Sobre a justificativa política da ação popular

 

 

* Daniel Marques de Camargo –

 

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. v.2, 2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, vol. 1, p. 424.

O trabalho tem como referencial teórico a obra supracitada, de Cândido Rangel Dinamarco, no trecho que aborda os aspectos político-jurídicos mais importantes relacionados ao instituto da ação popular, e também a necessidade do concreto caráter lesivo do ato que se pretende impugnar.

A ação popular é remédio daquilo que se denomina jurisdição constitucional, que visa proteger interesses transindividuais, aprimorando a defesa do interesse público e da moral administrativa.

A fonte da ação popular é o direito romano. Em Roma já existiam ações que poderiam ser propostas por aqueles que possuíssem interesse pela coisa pública, mesmo considerando que àquela época ainda não estava bem delineada a noção de Estado.

No Brasil, houve a previsão na Constituição de 1934, todavia sem a regulamentação respectiva. A Carta de 1937, por razões sabidas, não abordou o assunto, e a Constituição de 1946 restabeleceu a ação popular, que foi posteriormente regulamentada pela Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965.

O artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal de 1988 estabelece que “Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

Exige-se, por conseguinte, não somente a qualidade de nacional, mas a de cidadão, ou seja, a pessoa precisa estar na posse de seus direitos políticos. A cidadania implica a nacionalidade, na medida em que todo cidadão é também nacional; nem todo nacional, no entanto, é cidadão. Não podem ser impetrantes as pessoas jurídicas nem as físicas que não disponham de suas prerrogativas cívicas, seja porque nunca as adquiriram, seja porque delas decaíram, de modo provisório ou permanente.

Tem cunho de ação coletiva, porque o interesse diz respeito ao bem geral. A coletividade é a beneficiária da possível anulação do ato impugnado, e o cidadão atua em nome próprio mas por interesse alheio (substituto processual), diretamente relacionado à comunidade. Há autores (Celso Ribeiro Bastos, Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior e José Afonso da Silva) que afirmam que o autor da ação popular age em nome próprio e no exercício de um direito seu, assegurado constitucionalmente, apesar de interessar diretamente à comunidade.

O estudo mostra a importância política da faculdade de pleitear a remoção, judicialmente, da eficácia de atos ilegítimos dos agentes públicos. O membro ativo da sociedade política alça-se à condição de um efetivo participante do fenômeno estatal e do processo que determina os destinos da coisa pública, isto é, do bem da coletividade.

É dada ênfase especial aos aspectos políticos que envolvem a função jurisdicional, e ainda à ação popular como um veículo eficaz de participação política do cidadão na vida da sociedade. Conforme a visão de Cândido Rangel Dinamarco, a tônica central está no âmbito político da ação popular, porque o cidadão é erigido em guardião dos interesses comunitários, legitimado que é para agir em favor da moralidade administrativa e do patrimônio comum.

É certo que o controle dos atos de outro Poder faz parte do sistema que estabelece entre as funções políticas do Estado (Executiva, Legislativa e Judiciária) a independência, a harmonia e especialmente o equilíbrio, um fiscalizando e “contendo” as atividades do outro. No entanto, também é preciso esclarecer que tal controle, no que concerne ao assunto em questão, não pode avançar além do necessário à verificação da legalidade dos atos administrativos, nunca acerca dos aspectos intrínsecos, para tratar da justiça ou não deles, da oportunidade ou não, da conveniência ou inconveniência. O objeto do controle, por conseguinte, há de se restringir aos aspectos legais, porque não se pode substituir a discricionariedade do administrador pela do juiz.

A lei que regula a Ação Popular fala em “anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos”. O entendimento mais razoável é o de que a lesividade pressupõe a ilegalidade. Do ponto de vista político, justifica-se a utilização do instituto para se buscar a integridade do patrimônio que pertence à coletividade (meros vícios não são suficientes à propositura da demanda). No que respeita ao aspecto técnico-jurídico, não se justifica a anulação de ato carregado de vício se disso não resultar dano.

Não é legítima nem cabível a propositura da ação popular quando se está diante de uma mera capacidade abstrata de causar dano hipotético, num futuro incerto e na simples suposição da ocorrência de circunstâncias apenas imagináveis, mas não comprovadas no processo.

Ato lesivo, portanto, é aquele que seja portador concreto de dano efetivo ao patrimônio comum. Não há de se permitir suposições, abstrações, elucubrações nem conjeturas como aptas a ensejar o manejo do remédio jurídico-constitucional.

Daí que se menciona a necessidade do concreto caráter lesivo do ato impugnado. Importa assinalar o entendimento de Hely Lopes Meirelles, que ao discorrer sobre a lesão poder ser efetiva ou potencial (latente), afirma que “ato lesivo é toda manifestação de vontade da Administração danosa aos bens e interesses da comunidade”, e a lesão potencial é aquela que a decisão administrativa fatalmente trará, quando vier a ser objeto de efetiva execução pelos órgãos do Estado. O que não se permite é a lesão hipotética, que poderia gerar uma sentença condicional, proibida pela lei processual civil.

Além disso, se o ato se realizou e não causou nenhum prejuízo, se prejuízo algum foi provado, ou se não foi sequer alegado, a declaração de eventual nulidade corresponderia a uma exagerada postura formal, que toda a moderna doutrina repele.

Cândido Rangel Dinamarco assinala que é incompatível com a garantia constitucional da ação popular, no contexto dos freios e contrapesos constitucionais equilibrados, a censura judiciária do mérito do ato administrativo que não seja causador de efetiva lesão concreta ao patrimônio público.

Referentemente à moralidade administrativa, é possível se vislumbrar com clareza a hipótese de ofensa independentemente de resultar lesão ao patrimônio público. Sob o manto da moralidade administrativa, são impugnáveis os atos que não resultam, necessariamente, num esvaziamento ou numa dispersão de recursos, mas ferem os princípios orientadores da conduta dos administradores.

Enfatizada a característica e a importância política do instituto da ação popular, ligada à participação daqueles que desfrutam dos direitos políticos nos destinos da coisa pública, fazendo com que cada cidadão seja um fiscal do bem comum, importa salientar que a verdadeira cidadania resulta no direito de fazer valer as prerrogativas que defluem de um Estado Democrático.

O exercício da cidadania é fundamental, pois sem ele não se pode falar em participação política dos indivíduos nos negócios do Estado e mesmo em outras áreas de interesse público, portanto não há que se falar em democracia.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Daniel Marques de Camargo:   Advogado e professor titular de Introdução ao Estudo do Direito, Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Processo Civil pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), e Mestre em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), em Jacarezinho.
Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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