Estupro e aborto

João Baptista Herkenhoff

Em Recife, uma menina de nove anos foi estuprada pelo padrasto.

Franzina, pesando 33 quilos, com altura de 1 metro e 33 centímetros, a pequena violentada é, na verdade, uma criança.

Com o consentimento da menina e de sua mãe, o médico Sérgio Cabral realizou o aborto. Justificou sua conduta, não apenas no fato de que o aborto resultara de estupro, mas também noutra circunstância: o prosseguimento da gravidez colocava em perigo a vida da menina grávida.

O arcebispo de Olinda e Recife levantou-se furiosamente contra a mãe da criança e o médico impondo a ambos a pena que, no Direito Canônico, é denominada de excomunhão.

Gostariamos de refletir sobre este episódio com as lentes do Direito, da Ética e da Fé Cristã.

Sob o aspecto jurídico, à luz do Direito Brasileiro, o médico Sérgio Cabral não cometeu crime.

Segundo estabelece o artigo 128, do Código Penal, não se pune o aborto praticado por médico, se a gravidez resulta de estupro e se a interrupção da gravidez é precedida de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

O caso da menina de Recife ajusta-se plenamente à hipótese definida na lei. A gravidez resultou de estupro e o aborto foi praticado com o consentimento da mãe da criança.

Socorrendo a licitude do ato médico há uma outra premissa que elide o crime. O aborto foi praticado porque a vida da menina correria perigo se a gravidez não fosse interrompida.

Quando exercia a função de Juiz, absolvi certa vez uma jovem acusada da prática do crime de aborto. Segundo as testemunhas, toda noite embalava um berço vazio, como se nele houvesse uma criança. Percebi que não era suficiente eximi-la do processo penal mas libertá-la também do sentimento de culpa que a atormentava. Disse-lhe então que ela era muito jovem, sua vida não tinha acabado. A criança, que ia nascer, não existia mais. Entretanto, ela poderia ter filhos que alegrassem sua vida. Eu a absolvia se ela prometesse, como prometeu, não mais embalar um berço vazio.

Além desse ângulo do Direito, também sob o prisma da Ética, a conduta médica não merece qualquer censura.

Por Ética entendemos o esforço do espírito humano para formular juízos tendentes a iluminar a conduta das pessoas, grupos, comunidades, nações, segundo um critério de Bem e de Justiça.

Não pretendo afirmar que o aborto tem sempre o amparo da Ética. Não tem esse amparo geral, em todas as situações que se apresentem, porque o critério de Bem e de Justiça impõe que a vida mereça reverência. Trata-se de reconhecer que, no caso da menina pernambucana, o julgamento ético não condena a atitude do médico, nem condena a atitude da mãe da criança grávida. Sob a luz da idéia de Bem e de Justiça, o médico agiu corretamente decidindo pelo aborto, neste caso. É um gesto do Bem, inspirou-se no sentimento de Justiça a decisão que o médico tomou.

Finalmente, tentemos examinar a questão pelos ensinamentos da Fé Cristã. Embora eu não seja teólogo, aventuro-me a uma incursão nesta área, para fechar o artigo.

Na sua célebre Carta sobre o Amor, São Paulo diz que de nada vale vendermos todos os nossos bens e distribuir o produto da venda aos pobres, se não tivermos Amor. Nada significaria termos a capacidade de falar todas as linguas do mundo, se nos faltasse o Amor. Segundo Paulo, o Amor é paciente, prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se enche de orgulho, não é inconveniente, não é interesseiro, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Diante desta palavra do Apóstolo Paulo podemos concordar com a atitude do Arcebispo que excomungou o médico e a mãe da criança estuprada?

Certamente não dá para concordar.

O decreto de excomunhão seguiu o conselho de Paulo quando o Apóstolo diz que o Amor tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, não se irrita, não guarda rancor?

A meu ver, não.

Na mesma cátedra onde hoje está sentado o Arcebispo que excomungou o médico, sentou-se um dia o inesquecível Dom Helder Câmara.

Veja que D. Hélder não entendia que defender a vida é apenas colocar-se contra o aborto. Via uma dimensão social na defesa da vida. Defender a vida é defender vida digna para todos:

“O verdadeiro Cristianismo rejeita a idéia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus.”

D. Hélder tinha uma visão profunda de solidariedade e partilha:

“As pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração.”

D. Hélder era um otimista, celebrava a vida como dom de Deus:

“Feliz de quem atravessa a vida inteira tendo mil razões para viver.”

Não vejo que as mãos santas de D. Hélder Câmara brandissem a espada espiritual para excluir quem quer que seja do redil, ou para amaldiçoar pessoas, e muito menos condenar, num episódio triste como este.

Dom Hélder entenderia a angústia da criança estuprada e de sua Mãe e veria o gesto do médico como um gesto de fraterna caridade.

Dom Hélder soube amar e por esta razão até hoje é um guia para todos nós e uma estrela a apontar caminhos.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

João Baptista Herkenhoffjbherkenhoff@uol.combrHomepage: www.jbherkenhoff.com.br é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo e magistrado aposentado. E-mail: 


Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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