Artigo 166 do Código Tributário Nacional: Transferência de Encargo

 

* Edson Teixeira de Melo – 

        O presente artigo analisa a questão da repetição do indébito nos casos dos tributos ditos indiretos, à luz da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e das Súmulas nºs. 71 e 546 do Supremo Tribunal Federal que tratam da matéria. 

A Lei

 O artigo 166 do Código Tributário Nacional dispõe:

 “A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.” 

A Doutrina

 Doutrinariamente há diversas formas de classificação dos tributos, mas para o nosso estudo interessa a classificação em diretos e indiretos, e mais precisamente os impostos.

José Eduardo Soares de Melo [1], reafirmando que os impostos têm sido objeto de diversas classificações, destaca os impostos diretos, quando o valor econômico é suportado exclusivamente pelo contribuinte, como é o caso do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – artigo 155, IV da Constituição Federal). O proprietário do automóvel arca com o ônus do tributo, cujo valor não é repassado ao terceiro.

Contrário senso, impostos indiretos seriam aqueles em que a carga financeira tem condição de ser transferida a terceiro, como é o caso do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados – artigo 153, III da Constituição Federal). O contribuinte do tributo é o industrial, que fica obrigado a recolher o seu respectivo valor, mas pode vir a ser ressarcido financeiramente por ocasião do pagamento do preço por parte do adquirente.

Hugo de Brito Machado [2], repetindo idêntica definição sobre impostos diretos e indiretos, faz contundente crítica à referida classificação ao afirmar:

“A classificação dos tributos em diretos e indiretos não tem, pelo menos do ponto de vista jurídico, nenhum valor científico. É que não existe critério capaz de determinar quando um tributo tem o ônus transferido a terceiro, e quando é o mesmo suportado pelo próprio contribuinte. O imposto de renda, por exemplo, é classificado como imposto direto; entretanto, sabe que nem sempre o seu ônus é suportado pelo contribuinte. O mesmo acontece com o IPTU, que em se tratando de imóvel alugado é quase sempre transferido para o inquilino.”

 O autor assevera que atribuindo, o Código Tributário Nacional, certa relevância para a tal classificação, dispôs no artigo 166 “que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.

E continua o referido autor: 

“A nosso ver, tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro são somente aqueles tributos em relação aos quais a própria lei estabeleça dita transferência. Somente em casos assim aplica-se a regra do art. 166 do Código Tributário Nacional, pois a natureza a que se reporta tal dispositivo só pode ser a natureza jurídica, que é determinada pela lei correspondente, e não por meras circunstâncias econômicas que podem estar, ou não, presentes, sem que se disponha de um critério seguro para saber quando se deu, e quando não se deu, tal transferência.”

 Conclui assim, que contrário senso ter-se-á que se entender inconstitucional o artigo 166 do Código Tributário Nacional, por ser este um óbice intransponível ao exercício do direito à restituição do indébito.

José Eduardo Soares de Melo [3] enxerga constitucionalidade no mencionado artigo, identificando o IPI e o ICMS como típicos tributos que atendem aos pressupostos implicadores da translação da carga financeira a terceiros, esclarecendo que “tanto o fabricante quanto o comerciante, ao realizarem operações jurídicas, em regra, são obrigados a lançar os referidos impostos, em sua notas fiscais”.

Aliomar Baleeiro [4], em obra de grande relevo para o mundo jurídico, ao enfrentar a classificação dos tributos em diretos e indiretos, ministra que a impossibilidade jurídica da repetição de tributos indiretos, tese que tem amparo na Súmula nº 71 do Supremo Tribunal Federal, não pode ser generalizada, devendo ser apreciada em cada caso concreto, porque, de começo, do ponto de vista científico, os financistas ainda não conseguiram, depois de 200 anos de discussão, desde os fisiocratas do século XVIII, um critério seguro para distinguir o imposto direto do indireto.

E prossegue: 

“À falta de um conceito legal, que seria obrigatório ainda que posto à evidência da realidade dos fatos, o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errôneo, data vênia, de que sempre, eles comportam transferência do ônus do contribuinte de iure para o contribuinte de facto.”

