O Cérebro Ético

Atahualpa Fernandez Æ 

Podemos educar para ser solidários? É ético nosso cérebro? Somos egoístas ou cooperadores? Responder a estas três perguntas implica , sobretudo, proceder uma análise – ainda que com caráter de generalidade – sobre as bases neuronais do comportamento social, moral e ético-jurídico. É o que trataremos de fazer ao longo deste artigo.

E começaremos recordando que o peso das adaptações filogenéticas no desenvolvimento da conduta moral do ser humano parece estar fora de qualquer discussão em toda teoria social normativa com traços de seriedade, coerência e consistência. A evolução da conduta moral não é apenas o resultado da adaptação ao meio ambiente material, tal como pressupôs Engels em ensaio publicado em 1876. Também implicou a seleção de atributos que determinaram o sucesso nas interações entre os membros da mesma espécie.

Em termos mais gerais, nossa capacidade ética e nosso comportamento moral (e jurídico- normativo) devem ser contemplados como um atributo do cérebro humano e, portanto, como um produto mais da evolução biológica e que está determinado pela presença (no ser humano) de três faculdades que são necessárias e, em conjunto, suficientes para que dita capacidade ou comportamento se produza: a de antecipar as conseqüências das ações; a de fazer juízos de valor e; a de eleger entre linhas de ações alternativas.

O desenvolvimento neurocognitivo do ser humano favoreceu o aparecimento de tais faculdades e, a partir delas, surgiu inevitavelmente a moralidade[1].  Na advertência de Changeux, o cérebro é evidentemente a “base” da linguagem e da moral. E o ser humano é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo[2]. De fato, se se borrasse o conjunto de cérebros humanos da face da terra, a moral e o direito desapareceriam ao mesmo tempo. As normas e teorias  jurídicas seguiriam plasmadas em livros guardados em estantes de bibliotecas abandonadas. Todas estas obras do gênio humano não teriam já a oportunidade de viver cada vez  que uma mirada humana recai sobre elas. A moral e o direito não existem mais que no cérebro  do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir e compreender. Somente os cidadãos individuais têm direito ou sentido de justiça e bondade, e as têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. O resto é mitologia.

De fato, toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas idéias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem , da moral,do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro (Mosterín). Daí que Gazzaniga  defenda a idéia de que poderia existir um conjunto universal de respostas biológicas aos dilemas morais, uma sorte de ética integrada no cérebro[3].

Assim que nosso comportamento, nossas sociedades, nossa cultura e nossas normas de conduta (éticas ou jurídicas) parecem ser a resposta que elaboramos, com os mecanismos psicológicos evolucionados de que dispomos, para solucionar os problemas relativos às exigências  e contingências de uma existência essencialmente grupal. E isto se dá graças a uma arquitetura cerebral que confirma a longínqua idéia de Konrad Lorenz, a saber: a existência de um imperativo biológico capaz de combinar respostas instintivas e códigos morais.

Nesse sentido, as transformações evolutivas do último período do gênero Homo modelaram a conduta moral primitiva e se serviram dela para a aparição de grupos cuja sobrevivência dependia sobremaneira da relação mútua entre o grau muito elevado de altruísmo/cooperação e a emergência de uma inigualável capacidade preditiva da conduta humana. E os subprodutos de tais estratégias (sócio-)adaptativas  (nelas incluídas, por certo, o direito), baseadas na complexidade cognitiva e lingüística do ser humano, são o resultado da enorme riqueza de nossa insólita e complicada  “inteligência social”.

Ora, se damos por boa a afirmação anterior, chegamos a uma cadeia causal que justifica parte do processo de surgimento da moral e do direito. Tem que ver com a circunstância da evolução filogenética, fixada já em nossos antecessores do gênero Homo, de uns cérebros o bastante grandes e complexos como para sustentar a arquitetura cognitiva que nos permite realizar juízos avaliativos a respeito do comportamento humano.

Mas a obtenção induvidável durante a filogênese humana de uns cérebros maiores e complexos levanta desde logo um enigma. Dado que o tecido neuronal é o mais “custoso” em termos de necessidades biológicas e energéticas (Aiello & Wheeler), não se pode pensar que se conseguira de forma acidental. Devem existir benefícios importantes derivados da disposição de maiores cérebros. Mas, quais são estes benefícios? Em que consistem?

