Revisão crítica da pena privativa de liberdade: uma aproximação democrática

  *Claudio Alberto Gabriel Guimarães[1]

Resumo: O presente artigo discute o alcance das funções declaradas da pena privativa de liberdade, enveredando, outrossim, pelas funções ocultas ou latentes desta forma de controle social,  com o escopo maior de analisar as possibilidades de harmonização entre um Estado Democrático de Direito e a utilização do cárcere como forma disciplina social.

Palavras-chave: Pena privativa de liberdade, funções declaradas da pena, funções ocultas da pena.

Sumário: 1. Introdução 2. Breve abordagem histórico-doutrinária sobre a pena privativa de liberdade 3. Perspectivas para a pena privativa de liberdade: por uma drástica redução 4. Conclusão


 

1.  INTRODUÇÃO 

No presente artigo, a limitação das formas de coerção punitiva estatal a uma de suas espécies, qual seja, a pena privativa de liberdade, é não só proposital como, também, necessária, haja vista que são grandes as dificuldades para a correta delimitação do horizonte do saber jurídico-penal[2], impondo-se – caso se queira realmente discutir a sério os limites do direito de punir – distinguir a pena privativa de liberdade, apesar das teorias não se referirem exclusivamente a ela, das outras formas de punição.

A razão de tal posição não é só de ordem metodológica, na qual a parcialização é pressuposto para o conhecimento, já que todo saber é particular, porque constitui um conjunto de conhecimentos parciais, não se coadunando a Ciência com totalidades ou generalidades, mas, principalmente, pelo fim almejado pelo presente trabalho, que tem por objeto privilegiado a democracia, ente este sempre atingido pela supressão da liberdade humana, forma estatal extrema de controle social. 

Portanto, partindo-se da concepção que afirma serem as relações entre a Constituição, a manutenção do poder político e a violência do poder punitivo exacerbadamente estreitas, e que a privação da liberdade humana (onde não se adota a pena de morte) é a expressão máxima de tal violência, privilegiaremos tal espécie de sanção por entendermos que, se analisarmos as teorias que embasam a aplicação das penas sob o foco da pena privativa de liberdade, efluirá com mais clareza o uso eminentemente político das sanções penais como um todo[3].

Desse modo, buscar-se-á, antes de mais nada, investigar qual o espaço que ainda pode ser viabilizado para o uso da privação da liberdade humana, dentro de uma concepção onde a democracia seja o ente que constitui a base fundamental no qual se legitima o Estado.   

2.  BREVE ABORDAGEM HISTÓRICO-DOUTRINÁRIA SOBRE A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

É certo que somente a partir da Idade Moderna, especialmente com os ideais pugnados pela ilustração – que francamente combatiam o Direito Penal do terror, pautado nas penas corporais e de morte, a serviço do poder absoluto –, é que surgem as primeiras preocupações com a diferenciação dos possíveis fins das penas e, numa abordagem lógica, das antinomias inerentes aos mesmos[4].

 Nesse momento histórico, portanto, houve um novo direcionamento no estudo das punições, o “que significa, elaborar com mais precisão as diferentes conseqüências que se produzirão na teoria e na prática […] com a  discussão mais precisa acerca das classes individuais de pena, que foram combatidas por inadmissíveis, cruéis, danosa ou inclusive inúteis”. (STRATENWERTH, 1996, p. 9, tradução nossa).

 No contexto acima traçado vem a lume a pena privativa de liberdade, acompanhando a ideologia burguesa de trabalho, fundamentada no princípio do less eligibility, segundo o qual as condições de vida no cárcere deveriam ser sempre menos favoráveis que as condições de vida das categorias mais baixas dos trabalhadores livres o que, já na origem, demonstra que “nenhuma das teorias da punição, nem a absolutista nem a teleológica, estão aptas a explicar a introdução de certos métodos de punição no interior da totalidade do processo social”[5]. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1999, p.16)

Não obstante tal assertiva, no âmbito da doutrina sobre as conseqüências jurídicas do crime, intensifica-se o debate em torno das mais variadas explicações sobre os fundamentos e os fins atribuídos à pena privativa de liberdade[6].

 Para tanto foram formuladas as teorias absolutas, que concebem a pena como um fim em si mesmo e prescindem de qualquer outro fim que ela possa objetivar[7]; as teorias relativas, que entendem que o sentido da pena e do Direito Penal se encontra exatamente nos fins que com este direito e com estas sanções podem ser buscados, e as teorias mistas, que englobam tanto os fins retributivos como também os preventivos, justapondo-os em construções ecléticas, não se constituindo em algo novo, senão, tão somente, em novas combinações e formulações das tradicionais teorias.

