A natureza jurídica do uso de sepultura

  *Almir Morgado –

De início, devo confessar, foi com certa reticência que me dispus a escrever este pequeno artigo. Digo isso, dada a natureza do tema, que toca em um dos maiores temores do ser humano: Encarar a certeza de sua perenidade! A transitoriedade de sua existência, pelo menos, neste plano. Além do que, sempre que o abordo em sala de aula, quando do estudo do patrimônio público e dos serviços públicos, percebo claro mal estar.

O fato é, no entanto, que o denominado Direito funerário ainda é uma cadeira jurídica raramente estudada, com pouquíssimas obras publicadas, e pouquíssimos estudos e decisões judiciais que abordam diretamente o tema.

São inúmeras as implicações jurídicas deste tema, e no presente trabalho, abordaremos apenas alguns de seus aspectos, mais precisamente, a natureza jurídica do direito ao uso de sepultura em cemitérios públicos, tendo em vista que observamos que a temática tem sido abordada em concursos públicos diversos e recentes.

Daí sua brevidade e sintetismo.

O tema é complexo e extremamente controvertido, tendo sido apontadas mais de vinte teorias a respeito da natureza jurídica dos institutos envolvidos no denominado jus sepulchri.           

Inicialmente, é necessário distinguir o direito ao uso de sepultura em cemitérios[1] privados e públicos.

Relativamente aos cemitérios privados, o tema pertence ao Direito Civil. Cemitério particular é aquele que pertence à iniciativa privada, e seu funcionamento, face à natureza do serviço ali realizado, está sujeita à Permissão da entidade pública, no caso, a Municipalidade, que regulamenta, disciplina e fiscaliza sua instalação e funcionamento regular, mas não altera a natureza e a titularidade do domínio do bem, que continua privado, embora sujeito às limitações decorrentes do poder de polícia administrativa.

Via de regra a legislação dos municípios somente concede a referida permissão, para entidades de caráter assistencial e sem fins lucrativos, tais como Associações Religiosas e Grêmios Assistenciais, Educacionais e Filantrópicos, desde que atendam as condições previstas nos regulamentos aplicáveis[2]. Tais cemitérios poderão ter caráter secular ou religioso.

Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikaua, em primoroso artigo publicado no site Jus navigandi aborda exaustivamente o tema, e, discordando daqueles que vêem semelhança entre o direito de sepultar em cemitério público e privado, constata, em síntese, que relativamente ao segundo, “… que o jus sepulchri, o qual consiste, basicamente, no direito de sepultar e de manter sepultados restos mortais, em se tratando de cemitérios particulares, pode resultar de enfiteuse ou superfície (conforme seja anterior ou posterior ao Código Civil vigente o negócio jurídico que lhe deu origem), concessão de uso (DL 271/67), locação ou comodato, eis que neles se encontra o conteúdo essencial do direito à sepultura (uso de bem imóvel e possibilidade de transmissão mortis causa, que se distinguem quanto à onerosidade, ao prazo de duração e à natureza real ou pessoal do direito, o que deverá ser verificado pelo intérprete no exame de cada caso concreto)”.[3]

A nós, no entanto, interessa aqui, o estudo do tema relativamente aos cemitérios públicos, tema afeto ao Direito Administrativo. Diz-se público o cemitério quando instalado em terreno público, sendo administrado diretamente pelo Município, ou explorado por terceiros através de instrumento jurídico-administrativo. Tais cemitérios terão, obrigatoriamente, caráter secular, em face do laicismo constitucional do estado brasileiro.

Necessário também se faz, aqui, estabelecermos um parêntese.

Às denominadas agências funerárias cabe o recolhimento, preparo, guarda e translado dos restos mortais ao cemitério. Tais entidades prestam relevante serviço público, tendo para tanto permissão da entidade administrativa competente. Logo, as funerárias são permissionárias de serviço público[4], sujeitas às normas regulamentares aplicáveis ao serviço que prestam, e à prática das tarifas estabelecidos em tabela pelo poder municipal, tendo as mesmas que obedecer ao princípio da modicidade e, no caso de indigentes, a regulamentação de diversos municípios as obrigam a proceder gratuitamente, como um ônus administrativo pela sujeição a uma atividade permitida. Há ainda, as casas de artigos funerários, que estão sujeitas à licença do poder público.

Bem, os cemitérios públicos são classificados, de forma unânime pelos administrativistas, como bens públicos[5] de uso especial[6].

Podem os mesmos ser diretamente administrados pelo próprio Município, ou explorados por terceiros. O título jurídico-administrativo que melhor se adequa a espécie é a concessão de uso de bem público, no entanto, várias legislações municipais referem-se à permissão de uso. Novamente nos vemos às voltas com a generalizada confusão que o legislador faz com os referidos institutos. Uma análise e conhecimento mais aprofundado dos institutos nos levam, forçosamente, à conclusão que somente a concessão de uso, dada sua natureza de contrato bilateral, confere ao explorador do bem, a necessária segurança jurídica para proceder ao seu mister, e, ao mesmo tempo, confere à administração o necessário poder de fiscalização e regulamentação do mesmo, já que se trata de uso privativo normal incidente sobre bem público de uso especial.

Já no que se refere ao uso específico de parcela do terreno – a sepultura, o título jurídico que o legitima, a nosso ver, pode ser a concessão[7] ou permissão de uso.

