Condições da Ação e acesso à Justiça

* Leonardo Pereira Martins –

Resumo:  O artigo presente trata da doutrina das condições da ação enquanto mecanismo técnico-jurídico potencialmente útil ao obstaculamento do acesso à justiça. Analisa brevemente cada uma das condições, sob a ótica do direito positivo brasileiro, vislumbrando sua aptidão à consecução e à negação do acesso.

 

Introdução

O problema do Acesso à Justiça tem sido enfrentado segundo diferentes abordagens, as quais denotam maior ou menor grau de pragmatismo, dependendo da leitura que se faz dessa expressão, daí falar-se em diferentes acepções do termo. Basicamente, pode-se compreendê-la como significando acesso ao Judiciário e, em geral, à respectiva sentença; ou acesso a todo e qualquer órgão, Poder (incluindo-se o Judiciário), informação e serviço públicos e aos direitos concernentes à condição humana e à cidadania.

São respectivamente as acepções formal e material da expressão. Interessa ao estudo aqui proposto a primeira acepção, por razões de ordem prática. Visto o problema sob um prisma negativo, o que carece investigação não é propriamente o Acesso à Justiça, mas suas dificuldades, obstáculos e os mecanismos técnico-jurídicos, sociais, culturais e econômicos pelos quais e dá o obstaculamento. Especificamente interessa investigar a doutrina das condições da ação no contexto da negativa de acesso à justiça.

Bastante simples é a idéia que se deseja apresentar, apesar de pouco observada. A doutrina clássica das condições da ação não raras vezes serve de empecilho à consecução da justiça e mesmo da mera atividade jurisdicional. Assim é claro, se empregada em dissonância com as concepções jurídicas e sociais vigentes. Tratando individualmente de cada uma das condições, demonstrar-se-á a assertiva. 

DESENVOLVIMENTO 

Interesse de agir

É a condição da ação que menos repercute negativamente no Acesso à Justiça. Na verdade, tal como vem sendo aplicada, chega mesmo a ser de grande valia a sua consecução. Consiste, como se sabe, na necessidade da tutela jurisdicional para a efetiva reparação do dano causado ou para impedir que ocorra o evento danoso.

Muitas ações judiciais seriam propostas sem verdadeira necessidade, não fosse a adequada utilização que se tem dado ao instituto. Os juízos abarrotar-se-iam ainda mais de processos a exigir desfecho e a qualidade da prestação jurisdicional seria outra vez prejudicada. O volume de litígios crescente inviabilizaria a celeridade da resposta estatal e, já desacreditado, o Judiciário assistiria a tudo sem perspectivas de solução.

Daí o Estatuto Processual Civil brasileiro estabelecer em seu artigo 3º que para propor ou contestar a ação é necessário ter interesse e legitimidade”(Sublinhei). É na esteira desse raciocínio que se exige, por exemplo, que o cheque seja apresentado ao banco emitente antes que possa ser executado judicialmente, ou que, nos litígios relacionados à maioria das questões esportivas, somente possível a propositura de ação depois de intentados procedimentos da chamada “justiça desportiva”.

Reconhecido que por força do preceito em comente ao Judiciário devem caber apenas os casos cuja resolução exija seus préstimos, com os atributos a eles afetos, resta impedir que seja reduzido a instrumento de demonstração do poder de uns sobre outros. 

Legitimatio ad causam 

Segundo a doutrina clássica dessa condição, só podem propor ou contestar quaisquer ações (CPC, art. 3º) aqueles que legitimamente figurarem nos pólos ativo e passivo da relação substancial levada ao Judiciário para deslinde. Assim, a princípio, são legitimados para agir apenas os titulares dos interesses materiais em conflito. Entretanto, de logo se percebeu a insuficiência dessa doutrina à resolução de um sem número de casos práticos.

Surge, então, a legitimação extraordinária que, em oposição à ordinária, mencionada acima, confere a quem não é titular do interesse material deduzido em juízo legitimação para agir. Afigura-se a chamada substituição processual, que ocorre quando se litiga em juízo, em nome próprio, em qualquer dos pólos, na defesa de direito alheio. È o disposto no artigo  6º do CPC: Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.

O próprio Código Comercial, de 1850, já trazia situação em que se verifica o fenômeno. De lembrar a possibilidade de o capitão do navio, não sendo seu proprietário, requerer o arresto de mercadorias da carga para garantir o pagamento do frete (Código Comercial, artigo 227). Contudo, acentuada evolução da legislação pátria nesse aspecto deveu-se ao advento da Carta Constitucional vigente. Demonstram-na a legitimação extraordinária conferida ao Ministério Púbico, na defesa dos interesses difusos e coletivos, aos sindicatos e associações, na defesa de seus integrantes, ao cidadão, na defesa dos direitos tutelados pela ação popular etc.

Cumpre agora demonstrar de que modo se dá o obstaculamento referido a partir do preceito em comente. Na verdade, não decorre do instituto considerado em si mesmo, mas sim, como costuma acontecer com as demais condições da ação, resulta do emprego obsoleto de sua interpretação.