Importante ressaltar que grande parte dos penalogistas[8] distingue os fins almejados pela pena, inerentes às teorias utilitárias, dos fundamentos da mesma, encontrados somente nas teorias retributivas, conforme salienta Rodrigues (1995, p. 156), quando afirma que

Se quisermos continuar a usar a bipartição usual, devemos então fazê-lo – hoje, repete-se – com a consciência de que estamos a dar respostas a perguntas diferentes. Em suma: de que ela constitui uma arrumação não para um, mas para dois problemas distintos. Se com as teorias preventivas se encontra (também) solução para as questões da finalidade da pena, já com a teoria retributiva estamos a lidar com o problema da justificação da pena.

No âmbito político hodierno, está na pauta do dia a discussão sobre as funções manifestas e latentes (reais) do poder punitivo estatal[9], no qual aquilo que parece estar se concretizando é um absoluto predomínio da utilização – com fins políticos – da pena privativa de liberdade em suas funções não declaradas, portanto latentes, sobre aquelas funções cujos fins estão pretensamente legitimados pela doutrina penal e que estão inseridos no conceito do jus puniendi, as funções manifestas ou reais. (ZAFFARONI, 2003, P. 87-90)

Neste mesmo diapasão, Mir Puig (1994, p. 15-17) faz uma aproximação axiológica entre os fins da pena e os fins do Estado que, para ele, deve ser Social e Democrático de Direito o que, em última instância, fará com que os fins da pena estejam intimamente ligados aos fins pugnados pelo Estado.

Assim sendo[10], afasta-se a absolutização das penas fundadas em uma concepção metafísica de justiça desvinculada dos fins políticos garantidos pela Constituição do Estado Social e Democrático de Direito, garantindo-se desse modo – para o referido autor –, uma correta e fundamentada aplicação das sanções punitivas.

Outro ponto nodal da discussão contemporânea sobre o poder punitivo, diz respeito ao caráter eminentemente simbólico do Direito Penal, que corresponderia à completa impossibilidade de se dar efetividade as previsões legislativas, por absoluta carência material dos meios necessários, acarretando o descrédito do Sistema Penal.

 Alguns autores, em completa oposição a tal crítica, analisam esse distúrbio sistemático como uma conseqüência prevista e de menor importância, já que a função simbólica tem a importante missão de criar e reforçar representações ideológicas que, em última instância, servem de instrumento de controle social, fim último e real do Sistema Penal. (TERRADILOS BASOCO, 1991, p. 10-11)

Por outro lado, muitos são os ataques intentados contra essa forma de punição, existindo quem advirta ser a própria aplicação da pena um jogo de azar. (RODRIGUES, 1995, p. 12)

Em um âmbito mais ortodoxo, entende-se que as funções atribuídas pelas teorias positivas da pena foram enunciadas em quantidade e disparidades tais que as fizeram sempre parecer múltiplas, contraditórias e incompatíveis (ZAFFARONI, 2003, p.97), assim como os que afirmam a total falência da pena de prisão e, por via de conseqüência, a falência do Direito Penal como um todo, pugnando assim pela sua total abolição[11]. (HULSMAN; CELIS, 1997, p. 86; 119)

Foucault (2003, p. 4), já em 1971 comentando as condições em que se dava o cumprimento de pena de prisão nos cárceres franceses, advertia “que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito”.

Ferrajoli (2002b, p. 32), por sua vez, entende que o Direito Penal deve ser mínimo e que a aplicação de penas deve se constituir em uma técnica de minimização da violência na sociedade, a saber: da minimização da violência dos delitos, mas também da minimização da reação aos delitos e afirma[12]: 

É claro que tal paradigma se contrapõe não somente às tradicionais doutrinas retributivistas da pena – à la Kant ou à la Hegel – que resultam de uma concessão supersticiosa e punitiva da relação entre delito e pena, e também das tradicionais doutrinas que utilizam a prevenção ou defesa social, sejam estas de prevenção geral ou especial, que assumem, todas, como ponto de vista e parâmetro a utilidade para a maioria “não desviada”[13].

Roxin (1998, p.15-16), por sua vez, adverte para a inclinação da doutrina em permanecer adstrita às formulações feitas no passado, para explicar a legitimação e os limites do poder estatal de punir, transmitindo o saber por mera repetição, como se tais teorias constituíssem respostas acabadas.

Na verdade – para o autor em comento –, a legitimação da pena se trata de difícil trabalho, posto que incide sobre a problemática da sociedade e do Estado de direito adaptada às particularidades de hoje, sendo imprescindível então – para que se chegue a respostas que se coadunem com a complexidade e transformações contínuas que sofrem o complexo social –, uma atualização crítica das várias vertentes teóricas que fundamentam e legitimam o jus puniendi.  

Baratta (1985, p. 8, tradução nossa) reconhece em relação às teorias das penas, as gravíssimas aporias teóricas e contradições práticas nas quais a ciência penal tradicional e a política criminal, já há vários anos, parecem estar imbricadas, dando a impressão de que giram sobre si mesmas em uma “extenuante tarefa detalhista dedicada a revisar a teoria e em uma indecisa marcha sobre seus próprios passos, orientados a comprovar a política e a ideologia”.

