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DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDEOmissão atenta contra garantia constitucional

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DECISÃO: * TJ-MT – O juiz Wanderlei José dos Reis, da Primeira Vara da Comarca de Sorriso (420km a norte de Cuiabá), condenou solidariamente o Município de Sorriso e o Estado de Mato Grosso a submeter uma usuária do Sistema Único de Saúde (SUS), portadora de uma enfermidade denominada retinopatia diabética e catarata, ao exame de angiofluoresceinografia ocular. O referido exame deverá ser realizado em hospital da rede pública de saúde (SUS), no próprio município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que estiver disponível o exame médico preconizado. Caso não haja vaga no SUS, o exame deverá ser feito na rede privada de saúde. O problema de saúde vivenciado pela usuária do SUS vem ocasionando baixa acentuada de acuidade visual de ambos os olhos (Processo n.º 2818-70.2010.811.0040).  

Na decisão o magistrado determinou ainda que, caso seja necessário, seja garantida a realização de outros exames que eventualmente forem prescritos durante o tratamento médico, a serem realizados em hospital da rede pública de saúde (SUS) ou na rede particular, em Sorriso ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado. Também foi determinado o custeio de eventual procedimento cirúrgico indicado por médico especialista, na rede pública de saúde ou em hospital da rede privada, caso não haja vaga no SUS. Município e Estado também foram condenados a disponibilizar à paciente recursos e medidas necessárias para garantir seu deslocamento até a unidade de saúde (pública, conveniada ou privada) disponível, fornecendo-lhe o valor do transporte (ida e volta) e ajuda de custo; tudo sob pena de pagamento de multa diária de R$ 1 mil.

A ação civil pública de preceito cominatório com pedido de antecipação de tutela e multa comunitária fora ajuizada pelo Ministério Público de Mato Grosso em face do Município de Sorriso e do Estado de Mato Grosso. O órgão ministerial informou a necessidade de se submeter a paciente à realização do exame, conforme prescrito por médico oftalmologista. Consta dos autos que a paciente chegou a ir à Secretaria Municipal de Saúde para agendamento do procedimento, onde foi informada que não haveria previsão para realização do exame, o que foi ratificado pelo município em resposta ao ofício enviado pela Promotoria de Justiça. Na ação foi sustentado que a omissão estatal relativa a não prestação do exame atentaria contra a garantia constitucional da saúde, bem como contra o princípio da dignidade da pessoa humana.

Na contestação, o Município de Sorriso postulou pela improcedência dos pedidos com base na aplicação do princípio da reserva do possível, bem como alegou que a prolação de uma decisão em desfavor da municipalidade por parte do juízo feriria os princípios da separação dos poderes, por se tratar de matéria afeta exclusivamente ao Poder Executivo, e da legalidade, posto que criaria despesa não prevista no orçamento público. Aduziu também que o fornecimento de tratamento médico não consta no rol previsto na portaria n.º 2.577/2006 do Ministério da Saúde. Já o Estado de Mato Grosso sustentou que a prescrição de tratamentos de caráter excepcional, de alto custo ou não, teria natureza jurídica de ato médico, não podendo ser imposto ao Estado, visto que despido do atributo de coercitividade.

Segundo o juiz Wanderlei dos Reis, a saúde é serviço público de primeira necessidade que deve sempre ter a preferência do administrador público. “Deve-se ter em mente, também, que o direito à saúde é, senão o principal, um dos direitos de prestação primordiais, consagrado pelo legislador constituinte, plenamente exercível contra o Estado, aqui entendido em sentido amplo, abarcando quaisquer dos entes da federação”, salientou. Conforme o magistrado, a Constituição Federal apresenta a saúde como imposição ao Estado, que deve buscar medidas de potencialização da saúde pública por meio da prevenção de mazelas que atentem contra a saúde da população. O artigo 196 da Constituição Federal versa que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

“Não pode o Estado esconder-se atrás da alegação de impossibilidade de prestação da saúde ante a multiplicidade de objetivos que lhe são impostos, utilizando-se deste argumento como escudo em face da oposição por parte do cidadão de direito que lhe é garantido pela Constituição da República”, ressaltou o magistrado.


 

FONTE:  TJ-MT, 23 de fevereiro de 2011.

MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITO NO TRÁFICO DE DROGASÉ possível pena alternativa e regime inicial aberto para casos de tráfico

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DECISÃO: *STJ  –   É possível  a  substituição  da  pena privativa de  liberdade  por  medidas restritivas de direitos, bem como o estabelecimento de regime diverso do fechado, em conde nações por tráfico de drogas. A decisão é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reafirmou tanto a sua jurisprudência quanto a do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.

A apenada foi presa em flagrante ao tentar levar, na vagina, 58 gramas de cocaína a detento na Penitenciária de São Sebastião (DF). A pena foi fixada em um ano e onze meses de reclusão, mais multa, a ser cumprida em regime inicial fechado. Para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Tóxicos) impediria o benefício. A mesma norma também inviabilizaria a substituição da pena por medida restritiva de direitos.

Mas, segundo o ministro Og Fernandes, a referida legislação não é harmônica com os princípios da proporcionalidade. “A imposição do regime fechado, inclusive a condenados a penas ínfimas, primários e de bons antecedentes, entra em rota de colisão com a Constituição e com a evolução do Direito Penal”, asseverou.

Nas instâncias ordinárias, a pena da condenada foi fixada no mínimo legal, de cinco anos de reclusão, e a minorante do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/06 – aplicada a agente primário, portador de bons antecedentes, que não integre organização criminosa nem se dedique a tais fins – foi estabelecida no patamar máximo. Por isso, apesar da disposição da lei, o regime inicial aberto seria perfeitamente aplicável, diante do princípio da individualização da pena.

Ressaltou-se, ainda, que a pena pode ser substituída por prestação de serviços e limitação de fim de semana. Tal entendimento já é aplicado pela Sexta Turma há pelo menos um ano e está alinhado com o ponto de vista do STF sobre o tema.

O ministro citou decisão do Supremo (HC 97.256/RS), relatada pelo ministro Carlos Ayres Britto, na qual o tribunal declara, de forma incidental, a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei de Tóxicos que vedam a conversão da pena em medida alternativa.

“Considerando a pena aplicada – 1 ano, 11 meses e 9 dias de reclusão em regime aberto –, bem como a primariedade e inexistência de circunstâncias judiciais desfavoráveis à substituição [de pena], é medida que se impõe”, concluiu o relator.


FONTE:

  STJ, 28 de 25/02/2011

O caso da escrivã revistada em uma delegacia: ilegalidade justifica ilegalidade?

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*Fábio Coutinho de Andrade 

O caso traz importantes questionamentos na seara penal, como o abuso de autoridade, a obtenção de provas por meios ilícitos ou ilegítimos, a violação a direitos da personalidade e alguns outros.

Introdução 

O caso da escrivã que foi deixada nua em uma delegacia em Parelheiros, na zona Sul de São Paulo, está circulando pela mídia digital. O vídeo foi levado ao ar pelo jornal da Band e caiu no youtube, popular site de vídeos. Após, foi divulgado por diversos sites, entre eles o do Terra.

O caso traz importantes questionamentos na seara penal, como o abuso de autoridade, a obtenção de provas por meios ilícitos ou ilegítimos, a violação a direitos da personalidade e alguns outros, que serão devidamente expostos no decorrer desse artigo. 

Entenda o caso 

O caso começou quando um homem envolvido em um inquérito no 25º Distrito Policial, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, por ter sido flagrado em posse de munições, procurou o Ministério Público para denunciar a escrivã, que segundo ele havia pedido uma quantia em dinheiro para livrá-lo da investigação.

O homem foi orientado a prosseguir com as negociações com a escrivã e, na data marcada para a entrega do dinheiro, o processo foi acompanhado por policiais da Corregedoria. Após a entrega da quantia, a policial foi abordada e a gravação foi iniciada, conforme disse, neste sábado (19), a corregedora-geral da Polícia Civil de São Paulo, Maria Inês Trefiglio Valente

De acordo com Maria Inês, o vídeo tem mais de 40 minutos e mostra toda negociação para que a escrivã entregasse o dinheiro, que seria a prova do crime. A gravação foi feita, segundo a corregedora, "para a garantia de todos", como é comumente feito em ações da corregedoria.

