A prova emprestada no processo civil pátrio

 *Éverton Campos de O. Júnior 

I.         INTROITO

O assunto ‘prova’, é, indubitavelmente, aquele que mais exige o estudo interdisciplinar, obrigando que o cientista avance as fronteiras do direito, analisando as variantes fáticas desembocadas pelas ações humanas.  Melhor, grossamente verberando, podemos dizer que o trabalho jurisdicional escora-se nas provas, por todo o processo, de seu início até o final, ou seja, no conhecimento dos fatos, na valoração destes e na decisão proferida após ambas as fases anteriores (colheita de provas e decisão).

No mundo jurídico, que é aqui o que nos interessa, a prova é a ação humana oficializada por meio do braço jurisdicional estatal, com o escopo de fazer a justiça entre as partes. É a aferição de uma conduta humana, com valor para o processo, que será avaliada como útil, legal e legítima pelo julgador do caso particular, quer seja por meio material, testemunhal, pericial, dentre as várias listadas no elenco legal.

No ordenamento jurídico hodierno a questão das provas está elencada no Capítulo IV, arts. 332 e seguintes da Lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). Porém, a doutrina não somente reconhece as provas elencadas objetivamente na lei supra, como também algumas outras de natureza atípica, a exemplo da prova ‘emprestada’.

Quer seja interpretada como ato de provar, meio de provar ou resultado da análise de ações humanas perqueridas, o ofício de estudar e aplicar a prova é truncada e complexa, pois sempre oferecem o ato de sopesar opiniões conflitantes e atitudes que por vezes parecem trazer mais de uma verdade. Lidar com verdades e inverdades humanas nunca é fácil. Pedindo licença aos mais legalista e codicistas, peço vênia para regozijar a pérola mineira, segundo fez o Prof. Fredie Didier anteriormente:

 

A verdade

“A porta da verdade estava aberta

Mas só deixava passar

Meia pessoa de cada vez

Assim não era possível atingir toda a verdade

Porque a meia pessoa que entrava

Só trazia o perfil da meia verdade

E a segunda metade

Voltava igualmente como perfil

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentavam a porta, derrubavam a porta,

Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar.

Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”.

(Carlos Drummond de Andrade)

 

I.                   A DINÂMICA DA PROVA NO CÓDIGO E A POSSIBILIDADE DA PROVA EMPRESTADA

O legislador, na feitura do código processual pátrio, conjugou a possibilidade de análise pessoal do Juiz com a vinculação das decisões às lições legais vigentes.  O livre convencimento guia o julgador na análise e valoração das provas.  O art. 131 do CPC assim diz: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento”, ou seja, que não pode o julgador vestir a venda da observação adstrita da lei ou dos fatos, mas sim de ambos, sem abrir mão de justificar os motivos de sua decisão, mormente aqui no que tange às provas, pois se assim não fosse, perder-se-ia o foco no objetivo precípuo que é a justiça, vez que há a possibilidade uma decisão frontalmente diversa daquilo que as provas traduzem. Não menos importante, na leitura do art. 335 do mesmo codex (Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial) percebemos a reiteração do Princípio da Persuasão Racional e da livre apreciação das provas e até da análise, segundo experiências ordinárias, regidas pelos costumes e pela percepção do homem médio.

 

De forma sintética, transcrevendo as lições do Professor Humberto Theodoro Júnior, assim sintetiza-se as regras que devem ser seguidas pelo julgador, consoante política do CPC:

 

“a) embora livre o convencimento, este não pode ser arbitrário, pois fica condicionado às alegações das partes e às provas dos autos;

b) a observância de certo critérios legais sobre provas e sua validade não pode ser desprezada pelo Juiz (arts 335 e 366) nem as regras sobre presunções legais;

c) o juiz fica adstrito às regras de experiência, quando faltam normas legais sobre as provas, isto é, os dados científicos e culturais do alcance do magistrado são úteis e não podem ser desprezadas na decisão da lide;

d) as sentenças devem ser sempre fundamentadas, o que impede julgamentos arbitrários ou divorciado das provas dos autos.”