Logo, fica claro, que a discussão sobre os fins que o Direito Penal persegue é tudo menos simples, razão pela qual no atual contexto sócio-político-cultural brasileiro, imperioso que nos questionemos: O que é pena? Por que se pune? Quais os fins da pena privativa de liberdade? Quais os efeitos por ela produzidos? É a prisão um meio apropriado para combater e sancionar as formas de conduta desviadas? Enfim, qual o seu custo-benefício? Pune-se para prevenir que futuros delitos venham a ser cometidos (prevenção geral) ou para evitar que sejam novamente cometidos por quem já os praticou (prevenção especial), ou simplesmente para retribuir, com sofrimento, o mal causado pelo delinqüente? Ou seja, a pena é fim em si mesma ou corresponde a uma finalidade?

Eis as questões vitais que devem direcionar um debate acerca da atual busca de legitimidade pela qual passa a pena de prisão[14]; impõe-se, pois, uma análise impostergável de suas perspectivas, objetivando, sobretudo, distinguir as múltiplas formas que cada uma das teorias utiliza para justificar o direito de punir, com a finalidade precípua de saber se qualquer uma delas – absolutas ou relativas – é idônea para fornecer uma teoria da pena da qual se possa derivar conseqüências jurídicas concretas.  

3.   PERSPECTIVAS PARA A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: POR UMA DRÁSTICA REDUÇÃO

O ponto de partida para configuração de um novo pensamento na esfera das punições não pode afastar-se da análise relativa à violência estrutural, entendida esta como repressão das necessidades reais das pessoas.

Tal violência não seria tão grave e espúria, não fosse o fato de que a repressão das necessidades de muitos satisfará a opulência de poucos[15].

Segundo Baratta (1993, p. 47), “A violência estrutural é uma das formas de violência; é a forma geral de violência em cujo contexto costumam originar-se, direta ou indiretamente, todas as outras formas de violência”.

 Neste contexto, de ampla violência estrutural, originada pelo egoísmo de consumo, as minorias privilegiadas escamoteiam a origem da mesma e apontam em direção à criminalidade como causa principal de todas as querelas sociais.

Assim, o grande problema social e político a ser enfrentado é a violência, reconhecem os detentores do poder, entretanto, como sinônimo de criminalidade. Não a criminalidade dos poderosos, de colarinho branco ou dourado, causa de erosão social, e sim a criminalidade visível, tosca, de sangue, estampada na mídia diariamente como fator garantidor de audiência.

Neste ponto, dá-se a convergência de ambas as formas de violência, a estrutural, gerada pela prática dos crimes imanentes aos poderosos, cujo fim precípuo é a manutenção do supérfluo e, por via de conseqüência, do status quo, e a violência criminal, decorrente, no mais das vezes da violência estrutural.

Tal convergência atinge seu paroxismo quando, em razão do pretenso combate à criminalidade comum, os privilegiados, reprimem com violência física, leia-se sistema penal, as reivindicações daqueles que são vítimas da violência estrutural.

Em suma, o Direito Penal é o mais eficaz e efetivo meio de controle social, não de resolução de conflitos sociais[16]; esta concepção, salvo melhor juízo, não pode se harmonizar com qualquer postura que tenha por base ideais democráticos.

Já há algum tempo a doutrina antecipava o problema, chegando Vervaele (1992, p. 69) a questionar: “A pena como resposta à criminalidade, ou a pena como resultado de processos sociais de criminalização? Estas duas visões do penal e da pena dominam, hoje, o debate, no momento em que a crise do Estado-Providência coloca em questão a relação entre poder político e societá civile”.

Do exposto dessume-se que o Direito Penal atua sobre as conseqüências e não sobre as causas da violência, sobre comportamentos que levam aos conflitos e não em razão da origem de tais comportamentos. Intervém sobre pessoas e não sobre situações, sempre reativamente, nunca preventivamente, ou seja, depois que as conseqüências do delito já se produziram e não podem mais ser eliminadas, quando muito, reparadas. (BARATTA, 1993, p. 50-51)

Logo, que função poderá cumprir a pena dentro das relações sociais sucintamente traçadas nas linhas acima? Karam (1994, p. 116) é categórica ao afirmar que “A pena só se explica – e só pode se explicar – em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder”, contribuindo desta forma, para manutenção das relações desiguais de propriedade e acesso aos bens, que na maioria das vezes se constituem em necessidades fundamentais[17].