 Mizabel Derzi [5], atualizadora da obra acima citada, em nota específica destaca a limitada aplicação do artigo 166 do Código Tributário Nacional:

Juridicamente, somente existem dois impostos “indiretos” por presunção: o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI –, de competência da União, e o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS –, de competência dos Estados. O caráter “indireto” dos demais tributos, como que Aliomar Baleeiro, é apenas uma especulação econômica, pois são muitas as variáveis (condições de mercado, competitividade, de estrutura e incidência da exação, natureza do produto etc.) que podem desencadear ou não a translação.

Dissertando sobre o artigo 166 do Código Tributário Nacional, esclarece que tributos que comportem por sua natureza, e natureza jurídica apenas, a transferência do respectivo encargo financeiro são o IPI e o ICMS: 

“…

E somente existem dois tributos que, de acordo com sua peculiar natureza jurídica, desencadeiam a transferência do respectivo encargo financeiro, ou seja, o ICMS e o IPI.

A rigor, a ilação é extraída diretamente da Constituição Federal, porque, em relação a eles, a Carta adota dois princípios – o da seletividade e o da não-cumulatividade – que somente podem ser explicados ou compreendidos pelo fenômeno da translação, uma vez que a redução do imposto a recolher, entre outros objetivos – em um ou outro princípio – se destina a beneficiar o consumidor, por meio da repercussão no mecanismo dos preços. Ademais tais impostos têm ainda a função de serem neutros nem deformando a competitividade, a formação de preços ou a livre concorrência. Para isso não podem onerar o agente econômico que atua sujeito às leis de mercado, ou seja, o contribuinte, (o comerciante), mas são suportados pelo consumidor. E não apenas há uma aceitação jurídico-constitucional da repercussão do encargo financeiro, mas ainda um comando de autorização e até de determinação da transferência.”

 

E a autora em tópico seguinte culmina por afirmar que a restrição do artigo 166 do Código Tributário Nacional só se dá em relação aos créditos decorrentes do pagamento indevido, pois na compensação não prevalece a dicção do referido artigo.

Marcelo Fortes de Cerqueira [6], ao enfrentar o tema da repetição do indébito nos denominados “tributos indiretos”, após ressaltar os vários posicionamentos doutrinários a respeito do tema, ministra: 

“A problemática da repetição do indébito nos tributos em tela está fortemente imbricada com o próprio fundamento último da repetição do indébito e com toda a teoria da devolução expendida neste estudo. Assim, concretizado no plano concreto o evento do pagamento indevido, não há como impedir ou limitar àquele que realizou o fato do pagamento indevido o direito à devolução. Cobrado o tributo em desconformidade com a ordem tributária, o mesmo há de ser devolvido ao contribuinte, sem que nenhuma regra do sistema possa restringir o seu direito subjetivo, que, como demonstrado, tem sede constitucional.”

 Eduardo Domingos Botallo (in Restituição de Impostos Indiretos, São Paulo, Revista de Direito Tributário nº 2, p. 320), citado pelo autor acima assevera: “Somente o contribuinte chamado de jure é parte da relação jurídica tributária; conseqüentemente, somente a ele é atribuível o título jurídico; somente a ele cabe o direito de repetição do tributo indevido e nenhuma condição adicional se lhe pode ser imposta para o exercício desse direito”.

 E conclui Marcelo Fortes de Cerqueira que o artigo 166 do Código Tributário Nacional, embora contido no corpo de um típico veículo introdutório de norma tributária, veiculou, neste particular, norma específica de direito privado, choca-se com a Constituição Federal, e por isso não foi pela mesma recepcionado. 

A Jurisprudência

 O Supremo Tribunal Federal tem dado diversa interpretação à repetição do indébito no caso dos denominados impostos indiretos, com interpretação literal do artigo 166 do Código Tributário Nacional. 

Súmula 71.

Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto.

 No recurso extraordinário nº 46.450, de 10 de janeiro de 1961, o Ministro A. Villas Boas assim se pronunciou: 

“A regra é que é o solvens quem pode agir em repetição do indébito.

Mas, no caso, não foi possível deferir-lhe o pedido, porque ficou apurado que, se sofreu a percussão do tributo inconstitucional obteve imediata reparação, fazendo-o repercutir sobre os compradores das mercadorias.” 

Súmula 546.

