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Apontamentos sobre os fundamentos do Direito Internacional Contemporâneo.

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Resumo: Os fundamentos do Direito Internacional contemporâneo são torneados pelos fatos que vivenciamos e, deve-se adotar a corrente humanista[1], principalmente, na defesa da paz mundial. A possível invasão russa sobre a Ucrânia faz soar os alertas em toda comunidade internacional.

Palavras-Chave: Fundamentos. Direito Internacional. Princípios de Direito Internacional. Direitos Humanos. Guerras. Cláusula de Martens.

Autores:

José Luiz Messias Sales. Professor Universitário . Mestre em Direito das Relações Internacionais e a Integração. Advogado. Especialista em Direito Empresarial, Direito Processual Civil. Assessor do Instituto Jamil Sales (IJL).  Autor da obra “Segurança Jurídica dos Contratos Comerciais no Mercosul. As Relações entre Brasil e Uruguai” E-mail: messiassales@terra.com.br

Gisele Leite. Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. 29 Obras Jurídicas publicadas. Presidente da ABRADE-RJ. Consultora IPAE. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ). E-mail: professoragiseleleite@gmail.com

 

Desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial as transformações trazidas para o Direito Internacional, provocaram questionamentos sobre o Direito Internacional, seus paradigmas e fundamentos. Afinal, as teorias tradicionais acerca de fundamentos do Direito Internacional não conseguiam explicar adequadamente o então Direito Internacional existente[2].

Um fato relevante foi a intensa busca de aspectos axiológicos e de legitimidade. E, combinando-se os aspetos do tema de fundamentos do Direito Internacional e sugere ainda que, combinando-se com as teorias existentes, os fundamentos do Direito Internacional contemporâneo poderiam ser descritos como sendo o consenso sobre a necessidade de segurança jurídica para a consecução de objetivos e proteção dos valores compartilhados pela sociedade internacional.

Tal definição atende à realidade internacional existente, preocupando-se, simultaneamente, com a criação de um cenário internacional ideal ou, pelo menos, idealizado.

A globalização, dentre muitos fatores, provocou nas relações internacionais contemporâneas muitas transformações significativas principalmente em razão dos atores envolvidos nas mesmas, quando em relação aos temas que as compõem. E, assim trouxeram questionamentos sobre os paradigmas do ramo do Direito que as pretende regular o Direito Internacional.

Afinal, a essência do Direito Internacional, reconhecido por seu papel como sistema de ordenação das relações entre os sujeitos de direito internacional e, demais agentes não-estatais no plano internacional e, ainda, o caráter vinculante de suas normas.

Trata-se de uma análise de um tema complexo e o contemporâneo cenário internacional ainda demanda um inter-relacionamento com o contexto onde atua o Direito Internacional.

No Direito Internacional de Coexistência até chegar ao Direito  Internacional de Cooperação e Mudança de Fundamentos se deu um trajeto histórico evolucionista, pois o Direito Internacional surgiu em 1648 através dos tratados de Münster e Osnabruck que consagraram a Paz de Westphalia, e tal ramo jurídico se ocupava, principalmente, em estabelecer as normas de coexistências entre os Estados soberanos existentes.

A Paz de Westphalia[3] estabeleceu os princípios que tanto caracterizaram o Estado Moderno, destacando-se as normas da soberania, da igualdade jurídica entre os Estados, da territorialidade e, ipso facto, de não-intervenção. As referidas normas traziam, em sua maioria, as obrigações de não-fazer, de mútua abstenção, e se fundavam na vontade soberana dos Estados, os quais, por serem soberanos, eram tidos como irresponsáveis no cenário internacional.

A noção de soberania absoluta passou a ser questionada, o porquê de haver o respeito às normas de Direito Internacional, isto é, a questionar acerca dos fundamentos do Direito Internacional.

Verificava-se uma unidade ética, naquela época, os doutrinadores buscavam o equilíbrio entre os intrínsecos aspectos ao sistema (a soberania dos Estados) e extrínsecos (justiça e valores comuns). Foi assim que Hugo Grotius cogitou em uma sociedade internacional lastreada no Direito Internacional e fundada em regras de convivência baseadas em consenso.

Neste início do Direito Internacional se buscou a fundamentação que tanto valorizou o contexto internacional, principalmente, na figura do consenso, e simultaneamente, se preocupou com questões éticas, numa sociedade internacional fundada nos ideias de  justiça e em valores compartilhados.

Em razão da unidade ética, o fundamento da legitimidade era buscado fora do sistema do Direito, dado que o que se verificava era a existência da unidade ética na vida humana, na qual todos os ramos (Direito, Religião e Economia) estavam ligados pelo mesmo fundamento e, ainda, pela busca da concretização dos mesmos valores.

A iminência de uma guerra entre Rússia e Ucrânia traz desdobramentos da crise e ainda o alerta da Casa Branca (EUA) sobre possível invasão. No momento, vários países começaram a emitir avisos para que seus cidadãos deixem imediatamente a Ucrânia[4] diante de iminente invasão russa. O Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido afirmou que todos os cidadãos britânicos devem sair agora enquanto os meios comerciais ainda estão disponíveis.

Ucrânia e Rússia permanecem em negociação, porém, um consenso é bastante improvável. E, os desdobramentos podem comprometer não apenas a segurança de toda Europa, mas principalmente, o mercado global, atingindo mesmo países distantes como o nosso, em efeito dominó. Lembremos que a Ucrânia faz fronteira com a Rússia e, também, com outros integrantes do União Europeia. É país dividido desde o fim da URSS em 1991.

O russo é amplamente falado e os laços culturais permanecem fortes. Todavia, o conflito sempre existiu, desde 2014 quando o Presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, que era pró-Rússia, foi deposto, Moscou anexou a Crimeia e também apoiou as forças separatistas na região.

E, tais grupos rebeldes se disseminaram pelo leste da Ucrânia e, permanecem em constantes conflitos. Nesse mesmo momento, a Ucrânia tenta se aproximar amigavelmente de instituições europeias como a OTAN e, esse movimento contraria em muito o atual Presidente russo, Vladmir Putin, que deseja manter a região sob seu domínio.

Convém recordar que Moscou sofre sanções do Ocidente desde 2014 quando anexou a Crimeia e, as medidas se intensificaram após o envenenamento de espião russo no Reino Unido e ainda das acusações de interferência nas eleições norte-americanas de 2016, o que é negado veementemente pela Rússia.

O Itamaraty emitiu nota afirmando que não há recomendação de segurança contrária à permanência na Ucrânia para brasileiros. Porém a Embaixada do Brasil situada em Kiev reitera que os brasileiros devem estar e permanecer em alerto e sempre atualizados por meio de fontes locais e internacionais confiáveis.

O Secretário-Geral da OTAN, Jens Stoltenberg afirmou que o bloco está unido e preparado para qualquer cenário, enquanto os EUA alertaram que a Rússia pode atacar a qualquer momento. A Rússia, por sua vez, repetidamente qualquer plano de invasão à Ucrânia, apesar de ter reunido mais de cem mil soldados perto da fronteira. Os soldados russos realizam exercícios militares perto da Criméia.

E, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken “Estamos na janela em que uma invasão pode começar a qualquer momento, e para ser claro, isso inclui acontecer durante as Olimpíadas de Inverno (que terminam em 20 de fevereiro de 2022)”, afirmou Blinken.

Moscou acaba de iniciar amplos exercícios militares com Belarus, e a Ucrânia acusou a Rússia de bloquear seu acesso ao mar. O Kremlin diz que quer impor “linhas vermelhas” para garantir que os ucranianos não se juntem à OTAN. O conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, disse que as forças russas estão “em posição de poder montar uma grande ação militar a qualquer momento” e instou os cidadãos americanos na Ucrânia a “saírem o mais rápido possível”. Os comentários e o tom de urgência nas advertências são vistos como uma clara escalada no conflito.

As tensões atuais ocorrem oito anos depois que a Rússia anexou a península da Crimeia[5], no sul da Ucrânia. Desde então, os militares da Ucrânia estão presos em uma guerra com rebeldes apoiados pela Rússia em áreas do leste perto das fronteiras da Rússia.

Moscou diz que não pode aceitar que a Ucrânia – uma ex-república soviética com profundos laços sociais e culturais com a Rússia – possa um dia se juntar à aliança de defesa ocidental Otan e exigiu que isso seja descartado.

A Rússia vem apoiando uma sangrenta rebelião armada na região de Donbass, no leste da Ucrânia, desde 2014. Cerca de 14 (quatorze) mil pessoas – incluindo muitos civis – morreram em combates desde então.

Há a possibilidade de que um foco renovado nos acordos de Minsk – que buscavam acabar com o conflito no leste da Ucrânia – poderia ser usado como base para neutralizar a crise atual. Ucrânia, Rússia, França e Alemanha apoiaram os acordos nos anos de 2014 e 2015. Vários países começaram a emitir avisos para que seus cidadãos deixem a Ucrânia diante de uma iminente invasão russa.

Com a progressiva evolução do Direito Internacional somada às mudanças no cenário internacional, particularmente, após o advento do positivismo jurídico, deu-se uma minimização dos elementos extrínsecos da fundamentação e da busca de critérios de legitimidade interna ao próprio Direito.

E, em face da unidade ética, o fundamento da legitimidade era buscado fora do sistema do Direito, dado que o que se verificava era a existência da unidade ética na vida humana, na qual todos os ramos, como Direito, Religião e Economia estavam ligados pelo mesmo fundamento e pela necessidade de concretização dos mesmos valores.

A propósito, é recomendável a leitura da obra de Fábio Konder Comparato, intitulada Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo Companhia das Letras, 2006. E, a respeito da legitimidade internacional, igualmente é recomendável a leitura de Jubilut, L.L., A legitimidade da Não-Intervenção em face das Resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da USP, 2007.

Aliás, a busca do fundamento da legitimidade fora do sistema jurídica em si é relevante pois em toda a vida das civilizações a moral mais elevada, a transcendência de valores é o que impulsiona a justiça, conforme aduz Comparato em obra retrocitada.

Porém, com o positivismo jurídico tal fato se altera uma vez que se opera a redução ou simplificação da vida social, não já sob forma de estruturas superpostas, mas de compartimentos estanques: o direito, como sistema normativo, existe independentemente da moral, da realidade econômica ou das formas de organização política.

Em face do que se cria, com isso, rígida separação entre direito e moral. Contrariando secular tradição de todas as civilizações, os positivistas consideram que o direito existe sem a ligação com a justiça, e os juristas não têm que julgar a ordem jurídica de acordo com os grandes valores éticos, porque não é uma tarefa científica e, sim política.

Com a influência do positivismo, verifica-se que, no que tange a fundamentação do Direito Internacional a ideia da busca da mesma dentro do próprio sistema não se tornou pacífica; surgindo, assim a principal dicotomia teórica relativa ao tema dos fundamentos do Direito Internacional: a que opõe voluntaristas e jusnaturalistas na defesa de um Direito Internacional resultante da vontade dos Estados ou como um conjunto de princípios naturais, respectivamente.

Não obstante das teorias voluntaristas e jusnaturalistas serem usadas como forma de classificar o debate, em verdade, se observa que as mesmas não compõem blocos homogêneos e, apesar de serem as teorias mais tradicionais, não exaurem o tema. E, segundo Gerson Boson, as teorias jus naturalistas diferenciam direito natural e direito positivo e, aceitam a validade intrínseca, material, das normas jurídicas, desde que preceitos justos, estejam por trás de sua elaboração.

As teorias jusnaturalistas englobam as teológicas (com fundamento em Deus), as racionais (fulcradas na razão humana); as axiológicas (fundadas na justiça), a panteísta (balizada no determinismo), sociológica (fundamentando o Direito no fato de o mesmo ser essencial para a manutenção da sociedade) e biológica (com fundamento na natureza).

Essa derradeira, merece destaque por ter como expoente a tese do Estado de natureza de Hobbes, o que denota o reflexo do tema dos fundamentos para o campo da Ciência Política e das Relações Internacionais(sobretudo no embate entre idealismo e realismo).

Assim, as teorias voluntaristas se dividem em autolimitação e vontade comum, nas concepções de Jellinek e Triepel, respectivamente. E, enquanto a teoria da autolimitação entende que o  Estado soberano, no exercício de sua soberania vem a escolher a se submeter ao Direito Internacional, isto é, que o direito internacional se funda na vontade metafísica do

Estado, que estabelece limitações ao seu poder absoluto, a teoria da vontade comum acredita que a vontade de um Estado não pode ser o fundamento do Direito Internacional, nem assim as leis concorrentes de vários Estados. Só a vontade comum de alguns Estados, fundidas em uma unidade volitiva pode ser o fundamento do Direito Internacional.