Segundo Maria Inês, a escrivã colocou o dinheiro dentro da calça, fazendo com que fosse necessária a retirada da peça de roupa para a apreensão do dinheiro. A policial chega a ser revistada por uma mulher, mas nada foi encontrado. "O delegado pede que ela entregue o dinheiro, mas ela se recusa. Ele tomou a atitude que tinha que tomar para pegar a prova. Um policial sabe o custo das atividades ilegais dele", afirmou a corregedora.

Os policiais então decidiram fazer o que aparece nas imagens: algemaram a escrivã e tiraram a roupa dela. No vídeo divulgado, um deles afirma ter encontrado o dinheiro. Ela foi autuada em flagrante pelo crime de concussão e sofreu um processo administrativo, finalizado em outubro de 2010 com sua expulsão da Polícia Civil. Ela ainda responde a processo criminal por concussão e tem audiência marcada para maio.

(Fonte: Globo.com) 

O crime de concussão 

O crime de concussão está previsto no artigo 316 do Código Penal, ipsis verbis: 

Art. 319. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida…" 

(omissis). 

A exigência deve ser formulada em razão da função, tratando-se de crime próprio, sendo praticado somente pelo detentor de cargo ou função pública. Quanto à vantagem em si, pode ser ela patrimonial ou econômica, presente ou futura, conforme posição que advoga a tese ampla do conceito de indevida vantagem, a exemplo de Damásio de Jesus. 

Tem a natureza de delito formal, consumando-se a concussão quando o agente exige, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. O recebimento da vantagem é mero exaurimento do crime. 

Além disso, exige o crime de concussão o elemento subjetivo, qual seja, o dolo, não havendo previsão legal para a modalidade culposa. O funcionário público, em razão de sua função, exige, livre e conscientemente, do sujeito passivo, uma vantagem indevida. A prova dessa exigência deve constar dos autos no momento em que ela foi realizada. 

De acordo com o ensinamento do mestre Rogério Greco, não é possível a realização da prisão em flagrante no ato da entrega da indevida vantagem, haja vista o crime ter se consumado quando da exigência desta. Trata-se, no dizer de Paulo Rangel Dinamarco, de prisão manifestamente ilegal, que deverá imediatamente ser relaxada pela autoridade judiciária, nos precisos termos do artigo 5º, LXV, da Constituição Federal. 

Flagrante esperado, flagrante provocado e flagrante forjado 

No escólio do insigne mestre Norberto Avena, flagrante esperado é "aquele no qual a autoridade policial (via de regra), sabendo, por fontes fidedignas, que será praticado um crime, desloca-se até o local em que este deverá acontecer, aguardando o início dos atos de execução ou, conforme o caso, a própria consumação, realizando, ato contínuo, a prisão em flagrante de todos os envolvidos. Essa modalidade de flagrante é válida, implicando tentativa punível ou, até mesmo, a consumação do crime." 

Diferente é a situação do flagrante provocado ou preparado, em que a autoridade instiga o agente a praticar o crime, sem este saber que está sob ostensiva vigilância das autoridades, que só aguardam o início dos atos de execução para realizar o flagrante. Nesse caso não há flagrante válido, tratando-se da hipótese de crime impossível. 

Nesse diapasão, temos o enunciado da Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: "não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação". 

Já no flagrante forjado não houve qualquer ilícito praticado, tendo a autoridade ou qualquer outra pessoa "plantado" a prova no suposto local do crime, tendo em vista acusar falsamente alguém pela prática do delito. É ilegal, sujeitando os responsáveis à devida responsabilização na esfera criminal e mesmo cível, se houver danos à personalidade, por exemplo, como no caso da escrivã, que teve sua imagem exposta, revelando mesmo suas "partes íntimas". 

Nesse sentido, cabível será o pedido de indenização por danos morais ou à imagem contra o Estado, tendo em vista que este deveria zelar pela preservação de tais imagens, não expondo a escrivã de tal forma, vexatória, causando ainda mais humilhação a ela, causando o que se convencionou chamar de "vitimização secundária", que espelha as ações e conseqüências resultantes dos delitos com o sistema policial e jurídico-penal do aparelhamento estatal diante dos envolvidos, principalmente a vítima.

O fato é que uma ilegalidade não pode dar suporte a outra, afinal, como diz um antigo adágio, "o fato de alguém estar certo não lhe dá o direito de ser estúpido" ou, no presente caso, o direito de violar as normas penais e processuais penais brasileiras, matizando-as sob o pálido reflexo da legalidade, quando o que se tem, claramente, é o cometimento de arbitrariedades e desvirtuamentos da lei.

Temos ainda, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (da qual o Brasil é signatário), em seu artigo 12, que "ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação".

Não se deve perquirir aqui da qualidade da vítima, se foi ela responsável ou não pelo cometimento de um ilícito, pois mesmo que tenha cometido as mais graves infrações, deve ser-lhe garantida a proteção da lei, com todas as garantias daí inerentes, como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a produção de provas, etc.

Negar tal direito seria retroceder ao tempo das inquisições, das ordálias, legitimando a tortura em busca de uma confissão ou de uma "prova cabal", que, se confrontada com outras provas existentes, não se sustenta, deslegitimando a atuação estatal, por meio dos agentes que a representam. 

Busca pessoal 

A busca pessoal é a diligência realizada no corpo da pessoa, em suas roupas ou objetos que tenha consigo. Pode ser realizada a partir de simples suspeitas de que o indivíduo esteja portando algo proibido ou ilícito, podendo ser executada pela autoridade policial e seus agentes ou pela autoridade judiciária e quem essa determinar, como preleciona o artigo 240, § 2º, do Código de Processo Penal. 

Cabe trazer à colação o que nos informa a norma insculpida no artigo 249 do Código de Processo Penal, segundo o qual "a busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência".

No caso, havia pelo menos duas policias presentes no local, que poderiam atender às ordens do delegado, conduzindo a diligência em conformidade com a lei. Mas o que vemos é bem diferente: a vítima foi forçada a tirar sua roupa, inclusive peças íntimas, na frente de outros policiais. Violação frontal e direta ao texto legal, tratando-se de prova ilegítima.

Provas ilícitas e ilegítimas 

Provas ilícitas, no escólio do mestre Norberto Avenna, "são as provas obtidas mediante violação de normas de direito material. Para que ocorra a ilicitude, além do conteúdo material (assecuratórios de direito) da norma afrontada com a obtenção da prova, é necessário que essa violação tenha acarretado, direta ou indiretamente, a ofensa a garantia ou princípio constitucional." 

"Nesse contexto", prossegue o autor, "correta a definição inserida ao artigo 157, caput, do Código de Processo Penal, ao definir as provas ilícitas como sendo as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais, sendo, nesse último caso, a violação indireta à Carta Magna, vale dizer, ofendendo dispositivo de lei cujo conteúdo reflita em garantia constitucional. 

Já provas ilegítimas, nas palavras do já citado autor, "são as provas produzidas a partir da violação de normas de natureza eminentemente processual, isto é, normas que têm fim em si próprias. Na ilegitimidade, ao contrário do que ocorre na ilicitude das provas, seria possível a norma violada conter disposição oposta à que lhe é inerente, sem que, com isso, haja qualquer risco de tornar-se ela inconstitucional". 

No artigo 249 do Código de Processo Penal, já citado, poderíamos ter, então, o seguinte texto: "a busca em mulher será feita por mulher ou homem, indistintamente". Mas não é o que ocorre, havendo violação à lei penal adjetiva. Contudo, não há reflexo em nível constitucional, cingindo-se a discussão tão-somente às normas infraconstitucionais, no caso, o Código de Processo Penal, que é um Decreto-lei, instrumento esse já não existente em nosso ordenamento, por terem sido substituídos pelas medidas-provisórias, nos termos do que institui o artigo 62 da Constituição Federal.

Portanto, ilegítima a busca efetuada na escrivã pelos delegados e policiais civis, não sendo propícias a embasar um inquérito policial ou mesmo uma ação penal. 

Ordem manifestamente ilegal e ordem não-manifestamente ilegal 

No vídeo podemos ver claramente que as ordens para a "revista íntima" na escrivão partiram de um delegado corregedor (no minúsculo mesmo), tendo sido cumpridas por dois policiais, pelo menos, sendo presenciada por tantos outros. 

O Código Penal prevê algumas causas legais que excluem a culpabilidade, entre elas a obediência hierárquica, previstas no artigo 22 do citado Codex, ipsis verbis: 

"Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem."

Para que o agente possa se beneficiar com essa causa legal de exclusão da culpabilidade, é necessário que sejam observados alguns requisitos: a) a ordem deve ter sido proferida por superior hierárquico; b) a ordem não deve ser manifestamente ilegal; c) o cumpridor da ordem deve se ater aos limites desta. 