Pela pertinência em relação ao assunto, transcrevemos na íntegra o posicionamento de Baratta (1993, p. 54): 

Em geral, a imagem da criminalidade promovida pela prisão e a percepção dela como uma ameaça à sociedade, devido à atitude de pessoas e não a existência de conflitos sociais, produz um desvio de atenção do público, dirigida principalmente ao ‘perigo da criminalidade’ ou às chamadas ‘classes perigosas’, ao invés de dirigir-se à violência estrutural. Neste sentido, a violência criminal adquire na atenção do público a dimensão que deveria corresponder à violência estrutural, e em parte contribui a ocultá-la e mantê-la.

 Já na sua gênese, a pena privativa de liberdade se mostrou como instrumento a serviço dos interesses das classes privilegiadas, funcionando o cárcere como instituição de domesticação e disciplina dos grupos marginalizados da sociedade[18].

Tomando-se em conta, tendo em vista a argumentação exposta, que o Direito Penal não cumpre a importante função de limitação do poder punitivo, razão de ser de sua moderna existência, e que as penas, na verdade, objetivam cumprir funções não declaradas, posto que nem internamente, dentro do sistema dogmático de análise, conseguem chegar a uma fundamentação e legitimação plausível e factível, resta-nos buscar alternativas.

Qualquer alternativa preocupada com a diminuição das desigualdades e, portanto, comprometida com a democracia, parte necessariamente da redução inexorável do poder punitivo e, por via direta, da drástica diminuição da pena privativa de liberdade.

Talvez a solução não seja tão nova, o moderno Direito Penal se baseava no discurso Iluminista de contenção do poder punitivo que chegou ao extremo no absolutismo despótico. O que há de novo, talvez, é a constatação do absoluto descontrole em face do direito de punir, que já se faz identificar sob os nomes de sistema penal paralelo e sistema penal subterrâneo[19].

Tal fenômeno se dá em razão da ínfima capacidade operacional das agências do sistema penal (Polícia, Ministério Público, Judiciário, Agências de execução da pena) no âmbito da legalidade. Em suma, o déficit operacional é compensado pelo amplo desrespeito ao que estatuído legalmente. Não mais se investiga, tortura-se; não mais se fiscaliza; silencia-se; a tão necessária verdade real objetivada pela persecução penal transforma-se em verdade política, alimentada por interesses particulares. Há uma conivência disfarçada entre as autoridades constituídas que absurdamente administra o desrespeito às leis.

Ademais, há uma troca na ordem das agências do sistema penal, haja vista que em relação à importância decisional, é dizer, à hierarquia do órgão que define o alcance do poder punitivo e que deveria seguir a ordem lógica de Poder Legislativo, Ministério Público e Magistratura, e por fim Polícia, não é isso que se observa na realidade; houve uma inversão total de papéis.

“[…] Isto demonstra ser a realidade do poder punitivo exatamente inversa à sustentada no discurso jurídico […] Na prática, a polícia exerce o poder seletivo e o juiz pode reduzi-lo, ao passo que o legislador abre um espaço para a seleção que nunca sabe contra quem será individualizadamente exercida”. (ZAFFARONI, 2003, p. 51)

Na realidade quem decide sobre a criminalização é a polícia, através de seus filtros e formas de punição paralela[20], sobrando para as agências judiciais os poucos casos a elas remetidos pelos órgãos policiais, sendo desnecessário tecer maiores comentários acerca do poder do legislador, que, obviamente, não tem qualquer influência no âmbito da seletividade e da cifra negra.

E neste ponto se configura um terreno fértil para o arbítrio, já que o efetivo poder de controle social, não passa pela criminalização secundária, onde pelo menos haveriam de ser respeitadas as garantias do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa, ficando, isto sim, no âmbito das agências repressoras – Polícia Militar, Civil e demais funcionários públicos com poder de polícia – a maior parte do controle da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências políticas ou judiciais.

 É o controle fora de controle, no qual as agências executivas exercem poder punitivo à margem de qualquer legalidade.

Não obstante os graves problemas apresentados em relação ao poder punitivo do Estado, resta outro mais grave que é o da própria legitimação interna da pena, do discurso jurídico que tenta legitimar e racionalizar a aplicação da sanção penal, cujas proposições principais poderiam ser assim resumidas: o Direito Penal é um direito exercido segundo as leis (princípio da legalidade), que atinge todas as pessoas de forma igual (princípio da igualdade) e é exercido pelos operadores das agências do sistema penal de forma imparcial, com o objetivo de conter a criminalidade, seja através da retribuição para reafirmação do ordenamento jurídico, seja através da intimidação, da neutralização ou reeducação do criminoso.

Como todas as premissas fundantes são explicitamente falsas, o Direito Penal acaba legitimando todo o poder punitivo, diminuindo paulatinamente o poder das agências judiciais e expandindo o das agências executivas, com a grave conseqüência de estimular a ilegalidade.

Todo o discurso penal hoje pode ser condensado em um discurso bélico, ou seja, na guerra contra o crime. É bom que se lembre, na guerra não há leis, ou melhor, há a lei da guerra, segundo a qual tudo é permitido para vencer o inimigo[21]. 