Em razão da noção de soberania absoluta, a teoria voluntaristas galgou expansão e espaço e passou a ter prevalência no próprio Direito Internacional. E, tal fato pode ser demonstrado pela crescente valoração dos tratados tidos como fonte do Direito Internacional e, ipso facto, da necessidade de concordância expressa com a norma e, na figura do objetor persistente no que tange ao costume internacional e que permite a não-vinculação à norma pela vontade do Estado que se manifeste contrariamente à esta.

Segundo a teoria voluntarista fundada na vontade e em aspectos intrínsecos do sistema normativo, verifica-se a limitação dos fundamentos do Direito Internacional às fontes do mesmo. Enfim, analisando a existência ou não de uma norma formal para se verificar o fundamento do Direito Internacional.

Isto é, preocupa-se apenas com a forma, e não propriamente com o conteúdo. Sendo tal situação viável enquanto o sistema é composto por normas de coexistência, mas passa a ser questionada quando surgem as normas de cooperação que apontam para os valores e objetivos comuns existentes.

Enfim, após a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, com advento da fundação da ONU, o Direito Internacional se alterou profundamente. Pois surgem novos sujeitos do Direito Internacional, particularmente, o ser humano, novos atores das relações internacionais, tais como as Organizações não-governamentais (ONGs) e novos temas internacionais como o meio ambiente, a integração econômica e os direitos humanos.

Em face disso, deu-se a necessidade de alterações no Direito Internacional que passará a produzir também, as normas de cooperação. E, acrescidas das normas de coexistência e, trazem à baila a relevante lição deixada por Norberto Bobbio, a paz positiva (desenvolvimento) que deve coexistir bem ao lado da paz negativa (ausência de guerras).

Assim, essas normas denotam igualmente a existência de valores e objetivos comuns, criando novos critérios de legitimidade e recuperando a preocupação axiológica do Direito Internacional que

tanto se reflete na relevância do conteúdo e, não apenas na forma das normas criadas.

Portanto, o Direito Internacional passa a contar com outros elementos em sua base que não somente a vontade do Estado e, que ipso facto, deve ser feita uma retomada do tema e revisão dos fundamentos Direito Internacional.

O surgimento de entes não-estatais no âmbito internacional e de normas de cooperação nos induzem aos questionamentos sobre o Direito Internacional e seus paradigmas e fundamentos.

Diante dessa crise paradigmática do Direito Internacional que não é mais possível fundá-lo apenas na vontade do Estado e que a busca por seus fundamentos e critério de legitimidade não pode ser vista como extrínseca à própria matéria. O fundamento em si pode ser extremo ao sistema, mas estará subjacente ao mesmo  tempo.

O que justifica o enorme destaque que se deu aos fundamentos não somente por tentar explicar a obrigatoriedade do Direito Internacional, mas por apontar os motivos pelos quais os Estados, como entes soberanos, respeitem e obedeçam ao Direito Internacional, mas igualmente, por que sem um fundamentação adequada, não conseguirá realizar suas quatro funções básicas, a saber:

(1) “definir o princípio normativo supremo de organização da política mundial”; (2) “estabelecer as regras de coexistência e cooperação entre os atores internacionais”; (3) “efetuar a qualificação dos comportamentos internacionais”; (4) “mobilizar obediência em relação às regras de coexistência e cooperação”. observa-se uma nova preocupação com o mesmo e a produção de teorias que direta ou indiretamente abordam a questão.

Em comum aparece a constatação da existência de valores, objetivos e interesses compartilhados no cenário internacional atual, bem como a contínua importância dos Estados, que embora tenham tido sua soberania flexibilizada com o aumento da interdependência e a diminuição dos temas que compõem o domínio reservado, seguem sendo os principais sujeitos do Direito Internacional, sobretudo em função de sua capacidade de produzir normas internacionais.

Em face do exposto parece-nos que a melhor definição dos fundamentos do Direito Internacional contemporâneo seria uma combinação de pressupostos das teorias jusnaturalistas e voluntaristas. Destas se utilizaria a ideia de vontade presente em consensos e daquelas a existência de valores externos ao sistema – e compartilhados pelos entes que o compõe-, sobretudo na busca da justiça. Cabendo ao Direito Internacional fazer a junção entre os dois extremos (vontade versus valores) por meio de suas normas.

Os fundamentos do Direito Internacional contemporâneo seriam, assim, o consenso sobre a necessidade de segurança (jurídica) para a consecução dos objetivos e proteção dos valores compartilhados pela sociedade internacional.

Verifica-se nesta definição a existência de três elementos dos fundamentos do Direito Internacional contemporâneo: (1) o consenso, que remete a ideia de vontade estatal presente nas teorias voluntaristas; (2) a consecução dos objetivos e a proteção dos valores compartilhados, que resgatam os ideias de justiça e a dimensão axiológica presente nas teorias jusnaturalistas; e (3) a segurança jurídica que seria garantida pelo Direito Internacional e que auxiliaria no apaziguamento dos critérios das duas teorias.

Com essa definição respeita-se o aspecto político que limita o cenário internacional, representado sobretudo pela soberania estatal; consagrada na fórmula acima na ideia de consenso; mas, ao mesmo tempo, destaca-se o aspecto de valores compartilhados e objetivos comuns, acrescentando-se uma dimensão axiológica ao Direito Internacional e buscando efetuar um resgate da unidade ética do mesmo, que existia, como mencionado, no início desta disciplina.

Tal definição contempla a realidade internacional existente, preocupando-se, simultaneamente, com a criação de um cenário internacional ideal. Combina, assim, aspectos descritivos e propositivos a fim de auxiliar na evolução do Direito Internacional.

Para que essa definição possa, contudo, prosperar, faz-se necessário analisar se há, efetivamente, uma sociedade internacional com objetivos e valores compartilhados que autorizem a inclusão dos mesmos como base dos fundamentos do Direito Internacional. O próximo item se ocupa da análise de tal tema.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) tem como base fundamental a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela Resolução 217 A da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.

Observa-se que o Direito Internacional é capaz de servir e legitimar diferentes aspectos da ordem social, como por exemplo, defender a prevalência da vontade particular de uma potência mundial, em detrimento de nação hipossuficiente, mas também, esse direito é capaz de criar condições mais igualitárias para todos as nações, afirmando os princípios superiores às vontades particulares, consagrando-se, finalmente, como um complexo e denso paradoxo.

Naturalmente que foi o enfraquecimento da figura do Estado que fez com que a dinâmica da sociedade internacional evoluísse para nova perspectiva sob a qual não mais se vislumbra a intensa necessidade de reforçar as condições de manutenção do status quo desses entes coo sento os únicos a comandar e reger o sistema internacional.

A globalização do capitalismo faz com que o poder não esteja mais disponível apenas de quem detém o controle do território. Ou seja, os governantes não mais possuem o controle e a submissão da população em suas mãos e não são os únicos nem os mais importantes, pois, já não é mais o Estado o único ente capaz de fortalecer a economia e garantir a segurança aos indivíduos.

O surgimento de novos Estados, os fatos decorrentes dos desajustes de uma  sociedade internacional pautada exclusivamente na soberania, como as guerras e o incremento da cooperação pacífica para atingir certos interesses comuns de atores internacionais, fizeram com que junto a essa sociedade internacional passasse a subsistir um novo ambiente de relações  entre os Estados, qual seja, a comunidade internacional, na qual novas regras de direito internacional serão contempladas a fim de regular as ações comuns, pautadas em valores também comuns a todos os sujeitos nela envolvidos.

A comunidade internacional é hoje um grupo social em transição, porque sobre esta incide, por um lado, o passado de vários séculos como uma sociedade de Estados soberanos, ainda presente em grande medida na atualidade.

Mas, também, por outro lado, as mudanças experimentadas a partir da Primeira Guerra Mundial e que têm sido acentuadas na Era das Nações Unidas (1945), orientam para outras finalidades.

A dinâmica da ordem internacional bem como do direito que a regula passa a enfraquecer a ideia exclusiva de consentimento em diversas situações na realidade internacional. Principalmente, depois do fortalecimento da busca da segurança coletiva pela punibilidade, como por exemplo, com os tribunais penais (TPI e outros), mesmo antes da ONU (1945) quando os Estados começaram a reconhecer o movimento de delegação do consentimento a entidades internacionais tais como os Tribunais.

A delegação da soberania, principalmente, no tocante à ONU demonstra o movimento dos Estados em prol de interesses comuns, em uma estrutura multilateral.

De acordo com Cançado Trindade é possível, com base na análise jurisprudencial e da doutrina internacional contemporânea, entender, in litteris: “o despertar de uma consciência jurídica universal (…), para reconstruir, neste início do século XXI, o Direito Internacional, com base em novo paradigma, já que não mais estatocêntrico, mas situando o ser humano em posição central e tendo presentes os problemas que afetam a humanidade como um todo”.

Enfim, todo novo paradigma pressupõe o fim de um velho paradigma. Ressaltando-se que a evolução do Direito Internacional não é uma ruptura de um paradigma tradicional para um novo, pois ainda não se vislumbra o fim do Direito Internacional na sua forma tradicional.

De todo jeito, há positivamente nova consciência que surge para ser a força contrária ao movimento tradicional da ordem internacional, gerando tensão que sustenta a dinâmica contemporânea do cenário internacional, ora tido com caráter societário e, ora com caráter comunitário.

Enfim, o que torna possível o Direito Internacional é se portar em prol da busca social por valores comuns.

A noção da formação de comunidade no ambiente internacional é enfaticamente refutada por grande gama de jusinternacionalistas. O termo “comunidade” é reconhecido por caracterizar ambiente de formação natural, no q qual se manifestam o prazer, os hábitos comuns, bem como onde se reconhece haver memória que une os indivíduos que pretendem ao grupo e que não se reúnem por uma escolha consciente, mas sim, por cooperação natural.

Os adeptos a existência de uma comunidade internacional defendem a união dos sujeitos, pautados em valores comuns que existiram desde sempre, mas que primordialmente e conscientemente estão cada vez mais bem definidos, desde 1945, com a criação das Nações Unidas e a necessidade de manutenção da paz e da segurança internacional.

Desde as revoluções burguesas, pode-se  perceber a preocupação dos indivíduos em retomar seu papel na sociedade como um todo.

O século XVIII, ainda arraigado do ideal estatal na ordem internacional, já dava sinais da manifestação do indivíduo enquanto senhor de si e protagonista da história, porém muito mais no âmbito interno do que no âmbito internacional.

As revoluções americana e francesa marcaram o pensamento da época encorajando a sociedade a defender a liberdade dos indivíduos acima do poderio estatal. Em decorrência de tais revoluções foi possível estabelecer os direitos liberais, considerados os direitos de primeira geração do tardio direitos humanos, mas principalmente marcando o início do pensamento dos direitos fundamentais, isto é, do âmbito interno.

Teorias sobre as liberdades individuais surgiram no pensamento político da época. A maioria desses pensamentos estava ligada ao âmbito interno.

No entanto, alguns chegaram a serem concluídas no âmbito internacional, isto é, pensadores, como Immanuel Kant, por exemplo, já percebiam que as realizações das liberdades individuais só estariam completas e só fariam sentido se findassem em uma busca para além das fronteiras estatais. Assim, percebe-se que, aos poucos, os valores internos deveriam ser transferidos para o âmbito internacional.

De acordo com Brant, parte-se, portanto, de um direito descentralizado e horizontal para se dirigir na direção de uma analogia com uma Constituição material, definida como um conjunto de valores estruturados de uma determinada sociedade.

Este conjunto normativo, independente das fontes formais e originárias, prevê uma hierarquia de valores a serem protegidos.

Com o aparecimento de novos sistemas normativos, no cenário do direito internacional, regidos por ideais não mais baseados puramente em vontades dos Estados, como por exemplo, o Direito Humanitário, que surge no século XIX, estabelecendo limites às guerras com o fim de torná-las mais digna. É o caso da cláusula Martens. A referida cláusula merece destaque, pois sua trajetória histórica permeia mais de um século.

Foi criada por Friedrich Von Martens, com base no direito natural e em regramentos das forças armadas do Reino Unido e da Escócia datados de 1643 e, apresentada à sociedade internacional na Conferência de Paz de Haia de 1899 e inserida nas convenções de 1899 e de 1907 sobre Direito Humanitário.

A cláusula Martens afirmou: que nos casos não incluídos nos Regulamentos (…), as populações e os beligerantes permanecem sob a proteção e o império dos princípios de direito internacional, tal como resultam dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e as exigências da consciência pública. (In: MERON, 2003).