"Para que se possa falar em obediência hierárquica, é preciso haver dependência funcional do executor da ordem dentro do serviço público, em relação a quem lhe ordenou a prática do ato delituoso", conforme nos ensina Frederico Marques. 

Se a ordem não for manifestamente ilegal, ou seja, se não evidente a sua ilegalidade, deve o servidor obedecer-lhe. Ao contrário, se for manifestamente ilegal a ordem, o servidor está desobrigado de cumpri-la. 

Aqui temos o ponto nodal referente ao tema. Os policiais tinham condições de avaliar se suas condutas violavam diretamente a lei? Se sim, podiam eles, nos termos do que foi exposto, recusar cumprimento à ordem, sob pena de responderem, juntamente com o superior hierárquico, em concurso de agente em fato típico doloso.

Despiciendo tratar do último requisito, que diz respeito ao cumprimento da ordem não manifestamente ilegal dentro dos limites que lhe foram determinados, pois que a situação em concreto não se amolda a tal hipótese.

Todavia, como o crime foi cometido em cumprimento de ordem de autoridade, é aplicável a circunstância atenuante prevista no artigo 65, III, c, primeira parte, do Código Penal, que diz:

"Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

III – ter o agente:

c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, …"

Concluindo, nosso entendimento é o de que, tendo sido a ordem manifestamente ilegal, devem por ela ser responsabilizados o superior hierárquico e os cumpridores da ordem, incidindo, quanto a estes, a circunstância atenuante prevista no artigo 65, inciso III, letra c, do Código Penal pátrio.

Abuso de autoridade

Prevê a Lei 4.898, de 1965, em seu artigo 3º, inciso "i":

"Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

i)À incolumidade física do indivíduo;"

Também no artigo 4º, inciso h, da mesma lei, temos:

"Art. 4º. Constitui também abuso de autoridade:

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal."

Tais condutas violam os direitos fundamentais previstos nos artigos 5º, da Constituição Federal, segundo o qual "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

A violência abrangida pelo tipo penal pode ser qualquer tipo de violência física, não abrangida a violência moral. Houve no caso claro abuso de poder, que ocorre quando a autoridade pública possui atribuição para a prática do ato, mas vai além do limite legal,

A lei 4.898 tutela dois bens penais, sendo o primeiro o regular funcionamento da Administração Pública e o segundo os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.

Também já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no Resp 387.014-AgR:

"O dano moral indenizável é o que atinge a esfera legítima de afeição da vítima, que agride seus valores, que humilha, que causa dor.

Portanto, além de poder haver a responsabilidade dos agentes pelo crime de abuso de autoridade, poderá a vítima ainda ingressar com ação por indenização por danos morais frente ao Estado, tendo em vista não ter havido o seu regular funcionamento, havendo culpa de seus agentes, podendo, se condenado o Estado, ingressar com a competente ação regressiva contra os agentes causadores do dano, nos termos do que dispões o artigo 37, §6º, da Constituição Federal.

Conclusão 

Diante de tudo o que foi exposto, temos somente que lamentar a ocorrência de tais condutas dentro de órgãos públicos, cometidas justamente por aqueles que deveriam assegurar e aplicar corretamente a lei.

Enquanto a mão do Estado não se fizer pesar devidamente sobre quem quer que cometa infrações penais, iremos assistir a tais cenas burlescas, senão trágicas, que somente concorrem para desacreditar os agentes públicos perante a sociedade brasileira.

Outros inúmeros casos há e muitos ainda haverão. Até quando iremos tolerar esse estado de coisas? Até quando veremos nossas leis pisoteadas e escamoteadas, ao bel-prazer dos que detêm o mando e o poder? 

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

FÁBIO COUTINHO DE ANDRADE:  Fabio Coutinho de Andrade, Advogado em Campo Grande (MS). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UCDB.

Fev/2011 

www.fabiocoutinho.com


O município e o prefeito na nova ordem constitucional

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* Riberti de Almeida Felisbino 

Resumo: Neste pequeno texto vamos discutir o município e o prefeito na nova ordem constitucional, dando destaque a autonomia municipal e a importância política do prefeito no interior do município. 

O município é base física e espiritual da nação (Requião e Bueno, 1997, p. 13). 

O prefeito não é um mero funcionário, mas o representante eleito pela população local para gerir os negócios municipais (Serra, 1997, p. 28). 

De 1824 a 1988, os municípios brasileiros passaram por um processo de readaptação política, administrativa e econômica de suas instituições. A posição atual dos municípios é bem diversa da que ocuparam nos arranjos constitucionais anteriores. Comparado com o do período de 1946 a 1964, que corresponde à primeira experiência democrática brasileira, a autonomia municipal no atual regime democrático passou a ser exercida de direito e de fato nas administrações locais.

Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil era constituído pela união dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios. Os municípios não eram qualificados como membros da Federação. A Carta Magna de 1988 representou um marco no processo de descentralização política no Brasil, ao reconhecer os municípios como entes da Federação e ao atribuir-lhes maiores competências. No primeiro artigo da atual Constituição Federal pode-se observar o desejo dos constituintes com relação à formação da nação brasileira: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (…)” (Constituição Federal, 1988, art. 1). Essa formação estabeleceu a competência de cada uma das esferas governamentais, que também estabelece o que lhes é vedado: os artigos 21 e 22 enumeram as matérias de competência exclusiva da União, enquanto o artigo 23 destaca as matérias de competência comum da União, Estados, municípios e Distrito Federal.

O mais importante do atual desenho constitucional, no que diz respeito ao processo de autonomia dos municípios, está no artigo 29: “O município reger-se-á por Lei Orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará” (Constituição Federal, 1988, art. 29). Podemos dizer que esse artigo coloca os municípios, em relação a sua autonomia, em posição privilegiada aos demais entes da Federação, pois não estão mais subordinados a qualquer autoridade estadual ou federal no desempenho de suas atribuições exclusivas. Cabe aos municípios, dentro de suas competências privativas, “legislar sobre assuntos de interesse local” (Constituição Federal, 1988, art. 30, inc. I), em substituição à tradicional expressão ‘peculiar interesse’, que acompanhava todas as Constituições Federais republicanas anteriores. 

Os pesquisadores associados ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ressaltam que o atual arranjo constitucional conferiu “(…) aos Estados e municípios ampla autonomia para legislar e arrecadar tributos próprios e para orçar, gerir, despender e fiscalizar seus recursos, além de reformatar tributos e descentralizar receitas” (PNUD, 1996, p. 57). Com base em Mota Jr. (2002), abaixo estão alguns exemplos de transferências de recursos estabelecidos entre os entes da Federação:

                     ·          Da União para os Estados e Distrito Federal.

– 21,5% da arrecadação somada do IR e do IPI para Fundo de Participação dos Estados.

– 10,0% da arrecadação do IPI para o FREEx.

– 66,7% da contribuição do salário-educação.

– 30,0% do IOF-ouro.

– 100,0% do imposto de renda retido na fonte pelo tesouro local.

– 20,0% dos tributos que sejam criados pela união.

·          Da União para os municípios.

– 22,5% da arrecadação somada do IR e IPI para o Fundo de Participação dos Municípios.

– 50,0% da arrecadação do ITR.

– 100,0% do IRRF pelo tesouro local.

– 70,0% do IOF-ouro.

·          Dos Estados para os municípios.

– 25,0% dos recursos do FREEx recebidos pelos Estados da União (equivalente a 2,5% do IPI).

– 25,0% da arrecadação do ICMS.

– 50,0% do IPVA.

·         Outras receitas compartilhadas.

– Composição financeira pela extração de minerais. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 23,0% aos Estados e ao Distrito Federal; 65,0% aos municípios e 12,0% ao Departamento Nacional de Produção Mineral.

– Compensação financeira pela exploração de recursos hídricos. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 45,0% aos Estados e ao Distrito Federal; 45,0% aos municípios; 8,0% ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e 2,0% à Secretaria da Ciência e Tecnologia.

– Compensação financeira pela exportação de petróleo, xisto, betuminoso e gás natural. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 70,0% aos produtores; 20,0% aos municípios produtores e 10,0% aos municípios com instalação de desembarque. – Composição financeira pela extração de minerais. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 23,0% aos Estados e ao Distrito Federal; 65,0% aos municípios e 12,0% ao Departamento Nacional de Produção Mineral.

– Compensação financeira pela exploração de recursos hídricos. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 45,0% aos Estados e ao Distrito Federal; 45,0% aos municípios; 8,0% ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e 2,0% à Secretaria da Ciência e Tecnologia.

