O problema da desvalorização do ensino jurídico

* Atahualpa Fernandez  

Em tema de educação e ensino jurídico parece que vivemos diante de um paradoxo: por um lado, o preceito da Carta Magna que estabelece, em linhas gerais,  que a educação  há de ter por objeto o pleno desenvolvimento da personalidade humana no respeito aos princípios democráticos de convivência e aos direitos e liberdades fundamentais; por outro lado, a indissimulada situação de quebra e falta de credibilidade do ensino jurídico universitário, contrastável  sem mais que ver a quase patológica busca pelos epidêmicos  cursinhos preparatórios extra-universitários por parte dos bacharéis.

Em realidade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma boa educação universitária brilha, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência. Vivemos em um contexto educacional em que a obtenção do grau universitário já não se configura por ser uma conquista do talento, um prêmio pelas noites passadas em claro e pelas pesquisas realizadas, senão como um instrumento a mais para conseguir, sem demora, um emprego ou cargo qualquer. Não é necessária muita perspicácia para constatar o que vai da teoria -uma teoria que se refere nada menos que à formação  de  cidadãos responsáveis –  até a prática, medida por sua vez em termos de obtenção de um “bom trabalho” que assegure, antes de tudo, um bom salário.

Em termos comparativos, essas duas situações parecem indicar que, por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico em sua redação, o que conta é o que pode ganhar cada um. E poucos seriam os que, postos na tessitura de ter que montar uma “vida digna” (em termos estritamente materiais), o colocariam em dúvida. Mas, de ser assim, por que tanta preocupação e discussão sobre o ensino jurídico para a ética e a cidadania, e ainda mais sobre o baixo índice de aprovação em concursos públicos e nos exames de ordem por parte egressos das facultades de direito ?

Se as instituições de ensino insistissem em um modelo de educação e formação  que  tratasse de impedir um perfil de discente  proclive ao automatismo, à memorização e  ao  isolamento teórico – origem, diga-se de passo , de profissionais deficientes  e, em determinadas ocasiões, carentes de um mínimo sentido de ponderada razoabilidade acerca dos valores, princípios e normas que ao Direito importam –, seguramente não se diria que o ensino jurídico está desvalorizado senão que sobe inteiro na bolsa dos valores sociais. Uns profissionais bem formados, por miserável e egoísta que fosse seu comportamento, dariam indício de que nossas nossas instituições de ensino são excelentes. Ou não?

O maior fracasso de nossas universidades, a meu entender, parece residir no fato de que  deixaram de dar a máxima importância à prioritária tarefa que lhes cabe de  tornar efetiva a  plena formação dos estudantes universitários, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo. Mas não somente isso. Ao contemplar alguns professores que se comportam como ilustrados en miniatura, que em sua maioria reivindicam sabedoria, mas que, na mesma medida,  depreciam  -ou talvez invejem- o esforço e a excelência, e  até mesmo ao ver como se comportam alguns deles, pode estranhar-nos? Talvez por aí haveria que começar a educação: por examinar aos que examinam – aos que não passam de “gestores da ignorância” e/ou aos que se mantêm indiferentes ao tsunami anual de bacharéis que não aprenderam o suficiente para situar-se (adequadamente) na vida profissional.

Me explico: diante do panorama atual, estou convencido de que o melhor seria partir da premissa de  que qualquer discussão ou proposta honrada acerca do ensino jurídico – e que pretenda propugnar de verdade sua causa (que dizer, honrada também na ação) – somente pode ser empreendida enquanto prática coletiva e solidária que implique o comprometimento e a colaboração dos agentes diretamente envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Não  parece razoável pensar em uma mudança do atual modelo jurídico-educativo sem que os professores, diante de um sistema esclerosado ,  proponham-se a fazer uso de uma docência integral, interdisciplinar e significativa de conhecimentos, bem como formativa em relação  à capacidade intelectual e crítica com respeito aos valores e atitudes dos estudantes frente ao Direito. Isto é, sem que os professores  assumam o compromisso ético de procurar capacitar o aluno  não somente a tarefa de “saber” e “conhecer” razoavelmente o ordenamento jurídico senão também, e muito particularmente,  de reflexionar sobre essa ciência, dotando-o das qualidades necessárias e suficientes para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os valores fundamentais do Direito e da Justiça.

Depois, para além do exercício de uma renovada prática docente , os estudantes têm o direito de desfrutar de uma visão do Direito muito mais flexível e integrada da que tem sido normal nos cursos jurídicos. Têm o direito  – e os professores  o dever-  de chegar ao convencimento de que podem e devem influir , em um sentido ou outro, nas numerosas manifestações do sistema jurídico, tanto sobre a base de razões formais e positivas, como materiais, éticas e de política jurídica. E o fator determinante para inculcar uma ou outra prática frente ao Direito e ao sistema jurídico será a atitude que adotará o professor de, exercendo a liberdade que lhe assegura a Constituição da República, fazer conhecer aos seus alunos  essas  realidades que o fenômeno jurídico implica de forma iniludível.

