No Rio Grande do Sul, Juiz de Direito recebe pena de quatro meses por abuso de autoridade

DECISÃO:  TJRS – O  Órgão Especial do TJRS´,   formado por 25 desembargadores,  julgou no dia 24/09/07, o juiz Jairo Cardoso Soares,  condenando-o por 22 X 3 votos,  a uma pena de quatro meses de prisão, pela prática de crime de abuso de autoridade, convertida em prestação pecuniária no valor equivalente a 50 salários mínimos, correspondendo nesta data a R$ 19.000,00.

A Ação Penal que teve origem na denúncia, formalizada pelo então procurador-geral da Justiça Roberto Bandeira Pereira, narra que “no dia 02 de julho de 2005, pelas 17h40min, na agência do Banco do Brasil da cidade de Lavras do Sul, o denunciado, com abuso de autoridade, executou medida privativa de liberdade e atentou contra a liberdade de locomoção de Seno Luiz Klock, gerente daquela agência, ao prender-lhe em flagrante delito".

Segundo a  acusação,  Jairo "na condição de magistrado, acompanhado de dois oficiais de justiça, do delegado de Polícia Alcindo Romeu Dutra Martins e de outro policial civil, ambos da Delegacia de Policia de Lavras do Sul, bem como de quatro policiais militares, adentrou nas dependências do banco, tendo, aos gritos, acusado a vítima de estelionato e determinado a sua condução, com algemas, à Delegacia de Polícia local, mediante os seguintes termos: ´Leva agora. A explicação é na Delegacia. E é sem fiança!!!´, onde veio a ser lavrado o respectivo auto”.

Segundo consta no voto do relator Desembargador Vladimir Giacomuzzi, o juiz Jairo Cardoso Soares mantinha pendências financeiras superiores a pouco mais de R$ 30 mil com o Banco do Brasil e com administradoras de cartões de crédito.

No dia 1º de julho de 2005, o magistrado informou à instituição financeira que tendo recebido um dinheiro, fizera um depósito suficiente para a liquidação de suas pendências. Na hora de zerar as contas, porém, teriam faltado R$ 700. Com a realização do depósito complementar, a situação – prometeu o banco – estaria regularizada em 48 horas.

Porém, já no dia seguinte, por volta das 16 h. – sabendo que ainda se encontrava cadastrado na Serasa – "impaciente e exaltado, Jairo telefonou para a agência dizendo que lá iria  a fim de prender o gerente, o que de fato ocorreu pouco mais tarde, configurando-se injustificável arbitrariedade no ato consumado" – segundo revelam os autos processuais.

O gerente Seno Luiz Klock (preso), o juiz, policiais e testemunhas foram todos para a delegacia, realizando-se demorados procedimentos. Por volta das 22 h, o delegado Alcindo Romeu Dutra Martins proferiu o seguinte despacho nos autos do inquérito: "constata-se que o autuado efetivamente infringiu o art. 171 do Código Penal e por ter curso superior (bacharel em Direito) e ser crime inafiançável será recolhido ao Pelotão da Brigada Militar, ficando à disposição da Justiça".

O flagrante foi homologado pela Juíza Alessandra Couto de Oliveira, de uma comarca vizinha, pois em Lavras do Sul, local dos fatos,  a pretensa vítima era o único  Magistrado da cidade, tendo sido concedido o benefício da liberdade provisória ao acusado.

Posteriormente, em 21 de julho de 2005, o Banco do Brasil formalizou  representação na Corregedoria-Geral da Justiça contra o juiz Jairo Cardoso Soares, através de  petição assinada pelo  advogado Ademar Pedro Scheffler.  Segundo a representação,  "Jairo agiu não como cidadão comum, mas na condição de magistrado, movimentando um aparato policial nunca visto na cidade: duas viaturas e nove acompanhantes , dentre oficiais de justiça, policiais e PMs".

Instaurado processo administrativo, o juiz – "por procedimento incompatível à condição de magistrado" –  sofreu (em 14 de novembro de 2005) a imposição da pena disciplinar de remoção compulsória, sendo transferido de Lavras do Sul para a comarca de Três de Maio.

A seguir, o  presidente do TJ gaúcho, à época, Osvaldo Stefanello, oficiou ao procurador-geral da Justiça, enviando farta prova documental "para as devidas providências", decorrendo daí, o oferecimento da  denúncia criminal pela prática do crime de abuso de autoridade, que resultou na condenação do Juiz de Direito, que tem  quase vinte anos de exercício na magistratura gaúcha.  (Proc.  nº  70015391626).