A proposta da cláusula Martens visa estender proteção aos civis e aos combatentes durante as guerras e quaisquer situações de conflito, invocando os princípios do direito internacional, com base nas leis da humanidade e de exigência de consciência pública, que demonstra patamar mínimo de dignidade do ser humano, já existentes na consciência coletiva do mundo ocidental, ou como bem retratado na própria cláusula, das nações civilizadas.

Eis que a adaptação da cláusula Martens a acepção contemporânea, numa reedição nos Protocolos Adicionais da Convenção de Haia, consolidou a noção de princípios da humanidade, ao invés de leis da humanidade, bem como a ideia de ditames de consciência pública, no lugar de exigência de consciência.

Portanto, os princípios da humanidade e os ditames da consciência pública tem sido fatores de restrição da liberdade do Estado para fazer o que não é expressamente proibido por Tratados, Convenções ou costumes.

O que consolida a existência de valores para além da vontade estatal e, que devem restringir a mesma no que diz respeito ao tratamento do indivíduo em tempo de guerra e de paz.

E, tal cláusula deve ter aplicação continuada, se sobressaindo ao longo do tempo, mesmo diante novas situações e dos avanços de tecnologias. Assim, a cláusula Martens continua a servir como advertência contra a suposição de que o que não esteja expressamente proibido pelas Convenções de Direito Internacional Humanitário poderia estar permitido; muito pelo contrário, a cláusula Martens sustenta a aplicabilidade continuada de princípios do direito das gentes, das leis de humanidade e das exigências da consciência pública, independentemente do surgimento de novas situações e do desenvolvimento da tecnologia.

A cláusula Martens[6] impede, assim, o non liquet, e ainda exerce relevante papel na hermenêutica e aplicação da normativa humanitária.

Ressalte-se que a cláusula Martens é considerada como fonte material principal do Direito Humanitário e, está, inegavelmente, dentro do domínio do jus cogens, ou seja, seu alcance está para além do próprio Direito Humanitário, sendo esta afirmada a favor de todo ser humano dentro do Direito Internacional geral.

Identificamos que a sociedade internacional está em construção e que o grau de vínculo existente entre os sujeitos do Direito Internacional que há muito preocupa os estudiosos do tema, até em razão de grau insignificantes, não haveria de se cogitar em direito para regular as condutas entre estes. Com o surgimento do Direito Internacional, com o advento do Estado moderno, nota-se que nível de relacionamento internacional denota a premente necessidade de regulação.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) tem como base fundamental a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela Resolução 217 A da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.

Observa-se que o Direito Internacional é capaz de servir e legitimar diferentes aspectos da ordem social, como por exemplo, defender a prevalência da vontade particular de uma potência mundial, em detrimento de nação hipossuficiente, mas também, esse direito é capaz de criar condições mais igualitárias para todos as nações, afirmando os princípios superiores às vontades particulares, consagrando-se, finalmente, como um complexo e denso paradoxo.

Naturalmente que foi o enfraquecimento da figura do Estado que fez com que a dinâmica da sociedade internacional evoluísse para nova perspectiva sob a qual não mais se vislumbra a intensa necessidade de reforçar as condições de manutenção do status quo desses entes coo sento os únicos a comandar e reger o sistema internacional.

A globalização do capitalismo faz com que o poder não esteja mais disponível apenas de quem detém o controle do território. Ou seja, os governantes não mais possuem o controle e a submissão da população em suas mãos e não são os únicos nem os mais importantes, pois, já não é mais o Estado o único ente capaz de fortalecer

a economia e garantir a segurança aos indivíduos.  O surgimento de novos Estados, os fatos decorrentes dos desajustes de uma  sociedade internacional pautada exclusivamente na soberania, como as guerras e o incremento da cooperação pacífica

para atingir certos interesses comuns de atores internacionais, fizeram com que junto a essa sociedade internacional passasse a subsistir um novo ambiente de relações  entre os Estados, qual seja, a comunidade internacional, na qual novas regras de direito internacional serão contempladas a fim de regular as ações comuns, pautadas em valores também comuns a todos os sujeitos nela envolvidos.

A comunidade internacional é hoje um grupo social em transição, porque sobre esta incide, por um lado, o passado de vários séculos como uma sociedade de Estados soberanos, ainda presente em grande medida na atualidade.

Mas, também, por outro lado, as mudanças experimentadas a partir da Primeira Guerra Mundial e que têm sido acentuadas na Era das Nações Unidas (1945), orientam para outras finalidades.

A dinâmica da ordem internacional bem como do direito que a regula passa a enfraquecer a ideia exclusiva de consentimento em diversas situações na realidade internacional.

Principalmente, depois do fortalecimento da busca da segurança coletiva pela punibilidade, como por exemplo, com os tribunais penais (TPI e outros), mesmo antes da ONU (1945) quando os Estados começaram a reconhecer o movimento de delegação do consentimento a entidades internacionais tais como os Tribunais. A delegação da soberania, principalmente, no tocante à ONU demonstra o movimento dos Estados em prol de interesses comuns, em uma estrutura multilateral.

De acordo com Cançado Trindade é possível, com base na análise jurisprudencial e da doutrina internacional contemporânea, entender, in litteris:

“o despertar de uma consciência jurídica universal (…), para reconstruir, neste início do século XXI, o Direito Internacional, com base em novo paradigma, já que não mais estatocêntrico, mas situando o ser humano em posição central e tendo presentes os problemas que afetam a humanidade como um todo”.

Enfim, todo novo paradigma pressupõe o fim de um velho paradigma. Ressaltando-se que a evolução do Direito Internacional não é uma ruptura de um paradigma tradicional para um novo, pois ainda não se vislumbra o fim do Direito Internacional na sua forma tradicional.

De todo jeito, há positivamente nova consciência que surge para ser a força contrária ao movimento tradicional da ordem internacional, gerando tensão que sustenta a dinâmica contemporânea do cenário internacional, ora tido com caráter societário e, ora com caráter comunitário.

Enfim, o que torna possível o Direito Internacional é se portar em prol da busca social por valores comuns.

A noção da formação de comunidade no ambiente internacional é enfaticamente refutada por grande gama de jusinternacionalistas. O termo “comunidade” é reconhecido por caracterizar ambiente de formação natural, no qual se manifestam o prazer, os hábitos comuns, bem como onde se reconhece haver memória que une os indivíduos que pertencem ao grupo e que não se reúnem por uma escolha consciente, mas sim, por cooperação natural.

Os adeptos a existência de uma comunidade internacional defendem a união dos sujeitos, pautados em valores comuns que existiram desde sempre, mas que primordialmente e conscientemente estão cada vez mais bem definidos, desde 1945, com a criação das Nações Unidas e a necessidade de manutenção da paz e da segurança internacional.

Desde as revoluções burguesas, pode-se  perceber a preocupação dos indivíduos em retomar seu papel na sociedade como um todo.

O século XVIII, ainda arraigado do ideal estatal na ordem internacional, já dava sinais da manifestação do indivíduo enquanto senhor de si e protagonista da história, porém muito mais no âmbito interno do que no âmbito internacional.

As revoluções americana e francesa marcaram o pensamento da época encorajando a sociedade a defender a liberdade dos indivíduos acima do poderio estatal. Em decorrência de tais revoluções foi possível estabelecer os direitos liberais, considerados os direitos de primeira geração do tardio direitos humanos, mas principalmente marcando o início do pensamento dos direitos fundamentais, isto é, do âmbito interno.

Teorias sobre as liberdades individuais surgiram no pensamento político da época. A maioria desses pensamentos estava ligada ao âmbito interno. No entanto, alguns chegaram a serem concluídos no âmbito internacional, isto é, pensadores, como Immanuel Kant, por exemplo, já percebiam que as realizações das liberdades individuais só estariam completas e, só fariam sentido se findassem em uma busca para além das fronteiras estatais. Assim, percebe-se que, aos poucos, os valores internos deveriam ser transferidos para o âmbito internacional.

De acordo com Brant, parte-se, portanto, de um direito descentralizado e horizontal para se dirigir na direção de uma analogia com uma Constituição material, definida como um conjunto de valores estruturados de uma determinada sociedade. Este conjunto normativo, independente das fontes formais e originárias, prevê uma hierarquia de valores a serem protegidos.

Com o aparecimento de novos sistemas normativos, no cenário do direito internacional, regidos por ideais não mais baseados puramente em vontades dos Estados, como por exemplo, o Direito Humanitário, que surge no século XIX, estabelecendo limites às guerras com o fim de torná-las mais digna. É o caso da cláusula Martens.

A referida cláusula merece destaque, pois sua trajetória histórica permeia mais de um século. Foi criada por Fredrich Von Martens, com base no direito natural e em regramentos das forças armadas do Reino Unido e da Escócia datados de 1643 e, apresentada à sociedade internacional na Conferência de Paz de Haia de 1899 e inserida nas convenções de 1899 e de 1907 sobre Direito Humanitário.

A cláusula Martens afirmou: que nos casos não incluídos nos Regulamentos (…), as populações e os beligerantes permanecem sob a proteção e o império dos princípios de direito internacional, tal como resultam dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e as exigências da consciência pública. (In: MERON, 2003).

A proposta da cláusula Martens visa estender proteção aos civis e aos combatentes durante as guerras e quaisquer situações de conflito, invocando os princípios do direito internacional, com base nas leis da humanidade e de exigência de consciência pública, que demonstra patamar mínimo de dignidade do ser humano, já existentes na consciência coletiva do mundo ocidental, ou como bem retratado na própria cláusula, das nações civilizadas.

Eis que a adaptação da cláusula Martens a acepção contemporânea, numa reedição nos Protocolos

Adicionais da Convenção de Haia, consolidou a noção de princípios da humanidade, ao invés de leis da humanidade, bem como a ideia de ditames de consciência pública, no lugar de exigência de consciência.

Portanto, os princípios da humanidade e os ditames da consciência pública tem sido fatores de restrição da liberdade do Estado para fazer o que não é expressamente proibido por Tratados, Convenções ou costumes.

O que consolida a existência de valores para além da vontade estatal e, que devem restringir a mesma no que diz respeito ao tratamento do indivíduo em tempo de guerra e de paz.

E, tal cláusula deve ter aplicação continuada, se sobressaindo ao longo do tempo, mesmo diante novas situações e dos avanços de tecnologias. Assim, a cláusula Martens continua a servir como advertência contra a suposição de que o que não esteja expressamente proibido pelas Convenções de Direito Internacional Humanitário poderia estar permitido; muito pelo contrário, a cláusula Martens sustenta a aplicabilidade continuada de princípios do direito d as gentes, das leis de humanidade e das exigências da consciência pública, independentemente do surgimento de novas situações e do desenvolvimento da tecnologia.

A cláusula Martens impede, assim, o non liquet, e ainda exerce relevante papel na hermenêutica e aplicação da normativa humanitária.

Ressalte-se que a cláusula Martens é considerada como fonte material principal do Direito Humanitário e, está, inegavelmente,

dentro do domínio do jus cogens, ou seja, seu alcance está para além do próprio Direito Humanitário, sendo esta afirmada a favor de todo ser humano dentro do Direito Internacional geral.

Na década de 1990 em face, por um lado, do fenômeno da supranacionalidade na União Europeia e, por outro, do fortalecimento da sociedade civil internacional, alguns doutrinadores passem a apontar a existência da uma comunidade internacional, que abrangeria não apenas os Estados e as Organizações Internacionais, mas também os demais entes que influenciam o cenário internacional (como por exemplo os indivíduos, a sociedade civil internacional e entes que não se enquadram tão facilmente em classificações existentes, como era o caso da União Europeia antes do tratado de Lisboa quando passou a ser uma organização internacional).

De toda forma, verifica-se que o Direito Internacional contemporâneo reflete alguns objetivos e valores compartilhados, que, embora não estabeleçam um sistema axiológico uníssono e completo, permite, ao menos, dizer que há uma sociedade internacional em construção.

São exemplos que ilustram tal afirmação as normas de jus cogens e a primazia da teoria do constitucionalismo sobre a teoria da fragmentação internacional.

Doutrinariamente a noção de jus cogens é aceita tanto individual quanto coletivamente. Vários autores, ainda que questionem alguns tópicos relativos à aplicação das normas de jus cogens (como Dominique Carreau e George Schwarzenberg) aceitam sua existência, e o Instituto de Direito Internacional destacou o tema ao aprovar, em 1983, uma resolução acerca da impossibilidade de extradição

caso haja suspeita de violação de uma norma de jus cogens (como por exemplo em caso de suspeita de tortura ou perseguição em função de raça, religião ou etnia).