Destarte, mister que se erija um novo pensamento, fundado no reconhecimento dos efeitos degradantes da prisão, da seletividade do sistema penal como realidade incontestável, do fenômeno da prisionização, da existência da cifra negra da criminalidade oculta, do poder descontrolado das agências executivas do sistema penal, do pequeno poder que detém as agências judiciais frente aos sistemas penais paralelos e subterrâneos[22].

Enfim, uma nova teoria da pena passa necessariamente pela desconstrução do que está posto[23], pela oposição a todo um discurso que impõe o consenso como forma de manutenção do poder, já que 

 Pretender conservar um poder exercido mediante um discurso falso, quando se sabe que este legitima – e sustenta – um poder diverso exercido por outros, que custa vidas humanas, que degrada um grande número de pessoas (tanto aquelas que o sofrem quanto as que o exercem) e que se trata de uma constante ameaça aos âmbitos sociais de auto-realização, é, a todas as luzes, eticamente reprovável. (ZAFFARONI, 2003, p. 75)

  Uma das mais atualizadas teorias críticas sobre as funções da Pena[24] denomina-se “Teoria negativa ou agnóstica da pena”, que se resume em não acreditar que a pena possa cumprir – na grande maioria dos casos – nenhuma das funções manifestas a ela atribuídas.

Em razão de negar os possíveis efeitos positivos da pena[25], a teoria agnóstica se volta para a contenção do poder punitivo, da violência a ele imanente, dirigindo todos os seus esforços para as agências judiciais, como possíveis instâncias de contenção da criminalização desenfreada e de seus efeitos nefastos[26].

Bustos Ramirez (1992, p. 109-112) parte da necessária participação de todos os indivíduos que compõem o corpo social na definição e fruição dos bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal, o que acarretaria a inclusão do indivíduo nas relações sociais, pressuposto do Estado Democrático.

Dentro do jogo democrático – para o referido autor – os homens podem aumentar sua capacidade de liberação, de participação, de resolução, enfim, de seus conflitos sociais, devendo a pena oferecer alternativas em que todos devem deter a capacidade de participar.

Um direito penal de alternativas tem de reconhecer a capacidade das partes para solucionar seus conflitos e neste sentido deve propender a possibilitar um encontro entre autor e vítima, de modo que se produza uma reconciliação entre eles. […] Deste modo, a reparação não somente é algo que surge do fato delituoso, mas é um elemento substancial da questão criminal, que conduzindo à reconciliação pode paralisar a intervenção do Estado. (BUSTOS RAMIREZ, 1992, p. 112):

Baratta[27] (1991b, p. 253-255, tradução nossa) reconhecendo que a pena, quando muito, está apenas cumprindo o degenerador papel de neutralização, já que empiricamente comprovada a impossibilidade ressocializadora do cárcere, não desanima, advertindo que a “finalidade de uma reintegração do condenado na sociedade não deve ser abandonada, senão que deve ser reinterpretada e reconstruída sobre uma base diferente”.

Para tanto, adverte que a reintegração social daquele que delinqüiu não deve ser perseguida através da pena e sim apesar dela, vez que para efeitos de ressocialização o melhor cárcere é o que não existe e arremata: 

Qualquer passo que possa dar-se para fazer-se menos dolorosas e menos danosas as condições de vida no cárcere, ainda que seja só para um condenado, deve ser olhado com respeito quando esteja realmente inspirado no interesse pelos direitos e pelo destino das pessoas detidas, e provenha de uma vontade de mudança radical e humanista e não de um reformismo tecnocrático cuja finalidade e funções sejam as de legitimar através de qualquer melhoramento a instituição carcerária em seu conjunto. (BARATTA, 1991b, p. 254, tradução nossa)

 Carvalho (2001, p.287) , atento ao problema, adverte: 

A jurisdicionalização resgata a dignidade do apenado, conferindo-lhe acesso à justiça e à legalidade. Percebido, desde a reforma de 1984, como sujeito de direitos públicos subjetivos, o condenado resgata sua condição de sujeito em relação processual. É que exsurge inadmissível que a legalidade ampla e estrita instrumentalize garantias ao indivíduo no processo cognitivo, e não sirva de mecanismo tutelar no momento mais importante da intervenção estatal na liberdade individual: a execução penal.  

Elbert (1998, p. 117-118) propugna por um total redimensionamento do sistema penal, em que a diminuição deste aliado à diminuição do encarceramento são medidas imperativas e urgentes, apontando concretamente para obtenção de tal desiderato “a descriminalização, a execução penal aberta, a prisão de fim de semana, os sistemas de semi-liberdade, os tratamentos terapêuticos em institutos especializados, as penas pecuniárias e as medidas de controle comunitário”.