A resposta pode intentar buscar-se mediante a comparação das condutas filogeneticamente fixadas. Outras espécies de certa complexidade social resolvem suas necessidades adaptativas por outras vias. Durante a evolução dos seres vivos em nosso planeta apareceram ao menos quatro vezes os comportamentos altruístas extremos nas chamadas “espécies eusociales”: os himenópteros (formigas, vespas, abelhas, térmitas), os camarões parasitários das anêmonas dos mares coralinos (Synalpheus regalis, Duffy), as ratas-topo peladas (Heterocephalus glaber, O’Riain, Jarvis, & Faulkes) e os primatas (com os humanos como melhor exemplo). Pois bem, nem os insetos sociais, nem as ratas-topo e nem os camarões parasitários dispõem de uma linguagem como a nossa.

Seus meios de comunicação podem ser muito complexos. As abelhas, por exemplo, efetuam um exercício de dança específico para transmitir informações sobre a localização e qualidade dos alimentos. Inclusive os animais da espécie mais próxima à humana, os chimpanzés, dispõem de uma variada gama de gestos, gritos e outras condutas para manifestar ou dissimular o medo e a agressividade, da mesma maneira com que manifestam certo sentido de justiça, mostram desejos de congraçar-se e mantêm relações sexuais complexas (de Waal)[4]. Mas jamais fazem uso de uma linguagem de dupla articulação com estrutura sintática.

A linguagem, pois, pode ser considerada como a chave para rastrear benefícios adaptativos capazes de supor uma pressão adaptativa no sentido dos grandes cérebros dos seres humanos.

A capacidade lingüística própria de nossa espécie, que é a ferramenta mais importante para a transmissão da cultura, aporta-nos certas vantagens claras na estratégia de sobrevivência social que os sistemas de comunicação mais simples não poderiam sustentar. Sem embargo, seguimos sem conhecer por que a vantagem adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez o que a quem”. Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as conseqüências das ações de nossos congêneres mas, por outro lado, não somos capazes  de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.

Para intentar entender e superar a obscuridade tradicional das discussões teóricas na análise da moral e do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural dos mesmos, senão que intenta dilucidar para que servem a moral e o direito no âmbito da (evolucionada) existência humana[5].O ponto de partida funcional não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou tradicional) de condicionar o conhecimento moral ou jurídico aos limites obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria experiência humana.

Não é necessário propor a existência de verdades morais ou jurídicas independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência da moral e do direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo. Com efeito, as discussões  funcionais sobre a existência  da moral e do direito contribuem para dissolver (ou pelo menos para amenizar) a bruma piedosa de limites indeterminados gerada pelas teorias habituais , uma vez que há uma grande diferença entre estudar o que um mecanismo pode fazer e estudar o que está desenhado para fazer. Saber para que foi desenhado um determinado artefato cultural – qual é  sua função – tem um enorme valor heurístico porque sugere os traços que deve conter. Permite-nos também inferir os tipos de problemas que um artefato deve poder resolver à perfeição assim como possibilita desenvolver tarefas que especifique que características funcionais devem ter um artefato para poder resolver determinados problemas. Muitos filósofos e juristas estudam a moral e o direito sem perguntar-se com que propósitos foram desenhados. Preferem mais bem descobrir suas estruturas estudando as coisas que são capazes de fazer. Sem embargo, na investigação acerca da singularidade da moral e do direito, o pensamento funcional é simplesmente iniludível; não podemos enumerar suas possibilidades sem pressupor um conceito de função.

Afinal, a moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade, e precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas bem informadas e justas.  Embora haja riscos e desconfortos envolvidos, nesse tema,  devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância  tradicional de investigar cientificamente os fenômenos éticos e jurídicos, de modo a compreender  como e por que a moral e o direito inspiram tal devoção, e descobrir  como deveríamos aperfeiçoa-los a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana.

E uma vez redimensionado e situado este tipo de análise sobre a moral e o direito a uma dimensão propriamente evolucionista e funcional, é possível conjeturar – no que aqui nos interessa de forma prioritária –  que se ambos foram criados pelo homem, para os propósitos do homem, então todos os propósitos que porventura possamos encontrar e extrair deles devem ser devidos, em última instância, aos propósitos do homem. Mas, “quais são estes propósitos?”, é algo assim como um mistério.

Sem embargo, e porque os humanos são sempre um problema tão sensível, parece razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que a resposta se encontre nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto é, de que a moral e o direito aparecem e se justificam  pela necessidade de competir com êxito em uma vida social extremamente complexa. Ao enfrentarem-se nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal, apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo capazes de manejar o universo de normas e valores.

