibida pela inexistência de nova interrupção da prescrição, como único objetivo pleiteado pelo autor, desde a primeira ação; e, c) o magistrado, excessivamente apegado à forma, extingue o processo sem julgamento do mérito, por carência superveniente à citação (falta de condição genérica ou de pressuposto processual); da sentença não existe apelação, formando-se a coisa julgada formal. A repropositura da ação exige a demonstração de que a causa extintiva da primeira não mais existe; a sua aptidão (despacho inicial positivo) não interrompe a prescrição; assim, a morosidade excessiva do Poder Judiciário, na prestação da tutela jurisdicional adequada de mérito (procedência ou improcedência do pedido) pode gerar a prescrição intercorrente e extinguir o direito de ação do autor, mediante alegação simples do réu, em qualquer grau de jurisdição (CPC, art. 303, III; CC, art. 193). Favorecendo o absolutamente incapaz, o magistrado ou o tribunal pode reconhecer, de ofício, a prescrição (CC, arts. 3º e 194). Se a morosidade decorrer de dolo ou fraude do magistrado, ou este praticar condutas tendentes à recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de ato oficial ou mediante requerimento, há responsabilidade objetiva do Estado ou da União (magistratura estadual ou federal) (CF, arts. 5º, LXXV, e 37, § 6º; CPC, art. 133; LOMAN, art. 49). A culpa não tem previsão legal e diante de norma restritiva, não deve o magistrado (e o parquet) responder pela negligência, imprudência ou imperícia. No caso de recusa, omissão ou retardamento injusto, a prova da responsabilidade necessita que a parte tenha requerido o cumprimento do ato e o juiz não respeitado o prazo legal; o abrandamento do cumprimento do prazo pelo magistrado precisa ser analisado no caso concreto a impedir prejuízo à parte que postula tempestivamente, em juízo, o seu pretendido direito (CPC, arts. 189, 198 e 199).

              No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o despacho inicial é negativo, de modo que não há falar no efeito material em tela, mesmo que a natureza do pronunciamento jurisdicional seja sentença terminativa (CPC, arts. 267, I, e 295); indeferimento posterior (ao despacho inicial positivo), o efeito interruptivo não desaparece, mas é único, de sorte que o novo despac`o inicial posi|ivo na nova ação não interrompe a prescrição, cujo prazo voltou a correr naquela sentença decorrente do indeferimento posterior (CPC, art. 329; CC, art. 202, caput). O julgamento do mérito exige a relação jurídica processual completa (autor juiz réu), mas o pronunciamento ex officio da decadência pelo juiz, no despacho inicial negativo (sentença de mérito), implica a extinção do processo com julgamento do mérito sem a citação do réu e os efeitos pertinentes deste ato processual (CPC, art. 269, IV).

              Nas demais hipóteses destinadas à sentença de mérito (CPC, art. 269, I a V), a prescrição resta interrompida à época do despacho inicial positivo, mas não existe retomada do curso prescricional com o trânsito em julgado, pois há formação de coisa julgada formal e material, a fim de preservar a segurança jurídica das decisões judiciais que aplicam processualmente o direito material ao caso concreto.

              No caso de desaparecimento dos autos do processo em curso, cabe a qualquer das partes ajuizar ação de restauração de autos (CPC, art. 1.063); a ação de restauração não retira o efeito material de interrupção da prescrição pertinente à ação originária (cujos autos do processo estão desaparecidos).

 Abreviaturas

BAASPE    – Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo (Ementário)

CC – Código Civil (L 10.406, de 10-1-2002)

CF – Constituição Federal (Promulgada em 5-10-1988)

CPC – Código de Processo Civil (L 5.869, de 11-1-1973)

DJU – Diário da Justiça da União

DL – Decreto Lei

L – Lei

LC – Lei Complementar

LEF – Lei da Execução Fiscal (L 6.830, de 22-9-1980)

LICC – Lei de Introdução ao Código Civil (DL 4.657, de 4-9-1942)

LOMAN – Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35, de 14-3-1979)

RCLD – Revista Consulex (Leis e Decisões)

     


Referência  Biográfica

WALTER VECHIATO JÚNIOR   –  Advogado, Professor da Universidade Braz Cubas (UBC – Mogi das Cruzes/SP) nos cursos de graduação e pós-gradução lato sensu e do Curso Preparatório Jurídico (CPJ – Mogi das Cruzes/SP), nas disciplinas de Direito Processual Civil e Direito Civil, Autor das obras Curso de Processo Civil (volumes 1 e 2), Comentários ao CPC e Tratado dos Recursos Cíveis (todas pela Editora Juarez de Oliveira).

Arbitragem: um instituto calcado na autonomia da vontade

0

* Enéas Castilho Chiarini Júnior

1.0 – Introdução

É de conhecimento geral que o processo judicial, não só em nosso país, é excessivamente lento e caro, de forma a descontentar a grande maioria dos indivíduos que se vêem na necessidade de se socorrer de processo judicial para solucionar seus problemas.

Tal lentidão é fruto da modernização do Estado e sua conseqüente aumenta de demanda judicial, além da crescente conscientização da população quanto aos seus direitos de cidadão, o que aumentou o número de processos judiciais sem o necessário aumento e modernização do Poder Judiciário.

Deste contexto surge a necessidade de se buscar alternativas, rápidas, baratas e funcionais na solução de controvérsias.

Desta necessidade nasce a arbitragem, instituto que, contemporaneamente, ganha forças em todo o mundo globalizado.

No Brasil é editada a Lei nº 9.307/96 que, de forma definitiva, acolhe o instituto – o qual já era previsto em nosso ordenamento desde 1817.

Apesar disso, existem aqueles que, por desconhecimento do instituto, temem o processo arbitral, procurando evitá-lo ao máximo.

Assim, o presente trabalho pretende contribuir para a divulgação do instituto da arbitragem, na medida em que apresenta sua íntima ligação com o princípio da autonomia da vontade.

Busca-se, assim, demonstrar que a Arbitragem é decorrente da vontade das partes, e que estas, no processo arbitral, ao contrário do procedimento estatal, tudo podem. Podem escolher quem irá decidir a questão, o prazo máximo para a promulgação da sentença, e, até mesmo quais as regras de direito que serão aplicadas ao problema.

2.0 – Conceitos

Para a elaboração de um trabalho o qual se deseja compreensível, torna-se imperiosa a conceituação de seus objetos, razão pela qual o presente trabalho inicia a conceituação do instituto da arbitragem, e do princípio da autonomia da vontade, os quais são temas centrais do presente trabalho.

2.1 – Arbitragem

4font face="Arial" size="2">No Brasil, a arbitragem é regulada pela Lei nº 9307/96 a qual não traz uma definição do que seja a arbitragem, sendo necessário recorrer-se à doutrina para a sua definição.

Para Jarrosson apud Bosco Lee e Valença Filho: “A arbitragem é a instituição pela qual um terceiro resolve o litígio que opõem duas ou mais partes, exercendo a missão jurisdicional que lhe é conferida pelas partes.” (Op. cit., pág. 19).

Outra definição trazida pelos mesmos autores é a de Irineu Strenger, para quem:” Arbitragem é instância jurisdicional praticada em função de regime contratualmente estabelecido, para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado e/ou público, com procedimentos próprios e força executória perante tribunais estatais.” (Op. cit., pág. 20).

A arbitragem pode ser, portanto, conceituada como sendo um método extrajudicial de solução de controvérsias, onde as partes pactuam, previamente, no sentido de que a controvérsia seja decidida por pessoa – ou pessoas – neutra, imparcial, escolhida de comum acordo, e conhecedora da matéria a ser decidida, através de um processo jurídico não-estatal – menos formal que o processo estatal – e sigiloso, cuja decisão final, além de não desafiar recursos – exceto por vícios formais, nunca pelo mérito da decisão -, possui força executiva judicial.

A arbitragem possui uma natureza jurídica mista. É privada pela sua origem em um pacto de vontades, e é, ao mesmo tempo, pública pela sua função jurisdicional.

2.2 – Autonomia da vontade

A autonomia da vontade é um princípio (No sentido apresentado por Robert Alexy onde os princípios se diferenciam das regras na medida em que aqueles podem ter maior, ou menor, aplicação de acordo com o caso concreto, enquanto que estas somente podem ser aplicáveis, ou não-aplicáveis) do direito obrigacional, e que é um dos fundamentos da arbitragem.

Pode ser apresentado como corolário do direito de liberdade, segundo o qual as partes são livres para pactuarem como quiserem (desde que respeitados alguns limites mínimos, conforme se verá adiante).

Outro princípio relacionado com o da autonomia da vontade é o princípio do pacta sunt servanda, de modo que as partes são livres para acordarem o que quiserem, e, justamente por isso, o contratado deve ser cumprido. Ou, dizendo de forma diferente, a autonomia da vontade somente existe porque o que for pactuado será cumprido, mesmo que a força.

Pode-se, assim, conceituar-se o princípio da autonomia da vontade como sendo a possibilidade de, em certos casos autorizados por lei – direitos disponíveis -, as partes convencionarem, livremente, o que lhes aprouver a cerca de seus direitos e deveres, de maneira que, o que for pactuado será juridicamente exigível, ou, não sendo a exigibilidade possível, dará ao credor a possibilidade de pedir indenização por perdas e danos decorrentes do não cumprimento da obrigação convencionada.

3.0 – Arbitragem & Autonomia da vontade

O instituto da arbitragem está intimamente ligado ao princípio da autonomia da vontade, podendo-se dizer, a exemplo de Bosco Lee e Valença Filho (Op. cit.. pág. 21), que o princípio da autonomia da vontade está onipresente no instituto da arbitragem.

Esta relação existe, em primeiro lugar, pelo fato de que, somente será estabelecido o procedimento arbitral se ambas as partes pactuarem neste sentido.

É o que se depreende da leitura do artigo 1º da Lei da Arbitragem (Lei nº 9307/96), que afirma que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios…” [grifei].

Uma vez que a lei afirma que as partes “poderão” recorrer à arbitragem, ela torna este procedimento não obrigatório, e, sendo, portanto, facultativo, ambas as partes devem estar de acordo com a instauração do procedimento arbitral.