________________________________________________________________________________

Eis a íntegra do voto do relator, Desembargador   Vladimir Giacomuzzi:

PENAL.  PROCESSO PENAL. CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA.

Pratica o crime de abuso de autoridade previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898/65, o Juiz de Direito que, a pretexto de haver a instituição financeira – da qual era gerente o ofendido – se apropriado ilegalmente de dinheiro que o Magistrado mantinha naquele estabelecimento bancário, dá-lhe voz de prisão, determinando ao Delegado de Polícia que, convocado, o acompanhava na diligência, conduzisse o preso à repartição para a lavratura do ato, numa tentativa inútil de mascarar a arbitrariedade praticada.

Preliminares de nulidade do processo rejeitadas.

Ação penal originária julgada procedente.

Processo-Crime – Órgão Especial

Nº 70015391626 – Comarca de Porto Alegre

MINISTERIO PUBLICO – AUTOR

JAIRO CARDOSO SOARES – DENUNCIADO

SENO LUIZ KLOCK – ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO

BANCO DO BRASIL SA – INTERESSADO

RELATÓRIO
Des. Vladimir Giacomuzzi (RELATOR)

Na sessão do dia 04-09-2006 este Órgão Especial recebeu a denúncia apresentada pelo Procurador-Geral de Justiça contra o Juiz de Direito Jairo Cardoso Soares por entender que o acusado teria praticado o crime de abuso de autoridade previsto  no art. 4º, alínea “a” da Lei 4.898/1965, que pune referida infração penal com multa, detenção por dez dias a seis meses e, ou, com a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de até três anos.

A inicial acusatória foi assim redigida:

"No dia 02 de julho de 2005, pelas 17h40min, na agência do Banco do Brasil da cidade de Lavras do Sul, o denunciado, com abuso de autoridade, executou medida privativa de liberdade e atentou contra a liberdade de locomoção  Seno Luiz Klock, gerente daquela agência, ao prender-lhe em flagrante delito.

Na ocasião, o acusado, na condição de magistrado, acompanhado de dois Oficiais de Justiça, um deles nominado José Humberto Rosa da Mota, do Delegado de Polícia Alcindo Romeu Dutra Martins e de outro policial civil, ambos da Delegacia de Polícia de Lavras do Sul, bem como de quatro policiais militares, dentre eles Sérgio dos Santos Leivas, adentrou nas dependências do banco, tendo, aos gritos, acusado a vítima de estelionato e determinado a sua condução, com algemas, à Delegacia de Polícia local (mediante os seguintes termos: "Leva agora. A explicação é na Delegacia. E é sem fiança!!!), onde veio a ser lavrado o  respectivo auto. O denunciado agiu com abuso de autoridade, realizando prisão manifestamente ilegal, sujeitando o gerente Seno a situação vexatória, tanto face à comunidade local como perante seus funcionários, fato que precipitou o seu afastamento daquela cidade. A vítima só não foi algemada porque acompanhou os policiais sem oferecer resistência.

Motivou o delito divergência entre o acusado e o Banco do Brasil, agência Lavras do Sul. No dia 01/07/2005, o Magistrado teria informado à instituição financeira a realização de depósito suficiente para a liquidação de suas pendências. Porém, teriam faltado 700 reais. Realizado depósito complementar, a situação estaria regularizada em 48 horas. Porém, no dia seguinte, pelas 16h, o Magistrado, impaciente e exaltado, telefonou para a agência dizendo que lá iria  a fim de prender o gerente, o que de fato ocorreu pouco mais tarde, configurando-se injustificável arbitrariedade no ato consumado."

A decisão de recebimento da denúncia foi precedida de audiência especial dia 28-06-2006,  presidida pelo relator do feito, visando possibilitar  às partes a composição civil dos danos e a efetivação de transação penal, ao feitio do preconizado nos artigos 69 a 76 da Lei 9.0099/95.

A tentativa de composição mostrou-se inexitosa porque o ofendido declarou não alimentar interesse na composição dos danos, naquele momento. O denunciante, de sua vez, declarou que não proporia  transação penal por entender que os motivos e circunstâncias  determinantes da prática do fato atribuído ao imputado demandavam a deflagração de processo criminal tradicional, em busca da sanção cominada na lei especial, de vez que, no seu entendimento, a medida alternativa permitida pela transação, neste caso, não se mostrava bastante e suficiente para os fins de prevenção e reprovação da infração penal praticada. Na mesma oportunidade adiantou que, pelos mesmos fundamentos, não haveria de propor a suspensão condicional do processo (fls. 220 a 222).