 

Os meios adequados para que se garimpe as provas dos fatos trazidos à baila pelas partes, de forma típica e ordinária, segundo o Prof. Humberto Theodoro são:

 

“I – depoimento pessoal (arts 342-347)

II – confissão (arts. 348-354)

III – exibição de documento ou coisa (arts 355 e 363)

IV – prova documental (arts 364-391)

V – prova testemunhal (arts 400-419)

VI – prova pericial (420-439)

VII – inspeção judicial (arts 440-443)”

 

Portanto, neste primeiro momento podemos definir, sem maiores delongas ou comentários, que acerca das provas típicas, acima referidas, não há o que se contestar, pois, produzidas legalmente e pelas partes legitimadas, serão normalmente aceites e sopesadas pelo juízo do julgamento, segundo os valores que merecem ter, sem trazer consigo a ultrapassada idéia de pirâmide valorativa, mãe das provas, etc, mormente no âmbito cível.  Aqui pregamos que devem os vários tipos probantes listados supra serem considerados espécie do gênero prova, ou seja, que aquelas seja conteúdo do grande continente denominado prova.

 

A Prova Emprestada, objeto deste pequeno escrito, figura no rol do que se costuma chamar de provas atípicas, isto é, são as que não figuram explicitamente na letra do código, mas que de fato coexistem junto às típicas. Tais provas, também chamadas de Inominadas, são assim definidas pelo Prof. Fredie Didier Jr, nestes termos:

 

“ Há os chamados meios de prova inominados, que são, por exemplo, a prova cibernética, a reconstituição de fatos e a prova emprestada. São provas atípicas, pois se busca ‘a obtenção de conhecimentos sobre fatos por formas diversas daquela prevista na lei para as provas chamadas típicas”. É importante dizer que ‘uma prova que não pode ser  utilizada como típica  porque na sua formação violou  uma norma (ou porque na sua produção vai violá-la), certamente não pode ser admitida como prova atípica, pena de estar servindo para encobrir a desconsideração de uma regra”.

 

Não se deve confundir a prova emprestada com a prova ilícita. A ilicitude deriva, grosso modo, de um descumprimento ou inobservância de lei ou observação legal. O empréstimo da prova, de um processo para outro, não traz consigo uma ilegalidade, pois há a presunção de que em qualquer processo as provas que valeram para o convencimento do juiz foram produzidas sob o manto da lei, da legitimidade, da justiça.

 

A prova emprestada valoriza os princípios da economia processual e da unidade da jurisdição, pois, seria sobremaneira positivo para a ação que, em havendo identidade entre os agentes legitimados, de plano, não haveria porque não trazer de uma lide anterior para uma posterior, uma prova que a ambos interessaria, de forma a festejar a celeridade processual (art. 5º, LXXVIII, da CF/88), resolvendo mais brevemente a controvérsia, de modo a promover a justiça entre as partes.

 

Nesta tocada, podemos definir alguns requisitos para que a prova emprestada seja aceite, carecendo que todas estejam presentes, sob pena de sua não aceitação, quais sejam: a) que haja identidade de interessados; b) que tenha sido produzida sob a égide do contraditório; c) que seja transladada por escrito de um processo para outro.

 

Não é de qualquer lide que possa ser aceite a prova emprestada, mas sim, daquelas em que as partes sejam idênticas, ou seja, que os interessados se mantenham, mantendo-se, pois, o interesse continuado, observado na lide anterior que fora julgado e que insofismavelmente posso ser utilizada novamente, de forma prática e célere, não excluindo outras que porventura venham a ser produzidas.

 

Importante e fulcral crítica acerca da aceitação da prova emprestada é a que diz respeito ao contraditório. É imprescindível que a prova original tenha sido produzida com respeito absoluto ao princípio do contraditório, vez que, se há vício de produção no processo primário, por óbvio, prolongar-se-á até o secundário, contaminando a legalidade da lide que tomou para si uma prova emprestada nascida de um ventre ilegal.

 

Formalmente, a prova emprestada tem que ser transladado de um auto para o outro, de forma documental, segundo reza o CPC, no que tange à documentação componente dos processos, conforme dita o artigo 332 deste regimento cível (Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa).

 

Não cabe mais na presente conjuntura social e jurisdicional a antiquada tese de que a prova emprestada não deveria ter valor igual às provas típicas, produzidas nos autos em julgamento, vez que derivariam de outra discussão, vez que um dos pilares, senão o maior, das ondas renovatórias processuais, é o da celeridade processual. A prova emprestada tem o mesmo valor de qualquer outra produzida originariamente, desde que sejam observados os requisitos mostrados anteriormente, pois, de forma alguma deixa de ser mais uma prova, gerada de forma legal e legítima.