– Compensação financeira pela exportação de petróleo, xisto, betuminoso e gás natural. O produto da arrecadação deve ser distribuído: 70,0% aos produtores; 20,0% aos municípios produtores e 10,0% aos municípios com instalação de desembarque. 

Abrúcio e Franzese (2007) reconhecem que os entes da Federação obtiveram maior autonomia política, administrativa e financeira. Arretche (2002) também vê que a “(…) descentralização fiscal da Constituição de 1988 alteraram profundamente as base de autoridade dos governos locais” (p. 29). Em resumo, a partir da promulgação da Carta Magna de 1988, o poder político-econômico no Brasil foi descentralizado. Isto significa dizer que os governantes dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios passaram a ter mais liberdade na distribuição dos recursos públicos para promover políticas públicas coerentes e eficientes.

Com tal importância, os principais membros da elite local – os vereadores e o prefeito – ganharam relevância no jogo político, seja na esfera estadual ou federal, pois eles constituem peças fundamentais no gerenciamento das principais instituições que conduzem o município e, principalmente, nas disputas das eleições gerais, sobretudo na eleição do governador.

Em relação ao prefeito, ele é o porta-voz natural dos interesses e das reivindicações do município frente à Câmara Municipal, às outras esferas de governo e aos atores capazes de contribuírem para o desenvolvimento do município. Não é segredo para os estudiosos da política e também é reconhecido pelos demais atores que o prefeito, em especial o chefe do poder Executivo da capital, tem uma forte influência no cenário político local. É por isto que, nas eleições gerais, ele é procurado pelos demais atores que estão em campanha eleitoral, pois ele pode ser um forte aliado nas disputas políticas entre os diversos grupos locais.

O prefeito, em simetria aos chefes dos Executivos dos governos federal e estadual, exerce as funções política, executiva e administrativa. Todas essas funções têm sua importância na relação com os poderes da República, com os partidos políticos, com as instituições públicas e privadas, com os movimentos sociais etc, mas a função política se destaca das demais devido a sua relevância nas atividades do prefeito.

Dentre as funções políticas, o chefe do poder Executivo local goza de amplos poderes sobre o processo legislativo, os quais são regulamentados na Constituição Federal e pelo Regimento Interno da Câmara Municipal. Os seus poderes são bastante superiores àqueles de que dispunha no período de 1946 a 1964. Ele tem a exclusividade na proposição de leis de natureza financeira, orçamentária e administrativa, direito de emendar proposições dos vereadores, poder de vetar total ou parcialmente as matérias aprovadas na casa Legislativa, direito de solicitar tramitação em regime de urgência e não é admitido aumento da despesa prevista nos projetos de lei de iniciativa exclusiva do prefeito etc. O prefeito pode também concorrer com os vereadores na proposição de outras matérias ordinárias. Além dessas prerrogativas institucionais, o prefeito tem o poder de controlar toda a ‘máquina’ administrativa e de influenciar indiretamente as eleições da Mesa Diretora e das comissões permanentes e especiais da Câmara Municipal. Com todos esses poderes o prefeito pode usá-los para interferir de forma acentuada no comportamento dos vereadores e de outros atores políticos.

Para fechar este texto é apropriado destacar que com a Lege Majore, promulgada no dia 05 de outubro de 1988, os municípios tornaram-se entes federados, foram dotados de poder de auto-organização e tiveram um aumentou na base de arrecadação fiscal. Ademais pela primeira vez na história brasileira das Constituições Federais, os membros pertencentes à elite política local, sobretudo o prefeito, passaram a dispor de um rol de prerrogativas as quais lhe permitem legislar com maior autonomia frente às outras esferas de governos, sobretudo a estadual. 

Referências 

ABRÚCIO, Fernando. L. e FRANZESE, Cibele (2007). “Federalismo e políticas públicas: o impacto das relações intergovernamentais no Brasil”. Em ARAÚJO, Maria de Fátima e BEIRA, Lígia (orgs.). Tópicos de economia paulista para gestores públicos, SP, Fundap.

ARRETCHE, Marta (2002). “Relações federativas nas políticas públicas”, Campinas, Revista Educação & Sociedade, vol. 23, n° 80.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1988).

MOTA JR., Vidal D. (2002). “A criação de pequenos municípios como um fenômeno da descentralização política: o caso de Itaoca (SP)”, Dissertação de Mestrado, São Carlos, UFSCar.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (1996). Relatório sobre o desenvolvimento humano no Brasil, Brasília, PNUD/IPEA.

REQUIÃO, Roberto e BUENO, Cunha (1997). Guia do vereador do terceiro milênio. Centro de Documentação e Informação, Câmara dos Deputados, Brasília.

SERRA, José (1997). O novo município. Senado Federal, Brasília.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

RIBERTI DE ALMEIDA FELISBINO: Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é pesquisador associado ao Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, campus Araraquara/SP. Endereço eletrônico: ribertialmeida@yahoo.com.br.

 

 


Detalhes do julgamento sobre a recomposição pelo teto.

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*João Celso Neto

1.  Detalhes da tramitação processual

Ao chegar ao STF, em setembro de 2007, o RE 564.354 foi distribuído à relatoria do Ministro Menezes Direito. Submetido à decisão sobre a repercussão geral, foi esta reconhecida contra os votos dos Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso e Eros Grau, não tendo se manifestado a Ministra Cármen Lúcia (03/05/2008, DJe de 06/06/2008).

Em abril de 2009, a PGR deu seu Parecer pelo parcial conhecimento e pelo desprovimento na parte conhecida.

Com a morte do relator, foi o feito redistribuído à relatoria da Ministra Cármen Lúcia, em setembro de 2009, e levado a julgamento, pelo Pleno, em 08/09/2010.

Em abril de 2010, a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas fora admitida na condição de amicus curiae.

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto da Relatora, conheceu do Recurso Extraordinário e negou-lhe provimento, contra o voto do Ministro Dias Toffoli. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie. Eram, portanto, nove os ministros presentes.

2. A divergência

Na verdade, o Voto divergente não me parece que fosse contra a decisão em si (como veio a ser ementada), porquanto adstrita à questão de a concessão do benefício constituir uma espécie de novo contrato, que fixava uma Renda Mensal Inicial (RMI) a qual, a partir de então, seria reajustada apenas pelos índices aplicados aos benefícios previdenciários. O inteiro teor desse voto divergente está nos autos, p. 537 / 552, podendo ser lido no portal do STF (www.stf.jus.br), buscando em: Pesquisa de Jurisprudência / Inteiro Teor de Acórdãos / RE 564354.

Como se vê dos autos, a meu sentir, não era esse o pedido exato do Recorrente (INSS), data venia. E o que não está nos auto não está no mundo; julgam-se os autos e o que nele se contém.

Analisando-se mais detidamente a vexata quæstio, como o fez a relatora – e, antes, outros ministros que já haviam decidido questão igual (dentre estes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio) –, ela praticamente se resumia na alegada transgressão ao princípio do ato jurídico perfeito.

O INSS, em sua peça recursal, arguíra a aplicação do princípio do tempus regit actum, e questionara se uma lei posterior à data da concessão do benefício (que entendia ser um ato jurídico perfeito) – no caso, a EC 20, de 1998, e a EC 41, de 2003 – (sem, expressamente, prever a retroatividade do ali disposto)poderia alterar a renda mensal do benefício concedido.

Alegara mais que o INSS tinha o "direito adquirido de pagar o benefício com base nos valores estipulados na época de sua concessão".

Entendo que há uma contradição implícita, pois a RMI (ou RMB) vinha sendo reajustada anualmente. Isto é, não permanecera com o valor "estipulado na época de sua concessão".

Por sua vez, o Recorrido invocara, nas Contrarrazões, o princípio do equilíbrio atuarial do sistema e a aplicação de precedentes da Corte. Aduzira ainda que o legislador (Congresso Nacional em seu poder constituinte revisor ou derivado) decidira "pela majoração do percentual do teto dos benefícios" por entender que o orçamento comportaria o aumento, enquanto a majoração em período anterior à alteração legal (as Emendas Constitucionais 20 e 41) se mostrava impossível. Desde que possível a alteração do limite, "o constituinte revisor o fez, imbuído de sentimento de proteção social", reconhecendo que "em período anterior, conquanto ciente da necessidade, conhecia a insuficiência do orçamento previdenciário".