Seguiu-se ao ato processual de recebimento da denúncia l a resposta escrita do acusado limitada ao exame de questões processuais relacionadas com a alegada  nulidade da audiência realizada, por entender a defesa   mostrar-se  insuficiente  a motivação do denunciante em   recusar-se a propor a transação penal e a posterior suspensão condicional do processo, argumentando com direito do acusado à transação e, superada esta fase, com  direito  ao “sursis” processual (fls. 233 a 243).

Esta matéria acabou sendo apreciada, como preliminar, por este Órgão Especial, na sessão de 04-09-2006 que, após rejeitá-la, recebeu a denúncia, como já referido, tendo o acórdão, nesta parte, recebido a seguinte ementa:

Penal e processual penal. crime de abUso de autoridade. magistrado. TRANSAÇÃO PENAL E SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. RECEBIMENTO DA DENUNCIA.

A transação penal, bem como a suspensão condicional do processo, pressupõe acordo entre as partes, cuja iniciativa de proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público, como desdobramento da prerrogativa prevista no art. 129, I da Constituição Federal.

Inocorre qualquer irregularidade, de parte do Ministério Público, ao oferecer denúncia formal ao invés de transação penal ou suspensão condicional do processo, ao Magistrado acusado da prática de abuso de autoridade quando, como no caso, fundamenta sua decisão no entendimento de que os motivos e as circunstâncias do fato indicavam que aquelas medidas não se mostravam necessárias e suficientes à repressão e à prevenção da infração perpetrada.

Nulidade Repelida.

A defesa do réu ofereceu embargos de declaração contra o acórdão. Os embargos foram no entanto  desacolhidos (fls. 530 a 540), seguindo-se a apresentação de habeas corpus junto ao egrégio STJ objetivando reformar a decisão de recebimento da denúncia, pelas razões antes resumidas.

 A liminar requerida pelos ilustres impetrantes na aludida ação constitucional não foi deferida pelo Senhor Ministro Presidente daquela Corte Superior, estando os autos conclusos a sua excelência o Senhor Ministro Relator, já com parecer do Ministério Público, para julgamento desde 13/04/2007, sem previsão de sua inclusão em pauta, conforme informação prestada pelo servidor que, de ordem,  respondeu ao ofício encaminhado (HC 73379/RS – Rel. Ministro Nilson Naves  – fls. 863).

O ofendido Seno Luiz Klock foi admitido no feito como assistente à acusação.
Seguiu-se o interrogatório do acusado (fls. 371 a 391), a defesa prévia (fls. 485-486) e depois a tomada de depoimento das testemunhas da acusação e da defesa (fls. 410 a 482; 619 a 620;  752 a 762; 788 a 791).

Na fase do art. 10 da Lei 8.038/90 o Ministério Público viu deferido pedido de diligência, devidamente cumprida (fls. 798 e 804 e 812 a 818), nada tendo requerido a defesa. Vieram as alegações escritas da acusação, assistência e defesa.

Em diligência determinada pelo relator, foi regularizada a tomada de depoimento deprecado de uma testemunha que havia sido arrolada pelo Ministério Público (fls. 960 a 967), reabrindo-se o prazo para alegações escritas das partes.

O Ministério Público, depois de examinar toda prova produzida, pede a procedência da ação penal, com a condenação do acusado (fls. 879 a 882vº).

A assistência à acusação, realçando a informação do SERASA adentrada ao processo que esclarece existir registro naquele órgão de pendência bancária do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, incluído em 15-06-2005 e 16-07-2005 e excluído em 14-07-2005 e 05-08-2005, respectivamente, e registro de cheque sem fundo emitido contra o Unibanco, com registro de inclusão em 21-06-2005, 28-05-2005, 1º-06-2005 e 17-05-2005 e exclusão em 12-07, 1º-06,07-06 e 28-05, no ano de 2005, entendendo demonstrada a prática do crime atribuído ao acusado, pleiteou sua condenação (fls. 824 a 825).

