O Ministério Público e a assistência no processo penal: novo enfoque

* João Gaspar Rodrigues  –

1- Visão atual do instituto

            O art. 268 do Código de Processo Penal dispõe que "em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou o seu representante legal, ou na falta, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31". O ofendido ou seu representante legal poderá pleitear a sua admissão no processo como assistente após o recebimento da denúncia até o trânsito em julgado da sentença (CPP, art. 269). Não pode, porém, ser admitido no inquérito policial, na fase de execução penal e em processo contravencional.

            Os tribunais interpretando o art. 269 do Código de Processo Penal têm decidido de forma pacífica na esteira do STF que "as normas processuais ou regimentais em vigor não autorizam o ingresso, no feito, de assistente da acusação antes do recebimento da denúncia" (Tribunal Pleno, IP n. 381-DF, Rel. Min. Célio Borja, julgado em 18.11.88, RT 637:311 e Lex 125:231; no mesmo sentido, TAPR, RT 685:351). Entretanto, a 2º Câmara Criminal do TJSP adotou posição contrária, admitindo a assistência antes do recebimento da denúncia, no inquérito policial, no Rec. n. 141.210, julgado em 16.11.81, Rel. Rezende Junqueira: "Ministério Público. Assistente. Intervenção nos autos antes do recebimento da denúncia. Admissibilidade, embora rejeitada aquela peça. Voto vencido. Inteligência dos arts. 268, 269 e 29 do CPP. O interesse do ofendido na apuração do fato e punição do responsável nasce desde o momento em que, pela lesão sofrida, surge o direito subjetivo, que mais tarde se transmuda no jus persequendi in juditio, cuja titularidade, em face de razões sociais, pertence ao Estado quando se trata de ação pública. Não pode, portanto, seu ingresso nos autos como assistente ficar condicionado ao recebimento da denúncia, quando se instaura a instância".

            A respeito da intervenção de assistente no processo contravencional, existem duas correntes: uma a favor, outra contra. Entendemos, entretanto, que descabe a intervenção de assistente no processo contravencional, porque inexiste nele a figura do indivíduo como ofendido, apresentando-se o Estado como sujeito passivo, em nome do interesse social violado. Poderá existir a figura do prejudicado pelo dano material eventualmente ocorrido. Tal entendimento pode ser transplantado integralmente para os crimes contra a incolumidade pública. Nos crimes de perigo comum o ofendido não é aquele que sofreu o dano material eventualmente ocorrido, mas o Estado, a coletividade, titular do bem jurídico "incolumidade pública", pela simples exposição a perigo de tal bem. Nossa posição, portanto, é a de que descabe assistência nas contravenções e em tais crimes.

            A favor da assistência no processo contravencional, sustenta-se que em caso excepcionalíssimos pode exsurgir um ofendido direto e imediato, o que para nós é apenas a figura do prejudicado. A propósito, confira-se decisão do TACrimSP:

            "Contravenção penal. Perturbação do sossego alheio. Intervenção de assistente de acusação. Admissibilidade. Modalidade especialíssima de contravenção, onde possível identificar de modo próximo e direto a figura do ‘ofendido’. Possibilidade, portanto, de perseguir a condenação do contraventor. Recurso por ele interposto que deve ser conhecido mesmo diante da vedação de seu ingresso na sentença. Aplicação do art. 598 e inteligência do art. 268 do CPP e dos arts. 17 e 42 do Dec.-Lei 3.688/41" (1).

            Ao prejudicado pelo delito não é conferido por lei o direito de intervir na ação penal pública como assistente do Ministério Público (RT 491:279, 487:291). Prejudicado pelo delito não se confunde com ofendido, este é o sujeito passivo do crime, enquanto aquele é qualquer pessoa a quem o delito haja causado um dano patrimonial ou não, tendo por conseqüência direito ao ressarcimento e ação civil.