3. O julgamento

A Eminente Ministra-Relatora, antes da leitura de seu Voto, fez o que chamou de "observações iniciais":

1.Tratava-se, simplesmente, de saber se um teto limite fixado por uma Constituição "e que foi alterado" deflagrava "automático direito daqueles que recebiam a menos, porque o teto era menor, de também receber a diferença" que superava o teto anterior e que sofrera o chamado "corte" – limitado pelo teto.

2.As duas Emendas Constitucionais haviam fixado uma (ou seriam duas?) nova realidade, sem mudar o regime jurídico, disso não se cogitando.

3.Não havia, em qualquer momento, discussão sobre a fixação ou vinculação a salário mínimo.

4.Também não se tratava de "reajuste", discutindo-se apenas se "majorado o teto", aquela pessoa que tinha pago a mais poderia ter seu benefício elevado até aquele (novo) patamar máximo.

Adentrando ao Voto, afirmou que, naquele caso, a questão seria saber "se a alteração trazida pelo art. 14 da EC 20/1998 ao teto previdenciário aplicar-se-ia ou não imediatamente àqueles que já percebiam o benefício previdenciário anteriormente à edição da citada EC", considerados "os cálculos decorrentes do salário de contribuição".

Em seguida, ressaltando a jurisprudência consolidada da Corte quanto a não poder a lei retroagir, em face do ato jurídico perfeito, disse que a pretensão posta na lide era uma situação distinta (ou seja, apenas quanto à aplicação imediata ou não do novo teto, e não sua aplicação retroativa), não havendo que se falar em ofensa ao ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF/88) ou ao princípio da irretroatividade das leis.

Sua Excelência extraiu da leitura do art. 14 da EC 20/1998 "não ter ocorrido mero reajuste do teto previdenciário, mas majoração". Com isso, o recorrido naquele RE 564.354/SE postulava "manter seus reajustes de acordo com os índices oficiais, conforme determinado em lei" embora fosse possível que, "por força desses reajustes" fosse ultrapassado o antigo teto, "respeitando, por óbvio, o novo valor introduzido pela citada Emenda Constitucional" (evidentemente, o mesmo raciocínio deve ser aplicado no tocante à EC 40/2003, em seu art. 5º).

Fazendo menção ao Acórdão recorrido, da Turma Recursal (dos Juizados Especiais Federais) da Seção Judiciária de Sergipe, a Relatora endossou sua fundamentação, qual seja:

"O cálculo das prestações pecuniárias de trato continuado é efetivado, em regra, sobre o salário de benefício e tem como limite máximo o maior valor de salário de contribuição. Assim, após a definição do salário de benefício, calculado sobre o salário de contribuição, deve ser aplicado o limitador dos benefícios da previdência social, a fim de se obter a Renda Mensal do Benefício a que terá direito o segurado. (….). Dessa forma, a conclusão inarredável que se pode chegar é a de que, efetivamente, a aplicação do limitador (teto) para definição da RMB que perceberá o segurado deve ser realizada após a definição do salário de benefício, o qual se mantém inalterado, mesmo que o segurado perceba quantia inferior ao mesmo. Assim, uma vez alterado o valor limite dos benefícios da Previdência Social, o novo valor deverá ser aplicado sobre o mesmo salário de benefício calculado quando de sua concessão, com os devidos reajustes legais, as fim de se determinar a nova RMB que passará a perceber o segurado. Não se trata de reajustar e muito menos alterar o benefício. Trata-se, sim, de manter o mesmo salário de benefício calculado quando da concessão (…) só que agora lhe aplicando novo limitador dos benefícios do RGPS".

Prosseguindo em seu Voto, a Relatora citou precedentes da Corte, todos no mesmo sentido, a saber: RE 451.243 (DJ de 23/05/2005), Agravos Regimentais nos RE 458.891 (DJe de 23/05/2008), 499.091 (DJe de 1º/06/2007), 455.466 (DJe de 29/02/2008), RE 496.848 (DJe de 12/05/2008), RE 551.483 (DJe de 25/04/2008) e RE 531.440 (DJe de 30/07/2007).

A Ministra-Relatora afirmou expressamente: "Não foi concedido aumento ao Recorrido, mas reconhecido seu direito de ter o valor de seu beneficio calculado em limitador mais alto, fixado por norma constitucional emendada".

Em outras palavras, entenda-se que, se fora mais alto o teto, a RMB teria sido maior, observado o cálculo feito com base nosseus salários de contribuição.

E concluiu o Voto conhecendo do recurso e negando-lhe provimento "por correta a conclusão de ser possível a aplicação imediata doa RT. 14 da Emenda Constitucional n. 20/1998 e do art. 5º da Emenda Constitucional n. 41/2003 àqueles que percebem seus benefícios com base em limitador anterior, levando-se em conta os salários de contribuição que foram utilizados para os cálculos iniciais".

4.  O debate

Na longa discussão que se seguiu, com o Voto divergente do Ministro Dias Toffoli, certa hora, assim interveio o Ministro Marco Aurélio: "A situação jurídica é outra. Não se muda a equação inicial. Ela permanece a mesma, apenas se altera o redutor, porque absorvido pela elevação do teto".

Pouco depois, o Ministro-Presidente assim se pronunciou: "quando foi feito o cálculo do reajuste, segundo o regime a que o interessado está sujeito, indaga-se: bate no teto ou não? Se bate no teto, não pode receber mais? Quando o teto for aumentado, tem direito à diferença? Tem".

Em nova intervenção, o Ministro Marco Aurélio disse mais: "Redutor é representado por algo que o servidor ou o beneficiário da previdência teria direito e apenas não auferiu. Por quê? Porque havia um teto e o valor a receber esbarrou nesse teto. Pois bem, alterado esse teto, não ocorre a diminuição do que equivale ao redutor? Claro que sim, é a ordem natural das coisas".

E disse ainda: "a equação primeira, verificada quando da aposentadoria, ficou inalterada. Na ação não se pretendeu a alteração dessa equação. O que se pretendeu – e viu-se reconhecido – foi afastar, ante um novo teto, o que ele estava perdendo, deixando de receber mês a mês em razão do teto. A relação jurídica é de débito continuado." E que o aposentado "recupera o que normalmente receberia se o teto à época fosse outro".

Por sua vez, o Ministro Ayres Britto afirmou: "Os já aposentados, segundo um teto vigente à época da aposentadoria são catapultados para o novo teto automaticamente". Mais adiante, ainda em seu Voto, acrescentou: "quando se fixa um novo teto, quem estava até então sob efeito de um redutor, até porque, de ordinário, o salário de contribuição é maior do que o salário de benefício, é catapultado, é ejetado – eu acho que sim – automaticamente. Salvo se a Emenda dissesse o contrário, e a Emenda não diz".

Já o Ministro Gilmar Mendes, de cuja lavra o Ministro Dias Toffoli citara Voto em sentido contrário em outro julgado (que, antes, o Ministro Gilmar esclarecera que a matéria em julgamento não tinha a ver com com aquela antes julgada pela Segunda Turma, RE 495.942), trouxe uma cronologia legislativa relativa ao tema central do RE, desde a Lei nº 8.213/1991 ("o benefício não poderá ser superior ao limite máximo do salário de contribuição") chegando às duas EC de 1998 e 2003. Para arrematar: "Os valores mencionados sofriam atualizações periódicas. Assim, por ocasião da superveniência da EC 20/98, o valor do limitador de benefícios previdenciários era de R$ 1.081,50 – valor estabelecido em junho de 1998; na superveniência da EC 41/2003, o valor correspondia a R$ 1.869,34 – valor fixado em junho de 2003. (….) pode-se concluir que as contribuições e os beneficios previdenciários encontravam-se sujeitos a dois limitadores distintos: a) limite máximo do salário de contribuição; b) teto máximo do salário de benefício." – grifos no original. E prosseguiu, após abordar que índices reajustaram, ao longo do tempo, os salários de contribuição e os limitadores dos benefícios: "no periodo de 12/1998 a 11/2003, o salário de contribuição recebeu uma atualização monetária acumulada de 98,43%. Nesse mesmo período, o limitador previdenciário sofreu uma atualização acumulada de somente 55,77%, ou seja, o segurado contribuiu dentro do limite legalmente permitido, e da atualização dos salários de contribuição (um índice especifico – maior) decorreu um salário de benefício que superou o teto em vigor na época da concessão, cujo valor é atualizado por outro (menor)", concluindo que "o salário de beneficio resulta da atualização dos salários de contribuição. A incidência do limitador previdenciário pressupõe a perfectibilização do direito, sendo-lhe, pois, posterior e incidindo como elemento redutor do valor final do benefício. Dessa forma, sempre que alterado o valor do limitador previdenciário, haverá possibilidade de o segurado adequar o valor de seu benefício ao novo teto constitucional, recuperando o valor perdido em virtude do limitador anterior" referindo-se a ensinamento doutrinário.