A defesa do réu, inicialmente, reiterou a reclamação contra a decisão de não suspender a tramitação do processo por ausência de promoção ministerial neste sentido, argumentando que “a circunstância de ter sido denunciado por fato definido como crime de abuso de autoridade não pode ser discricionariamente invocado como fator impeditivo ao deferimento do pedido, haja vista a grande quantidade de decisões neste sentido em processos por crimes definidos na Lei 4.898/65, como é público e notório”. Prossegue a defesa do réu  sustentando que o acusado não pode vir a ser condenado porque agiu como  previsto no art. 5º, LXI da CF/88 e no art. 301 do CPP, isto é,  no exercício regular de direito, como cidadão que teria sido ilegalmente expropriado de seu direito pela instituição financeira gerenciada pelo ofendido. Sublinha serem distintas e independentes as esferas administrativa e jurisdicional, daí porque não pode o tribunal, no julgamento deste processo, deixar-se influenciar pela decisão administrativa que removeu o acusado da comarca de Lavras do Sul por conveniência do serviço (fls.830 a 846).

É o relatório.

VOTOS
Des. Vladimir Giacomuzzi (RELATOR)

Este processo dá conta de um incidente que iniciou com o fato de um cliente de uma instituição financeira registrar débito em sua conta corrente na agência do banco com o qual mantinha contrato padrão de financiamento de empréstimo CDC e cheque especial, que  evoluiu com a  reclamação do financiado pela  má prestação  de serviço bancário e culminou, lamentavelmente,  com  um caso típico de abuso de poder, no meu entendimento.

Com efeito, revelam os autos que o acusado Jairo Cardoso Soares, Juiz de Direito de Lavras do Sul, era cliente do Banco do Brasil, agencia local, registrando em junho de 2005 a contabilidade daquela instituição um débito do correntista superior a R$30.000,00 proveniente de empréstimo CDC, cheque especial e cartões de crédito, prontificando-se, no entanto, o devedor a liquidar a pendência, tendo, com este propósito, tratado pessoalmente mais de uma vez  com o sub-gerente Roberto Vivian.

A 29-06-2005 o acusado fez remessa de numerário em montante suficiente para cobrir todo o débito pendente, de acordo com os valores que lhe tinham sido apresentados. Aconteceu, no entanto, que o gerente Seno Klock teria comandado eletronicamente  importância a maior de crédito  em favor do  cartão Visa, deixando em aberto a dívida para com o cartão Mastercard. Esta ultima instituição, diante do não pagamento do débito, procedeu às comunicações de praxe nestas situações (SPC, SERASA, etc). Sentindo-se prejudicado com o acontecido, o cliente foi a agencia bancária e tratou com o sub-gerente Vivian, tendo ficado esclarecido que procedido o conserto do equívoco, ainda faltaria o aporte de cerca de R$ 700,00 (setecentos reais) o que foi providenciado pelo acusado, sem correspondência, porém, de idêntico procedimento por parte da instituição financeira na escrituração da conta corrente e junto aos credores externos (Credicard). Nova reclamação do cliente foi providenciada.

O sub-gerente Vivian teria prometido tudo regularizar no prazo de 48 horas.

Antes do prazo, porém, segundo a versão de Vivian em seu longo depoimento de fls. 960 a 967, a 14/07/2005, sem conseguir falar pelo telefone com o gerente Seno, o acusado “perdeu o equilíbrio”, e numa operação para a qual foram convocados o Oficial de Justiça e policiais militares lotados no grupamento local, além da autoridade policial, dirigiu-se ao estabelecimento bancário depois do expediente externo da instituição e ali sendo comandou pessoalmente a prisão do gerente Seno Luiz Klock, dando-lhe voz de prisão. Ato contínuo, por determinação do imputado o preso foi conduzido à Delegacia de Polícia para lavratura do ato visando materializar a prova da suposta prática de crime de estelionato.

A prova dos autos, quanto ao fato da prisão e de suas razões determinantes, é incontroversa.
Transcrevo as declarações do acusado por ocasião do interrogatório a que se submeteu neste processo, na sua parte essencial:

