O papel da Empresa no Sistema Econômico Capitalista do Brasil

* Sérgio Gabriel

Subsídios para compreensão do ciclo do desenvolvimento econômico

 

1. Introdução 

 

A discussão da liberdade de produção nasce da escolha do modelo econômico adotado. Embora existam vários modelos dispersos pelo mundo, dois em especial centralizam a maior parte das economias: o capitalismo e o socialismo. 

Nesse particular, nota-se a emergência singular da ordem constitucional econômica por excelência, reduzida às normas legais gerais por escrito, pressuposto fundamental das relações de propriedade na sociedade industrial. 

Pinto Ferreira[1] confirma essa colocação, ao dispor que: 

“(…) no mundo atual há dois sistemas básicos que orientam a organização da vida econômica. O sistema capitalista é o primeiro, fundamentado na propriedade privada de bens de produção, na livre concorrência, na iniciativa privada, funcionando de um modo geral nos Estados que não se orientam pelo tipo de economia coletivizada. O outro sistema é o socialista, fundamentado na propriedade coletiva dos meios de produção, implantado na URSS e na China, e durante muito tempo no Leste europeu”. 

A livre iniciativa tem seu surgimento na doutrina liberal e ganha espaço com o que se denominou de Estado Mínimo, como nos ensina Fábio Nusdeo[2], ao afirmar que:  

“(…) entre os anos 20 e 30 do século passado, ganha terreno no mundo ocidental, a chamada social-democracia ou intervencionismo, enquanto na Europa oriental e em algumas nações asiáticas ensaiava-se o regime de índole coletivista-estatal. Já a última década do mesmo século assiste a um refluir das soluções socializantes de diversas vertentes, com o remontar da maré liberalista, voltada a conter o Estado dentro de limites mais acanhados, ao que se tem chamado de Estado Mínimo. Privatização, liberalização e desregulamentação têm-se constituído em balizas fundamentais no plano interno, com a globalização, querendo significar a livre circulação internacional de produtos e fatores, a complementá-las no plano internacional”. 

Mas é pela análise da constituição brasileira que se verifica estar superada a discussão entre socialismo e capitalismo, pois ao evoluir para um sistema liberal com princípios sociais, o Estado Democrático de Direito deve conduzir o modelo econômico, para garantir a participação de todos na economia-livre iniciativa. 

Embora o modelo adotado pela Constituição Federal seja o capitalismo, como afirmou André Ramos Tavares[3], verifica-se uma inclinação socialista: 

“(…) fundamento da própria República Federativa e, concomitantemente, da ordem econômica, a livre iniciativa revela a adoção política da forma de produção capitalista, como meio legítimo de que se podem valer os agentes sociais no Direito brasileiro”. 

Assim sendo, é de se acrescentar que esse capitalismo brasileiro tem vertentes e características sociais, a partir de uma variação desse mesmo regime econômico. 

Nesse sentido, Lafayete Josué Petter[4] diz que: 

“(…) superada a dicotomia socialismo-capitalismo na sintética expressão Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), evoluiu-se para um modelo de sociedade liberal e, ao mesmo tempo, social, onde a economia de mercado não tem mais os contornos absolutistas que a identificavam nos primórdios do capitalismo, mas deve estar pautada em vigilante atitude estatal no sentido de preservar a própria liberdade de iniciativa”. 

2. Conceito de livre iniciativa 

O princípio da livre iniciativa pressupõe a possibilidade de qualquer um exercer livremente atividade econômica. Nesse sentido, Eros Roberto Grau[5] afirma que: 

“(…) livre iniciativa é termo de conceito extremamente amplo. Não obstante, a inserção da expressão no art. 170, caput, tem conduzido à conclusão, restrita, de que toda a livre iniciativa se esgota na liberdade econômica ou de iniciativa econômica”. 

A liberdade de iniciativa transfere das mãos do Estado para o particular –  empresas em geral, o direito do exercício de determinada atividade econômica, desde que não se compreenda dentro daquelas enumeradas no artigo 173 da Constituição Federal:

 “(…) ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. 