Trata-se, insistimos, de uma hipótese. Mas é ao menos a mesma que justifica o tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas (Humphrey)[6]. Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de interação de  certas formas elementares de sociabilidade e valores que parecem estar arraigados na estrutura de nossa arquitetura mental.

Nesse sentido, uma explicação darwinista sobre a evolução da ética e do direito supõe que as normas de conduta representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade inata de inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o comportamento dos indivíduos.

De tal maneira se ampliaria o conhecimento social entre  os membros do grupo e se desenvolveria  nossa também inata capacidade para cooperar e resolver conflitos sociais sem necessidade de recorrer à formas de hierarquização e organização social típicas de numerosas espécies animais como é a agressividade[7]. Um tal mecanismo normativo supõe a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando (mais do que compondo conflitos) por uma via não conflitiva os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, possam ser válida e socialmente exercidos (Ricouer).

E entendido assim, parece razoável admitir que a evolução humana desenvolveu no homem a capacidade de estruturar valores morais e determinadas formas elementares de sociabilidade por meio das quais constrói estilos aprovados  de interação e de estrutura social. Neste particular, o avanço das ciências cognitivas tem ajudado a compreender melhor o funcionamento do cérebro, os correlatos cerebrais  que intervêm  no processo cognitivo de formular juizos morais acerca do justo ou injusto e a forma em que se ativam as neuronas, como as denominadas neuronas espelhos, que são as responsáveis do mecanismo de mimetização do que sucede no entorno por meio do processo de aprendizado[8]. Tudo isso nos adverte da plasticidade e da modificabilidade do cérebro, assim como da não-determinação do comportamento e as normas éticas, da íntima dependência que existe entre estas, o cérebro e o entorno social.

Esta plasticidade do  cérebro permite que cada experiência seja adaptada pelo sistema nervoso e que este mude ou se adapte segundo as circunstâncias, quer dizer, que o cérebro humano tem uma grande capacidade, através das ativações neuronais, para o aprendizado e a evolução. Mas este aprendizado dependerá da natureza e o contexto social, que são dois fatores essenciais na elaboração da conduta. Na sociedade atual, onde o respeito a muitos dos valores dos direitos humanos se encontram em crise, este contexto joga um papel fundamental. A educação é uma maneira de ensinar-nos a pensar. A genética é uma parte do cérebro, mas não podemos olvidar que há outra parte muito importante que é o entorno[9].

Daí porque  Dennet faz referência a que os indivíduos aprendem muito por imitação de modelos e ressalta que «não são os genes os que dão o aprendizado, senão esta imitação de modelos com a interação do entorno». O ser humano aprende de diversas maneiras e as mais fundamentais são, como lembra Dennet, a experiência e a imitação de modelos. A experiência é um background que se absorve consciente ou inconscientemente, mas é importante destacar que a distinção entre umas e outras não radica no cérebro senão no  tipo de atividades que realiza o indivíduo  e as percepções que este recebe de ditas atividades. O aprendizado dependerá então da própria experiência pessoal do indivíduo e de sua relação com o entorno familiar e social.

Assim , o ensino, os processos de educação explícitos e implícitos, formais e informais, resultam indispensáveis para assimilar o cooperativismo no indivíduo porque permite a interação entre o entorno e o cérebro. O cérebro  serve às crianças para aprender, mas  não é o cérebro a chave para este processo altruísta, senão o que se lhe ensina, os valores que se lhe trasmitem, os modelos que imita dentro do contexto social onde se formará.

O importante neste processo é que o ser humano seja consciente desta forma de aprendizado pois isso lhe permitirá apreciar as questões que lhe são diferentes como algo que não aprendeu, ainda que isto não significará que deva rechaçá-lo. Quer  dizer, que deve partir de uma certeza com perspectiva já que uma certeza sem perspectiva, sem um posicionamento consciente que lhe permita entender e aprender que suas certezas não são as únicas nem as superiores, pode levar o indivíduo a um individualismo injustificável e a pensamentos intolerantes. Esta perspectiva  e o respeito farão possível  que , no ato de conhecer ao Outro, o indivíduo se conheça a si mesmo e seja consciente da fragilidade da condição humana.