Outra razão para que o procedimento arbitral deva ser convencionado pelas partes reside no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por este dispositivo constitucional pode-se, inclusive, pugnar-se pela inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem, no sentido de que a decisão da controvérsia deveria ser tomada, exclusivamente, pelo Poder Judiciário.

Tal raciocínio, porém, utiliza o que os estudiosos da lógica chamam de argumento a contrário, o que, do ponto de vista lógico, é inconcebível.

Se a Constituição diz que o acesso ao Judiciário não será excluído, não está dizendo, como querem alguns, que a resolução do conflito passe, obrigatoriamente, por este Poder.

O que a Constituição afirma é que, caso seja de interesse da parte, esta poderá recorrer ao judiciário, afirmação esta que não é, de forma alguma, incompatível com a Lei nº 9307/96, uma vez que esta condiciona a instauração do procedimento arbitral à anuência de ambas as partes, ao dizer que: “as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem…” (artigo 3º) [grifei].

A autorização para se evitar o Poder Judiciário explica-se pelo fato de que somente poderão ser dirigidos ao procedimento arbitral os litígios que tratem de direito patrimonial disponível, conforme expresso no artigo 1º da Lei.

Interessante notar-se também que: “…a competência do árbitro é de origem eminentemente contratual, visto ter a arbitragem um fundamento convencional: “o poder de julgar reconhecido aos árbitros nasce de um acordo de vontades”. Mediante uma convenção abitral, as partes submetem a resolução do litígio a um tribunal arbitral e, por conseqüência, afastam a competência da jurisdição estatal, que, de outro modo seria compulsória. Neste sentido se manifesta o Prof. Francisco Cláudio santos: ‘A nova lei brasileira (Lei nº 9.307/96), orientada para privilegiar a vontade da parte, dá realce a esta vertente significativa da liberdade, que é a(autonomia da voftade…” (Boco Lee e Valença Filho, op. cit., pág. 22).

O princípio da autonomia da vontade permeia o instituto da arbitragem ao permitir que as partes designem: o modo pelo qual o tribunal arbitral será constituído, as pessoas que ocuparão a posição de árbitros, as regras de direito a serem aplicadas no procedimento arbitral, o prazo para que a sentença seja proferida.

Outro exemplo da autonomia das vontades reside no fato de que, enquanto no procedimento judicial estatal as partes não podem, de forma alguma, escolherem quem será o juiz a decidir a causa, na arbitragem ocorre exatamente o oposto, ou seja, somente terá poderes para decidir a questão aquele – ou aqueles, caso existam mais de um árbitro – a quem as partes delegarem poderes para tanto.

3.1 – A autonomia da vontade na Lei nº 9307/96

São exemplos da presença expressa do princípio da autonomia da vontade na lei arbitral, os artigos 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 8º, 9º, 11, 13 e 23.

O artigo 1º, como já citado, afirma que as partes, desde que capazes de contratar, poderão valer-se da arbitragem para solucionar seus litígios que tenham, como problema central, direitos patrimoniais disponíveis.

No artigo 2º, a lei abre a possibilidade de as partes escolherem, livremente, as regras de direito que serão aplicadas à arbitragem, ou, se a arbitragem será julgada por critérios de eqüidade (Segundo Celso Ribeiro Bastos in Curso de direito financeiro e de direito tributário, pág. 189, a eqüidade “..é uma apreciação subjetiva, cujo critério reside no senso de justiça. O Código de Processo Civil de 1939, no seu art. 114, conceituava a eqüidade nos seguintes termos: ‘Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.’"). É importante ressaltar que o resultado prático desta possibilidade não pode ferir a ordem pública e/ou os bons costumes.

Pelo artigo 3º as partes podem optar pela arbitragem em convenção de arbitragem, que pode ser, segundo o mesmo artigo, a Cláusula Compromissória, ou o Compromisso Arbitral (aquela é uma cláusula contratual onde as partes se comprometem a submeter controvérsia futura ao procedimento arbitral – artigo 4º da lei -, e este é o contrato, posterior à controvérsia, em que as partes decidem utilizar da arbitragem como meio de solucionar o litígio – artigo 9º da lei).

No artigo 5º existe a possibilidade de as partes decidirem qual será o “órgão” que arbitrará a sentença, se uma instituição arbitral permanente, ou se um tribunal arbitral ad hoc (Observe-se que a utilização da expressão “Tribunal Arbitral ad hoc” não é correta, uma vez que todo Tribunal Arbitral é, necessariamente, ad hoc, ou seja todo tribunal arbitral é constituído para a solução do litígio em questão, e, uma vez realizado o julgamento, o tribunal é extinto, deixando de existir. A expressão é aqui utilizada, apenas para diferenciar as instituições que possuem um quadro de árbitros, cujos serviços arbitrais poderão ser contratados, dos tribunais montados exclusivamente para solução de um litígio. Ou seja, o indivíduo convocado para atuar como árbitro NÃO É arbitro, ele PERMANECE árbitro enquanto existir o tribunal arbitral, sendo correta a afirmação de que “eu não SOU árbitro, eu ESTOU árbitro”. Interessante notar, como fizeram Bosco Lee e Valença Filho (op. cit., pág. 28) que: “…o juiz exerce a função jurisdicional de forma vitalícia; seguindo a carreira da magistratura. A missão do árbitro, em contrapeso, é efêmera, não permanecendo o árbitro nesta condição para além do processo ao qual ele foi designado.”), instituído, única e exclusivamente, para o julgamento de um caso concreto e específico.

O artigo 6º explicita que deverá haver acordo prévio quanto à forma de instituição da arbitragem.

Pelo artigo 8º fica a cláusula compromissória considerada de forma autônoma em relação ao contrato que a contém. É mais um exemplo da presença do princípio da autonomia da vontade, uma vez que, tendo as partes pactuado pela preferência do procedimento arbitral, este desejo prevalece inalterável, mesmo que o contrato seja considerado nulo. Ou seja, mesmo que o contrato contenha algum vício que o anule, o desejo das partes de se socorrerem pelo processo da arbitragem deverá ser respeitado.

O artigo 9º define o compromisso arbitral como sendo uma convenção, ou seja, fruto da vontade das partes.

Já o artigo 11 apresenta, em seus seis incisos, alguns aspectos que poderão ser convencionados livremente pelas partes.

O artigo 13, por sua vez, autoriza às partes a escolherem, livremente, o árbitro, de forma que este poderá ser “…qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.”

Por fim, o artigo 23 autoriza as partes a estipularem, livremente o prazo em que a sentença deverá ser proferida.

3.2 – Limites à autonomia da vontade

A autonomia da vontade, como todos os outros direitos fundamentais, não é absoluto, sofrendo limitações de ordem pública.

A primeira limitação é quanto a capacidade das partes, de sorte que o incapaz não possui autonomia da vontade necessária para decidir se quer, ou não, submeter seu litígio à arbitragem.

A autonomia da vontade é limitada, sobretudo quando se trata de questões de direitos indisponíveis, como por exemplo os de Direito Tributário, Direito Penal, Direito de Família e Sucessão, além, é claro e principalmente, dos Direitos Fundamentais.

3.2.1 – Direitos Disponíveis e Direitos Indisponíveis

“Mas o que é um direito disponível? Para Patrice Level, um direito é disponível quando está ‘sob o total domínio de seu titular, de tal modo que este pode fazer tudo em relação a aquele, principalmente alienar, e mesmo renunciar’. O critério da livre disponibilidade é na verdade de difícil apreensão. Todavia, segundo o direito brasileiro de arbitragem, o caráter patrimonial da relação litigiosa delimita a disponibilidade do direito e, por conseqüência, a abitrabilidade da matéria.” ( João Bosco Lee e Clávio de Melo Valença Filho, op. cit. pág. 62)

A contrario sensu, direito indisponível é aquele do qual não se pode dispor, ou para o qual a Lei impõe restrições de disponibilidade.

3.2.2 – Direito Tributário

O Direito Tributário, por tratar de direitos do Estado, indisponíveis por natureza, não pode, jamais, ser resolvido por meio da arbitragem.

Primeiro por que a arbitragem é um instituto que depende da vontade das partes, e o Estado não “desejou” que litígios referentes a tais direitos pudessem ser resolvidos pela arbitragem.

Segundo por que, por se tratarem de direitos do Estado são de interesse da coletividade, não existindo quem possua legitimidade para julgar tais direitos pela via arbitral.

3.2.3 – Direito Penal

O Direito Penal, é o direito público por excelência.

Intimamente ligado aos Direitos Fundamentais, não existe possibilidade de decisão acerca de direito penal que possa ser resolvida através da arbitragem, mesmo porque, trata-se de questão de interesse estatal, e, assim como o Direito Tributário, não existe legitimidade para que pessoas não-ligadas ao Poder Judiciário pudessem solucionar problemas relacionados ao Direito Penal.

Por outro lado, ainda, em muitos casos – ação penal pública incondicionada – é impossível, até mesmo para o Estado, abrir mão do direito de punir.

3.2.4 – Direito de Família e Sucessões

O direito de família e o direito das sucessões, em regra (afirmo que o direito de família é em regra indisponível pois, através da adoção, direitos de família como o de filiação, de paternidade e de alimentos tornam-se disponíveis, assim como direitos sucessórios também são, de certa forma disponíveis, uma vez que é possível ao sucesso rejeitar a herança a que teria direito), também é indisponível.

A indisponibilidade de tais direitos decorre do caráter de direito fundamental que possuem o direito de família e o direito de sucessão.

Os direitos de família são fundamentais, pois todo indivíduo possui direito à ter um pai e uma mãe, e a pertencer a uma família.

Também o direito das sucessões possui caráter fundamental, uma vez que todo indivíduo possui o direito de herdar o patrimônio de seus ascendentes.

Desse caráter de direito fundamental é que decorre a indisponibilidade dos direitos de família e sucessões, de tal sorte que, nos casos de adoção, é sempre necessário recorrer-se à via judicial para se assegurar a lisura do procedimento de adoção, assim como, no caso de sucessão onde existam menores, é necessário sempre a participação do Ministério Público a velar pelos direitos destes.

3.2.5 – Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais são, segundo corrente alemã, direitos humanos reconhecidos pelo direito interno, ou pelo direito internacional, quer seja nas constituições nacionais, quer seja em tratados internacionais (Fábio Konder Comparato, op. cit., pág. 56).