Logo, a livre iniciativa permite a livre exploração de atividade empresarial, desde que não reservadas ao Estado (art. 173, CF), independentemente de autorização do mesmo Estado, conforme determina o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, ao proclamar que: 

“é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. 

A partir dessa análise, José Afonso da Silva[6] proclama que: 

“a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato”.  

Tal liberdade é que assegura o dinamismo exigido pelo sistema econômico capitalista, outorgando, aos particulares, o poder de produção, dando verdadeira eficácia ao direito de propriedade, razão pela qual, agora se compreende melhor a sua evolução. Nesse sentido, Lafayete Josué Petter[7] afirma que: 

“(…) o princípio da liberdade de iniciativa econômica constitui a marca e o aspecto dinâmico do modo de produção capitalista. Consiste no poder reconhecido aos particulares de desenvolverem uma atividade econômica”. 

Alguns doutrinadores[8] vão buscar a origem da livre iniciativa na evolução do conceito de liberdade, porém, quanto ao que se pretende neste estudo, resta apenas a necessidade de compreendê-la a partir da livre concorrência que deflui da liberdade de produção. 

3. Diferença entre livre iniciativa e livre concorrência 

A livre concorrência, outro princípio da ordem econômica, nasce da necessidade de se garantir a livre iniciativa das empresas, impedindo que se permitam atos de concentração de mercado redundantes, na criação de um poder econômico capaz de inviabilizar a permanência de outras empresas no mercado ou de impedir a entrada de novas.  

A partir do momento que o Estado adotou a liberdade de mercado, resta a ele, enquanto agente regulador, fiscalizador e interventor, oferecer totais condições para que o exercício da atividade econômica empresarial seja feito dentro de limites que permitam uma saudável competição, desaguando em melhores condições sociais, seja pela maior produção de riquezas (produtos ou serviços), seja por oferta de novos empregos diretos e indiretos, pela melhoria na qualidade de produtos e serviços em oferta, ou pela redução de preços em razão da alta competitividade de mercado e finalmente, geração de rendas. 

É por essa razão que o Brasil, ao adotar o regime econômico capitalista, o fez com certas variações, imbricando para um modelo econômico-social, que vem garantindo aqui, em parte, pela própria defesa da concorrência. Essa defesa da concorrência se justifica como manutenção da empresa no mercado – garantia da livre iniciativa, em razão da possibilidade de abuso de poder econômico ou de atos de concentração de mercado, e nessa análise, Lafayete Josué Petter[9] afirma que:  

“(…) no mercado, por outro lado, verifica-se que em muitos segmentos há a ocorrência do fenômeno da concentração do poder econômico, que fica, por assim dizer, assenhorado nas mãos de uns poucos, com ofensa à livre iniciativa, invocando a necessidade de tutela e intervenção do Estado, sob pena de aquela, literalmente, sucumbir. Então, ao contrário do que poderia se imaginar, a intervenção do Estado no domínio econômico (CF, art. 174), muito antes de limitar a iniciativa e a liberdade do particular, tem por fim, mesmo, preservá-la”. 

4. Amplitude da livre iniciativa 

Quando se fala da livre iniciativa, está-se falando da exploração dos meios privados de produção (empresa privada) em um modelo econômico que garante, entre outros direitos – os sociais. Por essa razão, o legislador constituinte assentou a ordem econômica na valorização do trabalho na existência digna, na justiça social, na proteção da soberania nacional, na defesa do consumidor, na defesa do meio ambiente, na redução das desigualdades regionais e sociais, na busca do pleno emprego e no tratamento favorecido para micro e pequenas empresas.  

