Justiça e Moral

* Eduardo Sens dos Santos –

1. Introdução

          A discussão acerca da justiça e da moral tem ocupado o pensamento de filósofos, pensadores e juristas por todo o mundo. É uma questão que se refere diretamente ao sentido que cada pessoa dá à palavra. Diante disso, trata-se de argumentação difícil, pois, como exemplifica Jostein Gaarder em "O Mundo de Sofia", a mente humana é por demais complexa, sendo, portanto, mais complexo ainda definir seus limites (1).

          Neste estudo não se tem o objetivo de acabar de vez, ou esgotar o debate "Justiça e Moral". Busca-se sim, chegar a uma ponto de vista simples do significado de tais palavras no âmbito do Direito.

          Num primeiro plano, estuda-se separadamente os conceitos e tendências contemporâneas das palavras Justiça e Moral, para, na parte conclusiva, tratar, breve e simultaneamente, das deduções próprias sobre as obras consultadas.

 

2. A Justiça

          Kelsen (2) identifica a justiça como a felicidade social. Uma explicação que seria quase matemática se o sentido da palavra felicidade não fosse tão complexo quanto o de justiça. Desta maneira, deve-se, portanto, perquirir o sentido da palavra felicidade.

          Miguel Reale tenta esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade em sua obra Fundamentos do Direito:

          "Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinação que nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nem mesmo necessidade de Justiça. A Justiça é uma valor que só se revela na vida social, sendo conhecida a lição que Santo Tomás nos deixou ao observar, com admirável precisão, que a virtude de justiça se caracteriza pela sua objetividade, implicando uma proporção ad alterum" (3).

          No entendimento, portanto, do Professor Reale, quando todas as pessoas atingissem a felicidade não haveria necessidade de Direito ou Justiça. Entendimento este que ouso divergir, baseado em Hans Kelsen, pois fica evidente não poder existir um ordenamento justo se o que é justo é o que traz a felicidade; e o que é felicidade para um, pode não ser para outro, e freqüentemente não o é.

          Por exemplo, quando duas mulheres brigam pela guarda de uma mesma criança. Se uma delas ficar com tal criança, a outra será infeliz. Caso nenhuma delas fique com o pedaço, ninguém ficará feliz. Assim, nenhum ordenamento pode garantir a justiça de modo que ambas as mulheres fiquem felizes.

          Deste modo, pode-se aferir que a felicidade, de acordo com Kelsen, depende da satisfação das necessidades, o que nenhuma ordem social pode garantir a todos.

          No entanto, certeira é a posição de Miguel Reale quanto às desigualdades humanas. Quando fala que ao se apreciar a natureza humana não devemos apenas atender ao que é idêntico em todos os homens, mas principalmente ao que lhes é diferente. (4)

          A par disso, a definição do filósofo inglês Jeremy Bentham, quando afirma que "uma ordem social justa é impossível, mesmo diante da premissa de que ela procure proporcionar, senão a felicidade individual de cada um, pelo menos, a maior felicidade possível ao maior número possível de pessoas" é de grande valia. Nesse ínterim, contudo, não se aplica ao valor felicidade nenhum sentido subjetivo. Fica clara a objetividade, haja vista pessoas diferentes terem concepções diferentes sobre o que seja felicidade.

          Kelsen afirma, ainda, que o conceito de felicidade deverá sofrer radical transformação para tornar-se uma categoria social: a felicidade da justiça. É que a felicidade individual deve transfigurar-se em satisfação das necessidades sociais. Como acontece no conceito de democracia, que deve significar o governo pela maioria e, se necessário, contra a minoria.

          Neste mesmo sentido, conceituando a Justiça, Miguel Reale escreve que a Justiça geral é a Justiça por excelência, tendo em vista que "o bem comum não se realiza sem o bem de cada homem e o bem de cada um não se realiza sem o bem comum" (5). Assim, considera-se o "bem comum" como o objeto mais alto da virtude da justiça, pois não pode tratar o direito de garantir todas as liberdades individuais em detrimento das liberdades comuns.

          Mas a justiça também depende de uma hierarquia de valores como, por exemplo, os valores vida e liberdade. Qual seria o valor hierarquicamente maior? Uns diriam ser a vida o bem supremo; outros argumentariam ser a liberdade o maior bem, posto que de nada valeria a vida sem liberdade. Neste sentido, poder-se-ia enumerar vários casos em que as hierarquias dos valores seriam diferentes, chegando-se à conclusão de Kelsen: "é nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito". (6) Destarte, o juízo só é válido ao sujeito julgador.

          Outro ponto que se deve analisar é o da justiça como um problema de justificação do comportamento humano. É o caso de certos valores serem aceitos por todos dentro de determinada sociedade – a unanimidade sobre um juízo de valor existente entre muitos indivíduos não pressupõe a veracidade desse juízo, isto é, não pressupõe sua veracidade objetiva. Assim, dentro de uma sociedade, por exemplo, a pena de morte poderia ser aceita por todos, o que seria justo. Neste sentido, a justiça estaria justificando o comportamento humano, qual seja, de instituir a pena de morte; em outras palavras, seria justo o comportamento humano que fosse aceito na sociedade.