Vê-se, pois, que alternativas à sanha irrefreável de punir com prisão por parte do Estado – postura amplamente apoiada pela mídia e, via de conseqüência, pela opinião pública – existem, basta que sejam adotadas de maneira séria, quando da formulação das políticas criminais.

4.  CONCLUSÃO

                          Qualquer que seja a denominação utilizada, qualquer que seja a teoria, o importante são as bases de convergência de um novo pensamento sobre as penas em geral e, principalmente, sobre a pena privativa de liberdade em particular.

                          Opor-se, veementemente, à transformação do Estado de direito, de cunho social, em Estado de polícia, de cunho penal, é um compromisso daqueles que percebem a utilização do Direito Penal, em última instância, como um grande panótico, em que as garantias imanentes à pessoa humana são sacrificadas no altar de uma pretensa segurança.

Por todas as razões expostas no presente artigo, temos que não há mais como se discutir seriamente qualquer das funções manifestas atribuídas à pena de prisão, sendo sua limitação uma exigência impostergável de um Estado que possa ser denominado de democrático.

Historicamente está comprovado que o cárcere somente serve de instrumento de dominação, apoiado por interesses econômicos, de quem está a deter o poder e nele quer se manter, oprimindo àqueles a quem, no mais das vezes, são negados os direitos básicos imanentes e indispensáveis a um regime que queira se denominar de democrático.

A pena privativa de liberdade ainda se faz necessária, mas tal qual um instrumento a ser utilizado como último recurso de uma política criminal séria e comprometida com o Estado Social e Democrático de Direito.

A equação hodierna é bastante fácil: a violência estrutural atinge diretamente os direitos humanos, ferindo de morte a democracia. Ao invés de resolver os problemas estruturais e resgatar os direitos humanos estimulando a cidadania, a resposta do poder é penalmente repressiva, o que acaba por inviabilizar de vez os ideais democráticos. Logo, um novo cálculo deve ser feito, que tenha por resultado um sistema penal mais justo, que respeite os direitos humanos e, acima de tudo, seja igualitário e mínimo – drástica redução do uso da pena privativa de liberdade. Esta – temos a firme convicção – é a via para a superação da violência estrutural e, conseqüentemente, de resgate da democracia[28].

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NOTAS

[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Sócio fundador do IPAN – Instituto Pan-americano de Política Criminal, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br

[2] Segundo Stratenwerth (1996, p. 37-38, tradução nossa) “ameaçar com a pena pública e impô-la é – como uma forma precária de interação social – um processo altamente complexo, com muitas facetas, com conseqüências desejadas e indesejadas, diretas e indiretas, previsíveis e desconhecidas, que não podem ser reduzidas a uma simples relação de causa e efeito. A teoria da pena tem que configurar o marco dentro do qual cheguem a seu propósito todos estes aspectos, com a liberdade de complementá-los e revisá-los segundo o estado dos nossos conhecimentos empíricos e critérios teóricos, exigindo, antes de mais nada, o controle das decisões normativas em que subjazem o reconhecimento e a classificação dos possíveis fins da pena. Em outras palavras, o discurso sobre o sentido e o fim da pena não é algo que esteja concluído, como se houvéssemos encontrado de uma vez por todas a resposta ‘correta’, senão uma daquelas tarefas para qual nunca haverá uma solução definitiva”.

[3] Ferrajoli (2002b, p. 35) pontua: “Creio que já é hora de pôr em questão a centralidade do cárcere como pena primária do nosso sistema penal”. Zabala (1992, p. 156) adverte: “Justamente porque a prisão permaneceu como a única modalidade da pena é que se pretende justificar a pena justificando a prisão”. Andrade (1997, p. 175) ratifica: “O poder legislativo é, de qualquer modo, a fonte básica da programação do sistema, enquanto as principais agências de sua operacionalização são a Polícia, a Justiça e o sistema de execução de penas e medidas de segurança, no qual a prisão ocupa o lugar central”.

[4] Uma abordagem eminentemente filosófica da pena pode ser encontrada em Garapon; Gros; Pech (2001).

[5] Rusche e Kirchheimer (1999, p. 18) são categóricos em afirmar que “Para efeito de adotar uma abordagem mais frutífera para a sociologia dos sistemas penais, é necessário despir a instituição social da punição de seu viés ideológico e de seu escopo jurídico e, por fim,  trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações. […] A punição não é nem uma simples conseqüência do crime, nem o reverso do crime, nem tampouco um mero meio determinado pelo fim a ser atingido. A punição precisa ser entendida como um fenômeno independente seja de sua concepção jurídica, seja de seus fins sociais. […] Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições, e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e conseqüentemente fiscais”. Sobre o tema, Mellosi e Pavarini (1987, p.33, tradução nossa) informam que “Uma série de leis publicadas entre o século XIV e o XVI estabeleciam uma taxa máxima de salário acima da qual estava proibido contratar (e penalmente sancionado); não havia nenhuma possibilidade de contratação coletiva de trabalho; e até se chegou a determinar a obrigação do trabalhador de aceitar o oferecimento da primeira oferta de emprego. É dizer, o trabalhador estava obrigado a aceitar qualquer trabalho, e com as condições que estabelecia o empregador. O trabalho forçado nas casas de correção ou workhouses estava pois dirigido a dobrar a resistência da força de trabalho, ao fazer aceitar as condições que permitiam em grau máximo a extração do mais valia”.