Ora, se de um lado a exploração da atividade empresarial deve respeitar todos esses princípios sociais, a livre iniciativa deve ser interpretada em seu sentido amplo, pois, além de princípio econômico é também princípio social. E nesse ponto José Afonso da Silva[10] também fala do caráter social, ao dizer que: 

“(…) a evolução das relações de produção e a necessidade de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, bem como o mau uso dessa liberdade e a falácia da ‘harmonia natural dos interesses’ do Estado liberal, fizeram surgir mecanismos de condicionamento da iniciativa privada, em busca da realização de justiça social, de sorte que o texto supratranscrito do art. 170, parágrafo único, sujeito aos ditames da lei, há de ser entendido no contexto de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo”. 

Veja que o legislador, ao impor a livre iniciativa, o fez no sentido econômico, proclamando o sistema econômico capitalista como regente da economia brasileira, mas, pela variação que se imprimiu no modelo econômico, é de se perceber que tais princípios e em especial o da livre iniciativa, possui característica marcantemente social, ao proclamar uma liberdade a qual permite a qualquer cidadão a participação nos meios de produção – exercício de atividade empresarial.  Esse tipo de variação nos grandes modelos econômicos é possível, como afirma André Ramos Tavares[11], ao dizer que: 

“os sistemas econômicos são modelos amplos, que podem apresentar, por isso mesmo, uma série de variações nas formas concretas adotadas em sua implementação prática”. 

Tanto é que a mesma livre iniciativa que garante micros e pequenos empresários no mercado, o faz de forma a criar oportunidades e não como forma exclusiva de fomentar o desenvolvimento econômico. Note-se que, nessa ótica, a característica econômica do princípio se tornou vertente secundária, apresentando-se como fator essencial-primário, o social, na oferta de oportunidades ao cidadão.  

Então, falar em livre iniciativa é muito mais que afirmar em exploração privada dos meios de produção, é estabelecer liberdade de empresa como fator essencial do modelo econômico adotado, é garantir também, oportunidades de exercício de atividade econômica a qualquer um. 

Porém, é indispensável que se analise a grandeza do princípio da livre iniciativa, pois, além de mero princípio balizador da ordem econômica, é também um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – (…); II – (…); III – (…); IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…). Ou seja, a livre iniciativa é muito mais que fundamento econômico e social, pois, como já afirmado, é também um dos fins da estrutura política brasileira. 

Não é por outra razão que Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[12] afirmam que: 

“(…) erigida à condição de fundamento da ordem econômica e simultaneamente princípio constitucional fundamental (CF, art. 1º, IV, in fine), a livre iniciativa talvez constitua uma das mais importantes normas de nosso ordenamento constitucional”. 

Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[13], se referindo à livre iniciativa, acrescentam ainda que: 

“(…) aplicada à realidade social que pretende ordenar, a regra indica a liberdade de iniciativa econômica em sentido amplo. Em outras palavras, não se limita à iniciativa privada, mas abrange também a iniciativa cooperativa ou associativa (arts. 5º, XVII e XVIII, e 174, parágrafos 3º e 4º), a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública (arts. 173, 177 e 192, II)” 

Nesse mesmo sentido, André Ramos Tavares[14] diz que: 

“(…) a liberdade de iniciativa garantida constitucionalmente não se restringe à liberdade de iniciativa econômica, sendo esta apenas uma de suas dimensões. A livre iniciativa de que fala a Constituição há de ser, realmente, entendida em seu sentido amplo, compreendendo não apenas a liberdade econômica, ou liberdade de desenvolvimento de empresa, mas englobando e assumindo todas as demais formas de organização econômicas, individuais ou coletivas, como a cooperativa (art. 5º, XVIII, e art. 174, parágrafos 3º e 4º) e a iniciativa pública (arts. 173, 1777 e 192, II)”. 

5. Limitações à livre iniciativa 

Embora o sistema econômico tenha adotado a liberdade de mercado como fator essencial do modelo econômico, é de se asseverar que essa liberdade está regida por limitações que se classificam em legais e funcionais. Impõe-se, aqui, a necessidade de se lembrar que essa classificação, como qualquer outra, é realizada por meio de considerável relativismo, haja vista que normalmente o critério utilizado para classificação pertence ao pesquisador, não existindo um método único que possa norteá-las e torná-las absolutas. Logo, justifica-se que foi feita apenas com fins metodológicos e didáticos, para amparar o desenvolvimento do presente estudo.  