Tais direitos podem ser conceituados da seguinte forma: “Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir. Este conceito não é absolutamente unânime nas diversas culturas. Contudo, no seu núcleo central, a idéia alcança uma real universalidade no mundo contemporâneo…” (João Baptista Herkenhoff, Gênese dos Direitos Humanos, págs. 30 e 31).

Por serem direitos ligados à dignidade da pessoa humana, estes direitos são tidos, unanimamente, por indisponíveis, chegando-se ao ponto de pugnar-se pela impossibilidade de denúncia de tratados internacionais que tratem de direitos humanos.

“Dado que eles se impõem, pela sua própria natureza, não só aos Poderes Públicos constituídos em cada Estado, como a todos os Estados no plano internacional, e até mesmo ao próprio Poder Constituinte, à Organização das Nações Unidas e a todas as organizações regionais de Estados, é juridicamente inválido suprimir direitos fundamentais, por via de novas regras constitucionais ou convenções internacionais. Uma das conseqüências desse princípio é a proibição de se pôr fim, voluntariamente, à vigência de tratados internacionais de direitos humanos […] Ora, o poder de denunciar uma convenção internacionais só faz sentido quando esta cuida de direitos disponíveis. Em matéria de tratados internacionais de direitos humanos, não há nenhuma possibilidade jurídica de denúncia, ou de cessação convencional da vigência, porque se está diante de direitos indisponíveis e, correlatamente, de deveres insuprimíveis.” (Fábio Konder Comparato, op. cit., págs. 64 e 65).

Ficando, assim, demonstrada a indisponibilidade dos direitos fundamentais, o que implica na indisponibilidade dos direitos de liberdade, e por conseqüência de todo o sistema de Direito Penal, além dos ramos do Direito de Família, e do Direito das Sucessões.

3.2.6 – Direito do Trabalho

O Direito do Trabalho é um caso diferente, onde a indisponibilidade dos direitos trabalhistas, durante a vigência do contrato de trabalho, decorre de sua posição de subordinação na relação de trabalho, de forma que o trabalhador é considerado como hipossuficiente na relação que possui com seu empregador.

Desta hipossuficiência decorre todo o sistema protetivo em favor do trabalhador e esta proteção se justifica na medida em que, num país como o Brasil, existem milhões de desempregados, e, onde a maioria dos trabalhadores recebem uma remuneração que não lhe garante, na maioria das vezes, nem o suficiente para se alimentar dignamente.

Sem esta proteção, seria fácil para que os empregadores impusessem condições, na hora de contratar seus empregados, que acabariam por transformar o trabalhador em escravo (coisa que, mesmo com toda a proteção aos trabalhadores, ainda ocorre em nosso país, para se confirmar tal afirmação basta acompanhar as notícias que são comuns neste sentido).

Porém, o motivo de toda esta proteção, e consequentemente, da indisponibilidade de tais direitos, decorre da fragilidade do empregado enquanto empregado. O que se pretende é, como dito, dar total poder aos empregadores para que façam com os empregados o que bem entenderem.

E, justamente por isso, não se justifica que tal indisponibilidade dos direitos decorrentes da relação de trabalho permaneçam para além do contrato de trabalho.

Assim, a legislação permite que, após o fim da vigência do contrato de trabalho, estes direitos possam ser livremente negociados entre ex-empregado e ex-empregador, de forma que é totalmente compatível a arbitragem e os direitos trabalhistas – apenas frise-se: desde que após o fim do contrato de trabalho -, não existindo óbice para que problemas decorrentes do contrato de trabalho sejam solucionados pela via arbitral.

4.0 – Conclusão

Fica com o presente estudo demonstrado que a arbitragem está ligada à autonomia da vontade de forma indissociável, uma vez que a vontade das partes é condição sine qua non do procedimento arbitral, pois, sem a anuência das partes, estar-se-ia contrariando o disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, o que tornaria o instituto inconstitucional.

Ninguém, ao contrário do que se poderia imaginar, tem nada a perder com a arbitragem, uma vez que o árbitro deve observar o dever de imparcialidade. Nem mesmo os advogados perderiam campo profissional, uma vez que, apesar de não obrigatória a sua presença no procedimento arbitral, sua partacipação é, sem lúvida nenhuma aconselhável. Pelo contrário, abre-se mais um campo de atuação para os profissionais do Direito que poderão ser indicados a atuarem como árbitros.

Deve-se deixar para que o Estado decida apenas as questões ligadas à direitos indisponíveis, para que, assim, diminua o número de processos judiciais, o que acabará por trazer maior celeridade ao Poder Judiciário que poderá, enfim, julgar de forma mais rápida os processos mais urgentes que, via de regra, cuidam, justamente, dos direitos indisponíveis.

Divulgar a arbitragem, e lutar pelo seu fortalecimento no plano nacional é, portanto, dever de cidadania, com o qual todos devem contribuir para que o Poder Judiciário possa cumprir com seu dever constitucional de distribuir justiça aos que dela têm fome e sede.

5.0 – Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro em 10.12.98. Tradução informal de Gilmar Ferreira Mendes. Texto distribuído, via internet, pelo próprio tradutor, aos alunos do curso de especialização latu sensu em Direito Constitucional pelo IBDC – Inst. Bras. de Dir. Constitucional – em parceria com a FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas;

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário. (trechos) 20ª ed., São Paulo: saraiva, 1999;

BEGALLI, Paulo Antônio. Prática forense avançada. 1ª ed., Belho Horizonte: Del Rey, 2001;

BOSCO LEE, João e VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. A arbitragem no Brasil. 1ª ed., Programa CACB-BID de fortalecimento da arbitragem e da mediação comercial no Brasil. Brasília: 2001;

CALAIÁCOVO, Juan Luis e CALAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem. (tradução de Adilson Rodrigues Pires) 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999;

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001;

DELGADO, José Augusto. A arbitragem: direito processual da cidadania. in Mediação: métodos de resolução de controvérsias. 1ª ed., São Paulo: LTr, 1999;

HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 1ª ed., São Paulo: Editora Acadêmica, 1994;

NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual da monografia jurídica. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999;

PIETRO DA SILVA, Tânia Braga. Desvendando a arbitragem. in Mediação: métodos de resolução de controvérsias. 1ª ed., São Paulo: LTr, 1999;

SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Mediação e Arbitragem. Apostila do curso de capacitação em mediação. edição de maio de 2002.

   


Referência  Biográfica

Enéas Castilho Chiarini Júnior:   Advogado; pós-graduando em Direito Constitucional pelo IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – em parceria com a FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas; e capacitado para exercer as funções de Mediador e Árbitro pela SBDA – Sociedade Brasileira para Difusão da Mediação e Arbitragem – em convênio com a ACIPA – Associação Comercial e Industrial de Pouso Alegre.

ernyonnet@terra.com.br

Crise na Execução Penal

0

* Renato Flávio Marcão

Sumário: 1. Abordagem do tema; 2. Natureza e objeto da execução penal, 2.1. Natureza da execução penal, 2.2. Objeto da execução penal; 3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal; 4. Conclusão.

 


1. Abordagem do tema

            Conforme sentenciou Roberto Lyra, é pela execução, em última análise, que vive a lei penal.

            Que a lei penal não tem "andado bem" é cediço. Os mais variados "equívocos legislativos" nos dão conta do caos em que se encontra a produção legislativa em matéria penal e processual. A tal respeito temos nos pronunciado não é de hoje. (1)

            Está em fase de estudos o Projeto que modificará a Lei de Execução Penal. É preciso, então, estabelecer reflexões sobre algumas questões doutrinárias e práticas da Lei, conforme buscaremos nas próximas linhas, dentro da singela visão que o trabalho propõe, estabelecendo afirmações e questionamentos relevantes para o estudo do tema.

2. Natureza e objeto da execução penal

            2.1. Natureza da execução penal

            Jurisprudência e doutrina nos apontam as divergências reinantes sobre a natureza da execução penal.

            Para alguns, "a execução criminal tem incontestável caráter de processo judicial contraditório" (TACrimSP, HC nº 307.582/5, 2ª Câm., rel. juiz José Urban, j. em 10.07.97, v.u.). É de natureza jurisdicional (JUTACrimSP 94/99).

            Ada Pellegrini Grinover ensina que: "Na verdade, não se nega que a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais". (2)

            Segundo Paulo Lúcio Nogueira, "a execução penal é de natureza mista, complexa e eclética, no sentido de que certas normas da execução pertencem ao direito processual, como a solução de incidentes, enquanto outras que regulam a execução propriamente dita pertencem ao direito administrativo". (3)

            Por fim, Julio Fabbrini Mirabete anota que: "… afirma-se na exposição de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: ´Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal". (4)

            Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante a intensa atividade administrativa que a envolve.

            Embora envolvida intensamente no plano administrativo, não se desnatura, até porque todo e qualquer incidente ocorrido na execução pode ser submetido à apreciação judicial, por imperativo constitucional, o que acarreta dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de Execução Penal é meramente exemplificativo.

            Não bastasse, as decisões que determinam, efetivamente, o destino da execução, são jurisdicionais.

            2.2. Objeto da execução penal

            Visa-se pela execução fazer cumprir o comando emergente da sentença penal condenatória ou absolutória imprópria (5), assim considerada aquela que não acolhe a pretensão punitiva, mas reconhece a prática da infração penal e impõe ao réu medida de segurança. (6)

3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal

            Diz o art. 3º da LEP: "Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei".

            São várias as conseqüências da condenação e os direitos atingidos pela sentença. Podemos citar, exemplificativamente: a. lançamento do nome do réu no rol dos culpados (art. 393, II, do CPP), providência que após a Constituição Federal de 1988, por imposição do art. 5º, LVII, só é possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; b. prisão do réu (cf. art. 393, inc. I, do CPP, arts. 321 e s., e 594, do mesmo Codex; c. tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, do CP e art. 63, do CPP); d. perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé: dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, alínea "a", do CP); do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (art. 91, II, alínea "b", do CP); e. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, I, do CP); a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP); a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso (art. 92, III, do CP); f. constitui ob{táculo à naturadização do condenado (art. 12, II, alínea "b", da CF); g. suspensão dos direitos políticos enquanto perdurar os efeitos (art. 15, III, da CF); g. induz reincidência (art. 63, do CP); h. formação de título para execução de pena ou, no caso de semi-imputabilidade, medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial ou internação (arts. 105 e 171, da LEP).