Já na jurisprudência internacional a existência (e relevância) do jus cogens é encontrada em vários julgados como parte da argumentação, como por exemplo nos casos: (i) North Sea Continental Shelf julgado pela Corte Internacional de Justiça em que se afirmar – nos votos dissidentes e em separado – que reservas opostas contra normas imperativas são inadmissíveis, (ii) Tadić e Furundžija do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, em que se determinou que as normas de jus cogens são oponíveis também ao Conselho de Segurança e que possuem efeitos impedientes (deterrent effect) além de representarem os “most fundamentals standards of the international community”, respectivamente (iii) Michael Dominguez em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que embora não seja um tribunal integra o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e é parte do sistema de solução de controvérsias deste; sendo essencial sobretudo nos casos contra Estados que não tenham aceito a competência e jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como, por exemplo, os Estados Unidos que são a parte contrária no caso mencionado) reconhece e aplica a noção de jus cogens44, e (iv) Al Barakat na Corte de Primeira Instância e na Corte Europeia de Justiça, em que se debate a extensão e o conteúdo do jus cogens e se reafirma a submissão do Conselho de Segurança da ONU.

 

O grande desafio da aplicação do jus cogens atualmente é a definição de seu conteúdo. Contudo, apesar de não haver um rol amplo de normas consideradas unanimemente como imperativas, já existe o que se poderia chamar de um “mínimo denominador comum”, com cinco grandes temas que são consensualmente entendidos como jus cogens.

São eles: 1) a proibição do genocídio, 2) a proibição da escravidão, 3) a proibição da tortura, 4) a proibição da pirataria, e 5) algumas normas sobre o uso da força no cenário internacional46.

Nota-se que as três primeiras se relacionam à dignidade humana – base dos direitos humanos, um novo valor da sociedade internacional. A proibição à pirataria resgata um tema tradicional do Direito Internacional (o mar) e relaciona-se com o uso da força, que é, por sua vez, tema inerente ao novo sistema regulatório trazido pela ONU e base essencial do Direito Internacional atual47.

Quanto ao uso da força vale destacar que seriam normas de jus cogens a legítima defesa  (consagrada no artigo 51 da Carta da ONU), a não-intervenção (artigo 2, 7 da Carta da ONU) e o não uso da força nas relações internacionais (artigo 2,4 do mesmo documento).

Além disso, algumas normas do Direito Internacional Humanitário (como a distinção entre civis e militares e regras sobre prisioneiros de guerra), sobretudo as presentes nas quatro Convenções de Genebra de 1949 também são imperativas (e a decisão do presidente dos Estados Unidos – Barack Obama – de fechar a prisão de Guantánamo – ainda que não em um prazo curto como se esperava – demonstra a revalorização destas normas).

A existência de jus cogens denota, assim, a existência de valores e interesse compartilhados internacionalmente, o que permite que se defenda tanto a existência de uma sociedade internacional em construção quanto um fundamento de Direito Internacional baseado em critérios axiológicos, a estas normas.

Como explica o professor português Jorge Miranda (2012), no âmbito internacional[o] desenvolvimento do jus cogens tem como pano de fundo alguns fatores ou tendências nem sempre coincidentes: a nova consciência do primado dos direitos das pessoas, após os cataclismos provocados pelos regimes totalitários e pela Segunda Guerra Mundial; as novas exigências de paz e de segurança coletiva e a crise de soberania; a ideia de autodeterminação dos povos e o aparecimento de novos Estados empenhados em refazer a ordem internacional; e o impulso dado pela ciência internacionalista (MIRANDA, 2012).

No entanto, o jus cogens só aparece como se conhece atualmente em 1963, com Humphrey Waldock na relatoria da CDI.” Jus cogens” significa uma norma peremptória do direito internacional geral, da qual nenhuma derrogação é permitida exceto em uma situação especificamente sancionada pelo direito internacional geral, e que pode ser modificada ou anulada apenas por uma ulterior norma de direito internacional geral (ONU, 1963b, p. 39).

Destacamos que a corrente humanista é, sem dúvida, uma das mais recentes doutrinas sobre o fundamento do direito internacional e, cujas bases prostam-se no jusnaturalismo.

Assim, a corrente humanista de pensamento se situa dentro do Renascimento do direito natural, movimento que é uma outra reação contra o positivismo clássico.  Sendo considerada como corrente antipositivista e idealista. E, que se lastreia na premência em se lutar contra os efeitos nefastos da anarquia das soberanias estatais.

Os derradeiros fatos presenciados nesse último século já marcaram de tal forma as concepções de tantos juristas, doutrinadores tanto do direito como da filosofia que foram capazes de consolidar novas tendências na contemporaneidade.

E, nesse sentido, nos esclarece Trindade, in litteris:

” A convivência constante, como Juiz de um tribunal internacional de direitos humanos, com os relatos comprovados de sucessivas atrocidades e abusos praticados contra a pessoa humana, nos casos submetidos ao conhecimento do Tribunal interamericano, convivência esta, refletida em mais de uma centena de sentenças internacionais de cuja elaboração e adoção tenho tido privilégio de participar ativamente, tem reforçado minha convicção quanto à premente necessidade de sustentar e promover o atual processo histórico de humanização do Direito Internacional e de buscar a consolidação do novo jus gentium do século XXI.”

Lembremos que para o grande filósofo Immanuel Kant, o Direito Internacional cuja evolução atinge seu ápice no direito cosmopolita, carrega como princípio basilar a autonomia da pessoa humana para a corrente humanista, o Direito Internacional é, e deve ser, um instrumento de garantia da dignidade da pessoa humana. Com a merecida ressalva que tanto a autonomia como a dignidade da pessoa humana são dois dos três princípios fundamentais dos Direitos Humanos.

 

Referências

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[1] Os contemporâneos problemas que o Direito Internacional enfrenta relacionam-se com os pontos pertencentes a uma compreensão sobre a formação de comunidade universal. Que são questões já aventadas por grandes mestres da Escola Ibérica da Paz, do século XVI e XVII. Cumpre destacar ainda os valorosos estudos da Escola de Salamanca, especialmente, as contribuições de Francisco de Vitória e Francisco Suárez. As principais contribuições conceituais aportadas pela Escola de Salamanca como  fundamentação para o desenvolvimento da paz e justiça entre as nações, por meio de confrontações das noções  de razão da humanidade e razão do Estado, com vias à compreensão da comunidade universal.

[2] Quando do final da URSS, em 1991, os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia tentaram criar uma nova organização que, respeitando a independência política de cada uma, mantivesse o funcionamento da economia dos países. Assim surgiu a CEI, Comunidade dos Estados Independentes, que enveredava pelo sistema econômico capitalista. Essa organização recebeu a adesão relativamente rápida das outras repúblicas, compondo 12 países no final de 1993. É claro que o sucesso da CEI dependia muito do crescimento econômico da Rússia, entretanto não foi isso que se observou. No campo político, ocorreu a agitação dos movimentos nacionalistas, com conflitos generalizados na Geórgia, guerra civil no Tajiquistão e o conflito entre Armênia e Azerbaijão por territórios com minorias étnicas de ambos os grupos. Esses problemas ainda persistem hoje, mas foram suplantados por um problema mais sério: a crise econômica.

[3] A Paz de Westfália foi um acontecimento histórico marcado pela assinatura de dois tratados de paz nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück, em 1648, e que colocou fim a Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648). Para lembrar, a Guerra dos Trinta Ano Para lembrar, a Guerra dos Trinta Anos marcou o século XVII como um dos conflitos mais sangrentos da história. As principais motivações da guerra foram as questões religiosas, que tiveram seu ápice com a Reforma Protestante. Em 1648, a Europa estava devastada, marcada pelos últimos 30 anos, assim a Paz de Westfália foi importante para determinar o fim do conflito, instaurar a paz e estabelecer uma nova ordem mundial marcou o século XVII como um dos conflitos mais sangrentos da história.

[4] A eminente invasão da Ucrânia pela Rússia nos traz um conceito de guerra híbrida que foi um conceito utilizado em primeira vez no início do anos 2000, relaciona-se com a implementação de estratégia de enfrentamento que não passa obrigatoriamente por um combate militar. Afinal, um país pode usar meios que prejudiquem a segurança e estabilidade de outro país. E, nem sempre são meios militares, é o caso de ataques cibernéticos ou o lançamento de onda massiva de tuítes que vão contra a posição de determinado governo. É a isso que chamamos de guerra híbrida. Também usam a insurgência das fake news e, a  desinformação que impulsiona a propaganda e a provocação como papel fundamental. “Agora, as guerras são mais assimétricas, com outros atores envolvidos”, diz ele. Outra diferença entre a guerra híbrida e a guerra tradicional é que é difícil saber quando a primeira começa.  Na guerra tradicional, geralmente um país declara guerra a outro. Mas nesses casos, a dinâmica não é a mesma.

[5] A questão da Crimeia é um revés geopolítico gerado pela invasão e anexação da Crimeia pela Rússia. Tal situação ocorreu no ano de 2014 e gera consequências político-militares até a atualidade, como a crise entre Ucrânia e Rússia em 2022. A Crimeia, antes república autônoma, era uma região da Ucrânia, mas que sempre teve fortes vínculos com a Rússia. A sua ocupação pelos russos gerou grande tensão, que abrangeu toda a Europa. As motivações de invasão e anexação da Crimeia pela Rússia envolvem questões históricas, políticas, econômicas e culturais. Essa região apresenta importância geoestratégica em áreas comerciais e militares. A crise da Crimeia perdura até hoje, com a Ucrânia defendendo a posição de que essa região é parte de seu território, enquanto a Rússia argumenta que a anexação da Crimeia foi feita legalmente, mediante a realização de um contestável plebiscito entre a população local.

[6] A Cláusula de Martens afirma textualmente: Nos casos não previstos nas disposições escritas do Direito Internacional, as pessoas civis e os combatentes ficam sob a proteção e o regime dos princípios do direito de gentes, derivados dos usos estabelecidos, dos princípios de humanidade e dos ditames da consciência.

Instrumento pacificação social. A pena no Direito Penal brasileiro.

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Resumo: Historicamente, a pena de prisão, como privação de liberdade surgiu apenas no século XVIII e, se consolidou no século XIX, pois até então era apenas usada para guardar os réus até seus julgamentos servindo, inicialmente, como meio de esperar a aplicação de pena mais cruel. Em face do enfraquecimento da pena capital, apareceram na Europa, as prisões destinadas ao recolhimento de mendigos, prostitutas, “vagabundos” e jovens delinquentes que se multiplicavam, principalmente, em face aos problemas acentuados trazidos pela crise do feudalismo.

Palavras-Chave: Direito Penal. Execução Penal. Direito Constitucional. Direito Processual Penal. Pacificação social.

 

 

É muito difícil enxergar o Direito Penal como instrumento eficaz de pacificação social. Considerado em si mesmo, não resolve o problema da criminalidade. Ainda com a existência e funcionamento do Direito Penal, os alarmantes índices da criminalidade brasileira[1] só vem aumentando.

A regulação comportamental evoluiu lentamente no Direito Penal[2]. Antigamente, o revide à uma agressão não guardava proporção com a ofensa sofrida, ocorriam embates, batalhas e guerras entre grupos humanos chegando até a total extinção.

A primeira conquista do Direito Penal, pasmem, foi a Lei do Talião[3], quando se delimitava o castigo e a vingança e, já traça um rascunho de proporcionalidade. Incrivelmente, olho por olho, dente por dente projeta uma correspondência delimitadora do revide, antes pleno em absoluto.

A partir do Código de Hamurabi[4], do século XXIII antes de Cristo delimitou o castigo e, havia a proporção entre o mal retribuído com o mal semelhante. Caso alguém tivesse a mandíbula quebrada com o soco, teria igualmente sua mandíbula quebra.

Antes disso, havia outras pessoas que apesar de não envolvida na agressão poderiam ser atingidas.

Existem pessoas que se situam no limite exato entre o cometimento do delito e a busca pelo trabalho honesto, da sobrevivência digna, muitas vezes mal remunerado e, por isso, e de repente, a prática delitiva, por uma vã vida melhor, parece ser sedutora, pouco se importando com as consequências de sua conduta.

Enfim, a missão do Direito Penal moderno é a aplicação de sanção que não existe por si mesma, pois tem a finalidade sem o que é ineficiente e despropositada. E, entre essas suas finalidades, destaca-se a ressocialização. Afinal, a execução da pena deve proporcionar condições suficientes para uma harmônica integração social do condenado.

Infelizmente, nem todos praticantes de infração penal, seja crime ou contravenção, necessitam de ressocialização. É o caso do crime cometido pela força do ímpeto, sem premeditação, conforme ocorre em homicídio mediante violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação da vítima. Seja em um crime culposo, onde nem há intenção de causar o resultado, que se revela apesar de involuntário, bastante eficaz.

