* Kiyoshi Harada
É velha a discussão da questão em torno da prisão do depositário infiel de que cuida o Decreto-lei nº 911/69, em face de tratado internacional que veda essa prisão. É o caso do Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, cláusula sétima), que proíbe a prisão por dívida civil.
Até o advento da EC nº 45/04, adiante mencionada, a posição majoritária do STF sempre foi no sentido de que tratado internacional equipara-se à lei ordinária genérica. Daí a prevalência do Decreto-lei nº 911/69, que é um diploma legal específico (RE nº 200.385-RS, Rel. Min. Moreira Alves, DJU, de 6-2-98, p. 38).
Várias outras decisões da Corte Suprema foram proferidas no mesmo sentido sem nunca confrontar o § 2º do art. 5º da CF, que atribui natureza de norma constitucional aos direitos e garantias previstas em tratados firmados pelo nosso País, com o art. 5º, LXVII da CF, que permite a prisão do depositário infiel (HC nº 72.131, RREE nºs. 200.385-RS e 344.458-RS).
Sobreveio a EC nº 45/04 conferindo status de emenda constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
Embora coubesse ao Congresso Nacional "resolver definitivamente sobre tratados", nos termos do art. 49, I da CF, contraindicando o processo legislativo, mas, sim a sua aprovação por Decreto Legislativo (art. 59, VI da CF), o legislador constituinte derivado houve por bem conferir a esse ato de "resolver" ou de "aprovar" o tratado internacional o mesmo procedimento legislativo previsto para emenda constitucional, sempre que o pacto internacional versar sobre direitos humanos. Parece-me que assim procedeu o legislador constituinte, tendo em vista que a Corte Suprema não vinha aplicando o disposto no § 2º do art. 5º da CF, exatamente porque os tratados eram aprovados, indistintamente, por decreto legislativo, e como tal, não tiham o condão de conferir status de norma constitucional.
A revisão da jurisprudência do STF começou com o julgamento do RE nº 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, à luz da Emenda nº 45/04. O voto proferido pelo Min. José Celso de Mello foi no sentido de que o Pacto de São José da Costa Rica foi incorporado, em 1992, ao direito interno do Brasil, como estatuto revestido de hierarquia constitucional por efeito do § 2º do art. 5º da CF. Demais ministros estavam seguindo a orientação no sentido de equiparar aquele pacto internacional às normas resultantes de emendas constitucionais, por força da EC nº 45/03. Sete votos haviam sido proferidos nesse sentido.
Contudo, na conclusão do julgamento final, prevaleceu a tese da "ilegalidade" do Decreto-lei nº 911/69 em razão da hierarquia supra-legal de tratados e convenções internacionais, porém sem natureza de norma constitucional. Em conseqüência, foi revogada a Súmula 619 do STF que versava sobre a prisão do depositário infiel no próprio processo em que se constituiu o encargo.
É difícil de entender a tese esposada pela maioria dos componentes da Alta Corte. Na verdade, uma lei é constitucional ou é inconstitucional, descabendo a cogitação de lei ilegal, quer do ponto-de-vista formal, quer sob o aspecto material.
Compreende-se a preocupação da Corte no sentido de que a atribuição de status de norma constitucional conduzirá, na prática, a situações de revogação de preceitos constitucionais por meio de tratados.
Há que se ponderar, contudo, que é irreversível a tendência dos Estados nacionais de incorporar
E aqui é oportuno transcrever a lição de José Joaquim Gomes Canotilho:
"O programa normativo constitucional não pode se reduzir, de forma positivista, ao texto da Constituição. Há que se densificar, em profundidade, as normas e princípios da Constituição, alargando o ‘bloco de constitucionalidade’ a princípios não escritos, mas ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas" (Direito constitucional, 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 982).
Por derradeiro, se eventualmente o tratado firmado afrontar dispositivo constitucional inserido no núcleo protegido por cláusulas pétreas, o Congresso Nacional não deverá aprová-lo. Se eventualmente for aprovado apesar do vício retro apontado caberá ao STF, como guardião da Constituição, declarar a sua inconstitucionalidade, sempre que for provocado.
Kiyoshi Harada: jurista, professor e especialista
Elaborado em 12.2008.