“… o depósito foi em 29 de junho e a prisão ocorreu no dia 14 de julho, ou seja, 15 dias  após.  … Nunca agira assim na minha vida, me tenho por uma pessoa equilibrada…; … reconheço que perdi o equilíbrio, admito isso, mais de 15 dias e nada solucionado. Foi aí que fui lá e fiz o que fiz, ou seja, dei voz de prisão….; …só dei voz de prisão e me retirei da agência bancária.         Em nenhum momento mandei algemar o gerente…..; …durante 15 dias eu tentei contacto telefônico e no dia da prisão eu entendi como uma certa afronta, porque telefonei várias vezes e na última vez ele não me atendeu o telefone, sendo que a funcionária que atendeu o telefone disse: o senhor gerente está ocupado numa outra ligação. Ela deixou o telefone aberto e eu ouvindo ele conversar com a cliente. E tanto é assim que eu avisei: diga a ele que eu vou prendê-lo. Pô, pensei: o cara vai ligar . Duas horas se passaram e nada de ele me ligar. Aí fui lá e efetuei o que fiz.  ….chamei a autoridade policial para ir lá efetuar a prisão, porque eu não ia prendê-lo, pegá-lo. Quem faz a prisão é a autoridade policial e não eu. Eu apenas dei voz de prisão e me retirei da agência. …ele queria me explicar naquele momento eu disse:  agora não quero explicação. Estou esperando a 15 dias  e nada de se resolver a situação.  … o senhor está preso. Delegado,  cumpra com sua função (fls. 379)”.

 “ …Volto a dizer: reconheço que perdi o equilíbrio…. hoje eu agiria diferente porque na área cível eu estava cheio de razão, eu era a vítima. Só que por um ato desses eu de vítima passei a réu. Tudo bem. O que está feito está feito ….” (fls. 373 a 375).

A funcionária do Banco do Brasil que no dia 14 de julho de 2005 (a denúncia, nesta parte, se equivoca quanto à data) recebeu o telefonema do acusado, desde a cidade de Santa Maria onde o mesmo  se encontrava, depondo em juízo, esclareceu:

“….Eu atendi o telefone e disse … o Seno está numa outra ligação, é só com ele, eu posso ajudar ? ele disse assim: “então avisa para ele que eu estou saindo daqui de Santa Maria para prendê-lo”. Foi assim sucinto. Taxativo …” (fls. 691).

O vigilante do Banco do Brasil que presenciou o acontecido na agência declarou  ter visto o acusado entrar no estabelecimento e prender o gerente porque ele teria praticado estelionato, sublinhando o depoente  que  “o Dr. Jairo deu voz de prisão a Seno e ordenou ao Delegado que o levasse preso à delegacia algemado” (fls. 707 a 710).

O Delegado de Polícia, Alcindo Martins, o Oficial de Justiça José Humberto da Mota e o Soldado da Brigada Militar Sérgio dos Santos Leivas, todos convocados por telefonema provindo do Fórum local e que participaram da diligência chefiada pelo acusado que culminou com a prisão do ofendido, confirmaram em juízo tal circunstância, de terem sido chamados para dar respaldo ao Juiz de Direito, Dr. Jairo, na operação destinada a executar a prisão do gerente Seno porque ele teria praticado estelionato (fls. 634, 675 e 713).

Não é diverso o longo depoimento do ofendido Seno Klock (fls. 653 a 673).

Assim é que o fato da prisão e a motivação que a determinou restaram comprovados nos autos de forma inquestionável, segundo entendo. Tecnicamente estamos, portanto, diante da prova da autoria e da materialidade de um fato que a lei define como infração penal.
É preciso a partir daqui examinar se, pelo que fez, o acusado merece censura penal.
Sustenta a defesa do réu, em preliminar, que o tribunal pode e deve deliberar sobre pedido que reitera de suspensão condicional do processo, independentemente de proposição neste sentido da acusação.

A questão suscitada pela defesa é recorrente.

Por três vezes este egrégio Órgão Especial, neste mesmo processo, desatendeu o pedido defensivo de suspender o processo, mediante condições a serem cumpridas pelo réu.
Sustentando ter sido ilegal aquela  decisão, porque atentatória ao direito à ampla defesa, o acusado bateu às portas do egrégio STJ, como referido no relatório, sem proveito, no entanto, até o momento, porque a liminar suplicada de trancamento da ação penal não foi deferida e o julgamento final  do pedido embutido na aludida ação  está protraído para não se sabe quando.

Renova a defesa o pedido antes desacolhido e o eminente Desembargador Nereu propõe que este tribunal aguarde o julgamento do habeas corpus pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça como se estivéssemos diante de questão prejudicial.

Não me parece que se deva aguardar o julgamento do habeas corpus. Não estamos diante de questão prejudicial e a matéria não foi reputada relevante por aquela Corte Superior. Caso assim tivesse entendido, teria evidentemente suspenso o andamento do feito, como expressamente requerido.