            De outro vértice, não são atingidos pela sentença penal condenatória os seguintes direitos: a. inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, caput, da CF); b. de igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I, da CF); c. de sujeição ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF); d. de integridade física e moral, não podendo ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III e XLIX, da CF; Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997); e. liberdade de manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); f. direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); g. liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI, da CF); h. de não ser privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII, da CF); i. expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, da CF); j. inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X, da CF); k. inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer (art. 5º, XII, da CF); l. plenitude da liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (art. 5º, XVII, da CF); m. o direito de propriedade (material ou imaterial), ainda que privado, temporariamente, do exercício de alguns dos direitos a ela inerentes (art. 5º, XXII, da CF); n. o direito de herança (art. 5º, XXX, da CF); o. o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder, e obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situação de interesse pessoal (art. 5º XXXIV, alíneas "a" e "b", da CF); p. direito à individualização da pena (art. 5º XLVI, da CF); q. ao cumprimento da pmna em estabedecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, da CF); r. relacionados ao processo penal em sentido amplo (art. 5º, LIII a LVIII, entre outros, todos da CF); s. direito de impetrar habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção e habeas data (art. 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII, da CF), com gratuidade (art. 5º, LXXVII, da CF); t. à assistência jurídica integral gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos (art. 5º LXXIV, da CF); u. indenização por erro judiciário, ou se ficar preso além do tempo fixado na sentença (art. 5º, LXXV, da CF).

            Comporta destaque o direito de "sujeição ao princípio da legalidade".

            Com efeito, a Lei de Execução Penal estabelece diversos benefícios em favor dos executados, sendo certo que tais não são efetivados durante a execução. Onde, então, a legalidade? Qual legalidade?

            Legalidade é a estrita observância da Lei ou o que é possível praticar em razão do descaso do Estado?

            O que se dizer, então, do direito à "individualização da pena" ?

            É sabido que o processo individualizador se desenvolve em diversas fases. Inicia-se com a individualização formal, passa pela judicial, e culmina com a individualização na execução.

            Como se afirmar, entretanto, que a individualização ocorre na execução?

            Sabemos que em completa desatenção ao art. 5º da LEP (7), não há uma devida classificação do condenado ou do internado.

            Como regra, também não há um "programa individualizador" para a execução das penas, restando no vazio o art. 6º da Lei de Execução Penal.

            Em relação ao exame criminológico a situação não é diversa.

            A despeito do que vem determinado nos arts. 8º e 9º da LEP, é do conhecimento de todos que não se dispõe de pessoal capacitado e treinado, para a realização do exame criminológico, que quando é feito, muito pouco ou quase nada de seguro aponta.

            A bem da verdade, na maioria das comarcas do Estado de São Paulo tal exame é substituído por um parecer apresentado por Assistente Social, que não dispõe de conhecimento específico para a análise do comportamento do criminoso, restringindo seu trabalho a uma única entrevista. Soma-se a tal relatório de entrevista um parecer psicológico também decorrente de um único encontro.

            O resultado, evidentemente, não poderia ser outro.

            Realizam-se tais entrevistas e utilizam-se tais trabalhos técnicos, mais pelo formalismo do que pelo conteúdo.

4. Conclusão

            A crise instalada na execução penal se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso.

            É certo que, na medida em que não se efetivam as regras da execução penal, pune-se o condenado duas vezes.

            Contudo, a apenação maior recai sobre a sociedade ordeira que financia, com o pagamento de impostos, taxas etc, a estruturação de um sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso daqueles que foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos que a integram.

            A parcela ordeira da população é, no mínimo, triplamente vítima.

            Vítima do medo; do crime, e também da inércia/ineficiência de seus representantes junto a Poderes Instituídos, há muito fracassados ante a incontida ascensão do império em que reina absoluta a ilicitude penal.

Notas

            1. MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealismo normativo à realidade prática. RT 781/484-96. Disponível na internet.

            2. Execução Penal, São Paulo : Max Limonad,1987, p. 7.

            3. Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 5/6.

            4. Execução Penal, São Paulo : Atlas, 1997, p. 25.

            5. MARCÃO. Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 3.

            6. CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 342.

            7. "Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal".

      


Referência  Biográfica

Renato Flávio Marcão :  Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Especialista em Direito Constitucional. Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal Coordenador Cultural da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo – Núcleo de São José do Rio Preto-SP. Sócio-fundador da AREJ – Academia Riopretense de Estudos(Jurídicos e Cogrdenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

rmarcao@terra.com.br

O Dano Moral e sua Indenização

0

* Clovis Brasil Pereira –

SUMÁRIO  1.  Generalidades     2. Dano moral e sua tipificação    3. O valor das indenizações e sua complexidade     4.  atribuição do valor à causa      5.  Conclusão     6.   Bibliografia


1.  Generalidades  

O dano moral e sua justa indenização tem merecido grande destaque no mundo jurídico pátrio, notadamente após  a promulgação da Constituição Federal em 1988, que em seu artigo 5º, assevera  a igualdade de todos  perante a lei,  sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O mesmo artigo, no inciso V, assevera  que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.   O inciso X,  prescreve que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

É certo que já na vigência do Código Civil de 1916[1],  já revogado,  era previsível a indenização decorrente de dano moral, que assim proclamava: “Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico e moral”.

E seu parágrafo único, completava:  “O interesse moral só autoriza a ação quando  toque diretamente o autor ou à sua família”.

Assim, embora possível, o dano moral ficara restrito em sua tipificação. Em legislação específica, notadamente na Lei 5.270/67, denominada “Lei de Imprensa”, art. 49 e segs., e Lei 4.417/62, conhecida como Código Brasileiro de Telecomunicações, art. 84, também viabilizavam, antes de 1988, a indenização por dano moral, nos casos específicos.

È certo todavia, que a Carta Constitucional atual pacificou o cabimento desta modalidade de indenização, ao prevê-la expressamente no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5º, incisos V e X, já referidos.

A jurisprudência, por sua vez, se pacificou no acolhimento  da cumulação de pedidos de indenização por dano moral e material, através pelo Superior Tribunal de Justiça[2], que assim definiu: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

Na verdade, a Constituição federal de 1988 abriu as portas para a reparação civil mais ampla, decorrente de dano moral, incorporando tal possibilidade no Código Civil  de 2002, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, que ao tratar dos Atos Ilícitos[3], assim prevê: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. 

2.   Dano Moral e sua tipificação  

Os danos morais se originam de fatos humanos que conduzem a lesões de interesses alheios, juridicamente protegidos, mas que atingem apenas a reserva psíquica do ofendido.

Na lição de Orlando Gomes[4]  “os danos morais são lesões praticadas contra os direitos considerados essenciais à pessoa humana, denominados direitos da personalidade”.

Referido doutrinador classifica esses direitos da personalidade em direitos à integridade física, tais sejam, direito à vida, ao próprio corpo e ao cadáver, e direitos à integridade moral, ou seja, direito à honra, à liberdade, à imagem, à privacidade, à intimidade, e ao nome.

Carlos Alberto Bittar[5],  em artigo  publicado,  definiu danos morais como “lesões sofridas pelas pessoas físicas e jurídicas, em certos aspectos de sua personalidade, em razão de investidas injustas de outrem. São aqueles que atingem a moralidade e a afetividade da pessoa, causando-lhe constrangimentos, vexames, dores, enfim, sentimentos e sensações negativas”.

O mesmo autor, ao analisar no mesmo artigo, a incidência cumulada de danos morais e materiais mistos, observa que “podem ambos conviver, em determinadas situações, sempre que os atos agressivos alcançam a esfera geral da vítima, como dentre outras, nos casos de morte de parente próximo em acidente, ataque à honra alheia pela imprensa, violação à imagem em publicidade, reprodução indevida de obra intelectual alheia em atividade de fim econômico, e assim por  diante”.

Para que o dano seja objeto de indenização exige-se a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente e o resultado, do que deflui a obrigação de reparar-se o dano.

O dano moral pode ser analisado sob dois prismas: o interno, quando o lesado padece em termos subjetivos, ou seja, sente-se diminuído em sua auto-estima  e valoração, com ou sem repercussão somática; o externo, quando se deprecia a imagem do ser humano objetivamente, isto é, quando o ato repercute negativamente no meio social, circunstâncias que envolvem determinada pessoa, igualmente com reflexos sobre ela.

No primeiro caso, temos a título de exemplo, a ocorrência de acidente, onde a vítima sobre o dano, em decorrência de aleijão (deformidade física). No segundo, a calúnia, a difamação ou a injúria, onde o lesado sofre o dano em razão da repercussão negativa da ofensa no meio social.


3.  O valor da indenização e sua complexidade  

A apuração do valor indenizatório, nas ações decorrentes de dano moral, tem se mostrado, ao longo do tempo, de maneira bastante complexa e controvertida, isto porque não existem parâmetros previstos em lei para a fixação do valor da reparação do dano moral.

Parece-nos ainda, que tais indenizações não devem mesmo obedecer regras fixas, pré-determinadas, como desejam alguns, na esteira de projeto de lei em discussão no Congresso Nacional, onde se pretende limitar o valor das indenizações em determinados patamares.

Nessa hipótese, se aprovada tal limitação, tirará do magistrado a possibilidade de examinar cuidadosamente cada  caso, às luz das provas produzidas, as características próprias de cada dano, o alcance e a repercussão da ofensa, o que parece-nos um grande equívoco.

Observe-seque o Código Civil de 2002[6], prescreve que “a indenização mede-se pela extensão do dano”.  Previu o legislador ordinário, que para se aferir o valor real a título de indenização por dano moral ou material, deve-se levar em conta o resultado da lesão, para o dano em sí e sua extensão.

Entendemos muito tímida a limitação  simplesmente “à extensão do dano”, e em descompasso com toda a evolução doutrinária e jurisprudencial desenvolvida a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, e que caminha numa construção mais abrangente para a caracterização do ano, e sua adequada  mensuração, para busca de uma justa indenização, com o fim de aplacar a dor e o sofrimento do ofendido.

Para Fabrício Zamprogna  Matielo[7] o valor do dano moral depende da análise de vários aspectos subjetivos e objetivos para sua quantificação.