A identificação do criminoso contumaz requer atenção de diversas ciências, bem como a aplicação de terapêutica penal capaz de propiciar o retorno à sociedade. Já o crime esporádico, onde não havia intenção de cometer crime, agido tão-somente por imprudência, negligência ou imperícia[5], na clássica síntese da culpa, a desnecessidade de ressocialização do infrator, passa pelo menos, por sua conscientização do erro cometido e, das razões que o fizeram inadvertidamente delinquir.

Com o criminoso profissional, ainda que privado de liberdade, continua a cometer crimes, e invariavelmente nem deseja ser ressocializado e, possui na genética moral a grande possibilidade de reincidir, nem a aplicação da pena foi capaz de intimar o condenado, tornando-se a ressocialização quase impraticável ou apenas uma retórica legislativa.

Ainda que não seja possível a ressocialização do apenado, não se pode admitir que o criminoso deixe de ser adequadamente sancionado, pois a pena possui outras finalidades, além da ressocialização. É, por soi-même, retributiva, vez que impõe uma expiação para quem a cumpre, sempre dentro das balizas da legalidade.

E, a busca da justiça com aplicação da devida reprimenda, informa a sociedade, sobre a correta aplicação da lei e se transforma como meio mais simbólico do que efetivo, mas, poderá trazer pacificação e, obstar a vingança privada.

A fora isto, há a prevenção geral, pois acena-se para a sociedade com a mensagem de que o crime não compensa. Já a prevenção especial traz outra finalidade da pena, onde se insere a missão ressocializante da pena, correspondente ao principal objetivo da Lei de Execução Penal[6]. Já quanto aos criminosos contumazes, prevalece a prevenção especial com o fito de impedir a reiteração criminosa e, ainda, preservar a segurança da coletividade. É um pacificar da sociedade, com a retirada de seu meio, de quem cometeu a infração penal[7].

A realidade contemporânea nos aponta para um sistema prisional colapsado onde as unidades penais em que a permanência é simplesmente desumana, não se pune adequadamente, apenas de desumaniza lentamente o criminoso, sobrando-lhe a porção animal eivada de instintos e selvageria.

Enfim, é indispensável para o adequado objetivo do Direito Penal que o sistema prisional funcione bem, independentemente de classe social ou função exercida.

Quando o Direito penal teatral assume publicamente que não pune, não previne a nova prática de outros delitos, há o sub-reptício estímulo da justiça pelas próprias mãos, já uma política armamentista[8] que quer disputar a segurança à bala, e basta haver injustiçado para que o sistema seja acionado à revelia do Judiciário e do Legislativo.

A Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, usualmente, conhecida como “Pacote Anticrime”, promoveu uma das mais abrangentes reformas da legislação Penal, Processual Penal e de Execução Penal, modificando, acrescendo e suprimindo diversos artigos dos Códigos Penal e de Processo Penal, da Lei de Execução Penal e também em algumas leis penais esparsas.

No que se refere especificamente à matéria de Execução Penal, as alterações oriundas da Lei n. 13.964/2019 foram as mais extensas e impactantes já promovidas desde a edição da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984), doravante LEP, modificações essas que terão, certamente, enorme impacto social, já que envolvem alterações nos prazos de progressão de regime, no período de cumprimento total de penas, nos requisitos do livramento condicional, dentre outras.

A nova disposição concentrou no art. 112 da LEP todos os prazos legais de progressão de regime, o que acarretou a revogação do art. 2º, § 2º da Lei n.  8.072/1990, que trazia as frações de progressão de regime dos crimes hediondos.

A nova previsão alterou também a sistemática de cálculo da pena, inovando no uso de percentagens ao invés de frações da pena, sistema que era adotado desde a edição da LEP, em 1984.

Quanto aos novos prazos estabelecidos, alguns permaneceram idênticos ou  praticamente idênticos aos anteriores, tais como os dos incisos: I (crime comum  cometido sem violência ou grave ameaça por agente primário), que era de 1/6 (um  sexto) da pena (fração geral de progressão de regime dos crimes comuns) e agora é 16% (dezesseis por cento) dela; V (crime hediondo cometido sem violência ou grave  ameaça por agente primário), que era 2/5 (dois quintos) da pena e agora é 40%  (quarenta por cento) dela; e VII (agente reincidente específico em crime hediondo), que  era 3/5 (três quintos) da pena e agora é 60% (sessenta por cento) dela.

Outros prazos são visivelmente mais gravosos que os anteriormente previstos,  destacando-se os dos incisos II, III e IV, respectivamente, de 20% (vinte por cento) da  pena para reincidentes em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça,  de 25% (vinte e cinco por cento) da pena para primários em crime cometido com  violência à pessoa ou grave ameaça e de 30% (trinta por cento) da pena para  reincidentes em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça, sendo que a  todas essas hipóteses se aplicava anteriormente a fração geral de 1/6 (um sexto) da  pena.

Também mais gravosa é a hipótese do inciso VI, de 50% (cinquenta por cento) da pena se o apenado for primário e condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, ou condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado, ou condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada.

Nesses casos, a fração anterior era de 2/5 (dois quintos) da pena no caso de crime hediondo com resultado morte e de 1/6 (um sexto) da pena nas outras duas hipóteses, visto que se tratam de crimes de natureza comum[9].

A lenta evolução do Direito Penal[10] precisa acelerar o aperfeiçoamento dos métodos de execução penal[11] e do sistema prisional, sob pena, de ser apenas uma vitória de Pirro[12].

 

Referências

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VANIN, Carlos Eduardo. A função ressocializadora da pena sob a ótica da criminologia crítica. Disponível em: https://duduhvanin.jusbrasil.com.br/artigos/645853298/a-funcao-ressocializadora-da-pena-sob-a-otica-da-criminologia-critica Acesso em 06.02.2022.

[1] Diversos Estados brasileiros registram queda no número de crimes violentos em 2021, na comparação com 2020. Com dados do primeiro semestre de 2021, Mato Grosso do Sul apresentou redução de 60% no latrocínio – que é o roubo seguido de morte – e de 87% nos feminicídios. A secretaria de segurança pública sul-mato-grossense ressalta que o estado está entre os que mais apreendem drogas no país, e que tem atualmente um dos maiores índices de esclarecimentos de homicídios.

[2] Deu-se na pena inúmeras alterações, passando da vingança divina, vingança privada e vingança pública. Essas etapas foram marcadas por forte sentimento religioso e espiritual. Mas, essa divisão meramente didática, haja vista uma fase se interligar e conviver com outra durante todos os tempos. Na vingança divina, o motivo da punição estava justificado pelo fato o criminoso ofender as leis, que eram propostas por divindades, e a punição tinha o objetivo evitar que a comunidade fosse contaminada com o ato do infrator e, uma das punições era a morte do transgressor. Com o crescimento da população e a complexidade social surge a vingança privada. Era uma vingança entre os grupos, eis que encaravam a infração como uma ofensa não relacionada diretamente à vítima, mas, sobretudo, ao grupo a que pertencia. Nesse período, imperava a lei do mais forte, a vingança de sangue, em que o próprio ofendido ou outa pessoa do seu grupo exercia o direito de voltar-se contra o agressor, fazendo a justiça pelas próprias mãos, cometendo, na maioria dos casos, excessos e demasias, o que culminava com propagação do ódio e consequentes guerras entre os grupos humanos. Por derradeiro, a vingança pública, com a evolução política da sociedade e melhor organização comunitária, o Estado avocou o poder-dever de manter a ordem e a segurança social, conferindo a seus agentes a autoridade para punir em nome de seus súditos. Enfim, a pena assume nítido caráter público.

[3] Apesar de terem sido substituída por novos modos de teoria jurídica, os sistemas da lei de talião serviram a um propósito crítico no desenvolvimento dos sistemas sociais – o estabelecimento de um instituto cujo propósito era decretar a retaliação e garantir que essa fosse a única punição. Em verdade, ainda antes do surgimento do Livro dos Hebreus, os Códigos de Hamurabi e de Manu já haviam trazido normas de sancionamento pessoal pela transgressão de regras sociais, utilizando-se, como modelo de punição, o princípio de talião, comumente representado pela frase “olho por olho, dente por dente”, em límpida demonstração da forma vingativa e, para a época, proporcionalmente retributiva com que eram aplicadas as penalidades então existentes.

[4] O Código de Hamurabi foi o primeiro código de leis da história e vigorou na Mesopotâmia, quando Hamurabi governou o primeiro império babilônico, entre 1792 e 1750 a.C. Esse código se baseava na Lei do Talião, que punia um criminoso de forma semelhante ao crime cometido, ou seja, “olho por olho, dente por dente”.

[5] A negligência é uma falta de cuidado ou desleixo relacionado a uma situação. A imprudência consiste em uma ação que não foi pensada, feita sem precauções. Já a imperícia é a falta de habilidade específica para o desenvolvimento de uma atividade técnica ou científica. Apesar de terem significados bem diferentes, há quem confunda negligência, imprudência e imperícia. As palavras induzem a uma ideia de falta de cuidado, mas há detalhes significativos distintos sobre cada uma delas.

[6] O Pacote Anticrime alterou a Lei de Execução Penal nos seguintes termos: Inclusão de parágrafos do art. 9º-A sobre Identificação de Perfil Genético para Crimes Hediondos. Em caso de crime hediondo com resultado de morte.

[7] Na LEP que se encontram, por exemplo, as regras para progressão de regime (isto é, as circunstâncias em que alguém poderá sair de um regime fechado para o semiaberto, e assim por diante). Esse assunto, contudo, mereceria um texto exclusivamente para ele.  A LEP ainda dispõe sobre diversas outras situações que serão discutidas e resolvidas no processo de execução. É o caso da unificação das penas (procedimento que precisará ser feito pelo juiz quando o preso tiver mais de uma condenação, para que se possa avaliar adequadamente os benefícios, o regime de cumprimento de pena e outros).

[8] Em 2020, alta na posse de armamentos foi de 97,1% após flexibilização de regras promovidas por Bolsonaro, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Homicídios voltaram a crescer após dois anos de retração.

[9] Nesse sentido, ao ampliar a grande maioria dos prazos de progressão de regime, a Lei n. 13.964/2019 acaba por contribuir diretamente para o agravamento do já absurdo quadro de superlotação carcerária, o que acarretará direta e decisivamente numa piora ainda mais significativa das violações de direitos fundamentais ocorridas dentro das penitenciarias do país.  O legislador ordinário, portanto, ao aumentar os prazos de progressão de regime, como feito na Lei n. 13.964/2019, caminhou em sentido absolutamente oposto àquele preconizado pelo Pretório Excelso, incorrendo em evidente inconstitucionalidade, já que o incremento em quase todos os prazos de progressão de regime certamente piorará ainda mais o caos do sistema carcerário.

[10] A configuração do Direito Penal difere da maioria das demais disciplinas, no que diz respeito ao seu conte do principal, isto é, no que afeta as normas penais incriminadoras, que vem a ser aquelas que definem a matéria proibida, sob determinadas sanções, incluindo a pena privativa da liberdade, ainda hoje majoritária nesse âmbito do Direito. Enquanto nos demais setores e disciplinas se encontram normas jurídicas de natureza meramente regulatória das relações entre as pessoas, tal como ocorre de modo muito particular no Direito Privado – ou, entre privados –, o Direito Penal, ao contrário, trata de proibir comportamentos pela intervenção da pena pública, que, em princípio, sequer é dirigida satisfação dos interesses individuais das pessoas eventualmente envolvidas.

[11] No momento da execução penal, concretiza-se as finalidades de retribuição, prevenção especial e ressocialização, que significa reingressar o delinquente ao convívio social, conforme dispõe o artigo 1º da Lei de Execução Penal: Art. 1º, Lei 7210/84 A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

[12] Vitória pírrica ou vitória de Pirro é uma expressão utilizada para se referir a uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos irreparáveis A expressão recebeu o nome do rei Pirro do Epiro, cujo exército havia sofrido perdas irreparáveis após derrotar os romanos na Batalha de Heracleia, em 280 a.C., e na Batalha de Ásculo, em 279 a.C., durante a Guerra Pírrica. Após a segunda batalha, Plutarco apresenta um relato feito por Dioniso de Helicarnasso.

Com base no melhor interesse da criança, TJRJ concede convívio ex officio a pai que não via filha há 7 meses

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Um pai garantiu, na Justiça do Rio de Janeiro, o direito a conviver com a filha, cuja mãe vem mudando de endereço sucessivamente. Eles poderão passar finais de semana, quinzenalmente, assistidos por pessoa de confiança da genitora até a resolução do processo. A decisão da 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ também fixou que a demanda tramite em uma das varas na localidade em que vive o autor da ação, estabilizando a competência ali firmada.

Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada Isabela Cristina Loureiro dos Santos atua no caso, representando o pai da criança, em parceria com Taiane Assis, que compõe sua equipe. Ela explica que, em casos envolvendo menores de idade, a fixação de competência geralmente se dá de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990). Optou-se, porém, pelas regras do Código de Processo Civil – CPC (Lei 13.105/2015), com o entendimento de que assim se atenderia ao melhor interesse da criança, dadas as peculiaridades do caso.

A ação trata da suspensão de poder familiar, em que foi interposto recurso de agravo de instrumento contra decisão que declinou processo para o Estado de São Paulo. O autor da ação requereu a fixação de competência no Rio de Janeiro, considerando a ocorrência de mudanças de endereço sucessivas da parte contrária, em curto período, e sem comunicar ao juízo e sem anuência do pai de sua filha, o que acaba postergando qualquer tipo de decisão na demanda. Também pediu a regulamentação da convivência, ainda que assistida.

Decisão anterior havia declinado a competência para a comarca do interior de São Paulo, último endereço informado pela genitora, mas onde ela nem sequer reside mais. O entendimento era de que “as demandas que versam sobre posse e guarda de menor devem ser propostas no domicílio atual deste, observando que o que se quer é a preservação do seu interesse, através da facilitação de sua defesa, e checagem exata do seu ambiente social, com a melhor e direta colheita dos dados probatórios a tanto”.

Desembargador identificou “conduta dolosa e furtiva”

“A genitora comete diversas violações e vem-se mudando de forma sucessiva e reiterada, não deixando que o processo, enfim, tramite adequadamente, não podendo a mesma ser beneficiada pela sua conduta dolosa e furtiva”, observou o relator no TJRJ, desembargador Cleber Ghelfenstein. Ele destacou que o caso não é de simples litígio familiar, “tendo havido início de estudo psicossocial, indicando inclusive o risco da genitora à infante”.

O magistrado considerou as peculiaridades da situação e a necessidade de objetivar o melhor interesse da criança ao suspender a decisão de declínio. Assim, o processo deverá tramitar em uma das varas da localidade específica no Rio de Janeiro, onde vive o autor da ação. A decisão fixou ainda o convívio entre pai e filha, seja em finais de semana, sábado e domingo, quinzenalmente, das 9 às 17 horas.

“Em que pese não seja matéria da decisão atacada, em razão do princípio do melhor interesse da criança, requer seja fixada em sede de recurso, alguma forma de convívio do genitor e sua filha para que as falsas memórias não sejam definitivamente implementadas e se restaure o vínculo paterno-filial, uma vez que já se passaram meses sem que o pai veja sua filha”, concluiu Ghelfenstein.

Decisão não se ateve à letra crua da lei, diz advogada

A advogada Isabela Loureiro dá mais detalhes sobre o caso: “Foi sustentada estabilização da competência no juízo em razão das alterações sucessivas de domicílio da genitora da infante, mesmo após início de estudo psicossocial sem o devido comparecimento da genitora com a criança, o que fez com que o processo continuasse se arrastando por meses sem fixação de convívio do genitor, pelo magistrado de piso. Foi necessária fixação de convívio de ofício em segunda instância, uma vez que não havia apreciação dos pedidos quanto ao convívio do genitor, ainda que de forma assistida”.

Para ela, a decisão do TJRJ foi extremamente acertada. “Visa garantir o melhor interesse da criança, que é o objetivo do legislador quando dispõe as regras de fixação de competência do ECA. Contudo, como é sabido, a fixação de competência pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é seguida pelo domicílio do guardião da criança”, ressalta a advogada.

“Mantendo uma interpretação crua da lei, sem levar em consideração todas as provas anexadas, o processo em questão deveria ser declinado e fixada sua competência no domicílio onde a criança se encontrava. Contudo, como já mencionado, a genitora vinha se mudando sucessivamente e durante sete meses o genitor vinha e vem sendo privado do convívio com sua filha, mesmo sem existência mínima de provas que conduzam ao seu afastamento.”

Ela explica que, em grau de recurso, o desembargador responsável pelo caso atendeu ao pedido de fixação de competência pelo regramento do Código de Processo Civil, excepcionalmente, estabelecendo como competente o juízo em que foi proposta a demanda. O entendimento foi de que assim seria melhor atendido o interesse da criança e o processo, enfim, prosseguiria.

“Impecável o posicionamento do magistrado, pois a interpretação da norma deve sempre atender ao seu objetivo e o julgador não pode se ater à letra da lei simples e crua, sem levar em consideração seu contexto fático”, elogia Isabela. “Nosso próximo passo é fazer cumprir a determinação do magistrado, sem obstáculos, restabelecendo o convívio entre genitor e filha, além de concluir o estudo psicossocial, que é primordial para atender aos interesses da criança, que vêm sendo violados desde então.”

FONTE:  IBDFAM, 10 de fevereiro de 2022.

Atendente chamado de “ofensor” por não cumprir metas deverá ser indenizado

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Para a 7ª Turma, o uso do termo extrapola o poder diretivo do empregador.

A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou a AEC Centro de Contatos S.A. a pagar R$ 5 mil de indenização a um atendente de Campina Grande (PB) nominado como “ofensor” por não ter atingido as metas de vendas exigidas. Por unanimidade, o colegiado entendeu que a empresa abusou do seu poder diretivo.

Pressão exacerbada

Segundo o empregado, existia uma lista que nominava os atendentes conforme o ranking de produtividade, e os que não atingissem as metas eram conhecidos como “ofensores” do grupo e diferenciados pela cor vermelha. Para se livrar da alcunha, ele disse que era preciso chegar à primeira posição, simbolizada pela cor verde, mas, para isso, a pressão psicológica era “exacerbada”.

Profissão

Em defesa, a AEC negou ter praticado qualquer ato lesivo contra o empregado e defendeu a necessidade de “dissociar a pressão inerente à própria profissão, que conta com colocação de metas, da pressão que venha a resultar de excessos praticados pelo empregador”. Na avaliação da empresa, não houve intenção de degradar a honra do empregado.

Termo técnico

O juízo da 1ª Vara do Trabalho de Campina Grande e o Tribunal Regional da 13ª Região (PB) indeferiram o pedido do atendente. Na interpretação do TRT, “apesar de ser deplorável, era apenas um termo técnico utilizado para identificar os empregados para que alcançassem as metas de trabalho”. A decisão observa que o termo não era dirigido apenas ao atendente e que provas e depoimentos não apontavam para a existência de assédio moral no ambiente de trabalho.

Falta de respeito

Para o relator do recurso de revista do empregado, ministro Cláudio Brandão, a expressão utilizada pela empregadora “caracteriza forma de humilhação, escárnio, falta de respeito para com o empregado”. “Tratar o empregado de forma vil e desrespeitosa não se inclui entre as prerrogativas atribuídas ao empregador, como decorrência do seu poder diretivo”, afirmou.

O ministro acrescentou que é direito do empregador fixar a cobrança de metas, a fim de impulsionar os funcionários com incentivos e estímulos e, assim, aumentar a produtividade, mas que essas técnicas não se sobrepõem à dignidade humana. “Tal postura macula a autoestima e prejudica a integridade psíquica do empregado”, concluiu.

A decisão foi unânime. (RR/CF)  Processo: RR-35300-63.2013.5.13.0007 

FONTE:  TST, 11 de fevereiro de 2022.

Decisão que defere interceptação telefônica deve demonstrar que medida é imprescindível

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A decisão que defere a interceptação telefônica – bem como as suas prorrogações – deve conter, obrigatoriamente, com base em elementos do caso concreto, a indicação dos requisitos legais de justa causa e da imprescindibilidade da medida para a obtenção da prova, como determina o artigo 5º da Lei 9.296/1996.

Com esse fundamento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a nulidade de provas reunidas em investigação sobre o comércio ilegal de armas de fogo no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. O processo foi originalmente distribuído à 6ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio; entretanto, as interceptações telefônicas foram autorizadas no início pela 1ª Vara Criminal de Santa Cruz, da comarca da capital.

Ao todo, foram deferidas 12 medidas judiciais, mas só a partir da sexta a decisão coube ao juízo federal, após o Ministério Público Federal (MPF) constatar a possível prática de tráfico internacional de drogas e contrabando de arma de fogo.

Ao STJ, o réu alegou ofensa aos artigos 2º e 5º da Lei 9.296/1996, em razão da ausência de fundamentação, por parte do juízo estadual, da decisão inicial que determinou a quebra do sigilo telefônico e de suas prorrogações.

Necessidade de fundamentação da quebra de sigilo telefônico

Em seu voto, o relator do recurso, ministro Sebastião Reis Júnior, lembrou que o magistrado tem como dever constitucional (artigo 93, IX, da Constituição Federal de 1988), sob pena de nulidade, fundamentar as decisões por ele proferidas. Para o ministro, no caso da interceptação telefônica, a fundamentação da decretação da medida deve ser casuística e não se pode pautar em fundamento genérico.

No caso analisado, Sebastião Reis Júnior apontou que, embora as decisões do juízo federal apresentem motivação válida, a medida inaugural da quebra do sigilo, proferida pela 1ª Vara Criminal de Santa Cruz – assim como as suas subsequentes decisões de prorrogação –, limitou-se a acolher as razões da autoridade policial e do MPF.

“Apesar de haver referência aos fundamentos utilizados na representação da autoridade policial e na manifestação ministerial, esta corte entende ser necessário o acréscimo pessoal pelo magistrado, a fim de indicar o exame do pleito e clarificar suas razões de convencimento”, afirmou.

Nulidade da interceptação contamina as provas derivadas

O ministro ressaltou que as decisões proferidas pela 1ª Vara Criminal de Santa Cruz não apresentaram nenhuma concretude, pois não houve referência à situação apurada na investigação, nem a indicação da natureza do crime ou a demonstração de que as interceptações seriam imprescindíveis para o esclarecimento dos fatos.

“Deve-se considerar eivada de ilicitude a decisão inicial de quebra do sigilo, bem como as sucessivas que deferiram as prorrogações da medida, pois foram fundadas apenas nos pedidos formulados pela autoridade policial, sem nenhuma indicação específica da indispensabilidade da medida constritiva – nulidade que contamina as demais provas colhidas ao longo da investigação e da instrução, pois delas derivadas”, concluiu o relator.AREsp 1360839

FONTE:  STJ,  08 de fevereiro de 2022.

Após prazo decadencial, execução de sentença arbitral não pode ser impugnada por nulidades previstas na Lei de Arbitragem

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​A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que não é cabível a impugnação ao cumprimento da sentença arbitral, com base nas hipóteses de nulidades previstas no artigo 32 da Lei 9.307/1996, após o prazo decadencial de 90 dias – o período é contado a partir do recebimento da notificação sobre o julgamento arbitral.

O colegiado negou provimento a recurso interposto por uma empresa consorciada no qual se alegou que o pedido de nulidade da sentença arbitral – apresentado em incidente de impugnação ao cumprimento de sentença – também pode ser realizado no prazo de 15 dias previsto no artigo 525 do Código de Processo Civil.

O consórcio do qual a empresa faz parte foi condenado pelo tribunal arbitral ao pagamento de mais de R$ 3,2 milhões a outro consórcio pelo descumprimento de um contrato de fornecimento de materiais e equipamentos.

As condenadas apresentaram impugnações ao cumprimento de sentença, mas elas foram rejeitadas nas instâncias ordinárias, que reconheceram a fluência do prazo decadencial de 90 dias para suscitar a nulidade da sentença arbitral, ainda que veiculada em impugnação ao cumprimento de sentença; bem como reconheceram a responsabilidade solidária entre as empresas do consórcio.

Pretensão para anular sentença arbitral deve ser feita no prazo de 90 dias

O relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, explicou que o estabelecimento da convenção de arbitragem subtrai do Poder Judiciário não apenas a competência para conhecer originariamente do conflito de interesses surgido entre as partes, mas, também, em momento posterior, para se ingressar no mérito da decisão exarada pelo tribunal arbitral que decidiu o litígio.

Segundo o magistrado, à parte sucumbente é possível veicular, perante o Poder Judiciário, a pretensão de anular sentença arbitral, desde que fundada nas hipóteses taxativas – todas de ordem pública –, especificadas no artigo 32 da Lei 9.307/1996, e desde que o faça de imediato, no prazo decadencial de 90 dias.

