* Bruno Garcia Redondo
SUMÁRIO: 1. Responsabilidade patrimonial e impenhorabilidade — 2. A impenhorabilidade da remuneração do executado (art. 649 do CPC) — 3. A excepcional possibilidade de penhora de parte da remuneração em execução de dívida não-alimentar — 4. Conclusão — 5. Referências Bibliográficas.
1. Responsabilidade patrimonial e impenhorabilidade
Todos os bens que integram o patrimônio do devedor respondem por suas dívidas, em razão da responsabilidade patrimonial consagrada no art. 591 do CPC. Por outro lado, importante ressalva existente na parte final desse dispositivo excluiu da responsabilidade patrimonial do executado os bens que figuram nas "restrições estabelecidas em lei", chamados de "bens impenhoráveis" e "inalienáveis" (art. 648 do CPC).
A impenhorabilidade, por ser regra processual restritiva, possui caráter excepcional, vindo a caracterizar os bens em 03 (três) categorias: (i) bens absolutamente impenhoráveis (constantes do art. 649 do CPC, não poderiam ser executados em qualquer hipótese); (ii) bens relativamente impenhoráveis (elencados no art. 650 do CPC, teriam sua execução condicionada à inexistência de outros bens com penhorabilidade plena); e (iii) bens de residência (previstos na Lei n. 8.009/90, sua penhora jamais seria admitida, salvo as exceções previstas naquele Diploma).
A impenhorabilidade, por certo, é tema que enseja extenso aprofundamento [01]. No presente ensaio, entretanto, limitamos nosso estudo a um tema polêmico, de grande importância jurídica e relevância prática, que, analisado à luz dos princípios, direitos e garantias fundamentais, constitucionais e processuais, revela a necessidade de modificação do tratamento que, tradicionalmente, lhe tem sido dispensado: a impenhorabilidade da remuneração do executado.
2. A impenhorabilidade da remuneração do executado (art. 649 do CPC)
O inciso IV do art. 649 do CPC (redação da Lei n. 11.382/2006) consagra a impenhorabilidade dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, bem como das quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.
Trata-se esse elenco de verbas alimentares de rol meramente exemplificativo (numerus apertus), já que há outros ganhos do executado que, a despeito de ali não estarem previstos, também gozam da proteção da impenhorabilidade, quando destinados exclusivamente à sobrevivência do executado com dignidade.
Também são impenhoráveis, por exemplo: (i) os direitos do empregado sobre créditos trabalhistas [02] (descabe a penhora no rosto dos autos de reclamação trabalhista) [03]; (ii) a renda de aluguéis (quando destinar-se apenas à subsistência do executado-locador) [04]; (iii) os honorários de advogado [05] (contratuais [06] ou de sucumbência [07]); e (iv) a conta-corrente (onde são depositados os ganhos do executado ). Caso estejam depositados, na conta bancária, outros valores que não sejam referentes ao salário, apenas a quantia que lhe seja correspondente será impenhorável [08].
É importante asseverar que apenas as prestações vincendas são alcançadas pela impenhorabilidade, pois o objetivo do legislador é o de impedir que seja comprometida a receita mensal do executado [09]. Por outro lado, as prestações vencidas podem ser penhoradas sempre que estiverem "diluídas" no patrimônio do devedor [10] e não mais for possível distingui-las dos demais bens ou valores, já que sua não-utilização revela a não-essencialidade desta verba para a subsistência.
Em qualquer caso, compete ao executado o ônus da prova sobre a natureza "salarial" (alimentar) da remuneração (§2º do art. 655-A).
3. A excepcional possibilidade de penhora de parte da remuneração em execução de dívida não-alimentar
Predomina, em doutrina e jurisprudência, o entendimento segundo o qual o inciso IV do art. 649 do CPC consagraria regra de impenhorabilidade absoluta, passível de mitigação apenas no caso de penhora para pagamento de prestação com natureza alimentar (§2º do art. 649, com orientação semelhante à do inciso III do art. 3º da Lei nº 8.009/90, que afasta a impenhorabilidade do bem de residência para pagamento de pensão alimentícia).
Segundo os adeptos desse posicionamento ainda majoritário, a penhora de parte da remuneração seria possível apenas quando destinada ao pagamento de alimentos devidos pelo executado [11], devendo ser arbitrado, pelo juiz, percentual capaz de atender aos critérios de proporcionalidade e de razoabilidade, já que não há limite mínimo nem máximo fixado em lei.
Essa interpretação literal e fria do inciso IV do art. 649 conduz ao exagero de impedir até mesmo a penhora de valor ínfimo do salário do executado em execução de verba não-alimentar, ainda que se trate de devedor de elevado poder aquisitivo, o que acaba por impor, ao exeqüente, o sofrimento das agruras do prejuízo, caso o executado não tenha outros bens. O absurdo de tal situação demonstra não ser essa a interpretação mais adequada, já que viola a dignidade da pessoa humana do exeqüente e a efetividade do processo.