          Em se tratando de justiça, importante se falar do Direito Natural. Diz Kelsen: "a doutrina do Direito natural afirma existir uma regulamentação absolutamente justa das relações humanas que parte da natureza em geral ou da natureza do homem como ser dotado de razão" (7). Neste aspecto a natureza seria colocada como legislador, sendo que quando dela se fizesse uma análise cuidadosa, sempre se encontraria uma conduta humana correta, justa. Infere-se então, que se o Direito natural deve ser deduzido da natureza do homem enquanto ser dotado de razão, sem se considerar uma origem divina, tem-se um caráter racionalista. Este método não merece credibilidade pois a natureza não é dotada de vontade, não podendo prescrever qualquer comportamento humano definido.

          Hans Kelsen passa também pela discussão absolutismo e relativismo na justiça, ensinando que a razão humana só consegue compreender valores relativos. Logo, nunca se poderá ter um juízo de valor que declare algo justo sem se ter outro juízo que o considere injusto. "Justiça absoluta é um ideal irracional" (8). Não obstante, se numa hierarquia de valores, a paz social é o maior valor, a solução por ela fundamentada (pela paz social), é vista como justa.

          Miguel Reale reconhece que o valor-fim próprio do Direito é a Justiça, não como virtude, mas em sentido objetivo como justo, como ordem que a virtude justiça visa realizar.

          "Todo homem procura o seu bem e como o homem se destina à vida em sociedade, esta é, em um certo sentido, uma ordem na incessante procura do bem, isto é, de todas aquelas coisas que representam um meio para a satisfação dos fins inerentes à nossa natureza de homens, à nossa qualidade de pessoas". (9)

 

2. A Moral

          A palavra moral, para De Plácido e Silva, "designa a parte da filosofia que estuda os costumes, para assinalar o que é honesto e virtuoso, segundo os ditames da consciência e os princípios de humanidade" (10).

          Num sentido amplo, moral é o conjunto de normas de comportamento, de procedimento, que são estabelecidas e aceitas segundo o consenso tanto individual, como coletivo.

          Para Giorgio Del Vecchio as ações humanas dividem-se em parte subjecti e parte objecti. A primeira diz respeito ao campo da moral, sendo a segunda relativa ao campo do direito. O autor insiste na distinção entre o aspecto exterior do direito (físico) e o aspecto interior (psíquico) da moral.

          Logo de início, portanto, depara-se com esta divisão que irá nortear toda a teoria de Del Vecchio em relação à moral e ao direito, tal seja: a moral ser parte do subjetivo do homem.

          Citando Cristiano Tomásio, Giorgio Del Vecchio concorda que a moral respeita apenas ao foro íntimo, enquanto o direito diz respeito ao foro externo. Discorda, entretanto, da afirmação de que apenas o Direito era coercível, ao passo que a moral não era, relacionando outras sanções inerentes à moral (remorso, sanção da opinião pública…). (11)

          A distinção entre o direito e a moral reside portanto, basicamente, no fato de que a moral impõe ao sujeito uma escolha entre ações que se pode praticar; mas que se refere somente ao próprio sujeito. O direito, é bilateral, pois refere-se ao foro externo do sujeito enquanto ser social. Este, por sua vez, não pode escolher entre obedecê-lo ou não.

          Ainda, para Giorgio Del Vecchio, a moral é unilateral e o direito bilateral. A unilateralidade da moral reside no seu efeito regulador, que só diz respeito ao próprio agente; por exemplo, somente a pessoa que tem como um valor moral a monogamia sentiria sua própria coerção (remorso etc.) perante a bigamia. Por outro lado, a bilateralidade do direito é clara, pois o comportamento do sujeito é sempre levado em consideração perante os outros.

          Kant defende a moral de modo a ser entendida como a diferença entre o "certo" e o "errado", ultrapassando a questão de sentimento, do que cada pessoa tem para si por certo ou errado. Neste ponto concorda com os racionalistas ao dizer que a diferenciação entre certo e errado é algo inerente à razão humana — todas as pessoas sabem o que é certo e o que é errado porque isso é inerente à razão(12).

          Ao argumentar sobre o "certo" e o "errado" Kant identifica uma lei moral universal que vale para todas as pessoas, em todas as sociedades, em todos os tempos. Ela não diz o que se deve fazer nesta ou naquela situação, ela prescreve o comportamento em todas as ocasiões.

          Portanto, de acordo com o pensador prussiano, a lei moral é um imperativo categórico. Categórico porque vale para todas as situações; imperativo porque é uma ordem, absolutamente inevitável.