Segundo o autor, “as circunstâncias objetivas dizem com a possibilidade econômica de o obrigado suportar e efetivamente cumprir com o teor condenatório, sob pena de se fazer desmoralizar o Judiciário e fazer letra morta de todo o conteúdo processual.             

Afora isso, ainda em termos objetivos, há que se perquirir qual o montante justo e suficiente para oferecer ao lesado meios amplos de buscar alivio para o mal sofrido, seja qual fora modalidade de lenitivo buscada, o que ficará a critério exclusivo do próprio atingido.”

Como circunstâncias subjetivas,  “indaga-se qual o ânimo dos agentes quando do fato danoso e após o mesmo, em especial no que pertine ao lesante. Ele poderá agir com diversos graus de reprovabilidade,  devendo responder tão mais severamente quanto maior a culpabilidade e a reação ao ilícito provocado. Analisa-se, também, eventual grau de contribuição da vítima para a verificação do resultado lesivo, fazendo com que a chamada culpa concorrente amenize a situação do autor da lesão”.

Para o Prof. Martinho Garcez Neto[8]  “são dois os modos porque é possivel obter-se a reparação civil: a restituição do estado anterior e a reparação pecuniária, quando o direito lesado seja de natureza reintegrável”.

Assim, no caso da dor, da tristeza, ou do aborrecimento desmedido, não é possível desfazer tais circunstâncias, mas sim, pleitear o meio de compensação dos efeitos deles decorrentes, através de uma indenização pecuniária, pelo dano moral experimentado. 

Busca-se sim, dar ao ofendido, uma satisfação, um conforto, para aplacar ou pelo menos, amenizar a sensação de dor e sofrimento experimentados.

Tal indenização deve ser, de tal sorte, que sirva também de agente punitivo e inibidor ao causador do dano, para que este não mais o repita.

Dessa conjugação é que flui a idéia de que cada caso, deve ser analisado de forma isolada, para que não se caia num simplismo puro e simples, onde o valor da condenação de uma pequeno empresário, por exemplo, corresponda a de um grande banqueiro. Nessa hipótese, se o valor for fixado num mesmo patamar, levando-0se em conta a condição do pequeno empresário, em nada afetará o grande banqueiro, que não se verá inibido ao cometimento de outros danos de efeito moral.  Na mesma linha de raciocínio, se o patamar for fixado levando-se em conta a condição do banqueiro, em nada tirará o estímulo do pequeno empresário a não mais repetir o gesto danoso, uma vez que não podendo pagá-la, a decisão judicial se mostrará inócua, inaplicável.

Nesse sentido se mostra oportuna a lição de Fabrício Zamprogna Matielo[9]  que “a reparação está fulcrada na observância do binômio capacidade econômica (do lesante) X necessidade de meios (alcançáveis ao lesado).  Ao mesmo tempo, não deve, a demanda reparatória, ser fonte de enriquecimento indevido, nem minguada ao ponto de nada representar. Importa lembrar, ainda, que a reparação dos danos morais deve entender ao dúplice objetivo para os quais foi idealizada, ou seja, compensação ao atingido e punição ao agente da lesão” (grifo nosso).

Observa-se ainda, que a Lei de Imprensa  e o Código Brasileiro de Telecomunicações, conforme já anteriormente dito,  trazem parâmetros específicos para fixação do dano moral, o que tem se mostrado por vezes, muito pífio, para reparação das ofensas decorrentes de tais dispositivos legais, notadamente pela repercussão e velocidade com que as falsas imputações ou falsas noticias se propagam, nos chamados  veículos de massa,  notadamente televisão,  rádio e internet.

Face a previsão constitucional posterior a esses dois dispositivos legais, que datam 1962 (Código Brasileiro de telecomunicações) e 1967 (Lei de Imprensa),  parece-nos inclusive que tais parâmetros encontram-se derrogados pela Carta Magna, o que sem sido admitido pela jurisprudência majoritária,  ficando à critério do Magistrado, no exame de cada caso concreto, a fixação de valores compatíveis à justa indenização pelo dano moral decorrente do ato lesivo.

4.   Atribuição do valor à causa

É norma inserta no Código de Processo Civil[10] “que “a toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediato”.

Tem sido comum, no entanto, nas ações indenizatórias que buscam a compensação pelo dano moral,   prudência na atribuição do valor à causa. Na maioria dos casos, os pedidos não são pleiteados em valor certo, o que parece-nos incorreto, à luz do que dispõe o Estatuto Processual, mas sim de  forma insinuada,  onde o valor da causa é atribuído de forma simbólica, e o pedido inicial, é pela condenação em indenização equivalente a 100, 200, 500 ou mais salários mínimos.  Existe pois, nesta hipótese,  um enorme fosso entre o valor atribuído à causa, e o pedido de condenação, em desalinho com a regra processual contida no CPC.

Logicamente que essa modalidade que domina a prática das ações indenizatórias, de dano moral, tem por objetivo o recolhimento de custas processuais simbólicas, e ainda para fugir da condenação nas verbas de sucumbência, no caso de improcedência da ação.

Certamente, cabe ao requerido, no momento certo, formular sua impugnação, após analisar a conveniência ou não de questionar o valor atribuído à causa, conforme preceitua  o Código de Processo Civil[11].

5.    Visão da Jurisprudência            

Demonstraremos a seguir, algumas decisões de nossos Tribunais, ao longo do tempo,  no julgamento de ações indenizatórias, com objetivo de ilustrar o campo de incidência do dano moral, sua tipificação e os parâmetros utilizados para sua fixação:

5.1. INDENIZAÇÃO – Danos físicos e morais – Arbitramento pelo Juiz – Admissibilidade – Voto vencido. “O arbitramento do dano fica ao inteiro arbítrio do juiz que, não obstante, em cada caso, deve atender a repercussão econômica dela, a dor experimentada pela vítima e o grau de dolo ou culpado ofensor”.  (TJSP; Ap. 219.366-1/5; 8ª Câm.; j. 28.12.94; rel. Des. Felipe Ferreira; RT 717/126).

5.2. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. PARÂMETROS DE FIXAÇÃO DO QUANTUM. “Há de ser dúplice o parâmetro de fixação do critério para definição da quantia devida: a extensão da responsabilidade do lesante, que deve sentir expressivamente o desembolso, sem contudo inviabilizar-se financeiramente; e a justa compensação ao lesado, acerca de quem se levarão em conta circunstâncias, tanto de ordem pessoal como social em que esteja inserido, sem, porém, transfigurar-se em causa de enriquecimento. Embargos infringentes desacolhidos, por maioria”. (TJRS; Embargos infringentes 596161968; 3º Grupo de Câmaras Cíveis; Porto Alegre; rel. Dês. Luiz Gonzaga Pila Hofmeister; j. 04.10.96; RTJRS 181/160).

5.3.   Responsabilidade Civil – Estabelecimento bancário – Dano Moral. “Conta corrente aberta com documentos falsificados. Nome do autor levado aos cadastros de inadimplentes e cartórios de protestos. Dever de indenizar caracterizado pela ausência de cautela do banco, ditado ainda pela doutrina do risco profissional. Dano moral que independe da demonstração de prejuízo econômico. Montante  da indenização mantido como forma de sancionamento pelo descaso do banco com a situação. Recurso improvido”.  (1º TACivil-SP 6ª Câm.; Ap. nº 1.060.492-7-Piracicaba-SP; Rel. Juiz Marciano da Fonseca; j. 2.04.2002; v.u.).

5.4.  DANO MORAL – Responsabilidade civil. Acidente de trânsito – vitima fatal (cônjuge). “Fixação pelo magistrado a quo em 50 salários mínimos para cada uma das partes. Pretensão pelas autoras de majoração da indenização. Alegação da ré de inexistência de dano moral, ante a propositura da ação deforma tardia (12anos após o evento). Indenização compatível com o lapso temporal da propositura da ação. Recursos improvidos”. (1º TACiv-SP, Apelação Sumária nº 1.044.677-0; 8ª Câmara, São Paulo, 17.04.02; v.u.; rel. juiz Grava Brazil).

5.5.  ESTADO DO MARANHÃO. OFICIAL DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR. EXONERAÇÃO POR HAVER SIDO ADMITIDO SEM CONCURSO. REPARAÇÃO DAS PERDAS E DANOS SOFRIDOS, COM BASE NO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Legitimidade da pretensão, tendo em vista que a nomeação do recorrente para a corporação maranhense se deu por iniciativa do Governo estadual, conforme admitido pelo acórdão recorrido, havendo importado o encerramento de sua carreira militar no Estado do Rio de Janeiro, razão pela qual, com a exoneração, ficou sem os meios com que contava para o sustento próprio e de sua família. Recurso provido para o fim de reforma do acórdão, condenando o Estado à reparação de danos morais e materiais, a serem apurados em liquidação, respectivamente, por arbitramento e por artigos”. (STF – RE 330834/MA; j. 03.09.02; rel. Min. Ilmar Galvão). 

5.6. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – Desligamento indevido de telefone… “Na fixação do valor da indenização dos danos morais deve o juiz adotar um critério de prudência e razoabilidade, atento às circunstâncias peculiares da causa, ensejando uma indenização apta a compensar o constrangimento e os dissabores sofridos e punir o agente causador do dano, desestimulando-o à prática de novos fatos envolvendo outros consumidores.   No caso, apesar de não se poder considerar os eventuais prejuízos  sofridos pelo estabelecimento comercial do Apelante, há que se considerar o constrangimento e o vexame sofridos por ele perante seus clientes no estabelecimento comercial. Além disso, não pode a indenização ser fixada em valor insignificante, que praticamente nada signifique para o ofensor, porque deve ser em valor que sirva como forma de punição ao ofensor”. (TAPR – 1ª Câm. Cível; AC nº 0215907-1-Altônia-PR; Rel. Juiz Roberto de Vicente; j. 10.12.2002; v.u.).

5.7.  Responsabilidade Civil. Acidente de Trabalho. Indenização. Direito Comum. valor da causa. Dano material e moral. Fixação com critério e prudência Necessidade – “Na ação de indenização por acidente de trabalho fundada em direito comum,com pretensão de reparação de dano material e moral, o calor a causa deve ser fixado com critério e prudência, de forma a não impedir o acesso à justiça pela parte contrária. (2º TACiv-SP, AI 777.735-00/3, 11ª Câm., 24.2.03, rel. juiz Egídio Giacoia).