            A "falta do ofendido", constante no art. 268 do CPP, compreende não só a morte como também a ausência decorrente de fator inexorável, como também a impossibilidade de manifestação de vontade válida (RT 646:295). Prevalece, com relação à assistência, o disposto no art. 36 do CPP, de modo que comparecendo diversos interessados conjuntamente, com o fim de exercer a assistência, terá preferência o cônjuge, e em seguida, o parente mais próximo, conforme a ordem de gradação do art. 31 do mesmo diploma processual. Esta não é a única ordem a ser apreciada. Há que se analisar, também, quem foi admitido em primeiro lugar, e nesse caso, sendo admitidos como assistentes os filhos da vítima, precluso fica tal direito à esposa do ofendido, por ter formulado o pedido tardiamente (RT 601:368). O que não é admissível é a pluralidade de assistentes, com viso a evitar tumulto processual em decorrência de eventuais interesses conflitantes.

            Questão que tem levantado alguma celeuma é a de saber se o Poder Público pode intervir como assistente do Ministério Público. Entendemos que nada obsta que o Estado, quando atingido diretamente pelo delito, ou seja, quando se torna sujeito passivo direto e imediato, se habilite como assistente. O STF, inclusive, já decidiu nesse sentido, no RHC n. 46.536, DJU 10.12.68, Rel. Min. Adaucto Cardoso, in RTJ 49:322. E mais recentemente, o STJ, ao julgar o RMS n. 546, 5º Turma, em 17.10.90, Rel. Min. Costa Lima, in RT 667:336: "Crime contra a administração pública. Intervenção do Poder Público como assistente da acusação. Admissibilidade. Interesse do bem público geral do Ministério Público não coincidente com o interesse secundário do ente ofendido". Veja-se que nos processos para apurar a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, é permitida a intervenção pública como assistente, nos termos do art. 2º, §1º, do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967: "Os órgãos federais, estaduais e municipais, interessados na apuração da responsabilidade do prefeito, podem requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público, bem como intervir em qualquer fase do processo, como assistente da acusação". A lei fala em "órgãos", logo, um vereador ou o Presidente da Câmara Municipal, por exemplo, isoladamente, não poderão se habilitar como assistente.

            Cumpre salientar que tanto pessoas físicas como jurídicas podem ser vítimas de crime e, em sendo assim, poderão se habilitar como assistente do Ministério Público (STF, RTJ 78:922).

            O assistente receberá o processo no estado em que ele se encontrar (art. 269, in fine, CPP), não tendo direito à reprodução de atos praticados sem a sua interferência, ainda quando sejam posteriores ao seu pedido de intervenção. A ele é permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por ele próprio (CPP, art. 271).

            No pleito de assistência, o Ministério Público necessariamente deverá ser ouvido como custos legis (CPP, art. 272) (2), podendo impugná-lo se ilegítima for a parte (for co-réu no mesmo processo; não figurar entre os elencados no art. 31 etc.) ou se constatar irregularidades na documentação que instruir o pedido (falta de prova do parentesco, na hipótese do art. 31; ausência do instrumento procuratório etc.). Já se decidiu que "quando a lei determina que o Ministério Público seja ouvido previamente sobre a admissão do assistente, não é para que o Promotor Público diga se lhe agrada ou não a colaboração que lhe é oferecida, mas para que, como órgão da lei e fiscal de sua execução, se manifeste sobre a legitimação do requerente" (RT 436:426). Apesar da lei determinar a manifestação prévia do Ministério Público acerca da admissibilidade, a falta de tal procedimento não acarreta a nulidade do processo (RT 552:308, 627:278, 417:270), pois mesmo com a oposição do Parquet, o juiz pode deferir, desde que demonstrada a legitimidade do requerente.

            Após o parecer do Ministério Público sobre a admissão do assistente, tenha ele se manifestado em prol ou contra, compete ao juiz despachar admitindo ou não o assistente, devendo constar dos autos o pedido e a decisão (art. 273, CPP). O STF, entretanto, já decidiu que a falta do despacho não acarreta nulidade quando iniludível a legitimação para intervir (3).