Do ponto de vista legal, a livre iniciativa possui duas limitações: o monopólio legal e a necessidade prévia de autorização: 

a)      monopólio: poder-se-ia classificar os monopólios de três formas: legal – quando devidamente determinado pela lei, no caso do Brasil, pela lei maior (177, CF); natural – quando em decorrência natural de mercado restar apenas uma única empresa operando em determinado segmento, sem que a sua atuação tenha ocorrido para esse resultado; forçado – quando pela ação de uma empresa por intermédio de abuso de poder econômico tenha provocado a saída das demais empresas concorrentes em determinado segmento de mercado. O monopólio natural não configura ato anticoncorrencial, mas mera decorrência de determinado segmento mercadológico. O monopólio forçado só ocorre se houver abuso de poder econômico o que configura ato anticoncorrencial e aviltante do princípio da livre concorrência. Já o monopólio legal vem determinado na Constituição Federal pelo artigo 176, que determina que: 

“(…) as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”. 

Já o artigo 177 estabelece que: 

“(…) constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluídos; II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”.

 Logo, nos casos enumerados pelo art. 177 da CF, a livre iniciativa deixa de ser aplicada, constituindo monopólio legal da União, o exercício de tais atividades econômicas;  

b) autorização prévia – outra situação que limita o exercício de atividade econômica é a necessidade prévia de autorização estatal. Nesse caso, conclui-se que efetivamente se está diante de situação típica de limitação, já que o monopólio parece mais uma hipótese de proibição. O parágrafo único do art. 170 da CF dispõe que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”, portanto, são empresas dependentes de autorização para funcionamento. Para funcionamento, exigem necessidade prévia de autorização: 

b.1) pesquisa e a lavra de recursos minerais – tal objeto só pode ser praticado na forma de concessão de serviço público e requer autorização prévia do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (parágrafo 1º do art. 176 da CF, art. 97 do Decreto nº 62.394/68);

 b.2) sociedades constituídas com capital estrangeiro – para se constituir sociedade no Brasil com capital parcial ou totalmente estrangeiro, é necessária autorização prévia do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, consoante determina o Decreto nº 3.444/2000, Decreto-Lei nº 2.627/40 e Instrução Normativa nº 81/99 do Departamento Nacional de Registro do Comércio-DNRC;

 b.3) Instituições financeiras e assemelhadas – as instituições financeiras e assemelhadas, consideradas estas últimas as caixas econômicas; bancos comerciais; bancos múltiplos; bancos de desenvolvimento; bancos de investimento; sociedades de crédito, financiamento e investimento; sociedades corretoras de câmbio e de títulos e valores mobiliários; sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários; sociedade de crédito imobiliário; sociedade de arrendamento mercantil e cooperativas de crédito, dependerão de autorização prévia do Banco Central do Brasil (Instrução Normativa nº 32/91 do DNRC e Leis nº 4.595/64, 4.728/65 e 5.764/71); 

 b.4) Sociedades de investimentos – as empresas que apliquem capital em carteiras diversificadas de títulos ou valores mobiliários e de administração de fundos em condomínio, dependerão de autorização prévia da Comissão de Valores Mobiliários – CVM (art. 49 da Lei nº 4.728/65 e Lei nº 6.385/66);

 b.5) Cooperativas – as cooperativas em geral, exceto as cooperativas de crédito que se inserem no mesmo tratamento dado às instituições financeiras, dependerão de autorização prévia das Juntas Comerciais, por delegação do Poder Executivo Federal (art. 17 da Lei nº 5.764/71);

 b.6) Sociedades anônimas de capital aberto – as sociedades anônimas de capital aberto, ou de subscrição pública de capital, deverão requerer autorização prévia da Comissão de Valores Mobiliários-CVM para funcionamento (art. 82 da Lei nº 6.404/76);