A interpretação desse dispositivo que mais se revela de acordo com a Constituição Federal — infelizmente ainda minoritária — é a que admite a penhora de parte dos ganhos do executado em sede de qualquer execução, ainda que de verba que não possua natureza alimentar [12]. O percentual da remuneração a ser penhorado deve ser arbitrado em patamar razoável, capaz de, ao mesmo tempo, assegurar o mínimo necessário à sobrevivência digna do executado e não violar a dignidade do exeqüente [13].
Fato recente e que gerou grande repercussão no meio jurídico [14] foi o veto presidencial ao que seria o §3º do art. 649 do CPC, que, na redação original do PL n. 4.497/05 (que deu origem à Lei n. 11.382/2006), passaria a permitir a penhora de até 40% do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, após o desconto do imposto de renda, da contribuição previdenciária e dos outros descontos compulsórios.
Importante ressaltar que a manutenção do status quo pelo veto deverá ter curta duração, já que, em 2007, começou a tramitar, na Câmara dos Deputados, o PL n. 2.139/07 que, se convertido em lei, irá permitir a penhora de um terço da remuneração do executado [15]. Nesse caso, teremos novamente positivada a regra de exceção à impenhorabilidade, tal como ocorria no séc. XVIII, quando era permitida a penhora da terça parte da renda do devedor [16].
Apesar do retorno à possibilidade de penhora de parcela da remuneração do executado, ainda assim não se revela recomendável essa estipulação de alçadas fixas de penhorabilidade, tal como o fez o CPC de Portugal [17]. Guardando o Brasil dimensões continentais, com trágicos contrastes sócio-econômicos, mais efetivo será conceder ao magistrado a necessária margem de discricionariedade para que possa concretizar a norma abstrata observando os critérios de razoabilidade e de proporcionalidade, bem como a dignidade da pessoa humana, tanto do exeqüente, quanto do executado.
4. Conclusão
O instante especial em que o magistrado realiza a distinção entre os bens que podem ser objeto de penhora, e os que de seu rol estão excluídos, configura momento processual de grande relevância prática. A análise do tema objeto do presente estudo, a partir de uma leitura constitucional do Direito Processual Civil, impõe a revisão de certas premissas em que se baseiam as correntes de viés mais tradicional.
O atual estado econômico em que se encontra a sociedade brasileira e o grau de desenvolvimento de nosso Direito (Constitucional e Processual Civil) impõem que seja considerada como parcialmente absoluta e relativa a impenhorabilidade conferida à remuneração do executado.
Parcialmente absoluta porque deverá ser sempre reservada ao executado, sob o manto da impenhorabilidade absoluta, uma parcela de sua remuneração, para que lhe seja proporcionada uma sobrevivência digna. Relativa porquanto a parcela restante, que exceder o indispensável à digna subsistência do executado, somente poderá ser objeto de penhora se não houver outros bens livres e desimpedidos, já que se trata de hipótese excepcional e mais gravosa ao executado.
Somente por meio desse entendimento é que se consegue garantir plena efetividade [18] e harmonia aos Princípios consagrados no inciso III do art. 1º e no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (dignidade da pessoa humana e efetividade do processo) e nos arts. 612 e 620 do Código de Processo Civil (menor onerosidade da execução e prioridade do interesse do credor).
Deve o magistrado, portanto, redobrar-se de cautela na penhora do dinheiro do executado, já que ele tanto poderá gozar de algumas das condições de impenhorabilidade, quanto poderá ser penhorado de forma excepcional, em caso de ponderação judicial de valores no caso concreto, em que é sopesada a proteção da reserva do mínimo necessário à dignidade do executado versus a efetividade do processo e a salvaguarda de outra dignidade, desta vez, do exeqüente [19]
5. Referências Bibliográficas
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Notas
1 Para estudo aprofundado sobre a penhora e as impenhorabilidades de acordo com a recente reforma do Código de Processo Civil, confira-se nossa obra Penhora. São Paulo: Método, 2007, em co-autoria com Mário Vitor Suarez Lojo.
2. NEGRÃO, Theotonio e GOUVÊA, José Roberto F. Código de processo civil e legislação processual em vigor. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 824.
3. TJRJ, 12. C.Civ., AI 2006.002.03644, Rel. Des. Gamaliel Q. de Souza, j. 01.11.2006; e TAMG, 1ª C.Civ., AC 337.211-6, j. 15.05.2001.
4. TRF, 1. R., 8. T., AI 2005.01.00.063050-7/MG, Rel. Des. Carlos Fernando Mathias, j. 02.02.2007, DJ 16/02/2007, p. 134.