            Contra a decisão que admitir ou não o pedido de assistência não cabe recurso algum, consoante dispõe o art. 273, do CPP. Na jurisprudência, entretanto, vê-se orientação no sentido de caber mandado de segurança (RT 150:524, 577:386) ou correição parcial (RT 505:392, 618:294). Admitido o assistente, será ele intimado de todos os atos do processo, por intermédio de seu procurador. Na hipótese de não comparecer, sem motivo de força maior devidamente comprovado, o processo prosseguirá, a partir de então independentemente de nova intimação (CPP, art. 271, §2º).

            Nos processos de crimes sujeitos ao julgamento pelo Tribunal do Júri, o assistente deverá requerer sua admissão até três dias antes da sessão de julgamento (art. 447, CPP). Todavia, já se tem decidido que a admissão do ofendido fora do prazo legal, embora irregular, não gera nulidade, sequer relativa (RJTJRGS 57:14).

            Este é, em rápidas pinceladas, um apanhado do instituto da assistência, tanto na lei processual penal quanto na jurisprudência.

2- Novo entendimento: limitação das faculdades postulatórias do assistente

            Na minha opinião, o instituto da assistência deve ser encarado com alguns temperamentos face aos termos terminantes do art. 129, inc. I, da CF: "São funções institucionais do Ministério Público: I- promover, privativamente, a acão penal pública, na forma da lei". À primeira vista pode-se pensar que a expressão "nos termos da lei" signifique algum óbice ou limitação ao exercício da função, quando, na verdade, significa o procedimento que deve ser seguido, é o como promover a ação. Não bastasse a clara dicção do inc. I do art. 129, o §1º do mesmo dispositivo afirma: "A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei". Cuida esse parágrafo da legitimação concorrente para as ações civis, a confirmar que a promoção da ação penal pública é de legitimação privativa. E arremata o §2º do mesmo dispositivo: "as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira", o que equivale dizer que suas funções privativas não podem ser exercidas por terceiros (4), ainda que minimamente.

            É de se considerar ainda, que o interesse do bem público geral do Ministério Público no exercício da ação penal pública não coincide com o interesse secundário do ofendido/assistente. Enquanto este busca a condenação criminal e reparação do dano a todo custo, aquele busca, imparcialmente, a aplicação da lei, tanto que pode vir a pedir a absolvição do acusado, se assim resultar do conjunto probatório.

            No processo penal o MP é parte no sentido formal porque não tem qualquer interesse próprio, particular, a defender. O interesse atribuído ao MP pelo ordenamento jurídico é público, de todos e de cada um. A preocupação do Parquet é com o devido processo legal e com a verdade, pois não interessa à comunidade a condenação de pessoa inocente. Diferentemente do assistente que é sabidamente parcial, que intervém na ação penal por causa de seu interesse civil na reparação decorrente do ato ilícito. E também, a experiência nos diz, busca uma forma de vingança legalizada.

            No processo penal, já está assentado, o Ministério Público é apenas parte formal, pois deve agir com absoluta isenção, entregue à verdade que resultar dos autos e de sua consciência, conforme posicionamento já firmado pelo STJ: "O MP, como instituição, não é acusador, no sentido vulgar do termo. Tecnicamente, por imperativo constitucional, faz a imputação, para averiguar, presentes o contraditório e a defesa plena, o fato, com todas as circunstâncias. Juridicamente, não está jamais contra o réu. Ao contrário, confluem interesses, a fim de evitar o erro judiciário. Busca a verdade real, a decisão justa. Em consequência, evidencia-se a legitimidade para recorrer em favor do réu" (5).

            Como conciliar então o interesse do MP com o do assistente? Impossível, a solução é podar o instituto e amoldá-lo à letra e ao espírito da Constituição.