Para assimilar este processo de aprendizado de normas cooperativas ou altruístas, os seres humanos contam com uma ferramenta indispensável produto da própria evolução do cérebro e que o diferencia do resto dos seres vivos do planeta: a linguagem. Sem linguagem , já dissemos antes, não pode haver cultura. É o que nos diferencia dos animais e que foi criada a partir da evolução do homem e seu cérebro. A linguagem não é somente um meio de comunicação senão uma maneira de arrumar o mundo ( Derek Bickerton). A linguagem é ao mesmo tempo uma ferramenta para o aprendizado e um aprendizado em si mesmo. Um conteúdo e um formador de conhecimentos e normas. Aportações  fundamentais das disciplinas humanísticas e naturais ao longo de todo o século XX se dão a mão nestas afirmações  e o urgente que é converter estes consensos em planos de ação: entender e fazer da palavra , da linguagem, do diálogo, a chave para a convivência pacífica da Humanidade.

Sem embargo, o problema ao que se enfrenta o indivíduo é que na sociedade atual existe uma desorientação psicológica-ética já que não sabe armonizar as normas sociais com os traços característicos da natureza humana. Valores que imperam na sociedade atual como o consumismo, o egoísmo ou a intolerância produzem uma dissociação entre a mente, a ética e o direito. A ciência é a ferramenta que pode levar-nos a entender melhor o fato de que o desenho de um modelo normativo (moral ou ético-jurídico) adequado pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia  de uma ponte entre natureza e cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana, isto é, em forma de uma explicação de como são  os seres humanos, considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Assim que o grande reto da sociedade é, a partir destes conhecimentos científicos, encontrar a maneira que os indivíduos aprendam a comportar-se de forma altruísta ante uma sociedade que tende cada vez mais ao egoísmo. Cientistas, psicólogos e filósofos já concluíram que não há uma distinção clara entre cérebro e sentimientos morais. Mas sim que o aprendizado através de modelos (quer dizer, a educação) – e isto inclui a todos os setores de uma sociedade – poderá ajudar a construir um ser humano altruísta, assim como uma sociedade mundial que viva mais longe do conflito.

Dito de outro modo, porque nosso cérebro está desenhado pela seleção natural para termos tanto instintos sinistros como instintos luminosos ( os seres humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e anti-social) precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes (Ridley) ; ou, na aguda observação de Sandel : na presença de indivíduos dotados de certas qualidades de caráter, de certas disposições morais que os levam a identificar com a sorte dos demais e, em definitiva, com os destinos de sua comunidade, o melhor será deixar de lado a idéia liberal do Estado neutral, para substituí-la por um Estado ativo em matéria moral, e decidido a “cultivar a virtude” entre seus cidadãos.

Assim pois, o objetivo de uma boa educação e o objetivo de uma sociedade próspera, deveriam ser o de fomentar a virtude de cultivar o melhor da natureza humana e, do mesmo modo, reprimir o pior.Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um conviver ( a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum[10]: o modo como se cultivem os traços de nossa natureza e a forma  como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo da cultura , da civilização , da nossa condição de cidadão e de nossa própria educação. 


NOTAS

ÆPara a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006.

[1]E parecem ser três as condições (necessárias e suficientes) que contribuiram para a evolução da moralidade: 1. valor do grupo ou inclusão social, que consiste na dependência  do grupo para encontrar comida ou para defender-se dos inimigos e depredadores; 2. apoio mútuo ou preocupação pela comunidade,  que consiste na cooperação e intercâmbio recíproco dentro do grupo; 3. conflito dentro do grupo, condição segundo a qual os membros individuais de um determinado grupo têm interesses díspares (de Waal).

[2] Assim, por exemplo, os animais não humanos matam, mas não cometem um “assassinato”: é impossível para um pássaro “assassinar”  outro pássaro, porquanto a palavra  “assassinato” se reserva para a morte intencionada, deliberada, iníqua, de um ser humano por outro (podemos matar  um cachorro, mas não assassiná-lo e se um cachorro nos mata  não é um assassinato). Da mesma forma, não parece razoável afirmar que um pato  violou   outro pato. E muito embora exista  “canibalismo” sexual entre as aranhas  ( as fêmeas esperam que o macho haja terminado de fecundá-las e então o matam e o comem), gaivotas  “lésbicas”, gusanos “homossexuais” e pássaros “cornudos”, o significado destes termos só adquirem potenciação cultural quando produzidos e metabolizados  por  nosso mecanismo cognitivo neo-cortical e vinculados a aspectos da existência  humana (Dennett).