 Quanto à renovação do julgamento da matéria que agora retorna, sublinhando que muito embora respeitável o entendimento da defesa, permito-me relembrar que a posição deste tribunal, no particular, está escudada na jurisprudência predominante do colendo STF como dito no enunciado 696 de suas Súmulas e que pode assim ser resumida:

“A suspensão condicional do processo pressupõe acordo entre as partes, cuja iniciativa de proposta, na ação penal pública, é privativa do Ministério Público.”

Por ocasião dos julgamentos precedentes tive ensejo e oportunidade de ponderar que o instituto da suspensão condicional do processo, assim como da transação penal strictu sensu, é matéria pertinente à justiça consensual, soando como agressão à noção de acordo que o juiz possa impô-lo às partes litigantes.

Na oportunidade invoquei dois precedentes do Pretório Excelso decorrentes de decisões posteriores ao enunciado 696 da Súmula: o HC  84.342/RJ – Rel. Min. Carlos de Britto – julgado pela 1ª Turma em 12/04/2005 e o RExt. 438161-GO – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado pela 1ª Turma em 31/03/2006).

Sem invocar aplicação ao instituto da coisa julgada, não vejo razão ou fundamento para se  decidir diferentemente esta mesma questão já enfrentada por este órgão julgador neste mesmo processo.

Concernentemente ao mérito da pretensão punitiva, o acusado, pessoalmente e bem assim seus ilustres defensores, externaram o entendimento de que Jairo Cardoso Soares não cometeu nenhum crime porque o denunciado, prendendo o gerente do Banco do Brasil, não teria agido na condição de autoridade, mas como cidadão que, ilegalmente desapossado de seu direito, como sujeito passivo de uma infração penal de cunho permanente, teria agido no exercício regular de um direito. Teria o acusado reagido, como lhe faculta a lei, prendendo  em flagrante o infrator.

Declarou o acusado, por ocasião do interrogatório:

 “…agi como cidadão, no termos do Código de Processo Penal: qualquer pessoa pode dar voz de prisão, desde que esteja acontecendo o delito e o delito estava acontecendo há 15 dias…” (fls. 374).

No meu entendimento, porém, a conduta do acusado não tem justificativa ou amparo legal algum.

 Isto porque mesmo que a instituição financeira tivesse procedido ilegalmente, apropriando-se de valores do cliente – o que absolutamente não aconteceu – a reação do acusado, como cliente comum, isto é, como cidadão, não poderia ser aquela que adotou.

Porque o Banco do Brasil não é e nem pode ser sujeito ativo da prática da infração penal que lhe foi atribuída pelo acusado.

 Nem o gerente poderia ter sido preso, porque nenhuma infração penal praticou ao longo do episódio em que se viu envolvido.

A falha do banco tão veementemente reclamada pelo acusado,  ainda que procedente, não ultrapassava os umbrais de um ilícito civil ou comercial a ensejar no máximo uma demanda da mesma natureza que o acusado reputou “muito complicada” pelas razões que aduziu em seu interrogatório (fls. 386).

O denunciado tem consciência disso, segundo penso.

Na verdade o acusado, tendo se considerado “afrontado”, pelo tratamento recebido dos servidores da instituição financeira, particularmente do gerente Seno Klock de quem se considerava amigo e na casa de quem havia inclusive jantado, reagiu com uma arbitrariedade flagrante.

Não tivesse o denunciado agido como  autoridade, não tivesse ele  se utilizado do cargo que ocupava para fazer o que fez, como agora  sustenta,  teria então  praticado o crime descrito no art. 345 do CP.

Porque esta é a infração penal que pratica todo cidadão comum que resolve desprezar o estado de direito e fazer justiça pelas próprias mãos.

 Assim, por qualquer ângulo que se queira examinar os fatos, não vejo como deixar de reconhecer que o Juiz de Direito Jairo Cardoso Soares não podia ter feito o que fez.

A tese defensiva que objetiva convencer este órgão julgador de que o réu se houve no episódio por ele provocado no exercício regular de um direito, ou, alternativamente, sem vontade livre de ofender, não tem o menor fomento jurídico, data venia.

Tenho assim como demonstrado que o acusado se utilizou, consciente, abusiva e ilegalmente do cargo que ocupava, para fazer o que fez, praticando desta maneira o crime previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898/65, posto que pratica crime de abuso de autoridade o Juiz de Direito que, a pretexto de haver a instituição financeira da qual era gerente o ofendido se apropriado ilegalmente de dinheiro que o Magistrado mantinha naquele estabelecimento, dá-lhe voz de prisão, determinando ao Delegado de Polícia que convocado o acompanhava na diligência conduzisse o preso à repartição para lavratura do ato, numa tentativa inútil de mascarar a arbitrariedade.