O magistrado esclareceu que a Lei de Arbitragem estabelece, para tal pretensão, o manejo de ação anulatória (artigo 33, caput) e, nos casos em que há ajuizamento de execução de sentença arbitral (artigo 33, parágrafo 3º), a lei prevê a possibilidade de impugnação ao seu cumprimento – desde que observado, em ambos os casos, o prazo decadencial nonagesimal.

Vedação à nulidade da sentença arbitral após o prazo decadencial

Bellizze ressaltou que não há respaldo legal que permita à parte sucumbente – que não promoveu a ação de anulação da sentença arbitral no prazo de 90 dias – manejar a mesma pretensão anulatória, agora em impugnação à execução ajuizada em momento posterior a esse lapso, sobretudo porque, a essa altura, o direito potestativo (de anular) já terá se esvaído pela decadência.

“Por consectário, pode-se afirmar que a veiculação da pretensão anulatória em impugnação só se afigura viável se a execução da sentença arbitral for intentada, necessariamente, dentro do prazo nonagesimal, devendo a impugnante, a esse propósito, bem observá-lo, em conjunto com o prazo legal para apresentar sua peça defensiva”, afirmou.

O ministro também lembrou que, segundo precedente da Terceira Turma, embora a nulidade possa ser suscitada em sede de impugnação ao cumprimento de sentença arbitral, se a execução for ajuizada após o decurso do prazo decadencial da ação de nulidade, a defesa da parte executada fica limitada às matérias especificadas pelo artigo 525, parágrafo 1º, do CPC, sendo vedada a invocação de nulidade da sentença com base nas matérias definidas no artigo 32 da Lei 9.307/1996.

Responsabilidade solidária reconhecida no juízo arbitral

Em relação à responsabilidade das empresas consorciadas, o relator verificou que, no caso, a sentença arbitral, tanto em sua introdução, em que se reportou ao contrato de constituição do consórcio – no qual há expressa previsão de solidariedade entre as consorciadas –, quanto em sua parte dispositiva, sobre a qual recaem os efeitos da coisa julgada, estabelece a condenação das requeridas, sem nenhuma especificação.

Na avaliação do relator, a pretensão para individualizar a responsabilidade entre as empresas resultaria na modificação do mérito da sentença arbitral – providência que o Judiciário não está autorizado a realizar.  REsp 1862147

FONTE:  STJ, 10 de fevereiro de 2022.

Questão de prova: até onde a Justiça pode intervir nos critérios da banca de concurso público?

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No universo dos concursos públicos, os exames assumem importância central no processo de seleção de candidatos e representam, em última análise, o limiar que separa a pessoa do acesso ao cargo público. Sejam escritas, orais ou práticas, as provas buscam não apenas aferir o conhecimento individual, mas também permitir que a administração selecione aqueles que se mostrarem mais qualificados para assumir determinada função pública.

Exatamente por seu grau de relevância – e em respeito ao princípio da isonomia –, a prova não pode ser realizada de forma livre e indiscriminada pela banca examinadora, devendo seguir, em especial, as regras e o conteúdo previstos no edital do concurso.

Ainda assim, muitos candidatos se sentem prejudicados pelos critérios de elaboração ou correção das questões. Quando o recurso administrativo para a banca não resolve, o caso, frequentemente, vai parar no Judiciário, cuja atuação é balizada pela impossibilidade de substituir a administração pública na avaliação de respostas ou na atribuição de pontos.

Anulação de questão é possível quando o vício é evidente

No RMS 28.204, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a jurisprudência no sentido de que os atos administrativos da comissão examinadora do concurso público só podem ser revistos pelo Judiciário em situações excepcionais, para a garantia de sua legalidade – o que inclui, segundo o colegiado, a verificação da fidelidade das questões ao edital.

“É possível a anulação judicial de questão objetiva de concurso público, em caráter excepcional, quando o vício que a macula se manifesta de forma evidente e insofismável, ou seja, quando se apresente primo ictu oculi“, afirmou a ministra aposentada Eliana Calmon, relatora do recurso.

Segundo a magistrada, o Poder Judiciário não pode atuar em substituição à banca examinadora, apreciando critérios de formulação das questões, reexaminando a correção de provas ou reavaliando notas atribuídas aos candidatos.

No mesmo julgamento, a ministra considerou possível a utilização do mandado de segurança para a análise desse tipo de controvérsia, tendo em vista que o mero confronto entre as questões de prova e o edital pode ser suficiente para verificar a ocorrência de um defeito grave. Esses possíveis problemas, segundo a relatora, abarcam não apenas a formulação de questões sobre tema não previsto em edital, mas também a elaboração de questões de múltipla escolha que apresentem mais de uma resposta correta, ou nenhuma, quando o edital tenha determinado a escolha de uma única.

“Se houver necessidade da produção de prova pericial, a pretensão não será admitida na via do mandado de segurança”, ressalvou a relatora.

No caso dos autos – em que um candidato apontava ilegalidades em prova de múltipla escolha –, Eliana Calmon entendeu que os itens impugnados estavam em conformidade com o conteúdo programático previsto no edital. Quanto a alguns dos questionamentos do autor, a ministra afirmou que eles exigiriam “invadir o critério de correção utilizado pela banca examinadora, o que é vedado ao Poder Judiciário”, já que não se tratava de erro que se pudesse constatar à primeira vista.

Erro grave no enunciado da questão dissertativa

Ao julgar o RMS 49.896, a Segunda Turma analisou a possibilidade do controle de duas questões de prova dissertativa em concurso para o Ministério Público do Rio Grande do Sul. Segundo o candidato, uma das questões discursivas apresentava grave erro jurídico no enunciado, pois trocou o termo “saída temporária” por “permissão de saída”.

O ministro Og Fernandes destacou que o Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário com repercussão geral (RE 632.853), firmou a tese de que não compete ao Judiciário substituir a banca examinadora para avaliar as respostas dadas pelos candidatos e as notas atribuídas a elas. No caso examinado pelo STJ, entretanto, o relator apontou que o recorrente não pedia a reavaliação do conteúdo da resposta, mas alegava erro no enunciado.

Segundo o magistrado, a banca examinadora e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceram a falha no enunciado – especialmente porque os institutos da saída temporária e da permissão de saída têm regras próprias na Lei de Execução Penal –, mas, mesmo assim, entenderam que o problema não influiria na análise da questão pelo candidato.

Og Fernandes lembrou que é dever das bancas examinadoras zelar pela correta formulação das questões, sob pena de agir em desconformidade com a lei e o edital – comprometendo, dessa forma, o empenho dos candidatos, que às vezes levam anos se preparando para o concurso.

Nesse cenário, o ministro entendeu que o erro no enunciado comprometeu, sim, a capacidade do candidato de responder à questão, motivo pelo qual concluiu ser o caso de anulação.

Espelhos das provas refletem a motivação do ato administrativo

O candidato também sustentou, em relação a outra questão, que a banca só teria publicado o espelho com o padrão de resposta desejado após o seu recurso administrativo.

Para Og Fernandes, a transparência na utilização dos critérios previstos no edital exige que a banca divulgue, a tempo e modo, para fins de publicidade e eventual interposição de recurso pela parte interessada, cada critério considerado – que deve ser acompanhado da pontuação do candidato, bem como de razões ou padrões de resposta que a justifiquem.

“As informações constantes dos espelhos de provas subjetivas se referem, nada mais nada menos, à motivação do ato administrativo, consistente na atribuição de nota ao candidato. Tudo em consonância ao que preconizam os artigos 2º, caput, e 50, parágrafo 1º, da Lei 9.784/1999, que trata do processo administrativo no âmbito federal”, afirmou o relator.

Na hipótese analisada, contudo, o relator apontou que a banca não apenas disponibilizou a nota global do candidato quanto à questão, como também divulgou os critérios adotados para fins de avaliação, o padrão de respostas e a nota atribuída a cada um desses itens, tendo publicado o respectivo espelho ainda antes da abertura do prazo para recurso. “Não merece prosperar a alegada afronta ao devido processo recursal administrativo e ao princípio da motivação”, concluiu.

Desrespeito ao edital exige nova aplicação de questão anulada

Em dezembro do ano passado, a Primeira Turma determinou nova aplicação de questão de prova discursiva para candidato que apontou violação ao princípio da vinculação ao edital em concurso para a promotoria de justiça de Santa Catarina, em 2019.

De acordo com o candidato, o edital especificou as áreas do direito que seriam cobradas, acrescentando que as questões poderiam conter “incursões incidentais” em outras áreas – entre elas, o direito falimentar.

Entretanto, o autor da ação alegou que uma das questões tratou de maneira aprofundada sobre o direito falimentar. A comissão do concurso, por outro lado, afirmou que esse conteúdo só foi cobrado de forma transversal.

O ministro Sérgio Kukina enfatizou que a banca examinadora é livre para escolher os temas e os critérios avaliativos do concurso, os quais devem ser previamente indicados no edital. Entretanto, ele destacou que essas decisões se tornam vinculantes para a banca, tanto na elaboração quanto na aplicação da prova.

“De incursão incidental ou cobrança de forma transversal, certamente, não se trata: a referida questão aborda o direito falimentar de modo aprofundado, e não incidental. O enunciado demandava do candidato conhecimento prospectivo sobre a prática e a atuação do Ministério Público nos processos de falência e recuperação judicial”, comentou o relator.

Apesar de reconhecer a nulidade da questão, Kukina entendeu que não seria possível acolher o pedido do candidato para receber a pontuação integral da questão, pois, para o magistrado, seria paradoxal declarar a arbitrariedade na inserção do conteúdo e, ao mesmo tempo, atribuir ponto a ele.

Por isso, a turma determinou à banca que, em dez dias úteis após o trânsito em julgado da decisão, aplicasse ao candidato nova questão de prova, elaborada em conformidade com o edital (RMS 67.044).

Ordem de aplicação das provas práticas não viola direito de candidatos

Ao analisar o RMS 36.064, a Primeira Turma definiu que a simples alteração na ordem de aplicação das provas de teste físico em concurso público, desde que anunciada com antecedência e estendida a todos, não viola direito líquido e certo dos candidatos.

A controvérsia surgiu em prova para agente prisional de Mato Grosso. Segundo os candidatos, por meio de edital complementar, a banca alterou a ordem dos testes físicos inicialmente prevista, o que teria prejudicado a preparação para essa etapa.

O ministro Sérgio Kukina explicou que o instrumento convocatório do concurso previa, em cláusula específica, a divulgação de data, horário e local das provas por meio de edital complementar, com antecedência mínima de dez dias. Esse intervalo de tempo, segundo o magistrado, foi respeitado pela banca.

De acordo com o relator, o objetivo dos concursos é assegurar a observância do princípio constitucional da isonomia para ingresso nos quadros da administração pública. “Se a alteração na ordem de aplicação das provas integrantes do teste físico foi divulgada com antecedência e aplicada igualmente a todos os candidatos inscritos, não há violação do princípio, nem ilegalidade, nem abuso de poder”, concluiu o ministro.

Legislação atualizada após o edital pode ser cobrada em prova

Muitos editais de concurso exigem conhecimento de legislação, e muitas controvérsias são judicializadas quando a banca formula questões sobre leis alteradas após a publicação do edital.

No RMS 33.191, julgado pela Segunda Turma, um candidato ao cargo de promotor de justiça do Maranhão buscou anular questão oral que abordou o tema da adoção no contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo ele, o assunto não estava previsto no bloco de direito civil definido para a fase oral do concurso.

Relator do recurso em mandado de segurança, o ministro Humberto Martins destacou que, em 2009, quando os candidatos foram convocados para a prova oral, já estava em vigor a nova redação do artigo 1.618 do Código Civil, segundo o qual a adoção será deferida na forma prevista pelo ECA.

O ministro apontou precedentes do STJ no sentido de que, caso não haja vedação expressa no edital, é possível que a banca examinadora cobre conhecimentos sobre legislação superveniente à publicação das regras do certame.

“No presente caso, previsto no edital o tema geral ‘adoção’, no campo do direito civil, é dever do candidato estar atualizado na matéria versada, especialmente em razão da nova redação do artigo 1.618 do Código Civil, que faz alusão ao ECA”, concluiu Martins.

Governador não tem legitimidade em ação sobre atribuição de pontos

Ao analisar o RMS 37.924, a Segunda Turma entendeu que o governador não é parte legítima para figurar como autoridade coatora em mandado de segurança por meio do qual se busca a atribuição de pontuação em concurso para cargos estaduais.

No mandado de segurança, impetrado contra o governador de Goiás, os candidatos tentavam obter a pontuação referente a uma questão anulada, com a consequente reclassificação e o reconhecimento de seu direito à nomeação.

