O recebimento da denúncia e a Lei nº 11.719/08

* Ravênia Márcia de Oliveira Leite

A Lei n.º 11.719, de 20 de junho de 2008, alterou importantes dispositivos do Código Penal Brasileiro, especialmente, no que tange ao momento processual delimitador do ato de recebimento da denúncia, o qual, diga-se, oportunamente, produz importantes consequências processuais e jurídicas.

A nova redação do art. 396 do Código de Processo Penal, reza o seguinte:

    Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Com isso, conclui-se que o procedimento trazido pela Lei nº 11.719/08 segue as seguintes etapas:

– Oferecimento da denúncia;

– Recebimento da denúncia já no despacho inicial, designação de audiência de instrução e julgamento e determinação de citação do réu para apresentação de defesa e comparecimento ao ato designado;

– Eventual análise, antes da realização da audiência, e em caráter prejudicial, de pedido de absolvição sumária veiculado pela defesa, onde o juiz, em reexame de admissibilidade, poderá rejeitar a denúncia, e

– Audiência de instrução e julgamento.

Segundo Cézar Roberto Bitencourt “a questão fulcral, parece-nos, preliminarmente, reside no juízo de admissibilidade da ação penal, ou seja, haverá um ou dois recebimentos da denúncia ou queixa, ou, mais precisamente, valerá a primeira ou a segunda previsão legal? A complexidade que o novo texto legal apresenta a um tema até então de fácil compreensão, recomenda uma reflexão mais alentada, na tentativa de contextualizá-lo adequadamente. No anterior modelo, o juízo de admissibilidade, a que sempre denominamos recebimento da denúncia ou queixa, dava-se, em regra, imediatamente após o oferecimento da inicial acusatória. Trata-se (o recebimento) de providência relevante, porquanto constitui marco interruptivo da prescrição (art. 117, I, do Código Penal) e, ao menos no sistema anterior, presa ao princípio da indisponibilidade; assim, recebida a inicial, tinha-se que a ação penal era (ou ainda é?) como uma flecha, que desprendida do arco que a impulsiona somente no alvo (a sentença) exaure a sua força”.

Ainda conforme o festejado doutrinador “para o anterior modelo, a relação processual se completava com o recebimento (admissibilidade) da inicial, daí o fundamento para que fosse esse o marco interruptivo do prazo prescricional (e não a citação); a partir desse marco o acusado transmudava-se à condição de réu; por isso benefícios, como a suspensão condicional do processo, estavam vinculados ao recebimento da denúncia (art. 89, § 1o, da Lei 9.099/95). A Lei 11.719/08 introduziu no processo penal, portanto, alteração profunda, de natureza estrutural, emprestando instituições típicas do processo civil; a redação atual do artigo 363 atribui à citação válida no processo penal dignidade semelhante àquela estabelecida pelo artigo 219 do Código de Processo Civil”.

Segundo o Exmo. Dr. Marcelo Pimentel Bertasso, Juiz de Direito do Estado do Paraná, “destarte, conclui-se que, após o advento da Lei nº 1.719/08, o juiz, ao tomar contato com a denúncia, exercerá o juízo de recebimento ou rejeição, observando as hipóteses do art. 395 e, no primeiro caso, determinará a citação do réu para apresentar defesa e comparecer à audiência de instrução, também designada no despacho inicial. Por essa sistemática, antes da audiência, poderá o juiz, caso a defesa assim o requeira, absolver sumariamente o réu se presente alguma das hipóteses do art. 397 do Código de Processo Penal (exceto o inciso IV, que ensejará mera extinção de punibilidade). Essa interpretação, além de permitir a compatibilização de todas as normas do Código de Processo Penal, viabiliza o desenvolvimento de um processo penal célere e menos sujeito a intercorrências, promovendo a celeridade procedimental, escopo fundamental da norma. Além disso, a exegese sustentada neste artigo se revela, numa interpretação histórica, mais consentânea com os propósitos do legislador ao modificar os termos do projeto original, afigurando-se, assim, como solução mais adequada para aplicação das normas da Lei nº 11.719/08.”