5.8. DANO MORAL – Listas negras. “Restou incontroverso nos autos que a reclamada elaborava e atualizava, de tempos em tempos, a chamada “lista negra”, com o nome de todos os ex-funcionários que vieram a pleitear seus direitos no Poder Judiciário Trabalhista. No caso presente, a reclamada adotava procedimentos vis, não apenas discriminando ex-empregados que ajuizaram reclamações trabalhistas, quando do fornecimento de referência, mas também coagindo as empresas que lhe prestavam serviços para que não contratassem ou até mesmo demitissem tais pessoas. Se o fato de que a reclamada elaborar tal listagem e encaminha-la a uma única firma já é motivo bastante para configurar o dano à pessoa da autora, quanto mais se considerarmos as centenas de empresas que lhes prestavam serviços ou comercializavam seus jornais. Caracterizada a lesão ao trabalhador, impõe-se o ressarcimento do dano. Recurso a que se dá provimento parcial (tão-somente para reduzir o valor da indenização” (TRT – 24ª Região; RO nº 452/2002-001-24-00-7-Campo Grande-MS; Relatora Juíza Dalma Diamante Gouveia;  j. 3/04/2003; maioria de votos e v.u.). 

5.9. ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL – INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DEINADIMPLENTES – DANO MORAL – PROVA – ART. 159 DO CC/1916. “Jurisprudência desta Corte pacificada no sentido de quer a indevida inscrição no cadastro de inadimplentes, por si só, é fato gerador de indenização por dano moral, sendo desnecessária a prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrida pelo demandante”. (STJ – RESP 468573/PB – j.  07.08.03; rel. Min. Eliana Calmon).

5.10.  DANO MORAL. Cabimento pelo excessivo atraso na entrega de apartamento a construir (I), além da devolução corrigida dos valores desembolsados (II). Não há bis in idem, porque a verba de dano moral engloba a frustração da casa própria e os lucros cessantes pelo não recebimento do imóvel no prazo avençado. Apelo provido parcialmente. (TJ-RJ; Ap. Civ. 2003.001.15400; j. 13.08.03; rel. Des. Severiano Ignácio Aragão). 

6. Conclusão

A  indenização por dano moral busca a reparação de injusta agressão aos bens jurídicos tutelados no direito da personalidade, protegendo a honra., a liberdade, a intimidade, a imagem, a privacidade, a saúde, o bom nome, dentre outros.

Em sua mensuração, devem ser observados, caso a caso, a extensão do dano, conforme o previsto no Código Civil, bem como a capacidade econômica do lesante, a repercussão do dano sob o prisma interno e externo, servindo de meio a aplacar ou suavizar a dor e o desconforto sofridos pelo ofendido, e ainda, como meio inibidor ao ofensor, para que não venha repetir a ofensa moral. 

Vemos a aplicação das sanções indenizatórias em todas as esferas da atividade humana, onde reste tipificada a ofensa moral, notadamente nas áreas criminal e civil, nas relações capital-trabalho, na imprensa em geral (rádio, jornal, televisão, etc.), no direito autoral, nas relações de consumo, dentre outras.

Busca-se, na verdade, com uma justa indenização, abrandar os efeitos da agressão injusta, independente de sua natureza, como forma de conforto, com o fim de restabelecer os preceitos básicos de dignificação da pessoa humana, mandamento maior tutelado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal vigente.

7.  Bibliografia 
 

BITTAR, Carlos Alberto, Reparação Civil por Danos Morais, RT, São Paulo, 1993

CASILLO, João, Dano à Pessoa e sua indenização,  RT, São Paulo, 1987

GARCEZ NETO, Martinho, Prática da Responsabilidade Civil, Saraiva, 1989.

GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, Rio, Forense, 1983.

LEVADA, Cláudio Antônio Soares, Liquidação de Danos Morais, Copola Editora, 1997

MATIELO, Fabrício Zamprogna, Dano Moral – Dano Material e Reparações, Ed. Sagra Luzzato, 4ª edição.

SANTOS, Antonio Jeová, Dano Moral Indenizável,  Ed. LEJUS, São Paulo, 1997

THEODORO JÚNIOR, Humberto, Dano Moral, Ed. Oliveira Mendes, 1ª edição, 1998

——————————————————————————–

[1] Código Civil, 1916, artigo 76, § único

[2] STJ, Súmula 37

[3] Código Civil, 2002, artigo 186

[4] GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, Rio, Forense, 1983, p. 129

[5]  BITTAR, Carlos Alberto, Reparação Civil por Danos Morais, in Revista do Advogado nº 44, Out/1994

[6] Código Civil, 2002, artigo 944

[7] MATIELO, Fabrício Zamprogna, Dano Moral –Dano Material e Reparações, Ed. Sagra Luzzato, 5ª edição. P. 185

[8] GARCEZ NETO, Martinho, Prática da Responsabilidade Civil, Saraiva, 1989, p. 50

[9] MATIELO, Fabrício Zamprogna, Ob. Cit., p. 186

[10] CPC, artigo 258

[11] CPC, artigo 261

 


 

Referência  Biográfica

Clovis Brasil Pereira  –  Advogado, Especialista em Processo Civil, Mestre em DireitoProfessor Universitário. Ministra Cursos Práticos no Legale Cursos Jurídicos, Curso Êxito, Unidades da ESA, no Estado de São Paulo. É Coordenador e Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br

Contato:  prof.clovis@54.70.182.189

Pluralismo jurídico na União Européia

0

* Amandino Teixeira Nunes Junior

Sumário: 1.Introdução; 2. Pluralismo jurídico, 2.1.Antecedentes históricos, 2.2.Concepções atuais; 3.União Européia, 3.1.Formação histórica, 3.2.Instituições comunitárias; 4. Pluralismo jurídico na União Européia, 4.1.Direito nacional, 4.2.Direito comunitário, 4.2.1.Conceito, 4.2.2.Classificação, 4.2.3.Características; 5. Conclusão; Bibliografia.


1.INTRODUÇÃO

            O presente artigo pretende discutir o pluralismo jurídico decorrente do processo de integração na Europa, considerando a existência concomitante de dois ordenamentos jurídicos no contexto da União Européia: o nacional, constituído pelo Direito interno dos países que a integram, e o supranacional, constituído pelo Direito Comunitário.

            Inicialmente, examina-se o pluralismo jurídico, seus antecedentes históricos e as concepções atuais que o identificam. Adiante, aborda-se a União Européia, sua formação histórica e as instituições que a compõem.

            Em seguida, analisa-se o pluralismo jurídico na União Européia, a partir do estudo do Direito Nacional e do Direito Comunitário, enquanto sistemas com diferentes princípios, regras, procedimentos e áreas de competência, mas que interagem entre si.

            Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do artigo, que venham contribuir para o enriquecimento do tema.

2.PLURALISMO JURÍDICO

            2.1.ANTECEDENTES HISTÓRICOS

            O Direito tem sido normalmente identificado como a ordem jurídica do Estado, isto é, aquela composta por normas elaboradas, editadas e asseguradas por órgãos estatais. No entanto, a ampliação do estudo da Sociologia Jurídica tem implicado o reconhecimento de que o Estado não detém mais o monopólio da criação e aplicação das normas jurídicas. Assim, admite-se a existência simultânea de ordens jurídicas distintas, que, por sua própria dinâmica, tornam-se insuscetíveis à apreensão por um único Direito (estatal).

            Como observa Ana Lúcia Sabadell:

            "Esta questão vem sendo tratada sob a denominação de pluralismo jurídico, provocando acirradas discussões no meio acadêmico. Na verdade não existe uma única resposta. Devemos examinar a situação concreta de cada período histórico para saber se existe um ordenamento jurídico unitário ou uma pluralidade de sistemas jurídicos."(1)

            O pluralismo jurídico existiu na Europa durante o período medieval e o período moderno. "Em paralelo ao direito criado pelos aparelhos centrais dos Impérios e dos Reinos (direito real), vigoravam o sistema jurídico da Igreja e uma multiplicidade de direitos locais consuetudinários (fundamentados nos costumes e em antigas tradições jurídicas) e de direitos de várias corporações (Universidades, membros de determinadas profissões, "irmandades"). O direito romano era reconhecido como fonte do direito; as opiniões dos grandes "doutores" (jurisconsultos) eram consideradas como legalmente válidas. Além disso, os diferentes grupos étnicos (tais como os mouros, judeus e ciganos) também mantinham o seu próprio direito, independentemente do lugar em que moravam".(2)

            Citado por Antônio Carlos Wolkmer,(3) Norbert Rouland destaca quatro manifestações jurídicas na Idade Média: um Direito "senhorial", baseado no militarismo; um Direito "canônico", informado por princípios cristãos; um Direito "burguês", fundado na atividade econômica; e, finalmente, um Direito "real", com a pretensão de incorporar os demais em nome da centralização do poder político, resultante da expansão do sistema capitalista.

            Essa multiplicidade de formas e de conteúdos jurídicos foi denunciada por filósofos racionalistas e iluministas, que chegavam a considerar o Direito medieval caótico e monstruoso. A desproporcionalidade e o autoritarismo na aplicação das penas, sem o direito dos acusados à ampla defesa e ao contraditório, propiciavam uma sociedade submissa, em que os excluídos do círculo de poder dominante (isto é: a nobreza, a realeza e o clero) não tinham qualquer representação.

            Com o fim da Idade Média e com o advento da Idade Moderna, a questão do pluralismo jurídico abre espaço para uma nova proposta, fundada no liberalismo e no individualismo. "A consolidação de uma nova forma de sociedade, capitalista, impõe uma nova concepção do político e do jurídico e uma crescente autonomia das ciências, livres do domínio religioso." (4)

            No final do século XIX, o pluralismo jurídico toma por base a obra de Otto von Gierke, que examinou o Direito das "corporações", na Alemanha. Na mesma linha de uma leitura sociológica dos sistemas jurídicos, citem-se Eugen Ehrlich, que analisou as manifestações do Direito "vivo" nas comunidades camponesas da região de Bukowina (Europa central), em detrimento do Código Civil do Império Austro-Húngaro, e Karl Llewllyn, que analisou o ordenamento jurídico desenvolvido pelos índios Cheyenne, nos EUA.