[3] Imagine uma situação onde a sua interferência pode significar o sacrifício de uma vida para salvar outras cinco. Note-se que, na filosofia, não há consenso acerca da solução para este tipo de dilema. Para a neurociência, contudo, o  raciocínio consequencialista de John Stuart Mill ( segundo o qual o que importa são as ações que produzem a maior felicidade à maior quantidade de pessoas, ou seja, o “bem maior”) parece estar associado a um padrão de ativação cognitiva ( pré-frontal) , enquanto buscar o comportamento moral de Kant (segundo o qual o importante é “agir moralmente”, a intenção de quem produz a ação, independente do seu resultado relativamente ao “bem maior”: é mais importante não vulnerar os direitos de outra pessoa que obter um resultado ideal) envolve um padrão “social-emocional” de ativação cerebral que envolve, predominantemente, circuitos emocionais. O que acontece quando há um conflito entre esses dois tipos de raciocínios? Pois bem, para responder esta pergunta, Greene e colaboradores  criaram cenários onde decisões pelo bem maior envolvessem a quebra de uma promessa, colocando as predições de Mill e Kant em pratos opostos da balança. Como esperado, e com um resultado que não dista muito dos experimentos anteriores, a manutenção de uma promessa em detrimento do “bem maior” encontra-se associada a ativação de circuitos sociais-emocionais. Essa ativação também acontece enquanto se decide por quebrar a promessa em prol de um julgamento utilitário – mas é sobrepujada pela ativação , instantes mais tarde, do córtex pré-frontal dorso-lateral. Confrontado com dilemas, portanto, a primeira reação do cérebro parece ser emocional, em prol de uma moral interna que, no entanto, pode ser silenciada se o córtex pré-frontal optar pelo bem maior, contra os impulsos de outras regiões do mesmo cérebro. Um exemplo ilustrará melhor ao que estamos nos referindo: suponhamos que um indivíduo vá em seu carro novo e vê a um homem estendido na calçada. Sofreu um acidente e está ensanguentado. Poderia levá-lo ao hospital e salvar-lhe a vida; sem embargo, mancharia de sangue seu carro novo. É moralmente aceitável deixá-lo aí? Cambiemos de cenário. Um indivíduo recebe um pedido por correio donde se diz que, se envia 100 reais, salvará a vida de 10 crianças famintas.É aceitável enviar o dinheiro? Ao analisar este tipo de dilemas, Greene e colaboradores descobriram que, ainda que as opções são superficialmente as mesmas – não faças nada e preserva teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é pessoal, enquanto que o segundo é impessoal. Em síntese, os estudos comprovam que as decisões ante dilemas pessoais supoem mais atividade cerebral nas zonas associadas com a emoção e a cognição moral. E a teoria que justifica esta circunstância é a de que, desde uma perspectiva evolutiva, as estruturas neuronais que associam os instintos com a emoção se selecionaram ao largo do tempo porque resulta benéfico ajudar à gente ou cumprir uma promessa de modo imediato; o instinto visceral, ou moral, é o resultado de processos selecionados ao largo do processo evolutivo: dispomos de processos cognitivos que nos permitem tomar decisões morais rápidas que aumentarão nossa probabilidade de sobrevivência ( se estamos programados para salvar a um indivíduo ou cumprir as regras de reciprocidade do intercâmbio social, todos sobreviveremos melhor). O certo é  que, de acordo com os experimentos provenientes da neurociência cognitiva, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Por exemplo, Casebeer, tendo em vista as numerosas filosofias morais que existem, tomou como ponto de partida de suas investigações acerca das zonas cerebrais  que se ativam durante o raciocínio ou juízo moral, as três filosofias ocidentais mais importantes: o utilitarismo de Stuart Mill , a deontologia de Kant e a teoria da virtude de Aristóteles (que trata de cultivar a virtude e evitar os vícios). Concluiu sua análise com a seguinte observação: “Assim que poderíamos dizer […] que estes três enfoques situam-se em diversas zonas do cérebro: frontal (Kant); préfrontal, límbica e sensorial (Mill); a ação corretamente coordenada de todo o cérebro (Aristóteles)”. Seja como for, no atual panorama  científico tem aparecido vários estudos donde se afirma que  existe , no cérebro, uma versão do raciocínio ou juízo moral. Já se descobriu que determinadas regiões do cérebro, normalmente ativas durante os processos emocionais, se ativam diante de alguns tipos de juízo moral, mas não diante de outros. Os encarnizados debates seculares sobre a natureza das decisões morais e sua similitude ou diferença se resolvem agora de maneira rápida e clara com a moderna imagem cerebral. E os novos resultados indicam que, quando alguém está disposto a atuar segundo uma determinada crença moral, é porque a parte emocional de seu cérebro se ativou ao pensar na questão moral. Assim mesmo, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa. Trata-se de uma assombrosa novidade para o conhecimento humano, porque ajuda a entender que a resposta automática do cérebro pode predizer nossa resposta moral. Resumindo: os novos resultados das imagens cerebrais parecem indicar que o cérebro responde aos grandes dilemas morais subjacentes, isto é, de que parece haver mecanismos subconscientes inatos comuns que se ativam em todos os membros de nossa espécie como resposta aos desafios morais. É como se todos os dados sociais do momento, os interesses de sobrevivência pessoal que todos possuímos, a experiência cultural que já vivemos e o temperamento básico de nossa espécie alimentassem os mecanismos subconscientes e inatos que todos possuímos e daí surgira uma resposta, um impulso para atuar ou deixar de atuar (Gazzaniga).Nesse sentido, o fato de que os juízos morais são maioritariamente intuitivos e inatos talvez seja (ou constitua) a chispa moral, o aglutinante que impede que nossa espécie se destrua a largo prazo.