No caso dos denominados jazigos perpétuos, mausoléus ou assemelhados vemos que há verdadeira construção de benfeitoria, a cargo do interessado, muitas vezes de custo elevado, que, obviamente, adere ao solo, e ainda que sujeita à regulamentação às normas de utilização aplicáveis, somente a concessão de uso perpétua confere, à administração, ao concessionário, e também a coletividade[8], a necessária segurança jurídica, havendo aqui, um misto entre a utilidade pública e a utilidade privada, logo, concorrência tríplice de interesses, elemento caracterizador da concessão administrativa. Trata-se, pois, de concessão, conferida à título perpétuo, remunerada e transmissível mortis causa. É comum a cobrança de uma tarifa anual destinada à manutenção, conservação e segurança do cemitério a ser paga pelo concessionário.

No caso de utilização temporária, é possível também a permissão de uso[9]. Muitas legislações municipais a prevêem, estabelecendo para as mesmas, prazos relativamente longos, em torno de dez anos, sendo possível a prorrogação, desde que requerida pelo titular do termo de permissão ou por seus herdeiros, antes do advento do termo final.

A utilização da denominada “cova” destinada ao sepultamento rotativo também, a nosso ver, está sujeita a permissão, aqui, marcada por uma precariedade mais premente e prazos menores em face da necessidade constante de sua reutilização. Não seria o caso de autorização[10], pois a mesma sempre se dá quando a utilização do bem público se faz apenas para atender interesse do utente (autorizatário), o que não ocorre na espécie, pois, como vimos, tratam-se, aqui, de interesses convergentes do Poder Público, do particular e da coletividade.

Conclui-se, portanto, que o direito de uso de sepultura em cemitérios públicos, diferentemente do que ocorre em cemitérios particulares, se constitui através de instrumento jurídico de natureza publicista, sendo a concessão de uso, e, excepcionalmente, a permissão de uso, os meios jurídicos adequados a legitimar a utilização desta categoria de bem público de uso especial.

 

DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR

ALMIR MORGADO é Professor Universitário da cadeira de Direito Administrativo, leciona também em cursos preparatórios para concursos públicos, no Rio de Janeiro e Minas Gerais, é Coordenador do Curso de pós-graduação em Direito da UNEC/MG, Diretor-Geral do CE Nilo Peçanha da SEE/RJ e autor, dentre outras, da obra Resumo de Direito Processual do Trabalho pela Editora Impetus e Direito do Trabalho para Área Fiscal, pela Editora Campus/Elsevier, ambos em co-autoria com a Prof. Isabelli Gravatá.



[1] Para José dos Santos C. Filho, os cemitérios públicos constituem áreas do domínio público, e os cemitérios privados são instituídos em terrenos do domínio particular, embora sob o controle do Poder Público. Para que haja a instituição de um cemitério particular, é necessário consentimento do Poder Público Municipal, através de permissão ou por concessão. Os cemitérios públicos qualificam-se como bens de uso especial, já que há em suas áreas prestação de um serviço público específico. O serviço funerário, por se tratar de interesse local, é da competência municipal (art. 30 ,I, da CRFB).

[2] São inúmeras e diversas as exigências administrativas, referindo-se a quesitos de higiene, saúde e segurança pública, aspectos urbanísticos, estéticos etc. Exige-se idoneidade financeira e prova inequívoca da propriedade territorial por parte da Permitente, devendo as mesmas ser  titulares do domínio pleno, sem ônus ou gravames do imóvel destinado ao cemitério, admitida, em alguns casos, a promessa de compra e venda irrevogável e irretratável, inscrita no Registro Geral de Imóvel, além da obrigação de destinar determinado número de sepulturas para sepultamento rotativo, sendo vedada a alienação das mesmas, prevendo a legislação aplicável, um prazo mínimo de permanência dos restos mortais. Tais cemitérios normalmente são classificados em cemitérios tradicionais, tipo parque ou verticais.

[3] YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1122, 28 jul. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8714>. Acesso em: 23 abr. 2007.

[4] O mesmo ocorre com os fornos crematórios e capelas de velórios.

[5] Cretella Júnior conceitua domínio público como o “conjunto de bens móveis e imóveis destinados ao uso direto do Poder Público ou à utilização direta ou indireta da coletividade, regulamentados pela Administração e submetidos a regime de Direito Público.”(CARVALHO FILHO, José dos Santos. Apud CRETELLA JUNIOR. Manual de Direito Administrativo. Ed. Lúmen Júris. RJ. 13ºed., 2005: p. 845).

[6] São aqueles que visam a execução dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral (CARVALHO FILHO, 2005:851). São exemplos desses bens os edifícios públicos (escolas e hospitais), prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário, cemitérios públicos, museus etc.

[7] Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público confere a pessoa determinada o uso privativo de bem público, independentemente do maior ou menor interesse público da pessoa concedente.” (CARVALHO FILHO, 2005:877). A concessão é empregada nos casos em que a utilização do bem público objetiva o exercício de atividades de utilidade pública de maior vulto.Pode ser remunerada ou gratuita, de exploração ou de simples uso, temporária ou perpétua.

[8] O respeito aos mortos é um bem jurídico tutelado, inclusive pelo direito penal, pertencente à coletividade.

[9] Trata-se de ato administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de interesse público, podendo tal permissão recair sobre bens públicos de qualquer espécie.

[10] Autorização de uso, segundo Maria Sylvia Di Pietro, é o ato administrativo unilateral e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário, que o particular se utilize de um bem público com exclusividade. É precária, podendo ser ainda gratuita ou onerosa.

 

 


Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

Fale Conosco!

spot_img

Artigos Relacionados

Posts Recentes