            Nas primeiras décadas do século XX, surgem as abordagens pluralistas de Santi Romano, sustentando que todo corpo social (partido político, religião, empresa) é uma instituição, que desenvolve seu próprio ordenamento jurídico, e de Widar Cesarini Sforza, defendendo a existência das relações jurídicas reguladas por normas costumeiras ou por acordos e decisões entre particulares, independente do Direito estatal. (5)

            Nas últimas décadas, a questão do pluralismo jurídico tem sido objeto de diversos estudos, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico, dando origem a três concepções atuais, retratadas por Ana Lúcia Sabadell(6), como se verá adiante.

            2.2. CONCEPÇÕES ATUAIS

            Pode-se destacar três concepções atuais do pluralismo jurídico. A primeira concepção situa-se nas análises teóricas sobre a "interlegalidade". Os adeptos desta concepção "identificam a existência de vários sistemas de normas jurídicas que interagem entre si, criando redes de relações jurídicas continuamente mutantes."(7) Esta é a posição nuclear do pós-positivismo jurídico, que considera o monopólio estatal da elaboração e aplicação do Direito como uma construção historicamente superada.

            A segunda concepção refere-se às mudanças ocorridas no cenário internacional, que propiciaram o surgimento de organizações internacionais (ONU, OMC) e supranacionais, de caráter regional (União Européia, NAFTA, Mercosul), que passaram a reclamar, de modo crescente, espaço de normatividade, por vezes, em detrimento dos ordenamentos jurídicos internos. A coexistência de normas jurídicas nacionais, internacionais e supranacionais criou uma nova forma de pluralismo jurídico que os estudiosos e pesquisadores passaram a analisar nos últimos anos. (8)

            A terceira concepção encontra-se nas pesquisas empíricas sobre o Direito "informal", alheio ao Direito "oficial", e no seio de diversas instituições sociais como igrejas, sindicatos, associações civis e empresas. (9)

            Dentre as concepções atuais do pluralismo jurídico, interessa-nos diretamente a segunda, em face do tema objeto do presente trabalho.

3.UNIÃO EUROPÉIA

            3.1.FORMAÇÃO HISTÓRICA

            O cenário internacional tem sofrido profundas transformações, nas últimas décadas, com o surgimento de blocos regionais, e a conseqüente interdependência entre os países que os integram.

            Na Europa, o processo de integração ganha impulso com a assinatura, em Paris, em 11 de abril de 1951, do Tratado de Paris, que instituiu a Comissão Européia do Carvão e do Aço (CECA) e, em Roma, em 25 de março de 1957, dos Tratados que instituíram a Comunidade Econômica Européia (CEE, hoje CE) e a Comunidade Européia de Energia Atômica (CECA ou EURATOM).

            O primeiro tinha por propósito a criação de um mercado comum de carvão e do aço. O segundo tinha por objetivo a criação de uma economia comum através da aproximação sucessiva das políticas econômicas dos países-membros. O terceiro propunha-se a promover, na Europa, a utilização da energia para fins pacíficos.

            Seguiram-se a esses o Tratado de Fusão dos Executivos, de 1965, que unificou as estruturas da CECA, da CE e do EURATOM; o Tratado de Bruxelas, de 1972; e o Ato Único Europeu, de 1987, que ampliou os poderes das Comunidades Européias e aperfeiçoou os procedimentos de tomada de decisão.

            Em 7 de fevereiro de 1992, foi assinado, em Maastricht, o Tratado da União Européia (TUE), firmado pelo Reino da Bélgica, pelo Reino da Dinamarca, pela República Federal da Alemanha, pela República Helênica, pelo Reino da Espanha, pela República Francesa, pela Irlanda, pela República Italiana, pelo Grã-Ducado de Luxemburgo, pelo Reino dos Países Baixos, pela República Portuguesa e pelo Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que entrou em vigor em 1o de novembro de 1993. Em janeiro de 1995, a República da Áustria, a República da Finlândia e o Reino da Suécia aderiram ao Tratado da União Européia.

            O Tratado de Maastricht, de 1992, foi alterado pelo Tratado de Amsterdã, de 1997, e pelo Tratado de Nice, de 2001.

            O Tratado da União Européia representa uma nova fase no processo de integração naquele continente, imposta pela necessidade da criação de bases sólidas para a edificação da Europa futura. Além de promover a unificação dos países europeus, eliminando as barreiras que dividiam a Europa e melhorando as condições da vida e de emprego, o Tratado da União Européia reafirma o objetivo de assegurar a segurança e a liberdade de seus cidadãos.

            A União Européia inova e supera em muitos aspectos as organizações internacionais tradicionais, em particular na sua estrutura, funcionamento, poderes e competências. Fala e age como se fosse um Estado continental e elabora e promulga normas jurídicas que vigoram nos países que o integram e firma acordos com outros grupos de países. Vem inspirando a formação de blocos regionais semelhantes, como o NAFTA e o Mercosul.

            Os objetivos da União Européia, inicialmente apenas econômico e monetário, ampliaram-se consideravelmente, com a inserção de novos domínios, como a cultura, a informação, a defesa de consumidores, a segurança, a energia, o meio ambiente, as relações internacionais e o desenvolvimento científico e tecnológico, até alcançar a amplitude e a complexidade que apresenta hoje. Daí as profundas implicações no campo da Sociologia Jurídica e do Direito, com o surgimento de um pluralismo jurídico, caracterizado pela existência concomitante de dois ordenamentos: o primeiro, representado pelo Direito Nacional, composto por normas internas elaboradas no âmbito de cada país-membro; e o segundo, representado pelo Direito Comunitário, composto por normas supranacionais decorrentes dos Tratados comunitários e elaboradas pelas instituições comunitárias diretivas (Conselho da União Européia, Comissão Européia e Parlamento Europeu) e pela jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            3.2.INSTITUIÇÕES COMUNITÁRIAS

            A estrutura da União Européia compreende órgãos fundamentais, designados pelos Tratados comunitários como instituições. O seu exame permite distinguir quatro instituições diretivas: o Conselho da União Européia, a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            O Conselho da União Européia é a instituição responsável pela coordenação das políticas econômicas gerais dos países-membros, dispondo de poder de decisão próprio. É composto por um representante, de nível ministerial, de cada Estado-membro, com prerrogativas específicas para assumir, por seu país, compromissos vinculantes. É a única instituição comunitária em que os Estados-membros são representados.

            A Comissão Européia é a instituição incumbida de velar pela aplicação dos Tratados comunitários, formulando recomendações e pareceres sobre as matérias neles tratadas. Dispõe de poder de decisão próprio e está habilitado a tomar as iniciativas necessárias para garantir a coordenação e a execução das ações da União Européia e dos Estados-membros. É composta por vinte membros, escolhidos em função de sua competência geral, entre técnicos e políticos, com mandato de cinco anos e com todas as garantias de independência.

            Segundo Alejandro López Lacube, a Comissão Européia é "a instituição comunitária por excelência e a mais original" (10).

            O Parlamento Europeu tem como atribuição mais importante a participação no processo conducente à elaboração das normas comunitárias através dos procedimentos fixados nos Tratados da União Européia, a saber: procedimento de cooperação, procedimento de co-decisão, procedimento de consulta e procedimento do parecer favorável. Co-legisla, portanto, com o Conselho da União Européia, sob proposta da Comissão Européia. Tem ainda a faculdade de rejeitar o orçamento, no seu conjunto, o que fortalece o seu controle sobre as atividades comunitárias.

            É composto por seiscentos e vinte e seis representantes populares (os eurodeputados), eleitos por sufrágio universal direto, para um mandato de cinco anos.

            Finalmente, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é a instituição que garante o respeito e a observância da ordem jurídica comunitária através da interpretação e aplicação dos Tratados da União Européia. Tem uma posição de destaque, em relação às demais instituições comunitárias, por exercer uma função fundamental no processo de integração européia.

            Como observa Maria Teresa Cárcamo Lobo:

            "O Tribunal de Justiça tem um papel de extraordinária importância na construção do ordenamento jurídico comunitário, no exercício de suas funções de tribunal constitucional, tribunal judicial, tribunal administrativo e instituição de consulta (…) Alguns de seus acórdãos marcaram o perfil político-jurídico da Comunidade e a densidade constitucional efetiva da integração européia." (11)

            É composto de quinze juízes e assistido por oito advogados-gerais, aos quais cabe apresentar publicamente, com independência e imparcialidade, as conclusões fundamentadas sobre as demandas submetidas ao órgão jurisdicional comunitário.

            As instituições comunitárias diretivas mantêm entre si um diálogo interinstitucional, que envolve uma gestão interativa e compartilhada, no âmbito da União Européia.

4.  PLURALISMO JURÍDICO NA UNIÃO EUROPÉIA

            4.1.DIREITO NACIONAL

            O Direito Nacional compreende um conjunto de princípios e regras elaborado soberanamente por cada Estado-membro da União Européia, com eficácia restrita ao território respectivo. Encontra-se na Constituição e nas leis infraconstitucionais integrantes do ordenamento jurídico interno de cada país-membro.

            A relação entre o Direito Nacional e o Direito Comunitário é extremamente complexa, em face da transferência de parcela dos poderes soberanos dos Estados-membros às instituições comunitárias dotadas de supracionalidade, como se verá adiante.