Pela ordem, em seu Voto (antes, haviam sido apartes), disse o Ministro Marco Aurélio: "O que está em jogo é unicamente a absorção do valor resultante do redutor pelo novo teto criado. Não se altera salário de contribuição", completando com remissão a seu Voto no julgamento do Agravo Regimental no RE 499.091.

Finalmente, assim votou o Ministro-Presidente: "O problema não é de cálculo de reajuste da renda mensal o qual obedece ao regime a que está sujeito aposentado, segundo os índices legais, quer sua aposentadoria seja proporcional, quer seja integral. A questão é saber se se aplica, ou não, o redutor constitucional e, evidentemente, como ele o está pleiteando, é porque está sujeito ao redutor constitucional. Logo, se teria direito a algo além do redutor constitucional, tem direito à elevação desse valor, quando o redutor constitucional seja elevado e até esse limite. Noutras palavras, pegando esse exemplo aqui do próprio artigo 14, supondo-se que um aposentado recebesse, na data da Emenda 20, dois mil e quatrocentos reais, ele só poderia receber um mil e duzentos, porque estaria sujeito o redutor de um mil e duzentos. Mas veio a Emenda 41, o redutor subiu para dois mil e quatrocentos. Ele tem direito à diferença porque, segundo o cálculo do seu benfício, teria direito a isso, se o valor tivesse sido elevado" para finalizar "E o fato de elevar o redutor não significa que será reajustada a renda mensal".

5.  A decisão

O Acórdão, publicado em 15/02/2011, ficou assim (lembrando que é ele que faz coisa julgada):

EMENTA: DIREITOS CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. ALTERAÇÃO NO TETO DOS BENEFÍCIOS DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA. REFLEXOS NOS BENEFÍCIOS CONCEDIDOS ANTES DA ALTERAÇÃO. EMENDAS CONSTITUCIONAIS N. 20/1998 E 41/2003. DIREITO INTERTEMPORAL: ATO JURÍDICO PERFEITO. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DA LEI INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Há pelo menos duas situações jurídicas em que a atuação do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição da República demanda interpretação da legislação infraconstitucional: a primeira respeita ao exercício do controle de constitucionalidade das normas, pois não se declara a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei sem antes entendê-la; a segunda, que se dá na espécie, decorre da garantia constitucional da proteção ao ato jurídico perfeito contra lei superveniente, pois a solução de controvérsia sob essa perspectiva pressupõe sejam interpretadas as leis postas em conflito e determinados os seus alcances para se dizer da existência ou ausência da retroatividade constitucionalmente vedada.

2. Não ofende o ato jurídico perfeito a aplicação imediata do art. 14 da Emenda Constitucional n. 20/1998 e do art. 5º da Emenda Constitucional n. 41/2003 aos benefícios previdenciários limitados a teto do regime geral de previdência estabelecido antes da vigência dessas normas, de modo a que passem a observar o novo teto constitucional.

3. Negado provimento ao recurso extraordinário.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

JOÃO CELSO NETO é advogado em Brasília (DF)

Publicado em 02/2011

HOMOSSEXUAIS BUSCAM RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL Segunda Seção decidirá possibilidade de união estável para casal homossexual

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ESPECIAL: *STJEstá previsto para a próxima quarta-feira (23)  o  julgamento  de um  caso  em que se discute a possibilidade de reconhecimento de união estável a um casal de homossexuais do Rio Grande do Sul. O processo é relatado pela ministra Nancy Andrighi e será julgado na Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O processo foi submetido à Seção em razão da relevância do tema, por decisão dos ministros da Terceira Turma. A Seção é composta pelos dez ministros responsáveis pelos julgamentos de casos relativos a Direito de Família e Direito Privado, reunindo a Terceira e a Quarta Turma do Tribunal. Quando se adota esse procedimento, de “afetar” o processo ao colegiado maior, a intenção dos ministros é uniformizar de forma mais rápida o entendimento das Turmas ou, até mesmo, rever uma jurisprudência consolidada.

O homem que propôs a ação afirma ter vivido em “união estável” com o parceiro entre 1993 e 2004, período em que foram adquiridos diversos bens móveis e imóveis, sempre em nome do companheiro. Com o fim do relacionamento, o autor pediu a partilha do patrimônio e a fixação de alimentos, esta última em razão da dependência econômica existente enquanto na constância da união.

O juiz inicial, da Vara de Família, entendeu procedente o pedido. O magistrado reconheceu a união estável e determinou a partilha dos bens adquiridos durante a convivência, além de fixar alimentos no valor de R$ 1 mil até a efetivação da divisão. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), porém, afastou a obrigação de pagar alimentos, mas manteve a sentença quanto ao restante.

Para o TJRS, os alimentos não seriam cabíveis, em razão da pouca idade do autor e sua aptidão para o trabalho. Mas o tribunal local não negou a competência da Vara de Família para o caso, a qual efetivamente reconheceu a existência de união estável, e não de sociedade de fato, na convivência por mais de dez anos do casal homossexual.

Família efetiva

O TJRS entendeu que “a união homoafetiva é fato social que se perpetua no tempo, não se podendo admitir a exclusão do abrigamento legal, impondo prevalecer a relação de afeto exteriorizada ao efeito de efetiva constituição de família, sob pena de afronta ao direito pessoal individual à vida, com violação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana”.

“Diante da prova contida nos autos, mantém-se o reconhecimento proferido na sentença da união estável entre as partes, já que entre os litigantes existiu por mais de dez anos forte relação de afeto com sentimentos e envolvimentos emocionais, numa convivência more uxoria, pública e notória, com comunhão de vida e mútua assistência econômica, sendo a partilha dos bens mera consequência”, concluiu a decisão do TJRS.

O parceiro obrigado a dividir seus bens alega, no STJ, que a decisão da Justiça gaúcha viola artigos dos códigos civis de 1916 e 2002, além da Lei n. 9.278/1996. Esses artigos se referem, todos, de algum modo, à união estável como união entre um homem e uma mulher, ou às regras da sociedade de fato.

O pedido é para que seja declarada a incompetência da Vara de Família para o caso e para que apenas os bens adquiridos na constância da união sejam partilhados, conforme demonstrada a contribuição efetiva de cada parceiro.

Presunção de esforço

Na Terceira Turma, outro processo em andamento pode afirmar a presunção de esforço comum na construção do patrimônio em uniões afetivas. Para a ministra Nancy Andrighi, reconhecer proteção patrimonial similar à do Direito de Família em uniões homoafetivas atende ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e promove dois objetivos fundamentais da República: a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de preconceito.

O voto da relatora afirma que, na falta de lei específica, o Judiciário não pode ser omisso. Por isso, a analogia deve ser aplicada no caso concreto. O entendimento foi parcialmente seguido pelo ministro Massami Uyeda. Após pedido de vista, o ministro Sidnei Beneti votou contra a presunção de esforço. O julgamento está interrompido por novo pedido de vista, do ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Além de seu voto, falta o do desembargador convocado Vasco Della Giustina.

Sociedade de fato

Em dezembro, a mesma Terceira Turma decidiu dois casos similares, em que o Ministério Público do Rio Grande do Sul recorreu do entendimento da Justiça gaúcha. Os recursos foram providos pela Turma. Em ambos, um dos parceiros havia falecido e se discutia a sucessão dos bens.

Naquela ocasião, os ministros aplicaram a jurisprudência do STJ, estabelecida em 1998 (Resp 148.897), que exige a comprovação de que os bens adquiridos durante a convivência tiveram origem em esforço comum dos companheiros. Segundo esse entendimento, feita a prova da contribuição de cada parceiro na construção do patrimônio comum, pode ser feita a partilha, na proporção do esforço individual. Para essa linha de pensamento, aplica-se a regra da sociedade de fato às uniões homoafetivas.

Esses casos pertenceriam, portanto, ao Direito das Obrigações, e não ao Direito de Família. “A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes de dita sociedade”, explicou, em seu voto, o desembargador convocado Vasco Della Giustina. As ações foram devolvidas ao TJRS para novo julgamento, com observação das regras definidas pelo STJ.