 b.7) Estatais – as empresas estatais, consideradas estas como as constituídas integralmente com capital público – empresas públicas ou parcialmente com capital público – sociedades de economia mista, dependerão de autorização prévia do Congresso Nacional (art. 37, XIX, CF);  

 b.8) Transporte aéreo – as empresas de transporte aéreo dependem de prévia autorização do Ministério de Aeronáutica (atualmente Ministério da Defesa) (Lei nº 7.565/86);

 b.9) Telecomunicações e radiodifusão – as empresas que explorem  objeto de telecomunicações ou radiodifusão dependerão de prévia autorização da Secretaria Nacional de Comunicações (art. 38 da Lei nº 4.117/62);

 b.10) Atividades autorizadas por Agências Reguladoras – as atividades disciplinadas por agências reguladoras específicas dependerão de prévia autorização da respectiva agência (legislação específica de criação da agência).   

Com isso, poderia se afirmar que da forma como está colocado dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da livre iniciativa não é absoluto, pois permite proibição e submete o exercente à autorização, em várias situações. Porém, Eros Roberto Grau[15] acrescenta que: 

“(…) o que mais importa considerar, de toda sorte, é o fato de que, em sua concreção em regras atinentes à liberdade de iniciativa econômica, o princípio, historicamente, desde o Decreto d’Allarde, jamais foi consignado em termos absolutos”.   

De qualquer sorte, não se pode dizer que essa necessidade de autorização estatal tenha minimizado a livre iniciativa ou autorizado a intervenção estatal a partir dela, tratando-se apenas de exercício regulador do Estado a partir, tão-somente, de autorização legislativa, assim colocado por André Ramos Tavares[16] 

“(…) o postulado da livre iniciativa, portanto, tem uma conotação normativa positivada, significando a liberdade garantida a qualquer cidadão, e uma outra conotação que assume viés negativo, impondo a não-intervenção estatal, que só pode se configurar mediante atividade legislativa que, acrescente-se, há de respeitar os demais postulados constitucionais e não poderá anular ou inutilizar o conceito mínimo de livre iniciativa”. 

Já do ponto de vista funcional, a livre iniciativa possui uma limitação imposta ao próprio Estado, regrando a sua participação direta no mercado, no exercício de atividade econômica, conforme determina o artigo 173 da CF, ao disciplinar que: 

 ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” restando, ao Estado, além da exceção capitulada, a prestação de serviços públicos por imperativos do art. 175 da CF “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. 

Enfim, adotou-se o pensamento de André Ramos Tavares[17], que afirma: 

“(…) a liberdade privada em dedicar-se a uma determinada atividade econômica significa tão-somente liberdade de desenvolvimento dessa atividade no quadro estabelecido pelo Poder Público, dentro dos limites normativamente impostos a essa liberdade. Este é o motivo pelo qual se pode afirmar validamente que a liberdade de iniciativa se exerce dentro dos parâmetros em que há de ser reconhecida, fazendo-se compreender, no texto constitucional, a abertura para a criação de restrições por via da lei, desde que plausíveis e compatíveis com o interesse público”.  

6. A necessidade de conservação da empresa na economia nacional 

O fato de se colocar a empresa no principal eixo do ciclo econômico capitalista – o da produção, resultou o entendimento do porquê o Brasil adotou o princípio da preservação da empresa como fator de desenvolvimento econômico. Embora tal princípio não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, é de se verificar tratar-se de um princípio geral não positivado, como bem afirma Eros Roberto Grau[18]: 

“(…) além desses, outros, definidos como princípios gerais não positivados – isto é, não expressamente enunciados em normas constitucionais explícitas – são descobertos na ordem econômica da Constituição de 1988. Aí, particularmente, aqueles aos quais dão concreção às regras contidas nos arts. 7º e 201 e 202 do texto constitucional”. 