[4]Sarah Brosnan e Frans de Waal indicaram mediante um experimento muito elegante como os monos capuchinos (macaco prego), Cebus apella, dispõem de um sentido agudo da justiça. Em condições experimentais, aprendem a intercambiar fichas por comida com seus cuidadores humanos, mas se negam a fazê-lo se o trato oferecido é pior do que aquele com que se brinda a outro mono cujo intercâmbio é por ele contemplado e avaliado. Este descobrimento de que os monos capuchinos estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre um  amplo campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se à perfeição com as idéias dos etólogos e psicólogos (como Humphrey) acerca do “porquê”  do aparecimento dos grandes cérebros dos primatas. Note-se, neste particular, que já se encontraram algumas evidências etológicas no sentido de que o castigo retributivo se acha inserto no mais profundo de nosso desenvolvimento evolutivo (Brosnan & de Wall; Fehr et al.). Uma hipótese plausível sustenta que o retributivismo foi uma ferramenta útil para a manutenção da ordem social durante a evolução , com o que certos mecanismos psicológicos que o sustentam puderam haver sido fixados no  transcurso da mesma (Clark). Robin Dunbar  chegou a conclusões semelhantes: descobriu uma correlação direta nos primatas sociais entre o tamanho do neocórtex (a parte do cérebro que pensa) e o tamanho dos grupos, típico daquela espécie. Dunbar deduziu que o poder intelectual evoluiu em função das exigências  da vida social : a sofisticação cognitiva de nossos ancestrais primatas interagiu com o tamanho crescente dos grupos  e produziu uma forte  pressão seletiva que acelerou o crescimento do cérebro e a conseqüente sofisticação da mente humana. Em resumo, teríamos aqui a resposta de que as vantagens dos cérebros residem nas atividades sociais (na complexidade das relações sociais) e que quanto maior for o grupo social, maiores serão os benefícios conferidos pela evolução do cérebro e mais fortes serão as pressões seletivas para essa evolução. Dito de outro modo, é a sociabilidade que impulsiona a evolução da inteligêngia e, conseqüentemente, do tamanho do cérebro ou , nas palavras de Humphrey : a função do intelecto  é resolver problemas sociais.(Foley).