[6] Sobre a historiografia da pena privativa de liberdade imprescindível a leitura de Foucault (1993, p. 11-124; 2002, p. 129-143). Para aprofundamento no tema García Valdés (1997), Burillo Albacete (1999).

[7] Parece haver uma contradição na essência mesmo da teoria retributiva, haja vista que uma das vertentes desta teoria entende que o delinqüente deve ser punido para que a vítima reencontre a paz, o que não deixa de ser uma finalidade que se encontra fora do âmbito do ‘fim em si mesmo’ da teoria retributiva.

[8] Ferrajoli (2002a, p. 208-209) entende que “a legitimação externa da pena seja separada da sua legitimação interna, isto é, seja assegurada a separação entre direito e moral que impede a autolegitimação do primeiro prescindindo dos seus conteúdos; Seja possível responder, além da pergunta ‘por que punir?’ à pergunta que lhe é prejudicial ‘por que proibir?’, a qual, evidentemente, desloca tanto a pena como as proibições em si consideradas para finalidades externas”.

[9] Sobre tal tema Zaffaroni (2003, p. 88) é enfático ao afirmar que “O poder estatal concede às suas instituições funções manifestas que são expressas, declaradas e públicas. Trata-se de uma necessidade republicana; um poder orientador que não expresse para que é exercido não pode submeter-se ao juízo de racionalidade. Porém, em  geral, essa função manifesta não coincide por completo com o que a instituição realiza na sociedade, ou seja, com suas funções latentes ou reais”. Na apresentação da obra de Melossi; Pavarini (1987, p. 7, tradução nossa), Modona afirma que “o cárcere, e as demais instituições de confinamento, são lugares fechados, e portanto estão isolados e separados da sociedade livre, mas essa separação resulta mais aparente do que real, já que o cárcere não faz mais do que manifestar ou levar ao paroxismo modelos sociais ou econômicos de organização que se intentam impor ou que já existem na sociedade”.

[10] É imperioso frisar, por se achar intimamente ligada aos objetivos do presente artigo, que a posição de Mir Puig (1994, p. 22) é fundamentada em um conceito real de democracia, já que o mesmo adota como referencial o artigo 9º da Constituição da Espanha, verbis: “Corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos em que se integran sean reales y efectivas, remover los obstáculos que impidam o dificulten su plenitud, y facilitar la participación de todos los ciudadanos em la vida política, econômica, cultural y social”. Sobre o tema cfr. Rodrigues (1995, p. 241-245).

[11] Importante citar na íntegra as palavras de Hulsman; Celis (1997, p. 86-87), haja vista que tal tema sempre desperta grandes controvérsias: “Falei algumas vezes em abolir a pena. Quero me referir à pena tal qual é concebida e aplicada pelo sistema penal, ou seja, por uma organização estatal investida do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas as pessoas interessadas. Questionar o direito de punir dado ao Estado não significa necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir totalmente a noção de responsabilidade pessoal. É preciso pesquisar em que condições determinados constrangimentos – como a internação, a residência obrigatória, a obrigação de reparar e restituir, etc… – têm alguma possibilidade de desempenhar um papel de reativação pacífica do tecido social, fora do que constituem uma intolerável violência na vida das pessoas”.

[12] Um amplo estudo da aplicação da pena baseado no garantismo de Ferrajoli foi realizado por Carvalho e Carvalho (2001).

[13] Em profundidade, Ferrajoli (2002a).

[14] Stratenwerth (1996, p. 14, tradução nossa) chama a atenção para a existência de “uma difundida sensação de que as respostas tradicionais já não bastam, que os possíveis fins da pena têm que estar determinados de modo distinto ou com mais precisão que até agora, ainda quando a discussão, de um modo geral, siga sendo sempre conduzida com as categorias conceituais tradicionais de teorias absolutas e relativas, de retribuição, prevenção geral e prevenção especial”. 

[15] Há muito tempo Foucault (2002, p. 132) chamava a atenção para o fato de que “A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinqüentes servem para alguma coisa”.