Posteriormente à Constituição Federal, mas ao ver do autor deste trabalho, com base no texto constitucional, o legislador viria a adotar expressamente o princípio da preservação da empresa na Lei nº 11.101/05 – Lei de Recuperação de Empresas, ao proclamar em seu artigo 47 que afirma: 

“(…) a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.  

O Senador Ramez Tebet[19] – Relator do Projeto de Lei nº 71/2003 que resultou na mencionada lei, ao elaborar seu parecer, assim se posicionou sobre a adoção do princípio da preservação da empresa: 

Preservação da empresa: em razão de sua função social, a empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País. Além disso, a extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico representado pelos chamados intangíveis como: nome, ponto comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores, know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre outros”. 

Fábio Nusdeo[20], ao analisar as causas do subdesenvolvimento econômico já apontava que: 

“(…) são inúmeras e, evidentemente, variam de um para outro país, mas alguns traços comuns podem ser destacados:

(…);

d) alta participação do setor primário da economia na formação da renda. O setor secundário (indústria) é atrofiado e o terciário inflado, devido ao grande contingente de serviços de reduzida ou nula produtividade, a configurar não tanto uma atividade produtiva mas mais um desemprego disfarçado; (…)”.  

E adiante, acrescenta como exemplo de desenvolvimento econômico os ciclos induzidos ao exemplificar que: 

“(…) os ciclos da economia colonial brasileira são exemplos de crescimento induzido. O café também começou como um ciclo colonial enquanto percorreu o Vale do Paraíba. A seguir, transformou-se numa atividade condutora do desenvolvimento”[21] 

Assim, é claro que a empresa goza hoje de uma posição de destaque no cenário econômico nacional, razão pela qual, a livre iniciativa ganha sua concretude, na medida em que a atividade empresarial no Brasil seja preservada por meio da aplicação plena dos princípios da preservação da empresa e da livre concorrência. 

7. Livre iniciativa e relação de consumo 

Quem melhor coteja a livre iniciativa com a relação de consumo é Rizzatto Nunes[22], que afirma que: 

“(…) é verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p.ex. do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado são proibidos; e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor”. 

Claro está que a proteção ao consumidor se faz por um sistema formado não só pelo Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, mas também, pela Lei de Defesa da Concorrência – Lei nº 8.884/94. Para integrar esse conjunto de leis ordinárias e atribuir a ele um caráter de sistema, necessária se faz a indicação de um norte a ser seguido e de harmonização de seus elementos, o que nasce a partir do texto constitucional. 

Nesse sentido, José Marcelo Martins Proença[23], ao comentar o caso envolvendo a Nestlé e a Garoto (marcas de chocolate), afirmou que:

“(…) a rumorosa e acertada decisão proferida pelo CADE no caso ‘Nestlé – Garoto’ expressa uma verdade até então pouco revelada: os consumidores brasileiros não são defendidos tão-somente pelo seu Código, mas por outros sistemas legislativos também voltados para a função primordial de defender os hipossuficientes consumidores”. 

8. Conclusão 

Como se verificou neste estudo preliminar sobre os princípios da ordem econômica, em especial por meio da análise do princípio da livre iniciativa, é de se verificar que o sistema econômico brasileiro garante um papel de destaque à empresa, no cenário econômico, haja vista que o desenvolvimento econômico do país, em termos de atividade econômica é dependente do resultado do exercício da atividade empresarial.   

Ao analisar-se o ciclo econômico capitalista e vislumbrar-se o seu funcionamento assentado nos eixos da produção, do trabalho, da renda e do consumo, forçoso é se inferir que o início de seu ciclo está vinculado ao exercício da atividade empresarial que passa a ter relevante expressão para o desenvolvimento econômico do país. Assim sendo, Lafayete Josué Petter[24] diz que: 

“(…) a liberdade de iniciativa econômica é mesmo substrato da realidade econômica da empresa, a qual se tem projetado em diversos ângulos da normatividade jurídica e constitui um dos suportes fundamentais do processo de desenvolvimento”. 