Se  através de suas exposições e leituras recomendadas ( ou de qualquer outro método que lhe pareça mais acessível)  o docente trata de pôr de manifesto os valores jurídicos que presidem – e devem conformar – as diferentes facetas da realidade social e, ademais disto, incite  seus alunos a adotar uma atitude crítica e reflexiva dirigida a tornar efetivos os valores substantivos que dirigem o Direito, com toda segurança  alcançará facilmente o objetivo da docência jurídica  e fará com que o ( também) exercício da liberdade de aprender, de investigar e o pluralismo de idéias  não se petrifiquem em uma norma  (constitucional, insisto) incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos do papel em que está impressa.

Isso importa, por  certo , que o docente assuma a responsabilidade de estar comprometido com o processo ensino-aprendizagem e sua qualidade, dotando-o de uma visão pluralista da sociedade e preocupando-se com uma abordagem multidimensional do sistema jurídico  e  interdisciplinar no que se refere às outras áreas de conhecimento , tudo  com o objetivo de formar juristas capazes de pensar séria , global  e criticamente o Direito.

Não obstante, o alcance dessa excelência sempre estará limitado e justificado  pelo objetivo principal do docente de potenciar o desenvolvimento das capacidades e habilidades intelectuais necessárias para realizar essa atividade e, em particular, para utilizar prudencialmente as diferentes técnicas de realização do Direito; quero dizer, de formar juristas que saibam “pensar e fazer” e não somente que saibam “fazer”, exigindo do aluno o hábito de refletir filosófica  e juridicamente, argumentando e contra-argumentando, procurando seu próprio caminho com  uma razoável  postura crítico-teórica e um adequado sentido ético, a fim de que possam, a partir daí , assumir a tarefa que lhes cabe como (potenciais) agentes de câmbios histórico-sociais.

Da mesma forma,  parece que o exercício dessa liberdade ( que implica necessariamente uma redefinição da postura filosófico-metodológica até agora adotada ) postula a prevalência de um método de ensino dialogado, participativo e centrado no aluno, em oposição ao secular método magistral, monologado, passivo e acrítico, centrado no professor. Afinal, concebido o Direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo,   somos nós  os que produzimos  a  realidade do fenômeno jurídico  e a edificamos enunciando o que este mesmo é. Há Direito onde sujeitos diferentes discutem e desenvolvem , submergindo-se na práxis,  proposições  e enunciados  normativos pertencentes a essa prática  interpretativa que , sobre a base  de sua unidade de sentido , chamamos de fenômeno jurídico.

Por outro lado, e nessa mesma linha de raciocínio , não parece demasiado recordar que essa prática docente deve ser plena, no sentido de que permita aos estudantes desfrutar de uma educação que lhes proporcione  a base necessária para compreender como e por quê se relacionam os novos conhecimentos com os que eles já sabem , a transmitir-lhes a segurança afetiva de que são capazes de utilizar estes novos conhecimentos em contextos sócio-culturais diferentes,  de desenvolver o interesse e o compromisso ético pelos movimentos sociais, políticos e filosóficos que configuram a base do Direito e, talvez o mais importante, a ensinar-lhes a  desaprender o acúmulo incalculável  de teorias infundadas e de versões sem sentido do que “é” ou “deve ser” o Direito.

Estou convencido de que esta é uma das principais diretrizes que deve balizar e justificar a busca de uma  excelência de ensino e de preparação profissional, necessária para a formação de um operador do direito apto a  exercer sua  função (social) em um mundo em permanente câmbio e plenamente capacitado à tarefa não somente de explicar as garantias meramente formais da democracia ou a simples observância dos princípios, valores e normas  do sistema positivo, mas, principalmente, para buscar a efetiva garantia da justiça intrínseca no Direito e a conformidade deste com a dignidade da pessoa humana.

De um profissional que incentive e priorize a implicação do Direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade  jurídica e autoinvestido da pusilânime e/ou da suposta virtude que  faz dos operadores do direito  les  bouches  qui  prononcent les  paroles  de  la  loi, des  êtres   imanimés  qui  n´em peuvent  modérer  ni  la  force  ni  la  rigueur”(Montesquieu).

Assim , e somente  assim , será  possível  remediar a perversa prática docente segundo a qual, na grande maioria salas de aula , os “conhecimentos saem das fichas dos professores para as notas dos alunos, sem passar pela cabeça de nenhum deles” (Mark Twain). O ato de educar (e aprender) não é apenas uma questão instrumental, mas acima de tudo reflexo do imperativo moral ( e constitucional) de que capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional: não somente do bacharel como expressão da capacidade para aprender por qualquer meio que seja, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente no âmbito de sua formação pessoal e profissional.

Por certo que , a despeito de todo o sugerido, não deixará de ser escassa a influência de um professor no futuro a longo prazo de seus alunos; mas no que seguramente temos é uma grande influência no presente de cada um deles, e podemos fazê-los tremendamente desmotivados para as coisas que efetivamente importam.


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

ATAHUALPA FERNANDEZ: Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da  Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado); Advogado.

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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