[5] Tal como Aristóteles fez notar no nascimento da ciência humana, nossa curiosidade pelas coisas manifesta-se de diferentes formas, todas inerentes ao mundo mundano (ao reino do espaço e do tempo) e que não podem existir separadamente dele. Seus pioneiros esforços por conseguir uma classificação destas formas estão prenhados de sentido. Identificou Aristóteles quatro perguntas básicas para as quais buscamos respostas a respeito de algo e  denominou   estas (as suas respostas) de as quatro  aitia – um termo grego inexprimível , ainda que tradicionalmente traduzido, de maneira um pouco estranha, pelas quatro “causas”. Nos interessa, aqui, a que se refere ao fato de que podemos mostrar curiosidade acerca do  propósito, objetivo ou  fim de algo, a qual Aristóteles chamou  telos, às vezes traduzido, também estranhamente, como  causa final”. É necessário grande esforço de compreensão e adaptação para conseguir que estas quatro aitias de Aristóteles se acomodem como respostas às quatro interrogações habituais “que”, “onde”, “quando” e “por que”; esta acomodação é só parcialmente boa. Não obstante, as perguntas que começam com “por que” mantêm mais estrita correspondência com a interrogação pela quarta “causa” de Aristóteles, isto é, pelo telos de uma coisa. “Por que isto?”, perguntamos constantemente. “Para que serve isto?” é pergunta tão habitual, que já passou a fazer parte de nossa cotidiana existência.  De fato, durante séculos estes “por quês” foram reconhecidos como problemáticos por filósofos e cientistas; e tão distintos, que os problemas que suscitam acabaram por merecer um nome: teleologia (Dennett). Assim que uma explicação teleológica é aquela que explica a existência ou a ocorrência de algo citando como prova o objetivo ou propósito ao que serve essa coisa. Os artefatos são os casos mais óbvios: o objetivo ou propósito de um artefato é a função a cumprir para a qual foi desenhado por seu criador. Não existe controvérsia acerca do telos de um martelo: golpear e introduzir pregos. O telos de artefatos mais complicados, como uma câmara de vídeo, um telefone celular com suas inúmeras opções de programação, um scaner para tomografia axial computadorizada (TAC) é, inclusive, mais óbvio. A idéia é certamente natural e atrativa: se observamos um relógio de bolso e nos perguntamos por que tem um vidro transparente em um de seus lados, a resposta nos induz a pensar nas necessidades e desejos de quem utiliza estes relógios: porque desejam saber que horas são, olhando através do vidro transparente e protetor, e assim em diante. Se não fosse por estes fatos que se relacionam conosco, para quem (e por quem) o relógio foi criado, não haveria explicação para o “por que” de seu vidro. E o mesmo ocorre , por exemplo, com esse artefato cultural a que denominamos de “direito”.

[6] O estudo de populações de primatas sugere que uma das estratégias evolutivas desenvolvidas para lidar com as exigências da vida social foi a construção de mapas sociais mentais, ou seja, mapas de relacionamento capazes de informar a hierarquia social de cada primata do grupo. De acordo com Sterelny, a capacidade de construir mapas sociais mentais pode ser uma origem plausível das representações em termos de intencionalidade (crenças/desejos), mas depende do preenchimento de algumas condições, que incluem : a) exigências mnemônicas, para reconhecer os outros indivíduos do grupo e sua posição na hierarquia social; b) o desenvolvimento da racionalidade estratégica, tendo em vista que a ação mais eficaz em um ambiente social depende da expectativa sobre a ação dos outros indivíduos, e isso exige maior flexibilidade comportamental; e c) o aprendizado social, que é capaz de diminuir muito os custos do aprendizado por tentativa e erro, tanto em termos de segurança quanto em termos de eficiência, porque os adultos moldam o ambiente de forma a selecionar o que os filhotes devem aprender (ensinam, assim, o que é relevante aprender), ao mesmo tempo em que os protegem de ambientes potencialmente perigosos (Sterelny).