O sistema econômico capitalista pressupõe interferência mínima por parte do Estado, porém, desnecessário afirmar que o universo macroeconômico é a somatória dos universos microeconômicos. O planejamento macroeconômico, assim visto, estudado e aplicado, é universalmente aceito como ferramenta de promoção e desenvolvimento social, condição esta que, em última instância, é a que interessa ao Estado, como agente que aponta as diretivas às empresas na qualidade de principais agentes econômicos que compõem o mercado no ambiente de liberalismo econômico, para promoção do bem-estar social, e que, em função da atual realidade econômica, fundada nos princípios neoliberais, forçoso é reconhecer que não é possível intervenção em grau zero na economia e que, por força da própria semântica, qualquer lei significa em si o germe da intervenção do Estado sobre as liberdades individuais, in casu, a de iniciativa e de concorrência – sempre no sentido de proteção do mercado.   

9. Bibliografia 

ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999. 

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005. 

NUSDEO, Fábio. Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed., São Paulo: RT, 2005. 

PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: RT, 2005. 

PINTO FERREIRA. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. 

PROENÇA, José Marcelo Martins. Consumidor ganhou no caso ‘Nestlé – Garoto’. Disponível em http://www.saraivajur.com.br. Acesso em 26-05-2006. 

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004.  

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996. 

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003.  

 


 

NOTAS

[1] Curso de Direito Constitucional, p. 577.

[2] Curso de Economia, Introdução ao Direito Econômico, p. 211.

[3] Direito Constitucional Econômico, p. 247.

[4] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 162.

[5] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 200.

[6] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 725.

[7] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 164.

[8] Dentre eles destacam-se: Lafayete Josué Petter, Fábio Nusdeo e Sérgio Varella Bruna.

[9] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 161.

[10] Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 726.

[11] Direito Constitucional Econômico, p. 33.

[12] Curso de Direito Constitucional, p. 348.

[13] Curso de Direito Constitucional, p. 348.

[14] Direito Constitucional Econômico, p. 247. 

[15] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 205.

[16] Direito Constitucional Econômico, p. 248.

[17] Direito Constitucional Econômico, p. 252.

[18] A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 195.

[19] Extraído do Parecer do Relator que seguiu anexo ao PLC nº 71/2003 para votação no Senado Federal.

[20] Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico, p. 352.

[21] Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico, p. 366.

[22] Curso de Direito do Consumidor, p. 55.

[23] Artigo intitulado Consumidor ganhou no caso “Nestlé – Garoto”. Disponível em: www.saraivajur, Acesso em: 26-maio-2006.

[24] Princípios Constitucionais da Ordem Econômica, p. 166.

 


 

RFFERÊNCIA BIOGRÁFICA 

SERGIO GABRIEL:   Administrador de Empresas e Advogado; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos; Pós-graduado em Administração pela FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado; Coordenador do curso de Administração da USF – Universidade São Francisco; Professor de Direito Empresarial e Tributário da USF – Universidade São Francisco; Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul; Membro da Comissão de Direitos Autorais da UNICSUL; Professor da INTERFASES – Escola de Prática Jurídica de São Paulo; Professor do EXORD – Curso Preparatório; Professor convidado da ESA/OAB – Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil; Co-autor do livro “Temas Relevantes do Direito”, SP: Lúmen Editora, 2001; Co-autor do livro “Dano Moral e sua Quantificação”, RS: Editora Plenum, 2004; Co-autor do livro “Exame de Ordem comentado e anotado”, SP: Apta Edições, 2005; Co-autor do livro “Exames de OAB”, SP: DPJ Editora, 2005; Autor do livro “Direito Empresarial” da coleção Lições de Direito, SP: DPJ Editora, 2006. Texto adaptado em 14/08/2007 da dissertação de mestrado do autor defendida junto a UNIMES – Universidade Metropolitana de Santos.


Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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