Permito-me lembrar que a Lei 4.898/65 visou, primeiramente, conferir proteção penal aos principais direitos individuais reconhecidos na Carta Magna, como a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência, a liberdade de crença e de consciência, o livre exercício do culto religioso, a liberdade de associação, o direito à reunião sem armas em locais abertos ao público e independente de autorização e a incolumidade física e moral do preso.

Num segundo momento a lei visa proteger um interesse social, qual o do regular funcionamento da Administração Pública em sentido amplo, objetivando assegurar o exercício das funções públicas sem abuso de poder por parte dos seus agentes.

Estas duas objetividades jurídicas devem se fazer presente quando do julgamento de uma causa em que se acusa  o agente público de haver atentado contra a liberdade de locomoção de determinada pessoa, como no caso dos autos.

O crime, aliás, já estava previsto no art. 350, caput, do Código Penal, nesta parte derrogado pela lei nova, menos severa do que a prevista na parte especial da Lei Penal Fundamental.
Sustenta igualmente a defesa que o fato de o réu ter sido removido, compulsoriamente, da comarca de Lavras do Sul em razão do episódio objeto deste processo, por motivo de interesse público (CF/88 art. 95, II) não pode se refletir no julgamento desta causa penal. Isto porque são distintas e independentes as esferas administrativa e jurisdicional.

Inegável que as esferas administrativa e jurisdicional são separadas e independentes. Convém, no entanto, lembrar que o órgão que decidiu administrativamente a causa que lhe foi apresentada – coincidentemente este mesmo Órgão Especial do Tribunal de Justiça – relativamente à legalidade da conduta do agente na prática do mesmo fato, o fez com apoio nas mesmas regras e nos mesmos princípios jurídicos que devem informar a decisão jurisdicional que deve ser editada neste processo.

Como não poderia deixar de ser, nenhuma sanção jurídica pode ser irrogada, na esfera administrativa ou jurisdicional, quando o envolvido tiver agido ao abrigo do direito, como alega o acusado nesta instância e como já o fez, sem sucesso, na instância administrativa.

Como o acusado, na esfera administrativa, viu sua conduta desaprovada e punida, porque ilegal e abusiva, não se espera que alimente fundada esperança de que este mesmo Órgão Especial, examinando a questão sob a ótica criminal, venha a decidir o contrário, isto é, que atuou  no exercício regular de um direito que lhe assistia como cidadão comum, desvestido do cargo que então titulava. Muito embora, é certo, sob o aspecto teórico, possa fazê-lo, ainda que isso possa parecer paradoxal, uma vez que a decisão administrativa não vincula a jurisdicional.

No meu entendimento, porém, a partir do exame e da valoração jurídica do que nestes autos se contém, a uma única conclusão pode-se chegar: a  integral procedência desta ação penal, como pretendo ter justificado.

Procedente a ação penal, impõe-se estabelecer a pena necessária e suficiente para reprovar e para reprimir o crime praticado pelo denunciado.

Na escolha da pena aplicável ao caso concreto, dentre as cominadas na Lei 4.898/65, bem assim sua quantidade, observados os limites mínimo e máximo na lei estabelecidos, determina a Lei Penal Fundamental, no art. 59, que o juiz considere a culpabilidade do agente.
Esta expressão aí está não no sentido  de capacidade de culpa (imputabilidade consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa).

Estas exigências, todas elas, se fazem presente na pessoa do acusado, até mesmo por presunção, eis que Magistrado no pleno exercício da judicatura e nada foi oposto no sentido contrário quer pela defesa e menos ainda pela acusação. A expressão culpabilidade aparece no art. 59 do CP no sentido de reprovação social que o crime e o autor da infração penal devem suportar. No sentido de censurabilidade da conduta executada pelo agente.  A culpabilidade que se busca definir neste momento é a integrada pelo conjunto de fatores indicados no aludido tipo legal, por um lado, e, por outro, a repercussão social determinada pelo ilícito perpetrado, tendo-se em atenção os bens jurídicos danificados pelo ilícito praticado.