[7] Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander, a principal força hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os conflitos de interesses estão onipresentes e os esforços competitivos dos outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais caracteristicamente marcante de nosso panorama evolutivo. Em virtude de que todos temos as mesmas necessidades, os outros membros de nossa própria espécie são nossos mais temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego, companheiro sexual, comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, são também nossa única fonte de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e proteção. Isto significa não somente que a qualidade de nossas relações sociais foi sempre vital para o bem estar material de nossa espécie, como a solução pacífica dos conflitos e a igualdade passaram a ser uma estratégia eficaz para evitar os altos custos sociais da competição e da desigualdade material. Essas considerações vão ao âmago mesmo dos dois tipos distintos de organização social encontrados entre os humanos e os primatas não hominídeos: o que se baseia no poder e domínio (“agônico”) e o que se baseia em uma cooperação mais igualitária (“hedônico”). Devido a que as sociedades de classes tem sido predominante ao largo da história da humanidade, temos a tendência a considerar como norma humana as formas agônicas de organização social. Mas isso passa por alto da evidência de que durante nossa pré-história como caçadores-recoletores – a maior parte da existência humana – vivemos em grupos hedônicos. De fato, os antropólogos qualificaram de “firmemente” igualitárias as sociedades modernas de caçadores-recoletores. Em uma análise de mais de um centenar de informes antropológicos sobre vinte e quatro sociedades recentes de caçadores-recoletores extendidas ao largo do planeta, Erdal e Whiten  chegaram à conclusão de que estas sociedades se caracterizavam por um “igualitarismo, cooperação e reparto a uma escala sem precedentes na evolução dos primatas…, de que não há hierarquia dominante entre os caçadores-recoletores…, e de que o igualitarismo é um universal intercultural que provém sem lugar a dúvidas da literatura etnográfica”. Em resumo, o igualitarismo das sociedades de caçadores-recoletores – recentes em termos evolutivos –, que marcou as pautas de nossa existência passada enquanto seres humanos “anatomicamente modernos”, deveria considerar-se como uma eficaz estratégia sócio-adaptativa que evitava os altos custos sociais da desigualdade material. Paralelamente a este processo evolucionou a justiça – e a igualdade proporcional aristotélica é uma manifestação explícita deste paralelismo – , cujo núcleo duro e indisponível reside na circunstância de que  todos os seres humanos devem ser considerados como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração igual em todos os vínculos sociais relacionais que se consideram constitutivos da autonomia e liberdade do indivíduo , quer dizer, que permitem a cada um viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em uma comunidade de homens livres e iguais unidos por um comum e fraterno sentimento de legitimidade e de submetimento ao direito, e em pleno e permanente exercício de sua cidadania. Neste particular, o descobrimento de que os Cebus apella (macaco prego) estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre  igualmente um  amplo campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se à perfeição com as idéias  acerca da origem e da evolução da igualdade entre os primatas. Tem, portanto,  sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade. Dito de outro modo, estas três virtudes que configuram a noção de justiça  somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional à dignidade humana. (Atahualpa Fernandez).

[8] Uma larga e rica história de investigação psicológica esboçou a chamada hipótese do altruismo empático, que intenta explicar a conduta pró-social que adotamos quando vemos a outro ser em apuros. Automática e inconscientemente simulamos estes apuros em nossa mente, que a sua vez nos fazem sentir mal, não de uma maneira abstrata senão literalmente mal. Nos contagiamos das sensações negativas da outra pessoa, e para aliviar esse estado próprio nos vemos motivados a atuar. Vários estudos corroboram a idéia de que a manipulação dos sentimentos com relação a um indivíduo incrementa a atitude cooperativa. Por exemplo, a percepção de gestos de angústia ou dor no outro propicia que a conduta seja mais altruísta. Já se realizaram incontáveis experimentos para corroborar essa idéia geral. John Lanzetta e colaboradores  já demonstraram em várias ocasiões que a gente tende a responder ao sentido do tato, do gosto, da dor, do medo, da alegria e do entusiasmo dos demais com análogos padrões fisiológicos de ativação.Literalmente sentem os estados emocionais dos demais como se fossem próprios. Esta tendência a reacionar ante o sinal de dor ou sofrimento dos demais parece inata: se há demonstrado em crianças recém nascidas, que choram em resposta ao sinal de dor de outras crianças nos primeiros dias de vida (Simner). Alguns experimentos neurofisiológicos e de imagem cerebral sugerem que as neuronas espelho existem nos seres humanos e que são as responsáveis da “compreensão das ações”, quer dizer, que têm a função de contribuir à compreensão e à imitação das ações alheias.(Rizzolatti et al.). Em resumo, este sistema neuronal parece ser o causante de que os humanos tendamos a imitar aos que nos redeiam e o responsável de que sintamos uma emoção quando vemos a alguém emocionar-se: literalmente, sentimos essa mesma emoção. Estas “neuronas expelo” também nos permitem “ler” a mente do Outro e a identificar-se com ele.

[9] Dito de outro modo, significa dizer que também resulta precipitado e pueril pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral e normativo já nos abre a porta  a uma humanidade melhor. Me temo que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor  conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples! Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida da moral e do direito, a própria idéia e essência da moral e do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural. O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência, a ciência cognitiva, a primatologia, a genética do comportamento e a psicologia evolucionista – para citar apenas as mais representativas-  nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a busca de um adequado critério ético ou moral pode considerar-se, antes de tudo,  como a arqueologia das estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações morais e ético-jurídicas.

[10] Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer : “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzi-la (…) isso, creio eu, consiste a esquerda (…) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para  levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”. 

 

ATAHUALPA FERNANDES: Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular/Unama-PA; Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

 


REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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