 

II.                CONCLUSÃO

Portanto, a prova emprestada tem natureza atípica, mas cabível e aceitável no juízo cível. Deve, analogamente às outras, respeitar critérios formais de formação e reconhecimento, sob pena de ser tomada por ilegal, não valendo para o julgamento da lide. Tal meio de provar já é aceite com mais freqüência dos campos penais e, paulatinamente, vem ganhando força no direito privado, já sendo utilizada frequentemente pela doutrina e jurisprudência, consoante vê-se, a título de ratificação da opinião deste simplório opinador.

 

EMENTA:  AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO. AÇÃO DE COBRANÇA. DIFERENÇAS RELATIVAS À CONVERSÃO DE VENCIMENTOS EM URV. PROVA EMPRESTADA. ADMISSIBILIDADE. -Tratando-se de questão que tem sido objeto de milhares de processos com pedidos e causa de pedir idênticos, viável a utilização, como prova emprestada, de perícia realizada em outro processo, cujo servidor seja da mesma categoria funcional da parte agravante. -Não há cerceamento de defesa quando a prova documental emprestada, atinente a laudo pericial, será submetida ao contraditório. -Recurso não provido. (Agravo Nº 70022843601, Terceira Câmara Especial Civel, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leila Vani Pandolfo Machado, Julgado em 11/03/2008)

EMENTA:  AÇÃO ACIDENTÁRIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. SENTENÇA ULTRA PETITA. A utilização de prova emprestada, produzida em outro processo envolvendo as mesmas partes, não caracteriza cerceamento de defesa. Em demanda acidentária, o juiz não está adstrito ao pedido da parte. Cabível alcançar benefício diverso do postulado na inicial, com a subsunção da lei ao fato. Preliminar de sentença ultra petita rejeitada. AUXÍLIO-ACIDENTE. REDUÇÃO DA CAPACIDADE LABORAL ¿ Mesmo em grau mínimo determina à percepção de benefício acidentário, tipificado o nexo etiológico entre o infortúnio e a atividade laborativa do segurado. Afastaram as preliminares e desproveram o recurso. Unânime. (Apelação Cível Nº 70020544250, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 29/11/2007)

EMENTA:  APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. SERVIDÃO. PRELIMINAR. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA. É lícita a prova emprestada, desde que observado o devido processo legal na constituição dos elementos probatórios. Inviável a utilização de laudo pericial de imóvel em ação indenizatória, em face das particularidades de cada bem a ser indenizável. PRELIMINAR ACOLHIDA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. (Apelação Cível Nº 70021631593, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 22/11/2007)

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. PROVA EMPRESTADA. POSSIBILIDADE. TEORIA DA APARÊNCIA. REGUARDO DA BOA-FÉ E DA CONFIANÇA. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. PROVIDÊNCIA IMPRESCINDÍVEL. DETERMINAÇÃO DE OFÍCIO.A prova emprestada, realizada sob o crivo do contraditório, constitui meio idôneo para o convencimento motivado do juiz.A Teoria da Aparência visa a resguardar os interesses de terceiros de boa-fé, frente às situações aparentes criadas pela empresa, ou por ela aceitas.É facultado ao magistrado, quando convicto de que faltam elementos técnicos para se chegar à verdade dos fatos, determinar, de ofício, a produção de prova pericial. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.00.100637-8/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – APELANTE(S): LUNAR EMPREENDIMENTOS LTDA PRIMEIRO(A)(S), ROGÉRIO LUIZ BICALHO SEGUNDO(A)(S) – APELADO(A)(S): IND REFRIGERANTES DEL REY LTDA, LUNAR EMPREENDIMENTOS LTDA – RELATOR: EXMO. SR. DES. IRMAR FERREIRA CAMPOS

III.             BIBLIOGRAFIA

 

ALVIM, Arruda, Manual de Direito Processual Civil – Parte Geral, 5ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas. Temas de direito processual: 6ª série. São Paulo: Saraiva, 1996.

DIDIER Jr, Fredie; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2007, vol. II.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, vol. I.

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 1ª ed., Campinas: Millenium, v. 2, 2001.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 24ª ed., Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 1998.

SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de Processo Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo: 2000, 5.ª ed. rev. e atual.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, vol. I.

WAMBIER, Luiz Rodrigues (coord.); ALMEIDA, Flávio Renato Correia de & TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 3ª ed., São Paulo: RT, v. 1, 2000. 

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ÉVERTON CAMPOS DE O. JÚNIOR: Servidor do Tribunal de Justiça de Sergipe, graduado pela Universidade Federal de Sergipe e Pós-Graduando em Processo Civil pela UNISUL/IELF.

 

 

 

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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