O Termo Circunstanciado de Ocorrência e a Legitimidade exclusiva da Autoridade Policial para a sua lavratura

Ravênia Márcia de Oliveira Leite

Segundo o art. 69 da Lei n.º 9.099/95, in verbis, “a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários”.

O mesmo dispositivo legal ainda assevera em seu art. 92 que “aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei.”

O art. 4º do Código de Processo Penal é claro em estabelecer que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Ora, o fato da infração penal ser de menor potencial ofensivo ou não, de maneira alguma, altera a legitimidade para as práticas processuais penais previstas em lei.

Dessa forma, o Termo Circunstanciado de Ocorrência, da mesma forma que o Inquérito Policial, somente pode ser presidido por Delegado de Polícia, nos termos da Carta Magna, em seu art. 144, cabendo a Polícia Militar sua função constitucional de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

Ao permitir-se a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência a qualquer outra figura dos órgãos de Segurança Pública, que não o Delegado de Polícia, a mesma de maneira alguma seria legitimada para tanto, afrontando a Constituição Federal, o Código de Processo Penal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais, de modo que não se estabelecerá Segurança Pública, mas, ao contrário, viabilizar-se-á a contaminação das provas obtidas de forma ilícita ou ilegítima, permitindo-se a argüição da nova redação do art. 157 do Código de Processo Penal (Lei n.º 11.690/08).

Fernando da Costa Tourinho Filho, sumidade no Direito pátrio, em seu Código de Processo Penal Comentado, expressa o seguinte entendimento: "ainda há Polícia Civil, mantida pelos Estados, e dirigida por Delegados de Polícia, cabendo-lhes a função precípua de apurar as infrações penais e respectivas autorias, ressalvadas as atribuições da Polícia Federal e as infrações da alçada militar. Também lhe incumbem as funções de Polícia Judiciária consistentes não só naquelas atividades referidas no artigo 13 do CPP, bem como nas relacionadas no artigo 69 da Lei dos Juizados Especiais Criminais".

O ilustre Desembargador Carlos Augusto Machado Faria, ao decidir Mandado de Segurança, no qual Policiais Civis do Distrito Federal pediram liminar contra ato do Procurador Geral do Distrito Federal, que sugeriu ao Governador a transferência da competência da Polícia Civil para a Polícia Militar, em período de greve, assim decidiu: "como a função de Polícia Judiciária é privativa da Polícia Civil, determino aos impetrados que se abstenham de praticar ato que atribua a outros servidores, policiais ou não, tal atividade".

Para juristas como José Afonso da Silva, Antônio Evaristo de Morais Filho e Júlio Fabrini Mirabete, apenas a Polícia Civil pode desempenhar a função de Polícia Judiciária.

Discutindo especificamente o conceito de autoridade policial Carlos Alberto Marchi de Queiroz apregoa que a autoridade policial referida pelo artigo 69, caput, da Lei 9.099/95, é a autoridade policial da unidade policial da respectiva circunscrição, ocupante do cargo de Delegado de Polícia de carreira ou não, não podendo ser o policial de rua que não tem atribuição para cumprir as diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, nem para atender ao rito imposto pelo juiz comum, por exemplo o inquérito policial, conforme a lei, de maneira cristalina, declina, conforme acima demonstrado.

Ademais, em artigo sobre o tema Luiz Carlos Couto defende que além da Polícia Militar estar agindo inconstitucionalmente, estaria descumprindo duas normas do Código de Processo Penal Militar, pois a Polícia Militar só pode realizar a atividade judiciária nos casos de infrações penais militares.

O autor afirma que se o Policial Militar durante o Inquérito Policial Militar, se deparar com infração penal que não for de natureza militar, nos termos do § 3º, do Artigo 10, deverá comunicar o fato a autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator e em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Já o § 2º, do Artigo 247, da lei castrense, estabelece que se durante a lavratura do auto de prisão em flagrante delito militar, a autoridade militar ou judiciária, verificar a manifesta inexistência de infração penal militar, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente.

Veja se aqui, que a autoridade civil competente é o Delegado de Polícia investido nas suas funções de Autoridade Policial, a quem cabe tomar as providências de Polícia Judiciária Comum, de ofício, ou seja, até mesmo o Código Penal Militar, reconhece a ilegitimidade da Polícia Militar para a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência ou Inquérito Policial.

Por fim, ressalte-se, apesar da importância constitucional, tanto da Polícia Civil, como da Polícia Militar, não podemos, sob qualquer argumento, prático ou de celeridade, descumprir os ditames legais, sob pena de, em assim o fazendo, permitir-se que o cidadão em conflito com a lei, caminhe à margem da mesma, já que, não poderá ser submetido à medida oriunda de prova ilícita ou ilegítima.

Qualquer provimento ou resolução oriunda do poder executivo ou judiciário não pode jamais definir a competência para o registro do Termo Circunstanciado de Ocorrência. Para que ocorra a determinação de competência, o operador do direito não pode presumir ou deduzir por analogia ou extensão, ora que uma Lei deve estar definindo-a, conforme amplamente aqui declinado.

Oferecendo respaldo a esse entendimento podemos transcrever o artigo 87 da Constituição Paulista que dispõe: "Os Juizados Especiais das Causas Cíveis de Menor Complexidade e das Infrações Penais de Menor Potencial Ofensivo terão sua composição e competência definidas em lei, obedecidos os princípios previstos no artigo 98, I, da Constituição Federal", restando claramente contrária a Resolução SSP nº 353, de 27/11/95 do mesmo Estado da federação, a qual atribui tanto a Polícia Civil como à Polícia Militar atribuição para lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência.

No IX Encontro dos Tribunais de Alçada do Brasil, realizado nos dias 29 e 30 de Agosto de 1997, em São Paulo, SP, através do Comunicado de n.º 20, de 16 Out 97, na Resolução de Matéria Criminal, em seu item 7, por maioria daquele encontro resolveram que "A Autoridade Policial a que se refere à Lei n.º 9099/95, é o Delegado de Polícia".

Nestes termos, a solução mais correta, do ponto de vista técnico-jurídico, para que não advenha o risco da impunidade, em nome da celeridade ou interesses meramente corporativistas, visando não despojar de efetividade as importantes funções ostensiva e preventiva da Polícia Militar e para que não desvirtuemos a atividade judiciária da Polícia Civil, e ainda mais, para que não se cometa ilegalidade e, conseqüentemente, a impunidade do cidadão que transgrediu a norma penal, é a presidência legítima do Termo Circunstanciado de Ocorrência pelo Delegado de Polícia, posto que, a égide da lei e do Estado Democrático de Direito, não pode de modo algum ser afugentada.

Ademais, o cidadão, tem como garantia e direito fundamental, consagrado na Constituição Federal o Direito a submeter-se a processos e procedimentos em conformidade com a lei, razão pela qual, resta transparente a ilegitimidade da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pela Polícia Militar, sob pena de violar-se a lei, de maneira ampla e visceral, fato que, constitucionalmente, não se pode admitir.

 


 

REFERÊNCIA  BIOGRÁFICA

Ravênia Márcia de Oliveira Leite:  Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar. Pós-graduanda em Direito Penal – Universidade Gama Filho.

E-mail: ravenia@terra.com.br  

 

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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