            O instituto da assistência da acusação entre nós foi adotado na década de 40, em plena vigência da Carta de 1937, que praticamente extirpou o Ministério Público de seu texto, ou, pelo menos, não lhe fez menção como instituição do Estado (como já vimos). A assistência tem como razão de ser, a desconfiança no Ministério Público, o temor da parcialidade e favoritismo no monopólio do exercício da ação penal, a preocupação pelas possíveis influências do Poder Executivo. Cremos que atualmente tais preocupações não têm razão de ser, diante da robustez teórica do MP, sua atuação imparcial, autonomia e independência funcional. Só se justificaria como forma de possibilitar a participação do ofendido na distribuição da justiça criminal e para isso não é necessário o arcabouço interventivo e invasor montado pela lei processual penal, basta que funcione como auxiliar do MP.

            Com a CF/88, o MP foi gizado com novas tintas, inclusive, cabendo-lhe, privativamente, promover a ação penal pública. Ora, não é plausível que uma Constituição seja interpretada à luz de leis, inclusive anteriores. O correto, hermeneuticamente falando, é a interpretação das leis sob o lume da Constituição. Assim, soa cristalino que não só o instituto da assistência, como outros institutos jurídicos criados em tempos recuados, devam ser repensados e amoldados ao espírito constitucional, extirpando-se dispositivos legais necrosados por afronta ao texto maior da Constituição. E isso é necessário não só para depurar as atribuições do MP, como também, para criar o indispensável sentimento da supremacia constitucional.

3- Conclusão

            O que defendemos não é a extinção pura e simples da assistência, mormente, em tempos em que se quer democratizar a Justiça com a participação popular, mas sua limitação ao nível do razoável. Ao assistente não deve ser dada a iniciativa de modificar, ampliar ou corrigir a atividade do titular da ação penal. Deve haver uma limitação das faculdades postulatórias do assistente. Neste sentido, entendemos que deve ser considerado como não recepcionado pelo texto constitucional as disposições do Código de Processo Penal que atribuem ao assistente a função de "requerer perguntas às testemunhas", "aditar o libelo e os articulados", "participar do debate oral" e "arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público" (art. 271). A atividade do assistente, doravante, restringir-se-ia a ser meramente "formulatória" ou "assistencial", sem qualquer faculdade postulatória, como se entrever no "caput" do art. 271: "propor meios de prova". Enfim, coadjuvar e não ser protagonista do entrevero processual, usurpando por via indireta uma função institucional e privativa do Ministério Público. Nenhuma interferência direta do assistente, que influa no curso da ação empreendida pelo Ministério Público, deve ser aceita, por manifestamente inconstitucional.

Bibliografia

            ESPÍNOLA, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, V. 3, Borsoi, 4ª ed., 1957, Rio de Janeiro.

            HOLANDA CAVALCANTI, Renato Dantas de. Ministério Público: Órgão Acusador?, RT 675:331.

            MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público, Ed. Saraiva, 2ª ed., 1995;

            REIS, Alberto dos. Ministério Público, Internet, http://www.smmp.pt/Público.htm.

            RODRIGUES, João Gaspar. O mito da natureza judiciarizada do Ministério Público, Revista da Associação Paulista do Ministério Público 18:57; O Ministério Público como Quarto Poder, Revista Forense 346/70-90; Tóxicos: abordagem crítica da Lei n. 6.368/76, Ed. Bookseller, Campinas, 2001.

            ZIYADE, Fátima. O assistente da acusação, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1993.

Notas

            1. Rec. n. 504.669-5, 5º CC, julgado em 21.6.88, Rel. Ribeiro dos Santos, RT 632:312.

            2. Não há necessidade de se ouvir a defesa. Todavia, constitui cerceamento de defesa a não-intimação da defesa do despacho que admitiu a assistência.

            3. Ap. Ordinária n. 7-6, julgada em 7.12.89, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT 652:367.

            4. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, p. 210.

            5. Resp 10.715-0-PR-, 6ª Turma, 07.04.92, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU 04.05.92, p. 5899, In: RBCC 20:369.


Referência  Biográfica

João Gaspar Rodrigues – Promotor de Justiça no Amazonas

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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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