Direito à honra e liberdade de expressão: a propósito da recente decisão do Supremo Tribunal Federal

Paulo Queiroz

Direito à honra e liberdade de expressão: a propósito da recente decisão do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal acaba de confirmar decisão liminar do ministro Carlos Ayres Brito suspendendo, por incompatibilidade com Constituição de 1988, diversos artigos da Lei n° 5.250/67. Destacou-se, principalmente, o clima antidemocrático em que a legislação foi concebida e sua desconformidade com o sistema de valores e princípios constitucionais. A democracia, afirma o ministro relator, é o princípio dos princípios da Constituição de 1988, ou seja, valor dos valores ou valor-continente por excelência (sic).

Mas o que parece mais radical e surpreendente é a suspensão dos artigos 20, 21 e 22, que tratam dos crimes contra a honra: calúnia, difamação e injúria, respectivamente (conforme item 11, c, da liminar), apesar da ressalva feita quanto à aplicabilidade dos Códigos Penal e Civil.

É que, em verdade, a argumentação desenvolvida pelo ministro relator, embora dirigida especificamente aos crimes por meio de imprensa, é genérica e, pois, aplicável a todo e qualquer crime contra a honra, a exemplo daqueles previstos no Código Penal (arts. 138 a 140), no Código Eleitoral (arts. 324 a 326), no Código Penal Militar (arts. 214 a 219) e toda legislação especial relativa às mesmas infrações. A repercussão parece inclusive que não seria apenas jurídico-penal, mas também civil, tal é a amplitude que se pretendeu emprestar à liberdade de expressão. Aliás, se tomarmos a sério e levarmos às últimas conseqüências a afirmação de que “a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”, conforme assinalou o ministro relator, o alcance da decisão será ainda mais radical, podendo atingir, em tese, até mesmo os crimes de desacato e ameaça, entre outras infrações penais.

E se a decisão for mantida como se pretende, será inevitável a extensão de seus efeitos para além dos crimes de imprensa, principalmente porque: a)tais leis (Código Penal, Código Eleitoral, Código Penal Militar etc.) definem, com idêntica ou quase idêntica redação, as mesmíssimas práticas criminosas, que sempre consistem em caluniar, difamar e injuriar alguém; b)se não existe crime contra a honra por meio de imprensa, que talvez seja a forma mais danosa que tais delitos podem assumir, em virtude da repercussão, tampouco se poderá considerar como crime quando tal se fizer por modo menos lesivo de violação à honra (v.g., calúnia feita direta e pessoalmente à vítima). Não por acaso, quando por meio de imprensa, os crimes contra a honra são em geral punidos mais severamente, mesmo porque podem implicar, inclusive, a “morte civil” do ofendido; c)a grande maioria dessas leis foi também editada em períodos não democráticos; d)fatos idênticos ou quase idênticos exigem tratamento idêntico ou quase idêntico (princípio da isonomia).

A ser coerente, portanto, o Supremo Tribunal Federal terá de declarar a inconstitucionalidade (ou não recepção) de toda a legislação infraconstitucional que defina como crime ofensas à honra. Afinal, a constitucionalidade do direito de ofender por meio de imprensa implicará, necessariamente, a sua legitimação por qualquer outro meio.

É certo ainda que não existem direitos absolutos, sequer o direito à vida o é, tanto é assim que se admite a pena de morte excepcionalmente, é assegurada a legítima defesa, o aborto é permitido nalguns casos etc.. E tão importante quanto o direito à liberdade de expressão é o direito à honra, igualmente protegido pela Constituição Federal (art. 5º, X); mas O STF, a pretexto de afirmar o primeiro, acabou por extinguir o segundo.

E a se ignorar o direito à honra e a se tolerar que “o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”, quando por meio de imprensa, então, legítima será toda e qualquer ofensa à honra, por mais sórdida, contrariamente aos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito, afinal decisões que absolutizam direitos, a pretexto de afirmá-los, implicam a própria negação do direito.

 


 

 

PAULO QUEIROZ: Doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.

Website: www.pauloqueiroz.net 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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