O ministro Mauro Campbell Marques explicou que a autoridade coatora, para fins de impetração do mandado de segurança, é aquela que pratica ou ordena, de forma concreta e específica, o ato ilegal, ou, ainda, aquela que detém competência para corrigir a suposta ilegalidade, nos termos do artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei 12.016/2009.

Segundo o relator, o governador tem competência para nomear e dar posse aos aprovados, mas não para corrigir a classificação que daria direito à investidura no cargo público.

Jurisprudência em Teses

Decisões do STJ sobre provas de concurso público podem ser conferidas nas edições de Jurisprudência em Teses, ferramenta que apresenta entendimentos da corte a respeito de temas específicos, escolhidos de acordo com sua relevância no âmbito jurídico.

Edição 9: A banca examinadora pode exigir conhecimento sobre legislação superveniente à publicação do edital, desde que vinculada às matérias nele previstas.

Edição 103: 1) O Poder Judiciário não pode substituir a banca examinadora do certame e tampouco se imiscuir nos critérios de atribuição de notas e de correção de provas, visto que sua atuação se restringe ao controle jurisdicional da legalidade do concurso público e da observância do princípio da vinculação ao edital. 2) A divulgação, ainda que a posteriori, dos critérios de correção das provas dissertativas ou orais não viola, por si só, o princípio da igualdade, desde que os mesmos parâmetros sejam aplicados uniforme e indistintamente a todos os candidatos.  Processo(s):RMS 28204RMS 49896RMS 67044RMS 36064RMS 33191RMS 37924

FONTE: STJ, 13 de fevereiro de 2022.

A dimensão humana da proteção ambiental

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POR: EDUARDO MIRABILE

Temos acompanhado rotineiramente as constantes preocupações dos países, notadamente dos mais desenvolvidos, com as questões ambientais. Inúmeras conferências, reunindo as mais altas figuras de governantes onde se mostram presentes buscando soluções que garantam ao menos um mínimo de proteção ambiental para que a Humanidade possa permanecer vivendo neste planeta pelas descendências que surgirão.

A Conferência das Nações Unidas sobre mudança do clima de 2021, realizada na Escócia, é um excelente exemplo dessa preocupação, que envolveu a presença das figuras mais ilustres e importantes da política mundial, garantindo a legitimidade do evento.

O presente estudo, porém, pretende focar no aspecto humano e sua relação com o meio ambiente. Afinal o que leva a humanidade a ter preocupação com o ecossistema?

Esse conceito de ecossistema decorre da interação de dois sistemas bem definidos, a saber, o sistema natural, composto de meio físico e biológico e o sistema cultural, criado pelo Homem que através de sua inteligência e atividade altera esse meio natural para sua conveniência.

Assim, como um artista nos dias de hoje, o Homem também altera aquilo que lhe foi dado inicialmente pela natureza, transformando o bem natural num bem artificial ou cultural. Essa transformação, a princípio realizada para a conveniência humana, acaba culminando em resultados bons ou ruins e sempre com consequências que igualmente poderão ser boas ou ruins conforme a escolha.

Aqui se faz interessante apresentar rapidamente duas ideias distintas, dentre tantas concepções existentes sobre a visão do mundo dentro do contexto dos bens naturais do planeta.

A primeira concepção que gostaríamos de abordar seria a visão criativista do mundo, que entende que todos os bens naturais existentes devem ser mantidos nesse estado, a fim de garantir a manutenção do delicado equilíbrio das coisas existentes desde a Criação do Universo. Portanto, as normas legais de proteção devem garantir a manutenção dos bens naturais no seu estado puro.

De forma antagônica, a concepção criativista, entende que o mundo é um amontoado de bens naturais que devem ser ordenados e transformados pela ação humana, de tal forma que mais lhe aprouver para sua conveniência. Aqui, ao contrário, as normas legais devem garantir que o Homem possa utilizar-se ao máximo desses bens naturais para os fins que entenda mais adequados.

O leitor, acreditamos, rapidamente, claro, chegará a conclusão que devemos abraçar a ideia da famosa frase “nem tanto o mar, nem tanto a terra”. O meio termo, em algum ponto entre essas duas concepções deve ser a melhor resposta que a humanidade deve buscar ao criar as leis protetivas ao meio ambiente.

Temos claramente aqui o confronto meio ambiente e desenvolvimento. O meio ambiente, nos dias atuais, tem se mostrado um inibidor do desenvolvimento desenfreado, que busca resultados imediatos com um alto preço a pagar no futuro.

A resposta a essa dualidade que estaria num crescimento econômico sustentável, que permitisse que os recursos naturais utilizados pudessem de alguma forma serem repostos pela natureza ou ação humana, seria facilmente encontrada se não houvesse tantos interesses, notadamente egoísticos envolvidos.

O desenvolvimento é algo que sempre é defendido, pois afinal é graças a ela que gera a criação de empregos, avanços tecnológicos, melhor qualidade de vida com as vantagens que a vida moderna oferece. Vemos que o desenvolvimento está atrelado até mesmo a dignidade da pessoa humana.

O ser humano, único animal dotado de inteligência no planeta, transforma bens naturais em qualidade de vida. Os países utilizam dos bens naturais colocados à disposição no seu território e procuram melhorar a qualidade de vida de sua população com bens naturais agora transformados em bens de consumo, com o valor agregado do trabalho humano.

Os países do primeiro mundo tiveram um forte desenvolvimento econômico no passado, com pouca preocupação ambiental, sobretudo pelo contexto e realidade que viviam. As leis ambientais só proliferaram entre os países nas últimas décadas. Na época da Revolução Industrial, por exemplo, eram pouquíssimas as sociedades que defendiam questões ambientais.

Temos grandes nações desenvolvidas que dizimaram matas nativas, florestas e um sem fim de ataques a biodiversidade e recentemente se deram conta que se outras nações seguirem pelo mesmo caminho, o resultado ambiental será muito caro para toda a Humanidade.

Hoje países em desenvolvimento também desejam um rápido crescimento e veem em questões ambientais um óbice para essas pretensões. O argumento da soberania e da autodeterminação de seus povos é sempre colocado na mesa de negociação pelos países em desenvolvimento, ansiosos pelos avanços desenvolvimentistas em que acredita.

A comunidade internacional, também é verdade, vem buscando soluções no sentido de dar uma indenização ou compensação a esses países que ainda não tiveram o desenvolvimento que o façam, mas respeitando o meio ambiente natural. É uma tentativa de demover da ideia de um crescimento ao arrepio de valores ambientais fortes.

Perceberam os países mais ricos que leis ambientais mais rígidas poderiam frear a sanha de desenvolvimento desenfreado e poluidor dos mais pobres, mas ao mesmo tempo afetariam o “status quo” da sua poderosa e poluidora economia.

Nesse norte, foi criado por exemplo, um interessante mecanismo chamado de crédito de carbono, onde os mais poluidores pagam créditos a governos/empresas que poluem menos, conforme metas pré-estabelecidas em acordos internacionais.

Esse mecanismo aprovado pelas nações veio a criar um mercado de crédito de carbono que tem seus méritos ao estabelecer limites e compensações ou indenizações a outras nações signatárias. Levam-nos, num primeiro momento, a uma ideia de justiça.

Por outro lado, também é verdade, pode ser encarado como um mecanismo que assegura o direito do poluidor, que é rico, continuar poluindo, mediante uma compensação ao mais pobre. Justo como dito acima, mas não deixa de ser perturbadora a ideia de que possa o rico fazer prevalecer seus interesses sobre o pobre no suposto direito de poluir o meio ambiente que pertence a todos.

Temos, nesse quadro, claramente um conflito de interesses envolvendo a humanidade e seu ecossistema.

A humanidade, fantasiada de ideais nobres busca agora cada vez mais a criação de leis protetivas ao meio ambiente, não por acreditar naquela concepção criativista do universo, mas sim, por entender, que é preciso fazer algo senão inexistirá futuro para o Homem.

Estamos inseridos no planeta, onde criamos uma espécie de bomba-relógio ambiental, em que desconhecemos qual ao tempo que nos resta, mas onde há um senso comum que certamente precisa ser feito algo senão o tempo chegará cobrando o Homem de uma forma inexorável pela utilização pouco inteligente do ecossistema.

 

 

EDUARDO MIRABILE
Mestre em Direito Difusos e Coletivos. Advogado. Professor de direito Constitucional, Ambiental, Civil e Biodireito dos cursos de graduação e pós-graduação

Ministro Ricardo Lewandowski suspende normas que permitem empreendimentos em cavernas

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Na decisão, ele considerou o risco de danos irreversíveis às cavidades subterrâneas e suas áreas de influência.

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu dispositivos do Decreto 10.935/2022, que altera a legislação de proteção a cavernas, grutas, lapas e abismos e permite a exploração, inclusive, daquelas com grau máximo de proteção. A decisão considera o risco de danos irreversíveis às cavidades naturais subterrâneas e suas áreas de influência.

A liminar foi parcialmente deferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 935, ajuizada pela Rede Sustentabilidade, e será submetida a referendo do Plenário. Com isso, foram retomados os efeitos do artigo 3º do então revogado Decreto 99.556/1990, que confere proteção integral imediata às cavidades classificadas como de relevância máxima.

Proteção

Na decisão, o ministro destacou que algumas das alterações, na prática, resultam na possibilidade da exploração das cavidades subterrâneas sem maiores limitações, aumentando substancialmente a vulnerabilidade dessas áreas de interesse ambiental, até o momento intocadas. Para Lewandowski, as condições impostas pela norma para que cavernas classificadas como de máxima relevância sofram impactos irreversíveis são incompatíveis com o princípio da proteção desse patrimônio natural.

A nova regra faz menção – como um dos requisitos para a exploração desses bens naturais – à demonstração de que os possíveis impactos adversos decorrerão de empreendimento considerado de “utilidade pública”. Na avaliação do relator, trata-se de conceito juridicamente indeterminado, que confere, por sua amplitude e sua generalidade, um poder discricionário demasiadamente amplo aos agentes governamentais responsáveis pela autorização de atividades com claro potencial predatório.

Lesão

Na análise preliminar da matéria, o ministro entendeu que o caso se enquadra como possível lesão ou ameaça de lesão a preceitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à saúde, a proibição do retrocesso institucional e socioambiental e, de forma mais específica, o direito à proteção ao patrimônio cultural.

A cautelar suspende, até julgamento final da ação, a eficácia dos artigos 4º, incisos I, II, III e IV e 6º do Decreto 10.935/2022.

FONTE:  STF, 24 de janeiro de 2022.

Hospital indenizará família de adolescente grávida que faleceu após receber alta

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A 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo aumentou a indenização por danos morais devida pela Autarquia Hospitalar Municipal Regional do Tatuapé à família de paciente que morreu em decorrência de negligência e imperícia médica. A reparação foi fixada em R$ 200 mil.

Segundo os autos, a filha da autora da ação, grávida de seu primeiro filho, com 15 anos de idade, deu entrada no Pronto Atendimento de obstetrícia com queixa de cefaleia e edema em membros inferiores. Após uma primeira avaliação médica, foi constatada pressão arterial elevada e a paciente foi encaminhada para receber medicações e colher exames laboratoriais. Após todos os procedimentos, foi atendida por outra médica de plantão, que optou por dar alta à jovem, mesmo diante das queixas de que “suas vistas estariam escurecendo” e da sensação de que iria desmaiar. Cerca de uma hora depois de receber alta, a paciente retornou ao hospital após ter tido uma crise convulsiva em casa, fato que se repetiu diversas vezes no hospital. A equipe realizou cesária de urgência e, após o parto, a paciente faleceu.

Para o relator do recurso, desembargador Rubens Rihl, houve nexo de causalidade entre a alta da jovem e seu óbito. “Restou comprovado que o fatídico evento narrado nos autos poderia ter sido evitado, se adotada a conduta médica adequada. Isto é, diante dos sintomas apresentados pela filha da autora ao chegar no nosocômio como pressão arterial elevada, inchaço, vistas escurecidas, etc., a equipe médica deveria ter procedido à imediata internação hospitalar da paciente, em UTI, com resolução obstétrica e controle pressórico efetivo”, escreveu. O magistrado também ressaltou que a patologia apresentada pela paciente é comum e previsível entre gestantes, “de forma que os sintomas são perceptíveis ainda no primeiro atendimento; não se cuidando de enfermidade de difícil constatação ou rara ocorrência, a dificultar a escolha acercado procedimento a ser seguido”.

O julgamento, de votação unânime, teve a participação dos desembargadores Aliende Ribeiro e Vicente de Abreu Amadei.      Apelação nº 1015244-26.2019.8.26.0053

FONTE: TJSP, 24 de janeiro de 2022.