            Como acentua Márcio Monteiro Reis:

            "Esta foi uma solução encontrada pelos Estados europeus em seu processo de integração, realizado através da formação de uma Comunidade de Estados. Nela, como em qualquer comunidade, há uma área comum ao lado das áreas privativas de cada membro. Assim, os Estados renunciam à sua competência em determinadas matérias concretas sobre as quais os órgãos comunitários passam a legislar, administrar e julgar. Suas decisões têm efeito direto. Portanto, ao legislar, o órgão comunitário está produzindo "lei" para todos os Estados, criando direitos e obrigações para eles e seus cidadãos imediatamente, sem necessidade de nenhum ato estatal. O mesmo se dirá com os atos administrativos ou judiciais. Todos produzem efeitos como se fossem provenientes de instâncias nacionais." (12)

            4.2.DIREITO COMUNITÁRIO

            4.2.1.CONCEITO

            Miguel Ángel Ekmekdjian, a propósito do conceito de Direito Comunitário, afirma:

            " (.. ) El derecho comunitário no es un derecho extranjero ni siquiera un derecho exterior, es un derecho próprio de los Estados miembros, tanto como su derecho nacional, com la característica especial de coronar la jerarquía normativa en todos ellos. (…) El ordenamiento jurídico comunitário se configura como un plexo de normas cuyos sujetos activos y pasivos son los Estados miembros y sus cidadanos. Dotado de órganos proprios, tiene poderes soberanos en ciertas materias específicas y – en la misma medida – los Estados miembros han perdido la soberanía en tales ámbitos reservados a al comunidad. En ellos, los países miembros conservan, sin embargo, competencias residuales, pero deben ejercelas conforme a la política legislativa comunitaria (…)" (13)

            No mesmo diapasão, Carlos Francisco Molina del Pozo, conceitua o Direito Comunitário como:

            "(…) el conjunto de normas y princípios que determinan la organización, funcionamiento y competencias de las Comunidades Europeas, (que) se conforma como un orden jurídico sui generis, dotado de autonomía com relación a los ordenamientos nacionales, distinto del orden jurídico internacional y del orden jurídico interno de los Estados miembros y caracterizado por unos rasgos peculiares."(14)

            Observe-se que ambos os conceitos de Direito Comunitário fazem menção a características próprias e a sua distinção em relação ao Direito Nacional.

            4.2.2.CLASSIFICAÇÃO

            O Direito Comunitário apresenta duas categorias fundamentais de normas: o direito originário e o direito derivado.

            O Direito Comunitário originário é formado pelos tratados que instituíram as Comunidades Européias, com seus anexos, protocolos, declarações e convênios relativos à sua execução, bem como pelos Tratados subseqüentes que os modificaram.

            O Direito Comunitário derivado é formado pelas normas advindas das instituições comunitárias competentes para produzi-las, a saber: Conselho da União Européia, Comissão Européia, Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

            Distintamente do Direito Comunitário originário, o Direito Comunitário derivado não se forma pela vontade direta dos Estados-membros manifestada ao aderir aos Tratados Comunitários, mas através de procedimentos legislativos autônomos com a participação das instituições comunitárias diretivas.

            Os atos jurídicos que integram o Direito Comunitário derivado são: os regulamentos, as diretivas, as recomendações, as decisões, os atos convencionais, os princípios gerais de Direito e a jurisprudência. (15)

            4.2.3.CARACTERÍSTICAS

            As características essenciais do Direito Comunitário são: a autonomia, a primazia, a aplicabilidade direta, o efeito direito e a aplicabilidade de sanção ao Estado-membro por descumprimento da norma comunitária.

            A autonomia do Direito Comunitário constitui o fundamento da ordem jurídica comunitária. Consiste na capacidade de criar um direito igual para toda a União Européia, uniforme e integralmente válido em todos os Estados-membros.

            A primazia do Direito Comunitário significa que suas normas possuem supremacia sobre as normas dos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros, inclusive sobre as de natureza constitucional.

            Com efeito, ao aderirem à União Européia, os Estados consentem em transferir em favor das instituições comunitárias parcelas de suas competências, compartilhando, assim, os seus poderes soberanos. Os princípios e regras do Direito Comunitário afirmam-se, pois, em relação a todo o Direito Nacional, qualquer que seja o seu nível hierárquico.

            A aplicabilidade direta do Direito Comunitário significa que as suas normas se integram ao ordenamento jurídico de cada Estado-membro, independente de a norma interna determinar essa inserção.

            A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias firmou-se como verdadeiro instrumento de criação judicial do direito. Trata-se, como se disse, do art. 177° do Tratado de Roma, com suas alterações, que confere ao Tribunal comunitário a atribuição de proferir decisões judiciais normativas, relativamente às questões prejudiciais sobre a uniformidade da aplicação e a apreciação da validade dos princípios e regras dos Tratados comunitários e dos atos e decisões adotados pelas instituições da União Européia.

            O efeito direto do Direito Comunitário significa que as suas normas, ao entrarem em vigor, geram direitos e impõem deveres aos particulares, que podem invocá-los perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

            Por fim, os Estados-membros podem sofrer sanções, impostas pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, pelo descumprimento de uma norma de Direito Comunitário ou até mesmo pelo não-acatamento de uma decisão judicial.

            Como se viu, a relação do Direito Nacional com o Direito Comunitário – cuja coexistência concomitante identifica o pluralismo jurídico na União Européia – encontra-se, basicamente, na autonomia deste em relação àquele, na primazia deste sobre o Direito Nacional e na aplicabilidade direta do Direito Comunitário nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros. Essa relação não decorre dos Tratados comunitários, mas da rica jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

5. CONCLUSÃO

            Em desfecho deste estudo, que discutiu o pluralismo jurídico no contexto da União Européia, não há como deixar de reconhecer que:

            a)a ampliação do estudo da Sociologia Jurídica implica o reconhecimento de que, hoje, o Estado não possui o monopólio de criação e aplicação das normas jurídicas;

            b)o pluralismo jurídico significa a existência concomitante de ordens jurídicas distintas, que, por sua própria dinâmica, não podem ser apreendidas por um único código (estatal);

            c)o pluralismo jurídico existiu na Europa durante a Idade Média, caracterizada pela descentralização política e pela multiplicidade de centros de poder, e a Idade Moderna, caracterizada pelo monopólio do Estado na criação e elaboração do Direito;

            d) a abordagem pluralista pode ser encontrada nas obras de Otto von Gierke (final do século XIX), de Santi Romano e de Widar Cesarini Sforza (primeiras décadas do século XX);

            e)as concepções atuais sobre o pluralismo jurídico encontram-se nas análises teóricas sobre a interlegalidade, nas mudanças verificadas no cenário internacional (decorrentes dos processos de integração) que propiciaram o surgimento do Direito supranacional, em detrimento do Direito interno, e nas pesquisas de campo desenvolvidas pela Sociologia Jurídica sobre o Direito "informal";

            f)a União Européia representa a fase mais avançada no processo de integração na Europa, inovando e superando em muitos aspectos as organizações internacionais tradicionais, especialmente na sua organização, funcionamento, poderes e atribuições;

            g)as instituições comunitárias com poderes de decisão são o Conselho da União Européia, a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias;

            h)a adesão dos Estados nacionais à União Européia implica a transferência irrevogável de parcela dos seus poderes soberanos às instituições comunitárias dotadas de supranacionalidade;

            i)o Direito Comunitário apresenta normas originárias, decorrentes dos Tratados comunitários, e normas derivadas, decorrentes de procedimentos legislativos autônomos, com a participação do Conselho da União Européia, da Comissão Européia, do Parlamento Europeu e da jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias;

            j)a relação entre o Direito Nacional e o Direito Comunitário, afirmada por uma fecunda construção jurisprudencial, encontra-se nas características do Direito Comunitário: a autonomia deste em relação ao Direito Nacional, a primazia da norma comunitária sobre a estatal, a aplicabilidade direta das normas comunitárias sobre a ordem jurídica de cada Estado-membro, o efeito direito do regramento comunitário nos particulares e a aplicabilidade de sanção ao Estado-membro que descumprir uma norma comunitária;

            k)o pluralismo jurídico na União Européia é identificado pela existência simultânea de dois ordenamentos jurídicos distintos: o nacional e o supranacional;

            l)a construção de um novo paradigma para o Direito passa por uma perspectiva pluralista democrática.

NOTAS

            1. SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000, pág. 104.

            2. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., págs. 104-105.

            3. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, pág. 170.

            4. MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá. 2000, pág. 23.

            5. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., págs. 105-107.

            6. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., pág. 106.

            7. SABADELL, Ana Lúcia, ob, cit. pág. 106.

            8. SABADELL, Ana Lúcia, ob. cit., pág. 107.

            9. No Brasil, as pesquisas mais conhecidas sobre o pluralismo jurídico são as desenvolvidas pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, numa favela do Rio de Janeiro, nos anos 70, à qual deu o nome de "Pasárgada". Tais pesquisas demonstraram a existência de um Direito "informal", reconhecido por seus moradores, que resolvia conflitos de habitação e de propriedade, empregando normas diferentes das elaboradas pelo Direito estatal. Neste sentido, veja-se: SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.

            10. LECUBE, Alejandro F. López. Manual de Derecho Comunitário: análisis comparativo de la Unión Europea y el Mercosul. Buenos Aires: Editorial Ábaco, 1997, pág. 131.

            11. LOBO, Maria Teresa Cárcamo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte: Livraria e Editora Del Rey, 1997, pág. 32.

            12. REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Européia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pág. 66.

            13. EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Introducción al Derecho Comunitario Latinoamericano. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1996, pág. 42.

            14. POZO, Carlos Francisco Molina del. Manual de Derecho de la Comunidad Europea. Madrid: Editorial Trivium S.A., 1997, págs. 505-506.

            15. Insere-se, também, no Direito Comunitário derivado, a rica jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que, em face do art. 177º do Tratado de Roma, com suas alterações, pode proferir decisões judiciais normativas em seus julgados, em relação às questões prejudiciais. Sobre o assunto, veja-se: SOUZA, João Ricardo Carvalho de. Constituição brasileira & Tribunal de Justiça do Mercosul. Curitiba: Juruá, 2001.

BIBLIOGRAFIA

            EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Introducción al Derecho Comunitario Latinoamericano. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1996.

            LECUBE, Alejandro F. López. Manual de Derecho Comunitario: análisis comparativo de la Unión Europea y el Mercosul. Buenos Aires: Editorial Ábaco, 1997.

            LOBO, Maria Teresa Cárcamo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte: Livraria e Editora Del Rey, 1997.

            MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno. Curitiba: Juruá, 2000.

            POZO, Carlos Francisco Molina del. Manual de Derecho de la Comunidad Europea. Madrid: Editorial Trivium S.A., 1997.

            REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Européia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

            SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

            SANTOS, Boaventura Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.

            SOUZA, João Ricardo Carvalho de. Constituição brasileira & Tribunal de Justiça do Mercosul. Curitiba: Juruá, 2001.

            WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma cultura no Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994.

        


Referência  Biográfica

Amandino Teixeira Nunes Junior:  Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, professor do UniCEUB e do IESB, em Brasília (DF), mestre em Direito pela UFMG, doutorando em Direito pela UFPE

amandinojunior@uol.com.br