          Uma das fórmulas do imperativo categórico de Kant é a que diz: devemos sempre agir de modo a podermos desejar que a regra a partir da qual agimos transforme-se em lei geral. Ora, se queremos agir de forma errada (errada perante a sociedade como um todo), devemos esperar que esta forma de agir se transforme em lei geral. Em último caso, a obediência à lei justifica-se pelo fato de ter sido criada pelo próprio homem, pois são os legisladores que se submetem à legislação (ou pelo menos assim deveria ser).

          Hans Kelsen considera o imperativo categórico uma fórmula vazia de justiça. Diz que ao examinarmos os exemplos concretos que Kant utiliza para ilustrar a aplicação do imperativo categórico, constataremos tratarem-se de regulamentos da moral tradicional e do direito positivo da sua época.

          Apesar disso, Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, delineia os conceitos de vontade e dever. Para ele, o conceito de dever contém em si o de boa vontade. Assim, com base no dever, Kant formula três proposições básicas: 1) a ação é moral quando praticada por nenhuma outra inclinação ou interesse, a não ser obedecer somente à lei do dever; 2) a ação é a que tem o seu valor não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; 3) dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei. Desta maneira, Kant afirma que somente o impulso subjetivo que for compatível com a moralidade diz respeito à lei.

          Neste sentido, somente quando os homens fazem alguma coisa por considerar seu dever, sua obrigação seguir a lei moral, é que se pode falar de uma ação moral.

          Pode-se então concluir que o dever contém em si a boa vontade. É a única forma de objetivação da vontade em si mesma. Para Kant, portanto, o imperativo categórico corresponde ao dever.

          O pensamento Kantiano assevera que, afirmar que o homem é livre é admitir que o homem pertence ao mundo sensível e inteligível. O imperativo categórico se prende ao pressuposto de que o ser humano pertença tanto ao mundo sensível quanto ao inteligível. Se não pertencesse ao mundo inteligível, não haveria possibilidade de existir a lei moral, e conseqüentemente, o imperativo categórico, que é a razão pura tornada prática. Se não pertencesse ao mundo sensível não haveria sensibilidade, e não haveria um ser ao qual estabelecer um dever a cumprir.

 

3. Conclusão

          O tema escolhido, como já dito na parte introdutória, é deveras complexo, razão pela qual me restringi a conceituar a justiça e a moral, perante os grandes pensadores do direito, comparando-os.

          Com respeito à justiça, restou forte a conclusão de Kelsen: "é nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito". A frase ajuda esclarecer o sentido da palavra justiça. A justiça é o que é justo ao emocional de quem julga.

          A moral, bem como a justiça, parece ser baseada nos mesmo pressupostos: só é moral do ponto de vista subjetivo de quem julga. Ou seja, pode ser moralmente certo a determinado sujeito matar o próprio filho, enquanto que para a sociedade em si tal atitude é totalmente hedionda. Se cada pessoa pudesse agir apenas de acordo com seus pressupostos morais, teríamos realmente o caos. Daí sobrevém, então o direito, que visando normatizar a moral dominante (o que nem sempre é seguido à risca), para que se tenha estabilidade social.

          Por fim, pode-se dizer que, tanto a justiça quanto a moral, têm caráter extremamente subjetivo, pois depende, tão-só, do juízo do agente a definição destes conceitos. Da mesma maneira, em relação aos fatos que serão julgados, o cidadão julgador terá sempre seus próprios juízos de valor.

 

NOTAS

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia : romance da história da filosofia. São Paulo : Companhia das Letras, 1995. Pág. 355.

KELSEN, Hans. O que é justiça? [tradução Luís Carlos Borges e Vera Barkow]. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3a ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1998. Pág. 306.

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 307.

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 309.

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 05.

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 21

KELSEN, Hans. Op. Cit. Pág. 23

REALE, Miguel. Op. Cit. Pág. 306.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 10. Ed. Rio de Janeiro : Forense, 1987.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Vol. II. 3a ed. corrigida e atualizada. Coimbra : Arménio Amado Editor, 1959. Pág. 93.

GAARDER, Jostein. Op. Cit. Pág. 344-364.

 

Bibliografia

ALTHOFF, Cláudia Regina. Direito e moral: uma breve reflexão. Revista Jurídica. Blumenau. nº 1/2. Pág. 155-169, 1997.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Vol. II. 3a ed. corrigida e atualizada. Coimbra : Arménio Amado Editor, 1959.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia : romance da história da filosofia. São Paulo : Companhia das Letras, 1995.

GRAFF, Adelhard. A moral em Kant. Revista Jurídica. Blumenau. nº 1/2. Pág. 207-217, 1997.

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1961.

KELSEN, Hans. O que é justiça? [tradução Luís Carlos Borges e Vera Barkow]. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3a ed. São Paulo : Editora Revista dos tribunais, 1998.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. Ed. São Paulo : Saraiva, 1995

 


Referência Biográfica

Eduardo Sens dos Santos  –  Advogado em Florianópolis (SC)

E-mail: eduardo_sens@yahoo.com

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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