Da mesma forma, Renato Vasconcelos Magalhães, Juiz de Direito no Rio Grande do Norte, defende que, “devemos, pois, realizar uma interpretação do instituto da vacatio legis, em conformidade com a Constituição Federal. Se o direito à ampla defesa é um direito fundamental do cidadão, que lhe garante um processo justo, não devemos aguardar a entrada em vigor de uma lei que assegura um mandamento constitucional simplesmente para atender a uma mera formalidade que criada para trazer benefícios, no caso concreto, acaba por gerar um ônus absurdo. Nem se diga, o fato de que as denúncias-crime que hoje chegam aos juízes aguardam nas prateleiras a entrada em vigor da nova lei para serem despachadas, ou estão sendo ordenadas utilizando-se de uma norma que, em poucas semanas, já não mais existirá, e que, além de contrária a Constituição Federal, terá de ser renovada em face da nova legislação, causando ainda mais retardo na prestação jurisdicional. Assim que entendo que a única forma de obedecer o mandamento constitucional que garante um processo justo, dentro das balizas do contraditório e da ampla-defesa, é a aplicação imediata da Lei n. 11.719/08 no que diz respeito à designação de audiência única de interrogatório e instrução”.

Ao contrário do acima citado, Cézar Roberto Bitencourt, defende que” pelo novo sistema, o juízo de (in)admissibilidade dar-se-á do seguinte modo: oferecida a denúncia ou queixa, ao juiz é reconhecida, desde logo, a faculdade de rejeição liminar (art. 396). Evidente que esse ainda não será o momento definitivo para a rejeição propriamente dita, mas apenas uma possibilidade para que o juiz faça isso liminarmente; assim, frente a uma inicial notadamente inepta, poderá o juiz “rejeitá-la” de plano. A decisão que se contrapõe à “rejeição liminar” decerto não pode ser confundida com “recebimento”, ao menos para os efeitos jurídicos que disso podem advir ao acusado, como a interrupção da prescrição, por exemplo. Pensamos que o juiz, nessa oportunidade, em não rejeitando liminarmente a inicial, proferirá despacho meramente ordinatório, determinando a citação. A admissibilidade “stricto sensu” só acontecerá mais tarde, quando o juiz poderá, examinados os argumentos de defesa, ainda rejeitar; ou absolver sumariamente o acusado; ou mesmo receber a inicial. E, como nos parece totalmente despropositado possa haver dois juízos de admissibilidade, temos que o art. 396 cuida tão somente de uma possibilidade de rejeição liminar. Ou isso ou seria necessário dizer que recebimento da denúncia não equivale a juízo de admissibilidade; e para isso seria necessário renegar conceitos doutrinários e posições jurisprudenciais consolidados desde décadas”.

Ainda continua Bitencourt, “por outro lado, estivesse já esgotada a possibilidade de rejeição, a manifestação obrigatória do acusado (art. 396-A), em que poderá alegar …tudo o que interesse à sua defesa…, tornar-se-ia, no mais das vezes, providência meramente formal, vazia de conteúdo, a exemplo do que antes já ocorria. Portanto, o novo modelo reclama interpretação sistemática dos dispositivos, não se podendo atribuir à expressão recebê-la-á um significado puramente textual; trata-se, segundo pensamos, de receber para o só efeito de mandar citar. Em não rejeitando liminarmente a denúncia ou queixa, o juiz determinará a citação, para que o acusado ofereça resposta. Cumprida essa providência defensiva o juiz deverá, diz a lei, absolver sumariamente o acusado quando verificar presente qualquer das hipóteses dos incisos do art. 397; ou, parece claro, repita-se por necessário, ainda rejeitar, caso só então reste convencido de que presente alguma daquelas hipóteses do artigo 395”.

Em contrapartida, parte da doutrina, a qual aqui se filia, defende que interposta a denúncia ou queixa, o juiz, em um primeiro momento, em seu juízo de admissibilidade preliminar, mandará citar o reú, sendo qeu, esse, em seu direito constitucional à ampla defesa, poderá reconhecer as hipóteses de absolvição sumária ou extinção da punilidade.

Certamente, nos exemplos citados, não se pode admitir que, que naquele primeiro momento, ocorreu o recebimento da denúncia.

Deve-se compreender que, como a relação processual, somente forma-se com a citação, proposta a denúncia ou queixa, somente com a resposta do réu, e o exercício do seu direito à ampla defesa, o juiz de direito poderá ou não, fazer um real juízo de admissibilidade e receber a denúncia, sendo que, nesse momento, recebida verdadeiramente a denúncia, suas consequências jurídico-processuais retroagirão ao momento da propositura da ação, posto que, consolidada a relação processual e presentes os requisitos de admissibilidade e procedibilidade da ação penal.

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Ravênia Márcia de Oliveira Leite:  Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar e em Direito Penal e Processo Penal – Universidade Gama Filho.

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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