5. Reconhecendo a impenhorabilidade tanto dos honorários de sucumbência, quanto dos contratuais, STJ, CE, EREsp 724.158/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 20.02.2008, DJ 08.05.2008, p. 01; e STJ; 1 T., REsp 859.475/SC, Rel. Min. Denise Arruda, j. 26.06.2007, DJ 02.08.2007, p. 382.
6. STJ, 3. T., REsp 566.190/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14.06.2005, DJ 01.07.2005, p. 514.
7. Dessa forma, STF, 1. T, RE 470.407/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09.05.2006, DJ 13.10.2006, p. 51; STJ, CE, EREsp 706.331/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 20.02.2008, DJ 31.03.2008, p. 01; STJ, 3. T., REsp 724.158/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.09.2006, DJ 16.10.2006, p. 365; e Enunciado n. 135 da Súmula do TJRJ. Em sentido contrário: STJ, 1. T., RMS 17.536/DF, Rel. p. ac. Min. Luiz Fux, j. 10.02.2004, DJ 03.05.2004, p. 94.
8. No mesmo sentido, Ernane Fidélis dos Santos. As reformas de 2006 do código de processo civil: execução dos títulos extrajudiciais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 40-41.
9. Celso Neves. Comentários ao código de processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. 7, p. 22.
10. José da Silva Pacheco. Tratado das execuções. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. v. 2, p. 446.
11. STJ, 3. T., REsp 770.797/RS; Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 29.11.2006, DJ 18.12.2006, p. 377.
12. A possibilidade da penhora de parte da remuneração recebida pelo executado já foi por nós defendida no livro Penhora… cit., p. 91-101; e no artigo "A (im)penhorabilidade da remuneração do executado e do imóvel residencial à luz dos princípios constitucionais e processuais". In: Revista dialética de direito processual – RDDP, São Paulo: Dialética, n. 63, jun. 2008, p. 20-28. Da mesma forma: Luiz Fux. A reforma do processo civil. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 251; Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: RT, 2007. v. 3, p. 95-96; e Márcio Manoel Maidame. Impenhorabilidade e direitos do credor. Curitiba: Juruá, 2008, no prelo.
13. Também sustentando a possibilidade de penhora de parte do salário do executado, Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani: "indiscutível a necessidade de se respeitar a dignidade da pessoa humana do devedor, mas não podemos esquecer que, do outro lado, o do credor, há também uma pessoa, que precisa se sustentar e aos seus, e que tem também a sua dignidade, e que, para mantê-la necessita e tem o direito de receber o que lhe foi reconhecido judicialmente como devido." (O princípio da proporcionalidade e a penhora de salário – novas ponderações [água mole em pedra dura tanto bate até que fura]. In: Caderno de doutrina e jurisprudência da EMATRA XV, São Paulo: EMATRA XV, v. 4, n. 2, mar/abr. 2008, p. 39).
14. Igualmente criticando o veto à proposta de §3º, Alexandre Freitas Câmara. Lições de direito processual civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v. 2, p. 315; e Daniel Amorim Assumpção Neves. Reforma do cpc 2: leis 11.382/2006 e 11.341/2006. São Paulo: RT, 2007, p. 200-201 e 214.
15. Redação do Projeto de Lei nº 2.139/07:
"Artigo 1º O inciso IV do artigo 649 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 649 (omissis)
IV – Dois terços dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, das quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, dos ganhos de trabalhador autônomo e dos honorários de profissional liberal."
16. Em alusão ao Decreto de 13.12.1872, Joaquim José Caetano Pereira e Souza. Primeiras linhas sobre o processo civil. 4. ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1834. t. 3, p. 38.
17. Código de Processo Civil Português, art. 824.º, 1, a: "Bens parcialmente impenhoráveis. São impenhoráveis: (a) dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado; (…)".
18. Como lembra Luís Roberto Barroso, "a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social" (O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85).
19. DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 290-291: "É indispensável a harmoniosa convivência entre o direito do credor à tutela jurisdicional para a efetividade de seu crédito e essa barreira mitigadora dos rigores da execução, em nome da dignidade da pessoa física ou da subsistência da jurídica (…). Ao juiz impõe-se, caso a caso, a busca da linha de equilíbrio entre essas duas balizas, para não frustrar o direito do credor nem sacrificar o patrimônio do devedor além do razoável e necessário".
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Bruno Garcia Redondo: Advogado. Professor Substituto concursado de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especializando em Direito Processual Civil pela PUC-Rio. Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Privado pela EMERJ (TJRJ). Pós-Graduado em Advocacia Pública pela ESAP (PGERJ / UERJ-CEPED). Extensão Universitária em Direito Processual Civil e do Trabalho pela Faculdade de Natal (FAL). Graduado pela PUC-Rio
E-mail: bruno@garcia-redondo.com