Lacuna legal

Já em 2008, no julgamento do Resp 820.475, o STJ permitiu o seguimento de uma ação de declaração de união estável entre homossexuais. Por maioria, a Quarta Turma, em voto de desempate do ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que a lei não proíbe de forma taxativa a união homoafetiva.

Como o julgador não pode alegar a ausência de previsão legal para deixar de decidir um caso submetido ao Judiciário, a Turma entendeu válida, em tese, a adoção da técnica de integração por meio da analogia. Assim, ao aplicar a lei, o juiz poderia fazê-la abranger casos não expressamente previstos, mas que, na essência, coincidissem com os abordados pelo legislador.

Nesse processo, os parceiros buscavam o reconhecimento de união estável na convivência por mais de 20 anos. Chegaram a se casar no exterior. Mas a Justiça do Rio de Janeiro extinguiu a ação, por entender ser impossível juridicamente a união estável homossexual.

A análise naquele julgamento se fixou na questão processual da viabilidade da própria ação. Os ministros não discutiram o mérito do direito dos autores, isto é, a possibilidade efetiva de união estável entre parceiros homoafetivos, como ocorrerá agora.

O Ministério Público Federal (MPF) recorreu, alegando violação à Constituição, mas o STJ não acolheu os argumentos. Outro recurso, apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF), aguarda decisão desde maio de 2010 (AI 794.588).

No entanto, em abril de 2010, ao julgar outro recurso (Resp 889.852) a Quarta Turma pacificou o entendimento de que as uniões homoafetivas merecem tratamento idêntico ao conferido às uniões estáveis. Na hipótese, os ministros permitiram que o nome da companheira de uma homossexual que havia adotado dois irmãos constasse também dos registros das crianças, sem a especificação da condição paterna ou materna.

O relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, observou os fortes vínculos afetivos entre as adotantes e as crianças e concluiu que a situação estava consolidada. “ O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da ‘realidade’, são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que elas, solidariamente, compete a responsabilidade”, afirmou.

Na ocasião do julgamento, o ministro Aldir Passarinho Júnior destacou que a jurisprudência do STJ vem fortalecendo esta compreensão. Para ele, o Tribunal vem caminhando no sentido de que é necessária maior proteção aos menores adotandos, “que estão muito bem assistidos pelo casal em questão”.

Vanguarda

Em outros temas, o STJ já se posicionou na vanguarda jurisprudencial. No Resp 395.904, a Sexta Turma entendeu que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ) deviam pensão ao companheiro do segurado falecido. O relacionamento durou 18 anos.

O STF ainda não decidiu o recurso contra essa decisão, que já conta com parecer favorável do MPF ao pensionista (RE 495.295). Para o INSS, o beneficiário não seria dependente do segurado, o que impediria o pagamento. O processo deu entrada no Supremo em 2006.

Segundo o voto do ministro falecido Hélio Quaglia, a legislação previdenciária não pretendeu excluir o conceito de união estável da relação homoafetiva. A Constituição, no campo previdenciário, não teria feito essa exclusão (artigo 201, inciso V). Diante da lacuna legal, o próprio INSS teria editado norma regulamentando os procedimentos para concessão de benefícios a parceiros homossexuais.

Em outra decisão, o STJ permitiu a inscrição do companheiro homossexual em plano de saúde (Resp 238.715). Em seu voto, o ministro aposentado Humberto Gomes de Barros afirmou: “O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana”. Por isso, a relação homoafetiva geraria direitos analógicos aos da união estável.

Nesse caso, os parceiros viviam juntos há sete anos e eram portadores de HIV. O pedido tratava expressamente de união estável, que permitiria a inclusão no plano de assistência médica empresarial. A Justiça gaúcha recusou a declaração de união estável, mas garantiu a inscrição no plano, o que foi mantido pelo STJ. O caso também está pendente de julgamento no STF desde 2006, com parecer do MPF pela manutenção da decisão do STJ (RE 515.872).

Adoção

Em agosto de 2010, o STJ garantiu, novamente, a um casal homossexual feminino a adoção de dois irmãos biológicos. Uma das parceiras já havia adotado as crianças desde o nascimento, e a companheira pediu na Justiça seu ingresso na adoção, com inserção do sobrenome nos filhos. Essa decisão está sendo questionada pelo Ministério Público gaúcho no STF, cujo processo deu entrada em outubro (RE 631.805).

O Judiciário gaúcho atendeu o pedido inicial, determinando a inserção da companheira no registro, sem menção específica das palavras “pai” ou “mãe” ou da condição materna ou paterna dos avós. No entender do TJRS, “os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores”.

“É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes”, asseverou o tribunal local.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul recorreu da decisão, mas o STJ afirmou a prevalência da solução que melhor atendesse aos interesses das crianças. O processo listou diversos estudos científicos sobre o tema indicando a inexistência de inconvenientes na adoção das crianças por casal homossexual. Segundo os estudos, o fundamental é a qualidade do vínculo e do afeto do meio em que serão incluídas as crianças.

Para o ministro Luis Felipe Salomão, “em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal”.

“A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, de desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade”, completou.

Lei e jurisprudência

O ministro João Otávio de Noronha, ao votar nesse processo, respondeu à crítica recorrente de que o Judiciário nacional tem legislado sobre o Direito de Família: “Toda construção de direito familiar no Brasil foi pretoriana. A lei sempre veio a posteriori. Com o concubinato foi assim, com a união estável foi assim”, lembrou.

“No caso, é preciso chamar a atenção para o seguinte: a lei não proíbe, ela garante o direito tanto entre os homoafetivos, como entre os héteros [heterossexuais]. Apenas lhes assegura um direito, não há vedação. Não há nenhum dispositivo que proíba, até porque uma pessoa solteira pode adotar. Então, não estamos aqui violando nenhuma disposição legal, mas construindo em um espaço, em um vácuo a ser preenchido ante a ausência de norma, daí a força criadora da jurisprudência. É exatamente nesse espaço que estamos atuando”, concluiu.

 

FONTE:  STJ, 20 de fevereiro de 2011.

 


SOBERANIA DO TRIBUNAL DO JÚRISegundo o STJ, soberania do Tribunal do Júri vale mesmo diante de decisões contraditórias

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DECISÃO: *STJ – A soberania dos   vereditos dos   tribunais do Júri,  garantida pela   Constituição Federal, deve ser respeitada mesmo que as decisões dos jurados não pareçam as mais justas. Com esse entendimento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou possível que um homem fosse condenado pela morte do enteado, ainda que tivesse sido absolvido da morte de seu próprio filho, ocorrida no mesmo episódio – um incêndio. Os casos foram julgados em júris diversos.

Segundo a acusação, o condenado teria cometido os dois homicídios, mais um crime de incêndio, em 1997. Submetido a julgamento popular, foi condenado às penas de 20 anos de reclusão, pela morte do filho, e de 17 anos, pelo assassinato do enteado.

A defesa recorreu das penas, protestando por novo júri no primeiro caso – já que a norma legal vigente à época previa esta possibilidade para penas iguais ou superiores a 20 anos – e apelando no segundo. No novo júri, os jurados afastaram a qualificadora de motivo cruel e reconheceram a presença de atenuante genérica, reduzindo a pena para 12 anos de reclusão.

Dessa segunda decisão, recorreram a defesa – que sustentou nulidade da pronúncia e necessidade de renovação dos julgamentos, em razão do afastamento da qualificadora contra uma das vítimas – e o Ministério Público (MP), que alegou anulação da sentença por ser contrária às provas.

Absolvição

O tribunal local acolheu apenas o recurso do MP, levando ao terceiro julgamento o crime contra o filho do condenado. Neste, os jurados, por quatro votos a três, rejeitaram a autoria do delito, absolvendo o pai quanto à morte do filho.

Diante da nova decisão, a defesa ajuizou revisão criminal, visando conciliar as duas decisões antagônicas. A pretensão foi negada pelo tribunal local, o que levou à impetração do habeas corpus no STJ.

Para os defensores, o ato praticado configura crime continuado, o que forçaria a absolvição quanto ao segundo homicídio, em razão da absolvição no primeiro. Para a defesa, os delitos imputados teriam sido supostamente praticados em conjunto, na mesma data e no mesmo contexto, o que levaria à extensão da decisão absolutória em relação a uma das vítimas ao outro crime.

Soberania

Para o relator, ministro Og Fernandes, no entanto, as decisões proferidas pelos jurados em tribunal popular estão protegidas constitucionalmente pela soberania dos vereditos. “Essa cláusula [CF, artigo 5º, XVIII, c], por certo, implica que tais decisões – pareçam ou não a mais justa – hão de ser respeitadas”, afirmou.

