Da utilização de normas do direito privado nas causas tributárias

* Marcos Antonio Cardoso de Souza

           A relevância da questão, a ser objeto da presente análise, surge do reiterado emprego, por parte dos profissionais do direito, de dispositivos pertencentes ao campo do direito privado em lides tributárias, nos casos de omissão da legislação específica. Encontra-se alusão às normas civis em discussões de matéria tributária, em pareceres e instrumentos processuais disponíveis através da Internet ou nos meios jurídicos. Tal prática faz surgir a necessidade de uma apreciação acerca de sua idoneidade e legalidade. 

          Há de se iniciar o presente estudo com a recepção do posicionamento da impossibilidade, a princípio absoluta, de se adotar normas de direito privado para regular questões tributárias. Para que reste patente tal assertiva, torna-se imprescindível a formulação de breves noções de direito público e privado. O traço essencial para a distinção entre estes campos da ciência jurídica consiste na posição de superioridade conferida ao Estado, no conjunto de normas do direito público, sob a justificativa de que o mesmo representa os interesses de toda uma coletividade. Em contrapartida, no direito privado, os pólos da relação jurídica encontram-se em igualdade, determinada pelo princípio constitucional da isonomia.

          Isto posto, ao se analisar a própria essência dos preceitos de direito privado e tributário, nota-se a impossibilidade do vislumbre de qualquer ponto de intercessão no campo de aplicação de normas de fundamentos e escopos tão distintos. Os ditames legais de direito civil foram elaborados com o fim de regular as relações entre as pessoas físicas ou as jurídicas de caráter privado. A formulação do conteúdo das normas privadas preza pela igualdade dos indivíduos, sem qualquer consideração à supremacia do interesse coletivo, cuja tutela está resguardada mediante a coercibilidade dos princípios e leis do direito público.

          No Direito Tributário, ramo do direito público, o Estado interfere no patrimônio e na renda das pessoas físicas e jurídicas, mediante a cobrança de tributos, nos limites impostos pelo ordenamento jurídico. A concessão de tal poder aos entes estatais decorre da necessidade de se financiar os serviços públicos, os quais se revelam de fundamental importância para a consecução dos fins precípuos do Estado. Dessa forma, observa-se que os interesses envolvidos nos litígios de matéria tributária não se restringem àqueles inerentes ao ente público competente e ao contribuinte; uma vez que, os efeitos da decisão jurisdicional manifestar-se-ão em toda coletividade. Deve-se considerar que os membros da sociedade dependerem da prestação dos serviços essenciais. Constata-se, assim, a amplitude e relevância do direito tributário.

          Ao se assegurar a validade dos termos da legislação subjetiva civil, nas causas envolvendo tributos, estar-se-ia extirpando o poder de imperium do Estado e, conseqüentemente, o interesse público seria nivelado ao dos particulares. Com isso, a hipótese de utilização de dispositivos de direito privado em matéria tributária contrapõe-se aos princípios fundamentais do direito público, no qual se encontra inserido o direito tributário.

          Imperioso torna-se frisar que a tutela dos princípios próprios de cada campo da ciência jurídica adquire maior relevância, do que a defesa de normas isoladas; visto que, os mesmos concedem as diretrizes para elaboração de todo o sistema normativo correspondente. Assim, por não estarem em consonância com os princípios basilares da matéria jurídica, como o da supremacia do interesse da coletividade, as normas civis restam inadequadas a produzir qualquer efeito nas relações litigiosas travadas em questões tributárias.

          Os casos de verificação de lacunas na lei tributária, inevitavelmente, ocorrem na prática forense; já que, o legislador não esgota toda as possibilidades no texto legal. As omissões das normas tributárias pode ser supridas com a observância da analogia, da equidade e dos princípios de direito tributário e direito público. O Código Tributário Nacional, em seu art. 108, consagra tais fontes subsidiárias e dita a ordem em que as mesmas devem ser empregadas pela autoridade competente para a aplicação da legislação tributária.

          Cabe acentuar-se que nem mesmo mediante recurso às técnicas da analogia ou da equidade, viabilizar-se-ia a utilização de normas privadas em matéria tributária. A analogia, nas palavras do eminente doutrinador Marcus Cláudio Acquaviva em sua obra Dicionário Jurídico Brasileiro, trata-se de "operação que consiste em aplicar, a um caso não previsto, norma jurídica concernente a uma situação prevista, desde que entre ambos exista semelhança e a mesma razão jurídica para resolvê-los de igual maneira". Ocorre que as diferenças entre as relações de direito público e direito privado, já enfocadas anteriormente e que se manifestam até mesmo nos pólos processuais, impedem a obtenção, através da analogia, de um ponto comum na aplicação destas modalidades de lei.

          A equidade, em conformidade com a ordem de preferência estabelecida no suso indicado artigo do CTN, consiste em meio residual a suprir as lacunas da legislação tributária. Com isso, somente se todas as demais fontes demonstrarem-se falhas, pode-se fazer uso deste instituto jurídico. A definição de equidade, pode conduzir ao vislumbre da única possibilidade de utilização do direito privado, nas lides tributárias. Através da equidade, o jurisprudente pode e deve adequar a normas à situação concreta, com o escopo de se evitar injustiças. Destarte, transpondo esta noção para a matéria da presente análise, constata-se ser viável a argüição de preceitos do direito civil nas questões entre o Fisco e os contribuintes ou responsáveis pelos tributos, em casos nos quais a lei específica for omissa e todos os outros meios legais a supri-la foram inidôneos. A condição de validade para este fato excepcional seria a atuação do aplicador da norma, no sentido de moldá-la à relação tributária e às peculiaridades da mesma. Deve-se aceitar tal possibilidade, até mesmo, em benefício da certeza da prestação jurisdicional; uma vez que nenhum caso concreto poderá deixar de ser julgado por falta de dispositivo legal a regê-lo. 

          Reserva-se papel fundamental aos órgãos jurisdicionais, pois se assegura aos mesmos o poder de, em suas decisões, manifestarem-se pela impossibilidade da aplicar a lei civil em matéria tributária, com ressalva a exceção acima disposta. Com a consolidação deste julgamento nos tribunais pátrios, a questão adquirirá previsão jurisprudencial, o que servirá como fonte para acórdãos supervenientes. Dessa maneira, as decisões assumiram contornos satisfatórios e condizentes com as diretrizes básicas do direito tributário e do direito público.

          Se a jurisprudência dos tribunais superiores consagrar possibilidade em contrário, conceder-se-ia temerosa prerrogativa aos devedores do Fisco. Outra não pode ser a conclusão, na medida que, nesta hipótese, seria permitida a invocação de normas da lei substantiva civil, que não inserem a superioridade do Estado e do interesse público perante o particular.

          Faz-se referência, por fim, à alusão do art. 1º, da Lei nº 6.830/80, referente ao acolhimento, de forma subsidiária, dos termos do Código de Processo Civil, nos procedimentos de execução fiscal. Tal previsão não parece ocasionar nenhum prejuízo. Na falta de um diploma processual próprio, a lei adjetiva civil representa uma fonte hábil e adequada para reger o processo nas lides tributárias, naquilo em que a legislação extravagante revelar-se lacunosa

 


Referência Biográfica

Marcos Antonio Cardoso de Souza  –  bacharel em Direito em Teresina (PI), pós-graduando em Direito Empresarial em Recife
 
E-mail: souzamac@uol.com.br

Home-page: www.marcosadvogado.hpg.com.br

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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