Noutros termos, surge como empecilho à consecução da justiça na medida em que, restritivamente interpretado, impede o Judiciário de apreciar ações cujo pedido seja perfeitamente aceitável se propostas por quem ordinariamente legitimado para agir. Ao defender uma interpretação não restritiva da condição, deseja-se impedir que sirva de ardil a operadores do direito despreocupados com a realidade subjacente a seus escritos, aqui se incluindo advogados, juizes, membros do Parquet e quaisquer outros.

Seja conferida ao instituto a extensiva interpretação que lhe trouxe a Carta Política de 1988, relativamente aos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais aos quais sobrepôs-se. Veja-se não se carecer de mudança na legislação, mas na concepção do instituto de modo a fazê-lo adequado à intenção demonstrada pelo constituinte originário. Para sua coerente leitura deve-se ter em mente a necessidade hodierna de cada vez mais tornar relativos os preceitos privatísticos a favor de sua publicização, nota característica e inegável da moderna ciência processual. 

Possibilidade jurídica do pedido 

No direito processual brasileiro, ação cujo pedido não se enquadre abstratamente em permissivo já positivado é sumariamente rejeitada, sem apreciação do mérito pelo juiz, sendo o autor declarado carente dela. A preconcepção (e não a mera previsão do instituto no ordenamento jurídico) tendente a encerrar a atividade jurisdicional sem atacar o mérito da causa, por si só representa empecilho ao Acesso à Justiça, na medida em que ninguém proporia ação cujo pedido conflite com o dogma da ordem institucionalizada. Mesmo não desejando recorrer-se a casuísmos, na demonstração do fenômeno, impossível deixar de perceber na lição do eminente professor Dalmo de Abreu Dallari, ilustração adequada do quadro.

Relata que, como advogado, numa ocasião foi procurado por uma mulher que, após conviver maritalmente por 30 anos sem que fosse legalmente casada, assistiu, com a morte de seu companheiro, à perda da casa que ajudou a adquirir. Perdeu em favor da esposa, cujo relacionamento durou pouco mais de dois anos, perdidos na memória do de cujos já há décadas. Prossegue: fui advogado dessa mulher, (…) tentando fazer com que se reconhecesse que ela é que deveria ficara com a casa (…). E, no entanto, fui derrotado porque o juiz que julgou o caso entendeu que a lei não amparava de qualquer maneira a minha cliente. Idêntica situação tornou-se inimaginável com advento da Lei n.º 8.971/94, que Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Pergunta-se se impertinente o pedido formulado pelo ilustre jurista.

É claro que não se deseja com essa fundamentação teorizar ou mesmo defender que o Judiciário aprecie ações com pedidos juridicamente impossíveis, claramente contrapostos ao interesse social. Desejável é que antes de o magistrado declarar a carência de ação que indague acerca do fundamento dessa sua convicção. Se fundamentada no interesse social, não há o que discutir, declara-se a carência. Mas se a convicção do magistrado deter-se simplesmente ao dogma da ordem legal positivada, recomenda-se reexame valorativo da situação.

CONCLUSÃO 

A utilização cega e aparentemente apolítica da doutrina clássica das condições da ação conduz à negação da prestação jurisdicional, na medida em que faz preconcebidos na letra fria da lei e no inconsciente dos julgadores os pedidos que podem e os que não podem, sequer ter seus méritos conhecidos. Adiantam-se, então, os que assim procedem em fazer incidir o artigo 267 do Código de Processo Civil: Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito: (…) VI – Quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes ou o interesse processual.

É preciso, contudo, ter sempre em mente que nem mesmo a lei pode impedir que o Judiciário aprecie lesão ou ameaça de direito (art. 5º, XXXV da CF/88). Não há que se permitir, então, a interpretação indevida desses preceitos, com o fim de restringir o Acesso à Justiça. Aliás, apenas admissível uma teoria das condições da ação que sirva à disciplina dos feitos, o que agiliza a prestação jurisdicional. Inconcebível uma que venha travestir de legal e necessário o obstaculamento da justiça. 

Referências Bibliográficas 

ALVIM, José Eduardo Carreira. Elementos de Teoria Geral do Processo. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

 ROURE, Denise de e PASSOS, Nicanor Sena. Efeito Vinculante: prós e contras. Revista Consulex, São Pulo, v 03, jan.-mar., 1997.

 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Vol 1, 20 ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

Revista Consulex, v. 03, p. 16. (Sublinhei.)

 


 

Referência Biográfica

Leonardo Pereira Martins é bacharel em Direito, graduado em 2002, pesquisador associado ao Núcleo de Estudos e Pesquisa do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Católica de Goiás. Desempenha atividade de assessoria ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. 

Endereço: Rua Matupã, quadra 218, lote 07, Parque Amazônia. Goiânia – GO. CEP 74835-490. Fones: (0xx62) 280-7364 e 9908-5694  –   leopmartins@bol.com.br  – artigo publicado em 26/04/2007


Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

Fale Conosco!

spot_img

Artigos Relacionados

Posts Recentes