[16] Sobre o tema cfr. excelente artigo de Dornelles (1998, p.103-120), em que a tônica se dá em torno da afirmação de que “No Brasil, a polícia, como a prisão, tem o papel de intimidação absoluta, através do terror, daqueles segmentos sociais que ameaçam os privilégios das elites”. Neste ponto continuam válidas as observações feitas por Rusche e Kirchheimer (1999, p. 18; 32) de que “[…] todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às suas relações de produção. […] Quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais duros eram os castigos, para fim de dissuadi-las do crime”. Especificamente sobre a macrocriminalidade financeira cfr. Cervini (1999, p. 111-120).

[17] Sanguiné (1992, p. 124) chama a atenção para o fato de que “A lei simbólica, portanto, é expressiva, representa um gesto feito para exaltar os valores de um grupo social e desacreditar os valores de um outro grupo, uma vez que sempre os símbolos têm a função de fazer reconhecer os amigos dos inimigos”.

[18]  Detalhadamente, Rusche e Kirchheimer (1999), Melossi e Pavarini (1987) e Foucault (1993). Atualmente, Rivera Beiras (1996, p. 106, tradução nossa) entende que “O cárcere (e as normas que o sustentam), não poderá ser compreendido em sua verdadeira dimensão, se não se admite que o mesmo não é mais, nem menos, que a representação de uma das diversas estratégias de controle social/penal de um determinado Estado”.

[19] Segundo Zaffaroni (2003, p. 52-53; 69-70), o sistema penal subterrâneo é exercido pelas agências executivas de controle – portanto, pertencentes ao Estado – à margem da lei e de maneira violente e arbitrária, contando com a participação ativa ou passiva, em maior ou menor grau, dos demais operadores que compõem o sistema penal. O sistema penal paralelo, por sua vez, é exercido por agências que não fazem parte do discurso manifesto do sistema penal,  mas que, como aquelas, exercem poder punitivo. O sistema penal subterrâneo, institucionaliza a pena de morte, desaparecimentos, torturas, seqüestros, exploração do jogo, da prostituição, entre outros delitos.  Os sistemas penais paralelos punem com a mesma impetuosidade: banimento de atletas pelas federações esportivas em caso de doping, sanções administrativas que inviabilizam empreendimentos comerciais, multas de trânsito de elevado valor, entre outras.

[20] Sobre o funcionamento do sistema penal subterrâneo, amplo estudo sobre o modo de atuar na solução de conflitos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo foi realizado por Barcellos (2002).

[21] Esse discurso é imanente à própria civilização industrial que nutre uma cultura bélica e violenta. No âmbito do exercício do poder punitivo, a mídia e grande parte dos operadores jurídicos o projetam como guerra ao crime e aos criminosos. Como, segundo o discurso dominante, a guerra do crime é uma guerra suja, onde o inimigo – os criminosos vulneráveis – não jogam limpo, o Estado estaria autorizado a utilizar as mesmas armas, jogar sujo também, o que em termos jurídicos significa desrespeitar a própria lei por Ele criada. Para aprofundamento no tema, Zaffaroni (2003, p. 57-59), Karam (1996, p. 79-92).

[22] Sobre alternativas à prisão no Brasil, cfr. Batista (1990, p. 123-129). Sobre o futuro das prisões, cfr. Morris (2001).

[23] Elbert (1998, p. 115) assim define a atual situação do sistema penal: “Voltando a lógica do sistema vigente, apesar do melhor otimismo, temos que nos confrontar com inúmeros dados que anunciam seu colapso: a frondosa legislação permanece inaplicada em mais de dois terços, não diminui a tendência ao aumento da criminalização e das penas, perduram a desigualdade operativa e a sua função criminalizadora, as vítimas continuam relegadas, bem como as garantias do cidadão, persiste a deformação dos grupos policiais e a sua operatividade para-policial, enquanto cresce a impunidade dos que estão próximos a algum tipo de poder”.

[24] Detalhadamente, Zaffaroni (2003, p. 60-78).

[25] “Sempre que as agências jurídicas decidirem limitando ou contendo as manifestações de poder próprias do estado de polícia, e para isto fizerem excelente uso de seu próprio poder, estarão legitimadas, como função necessária à sobrevivência do estado de direito e como condição para sua afirmação refreadora do estado de polícia que em seu próprio seio o estado de direito invariavelmente encerra”. (ZAFFARONI, 2003, p. 108)

[26] Dentro da linha de raciocínio proposta pela teoria agnóstica da pena, parte da doutrina aponta uma terceira via, que se consubstancia na reparação completa do dano como forma do autor eximir-se da pena. (RIGHI, 1991, p. 70-75)

[27] No referido artigo, Baratta elabora detalhadamente um programa com dez pontos, onde apresenta alternativas ao tratamento ressocializador.

[28] Um atualizado estudo sobre a expansão da pena de prisão pode ser visto em Mathiesen (2003).


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Claudio Alberto Gabriel Guimarães:  Promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP, Sócio fundador do IPAN – Instituto Pan-americano de Política Criminal, Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Docência Superior Pelo UNICEUMA, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. calguimaraes@yahoo.com.br

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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