Cabe restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte “de jure” não recuperou do contribuinte “de facto” o “quantum” respectivo.

 Posteriormente, abrandando a Súmula 71, num dos precedentes que deram origem à Súmula 546, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do recurso extraordinário nº 58.660, de 10 de abril de 1969, assim decidiu: 

“Ementa: – Restituição de tributo indireto (Súmula n. 71). Se ficou provado que o contribuinte não incluiu no preço dos seus produtos a parcela do tributo que indevidamente pagou, tem direito à restituição. Inaplicação do enunciado da Sumula. Divergência com o acórdão no RE 45.977. Embargos conhecidos e providos.”

 Recentemente o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou nos autos do Recurso Especial nº 629.356 – PR: 

“Tributário. Recurso Especial. ISS. Sociedade Uniprofissional. Art. 9º § 3º, do Decreto-Lei nº 406/68. Violação do Art. 535 do CPC. Não-ocorrência. Transferência do encargo financeiro. Comprovação desnecessária.

2. “Ante a falta de vinculação entre o tributo e os serviços prestados, descabido falar-se em prova da não-transferência do encargo financeiro pelas sociedades de advogados, inaplicável a regra encartada no art. 166 do CTN.”

 

Conclusão

 Após estas considerações sobre a lei, a doutrina e a jurisprudência, passo a enfrentar a questão proposta, sobre a aplicação do artigo 166 do Código Tributário Nacional ao ISS, ICMS e IPI, e sobre a existência ou não da transferência de encargo para o consumidor.

Entendo que o artigo 166 do Código Tributário Nacional afronta a Constituição Federal e, neste particular, não foi por ela recepcionado.

A repetição do indébito encontra o seu pressuposto de validade imediato no artigo 165 do Código Tributário Nacional e, de forma remota, na Constituição Federal. Dentre os vários princípios indiretamente relacionados com a repetição do indébito, mister destacar o da estrita legalidade. Ora, somente em virtude de lei deve o contribuinte sujeitar-se ao pagamento de tributos.

Assim, todo o valor que for pago em desconformidade com o Sistema Constitucional Tributário Brasileiro deve ser repetido.

Por outro lado, como dissemos, o consumidor não mantém, com o Fisco ou com o contribuinte, relação jurídica tributária, mas sim de natureza privada. O contribuinte suporta a exação, o consumidor paga o preço da mercadoria, produto ou serviço. Este deve ser o critério jurídico da análise fática.

Logo, não há que se falar em impossibilidade de repetição do indébito tributário por parte do contribuinte, quer dos chamados tributos indiretos ou diretos.

No entanto, temos as Súmulas 71 e 546 do Supremo Tribunal Federal, que caminham em diversa direção.

Analisando a questão, a partir das Súmulas do Supremo Tribunal Federal, ainda assim, diferentemente dos casos de ICMS e IPI, únicos com natureza jurídica a permitir a transferência de encargo para o consumidor, na análise de Misabel Derzi, no caso do ISS não há a transferência do encargo, não se lhe aplicando a regra do artigo 166 do Código Tributário Nacional. Ressalta-se, neste particular, a forma de cálculo “por dentro” do ICMS.

Entendo, como Misabel Derzi, que somente existem dois tributos que, de acordo com sua peculiar natureza jurídica, poderiam, segundo critérios jurídicos e não econômico-financeiros, desencadear a transferência do respectivo encargo financeiro, ou seja, o ICMS e o IPI. 

NOTAS

 [1] MELO, José Eduardo de. Curso de Direito Tributário. 6. ed. revista e atualizada. São Paulo: Dialética, 2005.

 [2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2007.

 [3] MELO, José Soares de. Obra citada, p. 311.

 [4] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 885.

 [5] DERZI, Mizabel Abreu Machado. Notas à obra citada acima, p. 886.

 [6] CERQUEIRA, Marcelo Fortes de. Curso de Especialização em Direito Tributário, coordenado por Eurico Marcos Diniz de Santi. 1. ed., 3. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 390.

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA  

 

* Edson Teixeira de Melo é sócio do escritório Ferreira e Melo Advogados Associados, professor universitário, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado em Direito do Terceiro Setor. E-mail: contato@ferreiraemelo.com.br.

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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