Sob este aspecto, tenho que a censurabilidade da conduta realizada pelo acusado fica situada muito acima daquela que, nas mesmas condições de ilegalidade objetiva, teria sido perpetrada por outro servidor público que não titulasse o cargo de Juiz de Direito da comarca a quem o ordenamento jurídico confere o grave encargo de velar pelo estado de  direito, devendo servir como paradigma do ideal de justiça, reprimindo a prática de toda e qualquer infração penal. A reprovabilidade da conduta realizada pelo acusado é, no caso, também elevada porque, para sua execução, o réu valeu-se do concurso material de subordinados seus e de outros servidores da área para-jurídica os quais, constrangidos, viram-se posicionados na condição de testemunhas de uma arbitrariedade manifesta.

A culpa do acusado é igualmente elevada porque o ofendido resultou humilhado em seu local de trabalho, na presença dos colegas de serviço, tendo que padecer, como desdobramento do ilícito de que foi vítima, uma transferência compulsória, com prejuízo inequívoco para sua carreira funcional.

Também a circunstância decorrente do afastamento compulsório do réu do cargo, incompatibilizado para o exercício da jurisdição no  Município  em razão da grave falta praticada, com as dificuldades de toda ordem que a ausência de titular na comarca acarreta, é outro dado  concorrente no somatório de itens integrantes das conseqüências danosas do crime  que elevam a censurabilidade da conduta incriminada.

Estes fatores prejudiciais na determinação da escolha da espécie de pena e do seu dimensionamento, se sobrepõem aos que poderiam ser arrolados como favoráveis ao acusado, como os antecedentes, que não registram qualquer anotação; à conduta social, que aparece como abonada pelo depoimento das autoridades representativas da comunidade  que compareceram a juízo para depor neste sentido  e bem assim dos advogados militantes na comarca ouvidos na instrução, com destaque para o longo tempo dedicado à Magistratura, com  participação do acusado nas lides associativas da classe, aparecendo   sem maior expressão o registro das pendências junto às instituições financeiras e ao murmúrio de que o réu teria sido visto embriagado na cidade, no  cotejo com os dados precedentes agora examinados neste item ; quanto à personalidade, dado de difícil apreensão e avaliação, a do réu aparece nos autos como favorável, porque  apresenta a silhueta de  pessoa afável,  compreensiva e bondosa, tratando a todos, no exercício de suas atividades jurisdicionais, com reconhecida atenção e interesse, mostrando-se a agressividade exteriorizada por ocasião  do episódio objeto deste processo como  desbordante de sua maneira de ser  e como fato  isolado; quanto aos motivos que levaram o imputado a proceder da forma como o fez,  foram eles  já realçados, tendo para tanto concorrido, ainda que  não de forma inevitável, o comportamento do ofendido, ou da instituição financeira à qual estava o ofendido vinculado.

De posse de tais dados, penso que a pena privativa de liberdade, no caso, é a que  melhor haverá de cumprir com os objetivos da sanção criminal. Não a pena de multa e nem a perda do cargo. A primeira porque muito aquém da finalidade repressiva que toda sanção criminal deve cumprir, particularmente neste processo e a última porque deve ser reservada aos autores de crimes funcionais punidos na forma do art. 92, inciso I do CP.

Assim é que, com amparo no art. 4º, letra “a”, c/c o art. 6º, § 3º, letra “b” da Lei 4.898/65, sujeito o réu Jairo Cardoso Soares a quatro meses de detenção a serem cumpridos sob regime inicial aberto (CP art. 33, § 2º, letra “a”, c/c o art. 33, § 1º, letra “c”).

O condenado pagará as custas deste processo e verá lançado seu nome no Livro dos Culpados. A Secretaria, oportunamente, procederá às comunicações de estilo decorrente da condenação criminal.

Presentes as exigências legais (CP art. 44, § 2º), a pena privativa de liberdade imposta é substituída  por prestação pecuniária (CP art. 43, I) consistente no pagamento em dinheiro da quantia de cinqüenta (50) salários mínimos nacionais em vigor no dia 14/07/2005 em proveito de entidade com destinação social do Município de Lavras do Sul (CP art. 45, § 1º) a ser identificada na fase da execução.  É como voto.


 

 

 

Clovis Brasil Pereira
Clovis Brasil Pereirahttp://54.70.182.189
Advogado; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil; Professor Universitário; Coordenador Pedagógico da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da FIG – UNIMESP; Editor responsável do site jurídico www.prolegis.com.br; autor de diversos artigos jurídicos e do livro “O Cotidiano e o Direito”.

Fale Conosco!

spot_img

Artigos Relacionados

Posts Recentes