Além disso, o habeas corpus não serviria para reanalisar as provas, de modo a concluir diversamente das instâncias ordinárias em relação à existência de concurso material ou formal. Apenas na segunda hipótese a tese da extensão da absolutória poderia ser considerada.

O relator acrescentou, ainda, que a tese já foi apreciada pelo próprio STJ no momento oportuno, quando a defesa questionou um dos julgamentos por meio de habeas corpus, em 2001. Naquele momento, o Tribunal entendeu que a defesa não havia levantado até ali, em nenhuma fase do processo, a tese do concurso formal. Para o ministro, isso seria uma tentativa de levar o STJ a reapreciar, por via oblíqua, tese já refutada.

 

FONTE:  STJ, 17 de fevereiro de 2011.


PENSÃO ALIMENTÍCIAPrisão por alimentos não depende de decisão transitada em julgado

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DECISÃO: *STJ – A existência de recursos pendentes de julgamento não impede a prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia, decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar pedido de habeas corpus apresentado em um caso de prisão civil ocorrido no estado de São Paulo. De acordo com o colegiado, a garantia constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” não se aplica à execução de prestações alimentares.

O relator do habeas corpus, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, disse que “a prisão civil, diferentemente da penal, possui natureza eminentemente coercitiva, e não punitiva”. Segundo ele, exigir o trânsito em julgado da decisão que determinou a prisão, para só então se poder cumpri-la, “iria de encontro à sua finalidade, qual seja, compelir o devedor ao imediato adimplemento de sua obrigação alimentar”.

A ação de execução de alimentos foi ajuizada em abril de 2001. Decretada a prisão do devedor pelo juiz, sua defesa entrou com recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que manteve a decisão da primeira instância. No pedido de habeas corpus dirigido ao STJ, alegou-se que a decisão do tribunal estadual não poderia ter sido cumprida pelo juiz antes do trânsito em julgado – quando já não haveria mais possibilidade de recurso.

O habeas corpus foi negado de forma unânime pela Terceira Turma, conforme a proposta do relator. O ministro Sanseverino observou, ainda, que no processo não há prova de que tenham sido pagas as três prestações anteriores ao início da ação, nem as que venceram depois. A Súmula 309 do STJ diz que "o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo".

O número deste processo não é divulgado em razão do sigilo.

 

FONTE:  STJ, 18 de fevereiro de 2011.


PROVA LÍCITAGravação de conversa pode ser usada como prova na Justiça

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DECISÃO: *TST – A gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro para fins de comprovação de direito não é ilícita e pode ser usada como prova em ação judicial. Foi o que fez um técnico de telefonia ao se sentir pressionado a pedir demissão – ele gravou conversas com os donos e a contadora da empresa em que trabalhava com um aparelho de MP3. Ao examinar o caso, a Justiça do Trabalho considerou que a gravação feita pelo trabalhador é prova lícita.

Na ação que apresentou na 11ª Vara do Trabalho de Recife, em Pernambuco, o técnico contou que foi contratado pela Luleo Comércio para fazer instalação e manutenção de rede de acesso de telecomunicações para a Telemar Norte Leste. Aproximadamente três meses após a contratação, sofreu acidente de trabalho e passou a receber auxílio previdenciário.

Quando retornou à empresa, como não havia mais o contrato com a Telemar, o empregado foi designado para ocupar a função de telefonista. Gravações em um cd (“compact disc”) juntado ao processo confirmaram que o trabalhador sofreu pressões para pedir demissão antes do término do período de estabilidade provisória acidentária de um ano a que tinha direito.

Segundo a sentença, a coação foi sutil, com insinuações de que o empregado ficaria fora do mercado de trabalho e poderia não mais prestar serviços por meio de outras empresas terceirizadas à Telemar. Disseram também que não “pegava bem” ele ter trabalhado apenas três meses (entre a admissão e o acidente) e a Luleo ter que mantê-lo em seus quadros por um ano em razão da estabilidade acidentária.

Assim, a juíza entendeu que a dispensa do empregado tinha sido imotivada e concedeu, em parte, os pedidos formulados, tais como o pagamento de diferenças salariais, aviso-prévio e FGTS com multa de 40%. Declarou, ainda, a responsabilidade subsidiária da Telemar pelos créditos trabalhistas devidos ao técnico em caso de inadimplência da Luleo, pois, na condição de tomadora dos serviços, beneficiou-se da força de trabalho do empregado (incidência da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho).

O Tribunal do Trabalho da 6ª Região (PE), por sua vez, manteve o entendimento da primeira instância quanto à licitude da gravação feita pelo empregado e negou provimento ao recurso ordinário da Telemar. Para o TRT, os diálogos foram realizados no ambiente de trabalho, sem violação à intimidade e privacidade das pessoas envolvidas, e em conformidade com o artigo 225 do Código Civil de 2002, que admite gravação como meio de prova.

No recurso de revista que apresentou ao TST, a Telemar defendeu a tese de que a gravação de conversa feita sem o conhecimento dos interlocutores era ilícita e não servia como prova. Alegou ofensa a direitos constitucionais, como o respeito à vida privada das pessoas, ao livre exercício do trabalho e à vedação da utilização de provas no processo obtidas por meio ilícito (artigo 5º, X, XIII e LVI, da Constituição Federal).

Entretanto, de acordo com o relator e presidente da Terceira Turma do Tribunal, ministro Horácio Senna Pires, as alegações da empresa em relação à clandestinidade da gravação não torna a prova ilícita. Isso porque os diálogos também pertencem ao trabalhador que gravou a conversa com a intenção de comprovar um direito.  

O relator explicou que o Supremo Tribunal Federal já julgou diversos casos no sentido de que a gravação de conversa nessas condições não se enquadra na vedação do uso de provas ilícitas de que trata o artigo 5º, LVI, da Constituição. O ministro Horácio destacou ainda o julgamento de um processo em que o STF reconheceu a repercussão geral da matéria.  

Desse modo, como o relator concluiu que a gravação é prova lícita no processo e inexistiram as violações constitucionais mencionadas pela empresa, a Terceira Turma, por unanimidade de votos, rejeitou (não conheceu) o recurso de revista da Telemar nesse ponto. (RR-162600-35.2006.5.06.0011)

 


 

 

FONTE:  TST, 16 de fevereiro de 2011.

NEGLIGÊNCIA MÉDICAHospital condenado por demora em realização de cirurgia que ocasionou perda de visão

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DECISÃO: *TJ-RS – Paciente será indenizada por danos morais no valor de R$ 30 mil, por demora na realização de cirurgia que acarretou a perda da visão em um olho. A condenação foi confirmada pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça.

Caso

A autora da ação afirmou que procurou o Hospital Petrópolis, na Capital, e que o atendimento foi feito de forma inadequada. Foi atendida por diversos médicos que confirmaram o diagnóstico de descolamento de retina, mas nada fizeram para tratá-la. Diante da displicência no tratamento procurou outro hospital, onde sua cirurgia foi realizada imediatamente devido ao grau da lesão, mas a cirurgia não surtiu efeito diante da demora no tratamento, ocorrendo a perda da visão.

Apelação

Em 1º Grau foi estabelecida a indenização em R$ 30 mil. O réu recorreu da sentença e alegou que a autora já chegou ao seu estabelecimento com o total descolamento da retina. Ainda, disse que não havia urgência no tratamento, pois outro hospital foi procurado anteriormente. A autora apelou pleiteando o aumento no valor da reparação.

Relator

Segundo o relator da apelação interposta no TJ, Desembargador Artur Arnildo Ludwig, o hospital é responsável pelo o que ocorra ao paciente, pois é fornecedor de serviços e, portanto, deve responder os danos causados aos seus clientes. O magistrado ainda salienta que a perícia médica realizada confirma que a demora no tratamento da paciente foi decisiva para a perda da sua visão.

Portanto, é evidente que a autora ficou a mercê do atendimento precário da ré, que ficou repassando a paciente de médico em médico, sendo que desde o primeiro momento houve o diagnóstico e negligenciou o atendimento realizado, uma vez que não realizada a cirurgia que a autora necessitava, como única forma de tentar reverter o quadro que apresentava.

Diante dos fatos, o Desembargador decidiu por negar provimento aos apelos de ambas às partes, mantendo os valores fixados na sentença.

Os Desembargadores Ney Wiedemann Neto e Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura acompanharam o voto do relator.  Proc. 70028024370

 


 

FONTE:  TJ-RS, 18 de fevereiro de 2011.